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sábado, 27 de fevereiro de 2010

Santo Daime


O QUE É O SANTO DAIME
- Da Consciência de nossa dupla Simbiose


Conta uma lenda indígena norte-americana que, nos primórdios da história da terra, houve uma grande conferência de todos animais existentes, em protesto contra a atitude devastadora e ignorante do Homem diante do meio ambiente. "A natureza é a grande mãe de todos os bichos e o homem deseja submete-la aos seus caprichos" - denunciou a serpente, cobrando uma atitude de todos.
"A única forma é fazê-lo sentir na própria pele o efeito de seus atos, mesmo que isso leve muitas gerações" - ponderou o coiote. E assim, ficou decidido que cada animal se transformaria em uma doença humana: o leão seria os males do coração; o elefante, a obesidade; os eqüinos, as doenças de pele. E quanto mais o Homem destruísse a Natureza, mais ele seria vítima da vingança dos espíritos animais, na forma de doenças.
Segundo a lenda, então, o mundo vegetal sentiu compaixão pelo Homem e decidiu ajudá-lo. E as plantas se transformaram em remédios, uma para cada tipo de doença gerada pelos instintos animais. Às plantas mais nobres, no entanto, foi dada a missão de despertar a consciência, para que um dia o Homem aprendesse a viver em harmonia com a terra e cumprisse seu destino.


RESUMO: O Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD), órgão do Ministério da Justiça, publicou no Diário Oficial da União, dia 25 de janeiro de 2010, resolução regulamentando o uso religioso da Ayahuasca - bebida de propriedades psicoativas utilizadas por diferentes cultos brasileiros (Santo Daime, União do Vegetal, a Barquinha – para citar os principais) do norte do país. A decisão do governo brasileiro cria uma jurisprudência internacional importante, confirmando os pareceres da Suprema Corte dos EUA. Por outro lado, a resolução proíbe o uso terapêutico da bebida, bem como seu uso recreativo associado a eventos turísticos. Além disso, a resolução estabeleceu regras para que a bebida seja comercializada ou utilizada fora do contexto religioso. A decisão desencadeou algumas reações contrários de setores conservadores, acusando o governo de ter liberado uma droga perigosa que “causa alucinações” sob a desculpa de uma pretensa finalidade religiosa. Respondendo a essa colocação, o presente texto tem por objetivo explicar o que é o Santo Daime; como é a experiência cognitiva de beber Ayahuasca, do ponto de vista psicológico, como também apresentar de forma resumida a singular pesquisa acadêmica e existencial desenvolvida por diversos pesquisadores a partir dessa experiência cognitiva, comprovando assim seu valor inestimável.


Preambulo
Sempre pensei em escreve um texto sobre o Daime. E até fiz um texto bem descritivo, mas que não problematizava a experiência. E eu queria escrever um texto para registrar a vivência espiritual que modificou minha vida radicalmente. Um testemunho subjetivo de um sujeito apaixonadamente envolvido com seu objeto, mas que procura entendê-lo da forma mais objetiva possível. Há vários obstáculos para essa ‘objetivação’.
Em primeiro lugar, é preciso entender que a Pesquisa do Ayahuasca não é apenas um campo interdisciplinar ou multidisciplinar, e sim um ‘espelho transdisciplinar’ porque implica em auto conhecimento: as informações científicas só fazem sentido se enquadradas em um sistema de crenças. Assim, para mim, a pesquisa do Ayahuasca passou a ser uma via de mão dupla: questionando minhas crenças em relação à objetividade científica; e, no sentido inverso, repensando a modernidade a partir da experiência cognitiva da bebida. Não havia como desenvolver uma pesquisa teórica sobre a Ayahuasca e não fazer também uma investigação pessoal sobre o seu papel transformador em minha vida. E em segundo lugar, também é preciso entender que o Santo Daime é uma ‘leitura’ da Ayahuasca. A mesma bebida é utilizada em outros sistemas de crenças, em outros rituais, como no caso da UDV e da Ayahuasca peruana. E para ter uma visão objetiva de minha experiência com o Santo Daime, falta-me um conhecimento mais profundo dessas outras leituras.
Só me restou assim o recurso de ver o todo refletido em uma de suas partes.

1. O Daime por ele mesmo
Então, certa vez, dentro de um trabalho espiritual, perguntei ao Daime: “O que é o Daime?” – na esperança de que ele fosse capaz de me explicar sua natureza e como ela se encaixa em nossa história. E ninguém melhor que ele próprio para me explicar quem e o que ele é e significa. Em resposta à minha indagação, comecei a perceber as diferentes pessoas que participam do trabalho e as concepções que elas tinham do que estavam fazendo ali. Encontrei, assim, cinco definições diferentes: o Daime é uma bebida; o Daime é uma religião; o Daime é uma doutrina; o Daime é um Ser Divino e o Daime é um Sacramento.
As duas primeiras definições (o Daime é uma bebida e o Daime é uma religião) eram dos visitantes e as três últimas (o Daime é uma doutrina, o Daime é um Ser Divino e o Daime é um Sacramento) eram de ‘fardados’, isto é, de adeptos que utilizam o uniforme do culto.
Vejamos cada uma dessas concepções.
O Santo Daime é uma bebida’ é uma usual concepção entre os ex-usuários de drogas que buscam o culto, como também curiosos em geral. É a definição daqueles que procuram a viagem. A bebida em questão é preparada através da infusão do cipó do Jagube ou Mariri (Banisteriopsis caapi) e da folha da Rainha ou Chacrona (Psycotria viridis) - naturais da região amazônica.
O uso da bebida sacramental era restrito a família imperial inca, descendente de Inti, o rei Sol. Com a destruição do império, introduziu-se junto a várias tribos indígenas da região amazônica peruana, colombiana e brasileira, onde se tornou conhecida por vários nomes, principalmente Ayahuasca. Conforme relatos históricos, o príncipe Atahualpa se rendeu aos invasores espanhóis e acabou assassinado. Segundo a lenda, o príncipe seu irmão, Huascar, se refugiou na floresta amazônica. Lá divulgou a bebida, que recebeu o seu nome, que se difundiu entre várias tribos indígenas, como as dos Kampas e dos Kaxinawás, localizadas perto da fronteira com o Peru e a Bolívia.
Ingerindo o chá, os índios absorvem o espírito da planta e, em transe, têm experiências psíquicas e vivenciam fenômenos paranormais, tais como a telepatia, a regressão a vidas passadas, contatos com os espíritos dos seus antepassados mortos, presciência e visão à distância. Há relatos etnográficos de xamãs usavam a bebida para descobrir qual era a doença de seus pacientes e saber como tratá-la.
A Ayahuasca amplifica a capacidade psicossomática de responder a gradações mais sutis de estímulos além de muitas vezes integrar as diversas faculdades sensoriais em processos sinestésicos. Esse efeito de aumentar a capacidade de experienciar, de avaliar e apreciar por si mesmo, é central para a compreensão do seu significado. Esta amplificação, como uma lupa, permite uma (re)visitação intensiva e absorta dos conteúdos mentais - recordações, ideias, fantasias, pensamentos, emoções, medos, esperanças, sensações em gerais. (...) O grande valor da Ayahuasca, trazidos à nossa atenção pelas sociedades indígenas, é que ela dissolve os limites da mente inconsciente; ela dá acessos aos conteúdos reprimidos e esquecidos. Ela possibilita o reconhecimento das configurações universais da psique, os arquétipos de humanidade, junto com um leque mais abrangente de conhecimentos e maneiras de conscientizar, até eventualmente a vivência dos diversos aspectos da união mística. Na medida em que o indivíduo consegue ver as coisas de uma maneira não distorcida, vendo claramente não apenas o seu passado mais também a presunção e cegueira da sua própria cultura e grupos de referencias, ele necessita, além de tolerar a decepção e o sofrimento, superar sentimentos de desamparo. Nem sempre é fácil ter de ver e aceitar que não somos assim tão vítimas, mas sim responsáveis pelas nossas vidas; aceitar ser capaz, reconhecer o seu potencial e a responsabilidade que isso requer implica coragem e determinação.” (BARBIER, 2002)
O uso da Ayahuasca foi, durante séculos, difundido dentre as várias tribos indígenas da região. Absorvendo o espírito das duas plantas, passavam por experiências psíquicas e vivenciavam fenômenos paranormais como telepatia, premonição, regressão a vidas passadas, contatos com espíritos de desencarnados, com encantados e elementais da natureza, realizavam viagens astrais. É conhecida também a função meta terapêutica da Ayahuasca, na identificação de doenças e prescrição de tratamentos. No início do século XX, com o intercâmbio cultural entre índios e seringueiros, a Ayahuasca passou a ser conhecida e usada pelos nordestinos que colonizaram a Amazônia ocidental. Destes contatos surgiram vários grupos sincretizaram o seu uso com o catolicismo popular, normatizando doutrinas de grande penetração urbana.
‘o Santo Daime é uma religião’ é uma concepção de um visitante mais espiritualizado que busca a experiência de expansão da consciência. Geralmente, são pessoas que participam ou já participaram de outros trabalhos espirituais. Desde o início do século, nos contatos culturais entre seringueiros e índios, a Ayahuasca passou a ser usada pelos migrantes nordestinos, que colonizaram a Amazônia ocidental. Destes contatos surgiram diversos grupos que associaram o uso da bebida a um contexto religioso cristão espírita, dos quais a União do Vegetal, no estado de Rondônia, o Santo Daime e a Barquinha, no Acre, são os maiores expoentes.
Raimundo Irineu Serra (1890/1971) foi um dos que realizou trabalhos com a Ayahuasca, criando uma estrutura ritual absolutamente brasileira, por ele rebatizada de "Santo Daime". Fundou, em 1930, o Centro de Iluminação Cristã de Luz Universal (CICLU) em Rio Branco, Acre.
Logo surgiram outras ramificações, sendo a principal a comunidade denominada Centro da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS), fundada pelo Padrinho Sebastião Mota de Melo, responsável pela expansão nacional e internacional da bebida e do culto.
Outro culto ayahuasqueiro importante é o da Barquinha Fundada em 1945, também em Rio Branco, por Daniel Pereira de Mattos, esta igreja mistura elementos da religião afro-brasileira Umbanda e da Santo Daime.
A União do Vegetal foi fundada a 21 de Fevereiro de 1961, em Porto Velho Rondônia, por um seringueiro chamado José Gabriel da Costa. Quando trabalhava num seringal na Bolívia, José Gabriel conheceu índios nativos que o apresentaram à ayahuasca na própria selva.
O crescimento e difusão dos diversos grupos religiosos que utilizam a Ayahuasca geraram resistências nos setores conservadores da sociedade, que pressionaram o Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN) para embargar o funcionamento destas instituições nos grandes centros metropolitanos. No entanto, depois de acuradas investigações, o Conselho decidiu liberar a utilização do chá para fins religiosos em 1992. Ficaram estabelecidos vários limites e critérios através do diálogo entre as entidades religiosas e os pesquisadores de várias especialidades. Segundo a então presidente do CONFEN, Ester Kosovsky, "a investigação, desenvolvida desde l985, baseou-se numa abordagem interdisciplinar, levando em conta o lado antropológico, sociológico, cultural e psicológico, além de análises fitoquímicas". O relator do processo de investigação, Domingos Carneiro de Sá, explicou que o fato fundamental para a liberação da bebida foi o comportamento dos daimistas e a seriedade dos centros que utilizam o chá em seus rituais:
Não foram observadas atitudes anti-sociais dos participantes dos cultos, ao contrário, podemos constatar os efeitos integrados e reestruturantes do Daime com indivíduos que antes de participarem dos rituais apresentavam desajustes sociais ou psicológicos”. (SILVA SÁ, 1996, 145-174)
E, finalmente, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD), órgão do Ministério da Justiça, publicou no Diário Oficial da União do dia 25 de janeiro de 2010, resolução regulamentando o uso religioso da Ayahuasca. A resolução estabeleceu regras para que a bebida não seja comercializada ou utilizada fora do contexto religioso.
Com a expansão do Daime para outros países, surgiram questões jurídicas internacionais referentes à utilização e ao transporte da bebida.
O Santo Daime é uma doutrina’ é uma concepção que enfatiza justamente esse aspecto de cultura popular acreana, de patrimônio cultural (músico, poético e espiritual) brasileiro. Os partidários dessa concepção dão bastante importância ao ritual, ao calendário litúrgico e aos ensinos éticos prescritos nos hinos, como também à memória histórica dos fundadores do culto.
Os hinos, cantados no decorrer da noite, são recebidos mediunicamente e ensaiados com antecedência para a apresentação durante o ritual. As ideias básicas transmitidas pelos hinos são as de solidariedade e consciência ecológica - trovas poéticas entoada em melodias simples e repetitivas, que funcionam como ‘mantras’.
Além do canto, há também uma dança - chamada de “bailado” - que consiste em deslocar o corpo no compasso da música, em conjunto com todos, para a direita e para a esquerda de forma alternada, em uma espécie de ‘ciranda estática’. Esta corrente de voz e movimento é ritmada por maracás, pequenos chocalhos de lata. Os participantes se posicionam em filas formando um quadrilátero, com as moças e as mulheres de um lado e os homens e rapazes do outro, ao redor de uma mesa. Nas festas oficiais, os homens usam ternos brancos e gravatas azuis, e as mulheres, camisa e saia branca com uma jardineira verde com fitas coloridas e usam uma coroa prateada.
Ao centro, o Santo Cruzeiro (a cruz de Caravaca) e a Estrela do Oriente (o selo de Salomão com uma águia sobre uma lua minguante). Além de Jesus Cristo ser frequentemente sincretizado com o Sol, a Virgem Maria é associada à Lua, ao Mar e à Floresta, e as presenças de São João Batista e do Patriarca São José são constantemente lembradas nas canções do Santo Daime. Outra imagem frequente é a do “Divino Pai Eterno”, afirmação do princípio monoteísta da doutrina, que impera sobre uma “Corte Celestial de Todos os Seres Divinos” - que engloba, no manto panteísta da Rainha da Floresta, entidades que vão dos Devas Orientais aos Orixás africanos. Porém, a entidade central do ritual do Santo Daime é Juramidam, o “Mestre Império”. Este ser é quem, segundo os hinos e os participantes do culto, preside os rituais e é identificado como o próprio espírito da bebida ingerida nas cerimônias.
O efeito da bebida do Santo Daime promove uma expansão na consciência que, sem a perda da capacidade de ação voluntária, permite que se observe o próprio sentimento e pensamento com maior clareza. No decorrer do ritual, o estado de consciência intensificada pelo chá amplifica as situações recorrentes da vida cotidiana, revelando contradições existenciais e processos interiores que se repetem inconscientemente em diversos níveis. Esses processos involuntários são compreendidos pela consciência intensificada dos participantes, através da corrente formada pelo bailado e pelos hinos, que sugerem sempre uma solução positiva para os problemas. Segundo os participantes do culto, o ritual é “uma autoanálise”. O processo vivido sobre o efeito da bebida, abrindo as portas do subconsciente e ação condicionante do hinário (hinos + bailado) leva a um exame crítico de nossas ações cotidianas, com base nos princípios cristãos.
A concepção que acredita que “o Santo Daime é um Ser Divino” é aquela que acredita no poder da bebida independente do ritual (e do sistema de crenças, embora ela também seja parte do sistema de crenças) que acredita se comunicar diretamente com o espírito da planta ou com uma inteligência superior à humana. Essa concepção tem diferentes versões e estilos. Os mais tradicionalistas, por exemplo, personificam na figura de seu criador, Raimundo Irineu Serra. Ele representa o retorno de Cristo à terra e quando se toma o Daime (geralmente diante de uma grande foto do Mestre Irineu) é com o espírito de Raimundo Irineu Serra que cada consciência dialoga. Em outras linhas, como a do Padrinho Sebastião, também há adeptos da concepção de que o Santo Daime é um ser divino, mas em um paradigma mais amplo e panteísta: “o mestre está no sol, na lua e nas estrelas”. Essa concepção de ‘bebida mestra’ também aparece diferentes tipos de xamanismo e em outros rituais e sistemas de crenças, como na UDV. É preciso dizer que, enquanto o processo de legalização do culto teve a participação decisiva dos partidários da ‘Doutrina’, todo processo de globalização do uso da bebida (de miscigenação com outras culturas espirituais) se deve principalmente aos adeptos do ‘Ser Divino’.
E o Daime é um Sacramento? Esta forma de pensar é mais abrangente e inclui as quatro concepções anteriores. A comunicação com o divino não se dá apenas pelos hinos ou com um único ser, mas através de várias inteligências, espíritos, guias, arquétipos; e, principalmente, com o foco da atenção voltado para desprogramação da consciência.
Pode-se dizer que as pessoas que pensam ‘o Santo Daime é uma doutrina’ e as pessoas que pensam ‘é um ser divino’ representam as mesmas ênfases dos que pensam ‘o Daime é um bebida’ e ‘é uma religião’ em uma oitava superior. Os que pensam que ele é uma bebida ‘evoluem’ para a posição que ele é um ser divino; enquanto os que acreditam que se trata de uma religião passam a entendê-lo como uma doutrina espírita ou como um culto cristão. A concepção que entende o Santo Daime como um Sacramento é aquela que entende a importância dos dois lados, tanto da bebida como do sistema de crenças, mas seu foco é o desenvolvimento da consciência.

LINHA DO TEMPO
Século XIII
O uso da bebida sacramental era restrito a família imperial inca, descendente de Inti, o rei Sol.
1533
O príncipe inca Atahualpa se rende aos invasores espanhóis e acaba morto. Seu irmão, Huascar se refugia na floresta amazônica e a Ayahuasca é introduzida em as várias tribos indígenas da região.
1616
O uso da Ayahuasca é condenado pela Inquisição.
1840
A Harmalina é isolada da planta Peganum armala em laboratório na Europa.
1849 1858
O botânico Richard Spruce, o biólogo Alfred Russell Wallace e o naturalista Henry Walter Bates fazem os primeiros estudos sobre a bebida.
1905
Zerda e Bayon chamam o alcaloide do "yajé" dos índios de "telepatina".
1917
O primeiro terreiro de Umbanda de Porto Velho, Rondônia, é aberto por Chica Macaxeira, maranhense da tradição do Tambor de Mina. É usada a Ayahuasca nos rituais.
1920
Os irmãos Antônio Costa e André Costa fundaram um centro chamado Círculo de Regeneração e Fé (CRF), em Brasiléia, Acre.
1930
Fundação do Centro de Iluminação Cristã de Luz Universal (CICLU) em Rio Branco, Acre, por Raimundo Irineu Serra (1890/1971) com a Ayahuasca, com uma estrutura ritual absolutamente nova, por ele rebatizada de 'Santo Daime'.
1931
A DMT (Dimetiltriptamina) é sintetizada e identificada como outro alcaloide da Ayahuasca.
1945
Fundação da Barquinha, por Daniel Pereira de Mattos, em Rio Branco, Acre.
1957
Hochstein e Paradies chamam de 'efeito ayahuasca' à combinação de Harmina e a Harmalina com a DMT.
1961
Fundação da União do Vegetal (UDV), por José Gabriel da Costa em Porto Velho, Rondônia.
1972
O cientista Robert Gordon Wasson propõe o termo "enteógeno" substituto para alucinógeno.
1975
Fundação do Centro da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS), fundada pelo Padrinho Sebastião Mota de Melo, responsável pela expansão nacional e internacional da bebida e do culto.
1985 1992
O crescimento e difusão dos diversos grupos religiosos que utilizam a Ayahuasca geraram resistências nos setores conservadores da sociedade, que pressionaram o Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN) para embargar o funcionamento destas instituições nos grandes centros urbanos. No entanto, depois de acuradas investigações, o Conselho decidiu liberar a utilização do chá para fins religiosos em 1992.
2010
Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) regulamenta o uso religioso da Ayahuasca no Brasil

2. A pesquisa transdisciplinar sobre Ayahuasca
Os estudiosos da Ayahuasca também podem ser subdivididos em três grandes grupos: a) os pesquisadores que dão ênfase ao efeito da DMT no cérebro, geralmente pesquisadores da área de saúde orientados para o estudo do tratamento de dependência química (que se assemelham aos adeptos que dão ênfase à bebida/ser divino); b) os pesquisadores que dão ênfase aos sistemas de crenças, em geral, antropólogos, historiadores e psicólogos mais concentrados na questão do condicionamento social dos usos da bebida (que correspondem aos adeptos que enfatizam a religião/doutrina); e c) os pesquisadores que, considerando os dois aspectos, elaboram um novo sistema de crenças, mais universal (que correspondem aos adeptos 'sacramentalistas').
Vejamos cada um desses grupos de pesquisadores.
Para os que dão ênfase à DMT, como Ralph Miller (2000), por exemplo, o importante é o papel psicoativo da bebida:
A Pineal irá produzir DMT em grandes quantidades em pelo menos dois momentos das nossas vidas: no nascimento e na morte. Talvez ela prepare a chegada e a partida da alma. Pessoas que experimentam "situações de quase morte" – vendo luzes fortes, portais, ícones religiosos – relatam efeitos semelhantes aos das experiências com DMT. As moléculas de DMT são similares às moléculas da Serotonina e se encaixam nos mesmos receptores do cérebro. Isto é extraordinário porque, assim como a Serotonina, a DMT é uma chave específica que naturalmente se encaixa nesta "trava" do cérebro. Assim, você tem a DMT se encaixando aos receptores do cérebro, o que produz visões, enquanto as propriedades pró-Serotonina e pró-Dopamina do chá criam um estado de alerta e receptividade.
Há uma grande diferença entre as distorções cognitivas provocadas por entorpecentes e o uso ritual de plantas de poder. Diferenças de intenção e ambiente – “set and setting”, na famosa definição estabelecida por Timothy Leary e muito repetida desde então para caracterizar as condições necessárias para o uso de substâncias psicoativas em processos de autoconhecimento. O efeito deste uso ‘com finalidades de desenvolvimento’ é chamado de ‘enteógeno’ em oposição ao termo ‘alucinógeno’ – utilizado para caracterizar o efeito alienante e a distorção perceptiva. Mas, os argumentos de ‘ambiente’ e ‘intenção’ raramente são suficientes para convencer leigos (e cientistas fixados no fator psico químico) da grande diferença cognitiva entre a experiência enteógena e a viagem alucinógena.
Strassman (2001) diz o corpo produz naturalmente DMT na hora da morte para favorecer a lembrança dos momentos marcantes da vida. A DMT permite a utilização consciente da memória visual através do lado direito do cérebro, em oposição à nossa memória discursiva ordinária organizada através da fala. É a fala que transforma a memória em narrativa, se simplesmente contarmos nossa estória, oscilaremos entre os papéis de vítima e de herói. É o hemisfério esquerdo do cérebro que acessa a memória e quer comunicar a lembrança resgatada a alguém.
Com a DMT, ao contrário, feita em estado de silêncio interior, sem interlocutor ou escuta analítica externa, as lembranças emergem objetivas, permitindo a reintegração emocional dos momentos vividos com distanciamento, vistos de fora, como em um filme narrado por outra pessoa.
E essa pode ser a principal aplicação terapêutica da DMT em um futuro breve: fechar (reviver e superar) as feridas emocionais que jorram do inconsciente. O acesso consciente à memória visual também pode ser colocada sob a forma de ‘sonhos lúcidos’, isto é, a ocorrência de estado de funcionamento cerebral de alto desempenho - o sono REM (rapid eye moviment) – que normalmente acontece enquanto o sujeito está dormindo, durante o estado de vigília.
Para Strassman, há quatro estágios progressivos do efeito do DMT: o estado eufórico, o ‘caleidoscópio colorido’, o estado de diálogo com as entidades e a transcendência do ego. Para isso, ele teria que trabalhar suas dosagens cada vez maiores de DMT. A experiência, no entanto, comprova que o mero aumento de dosagem química não basta para se alcançar estados de percepção mais profundos e intensos, é preciso também ter a ligação espiritual - que só vem através de treinamento em alguma técnica ou ritual. Aliás, quando maior a capacidade mental de alteração o estado de percepção, menor a dosagem necessária – como pode ser comprovado pela maioria dos adeptos mais antigos dos cultos.
E, certamente, as imagens psíquicas, sejam elas arquétipos universais ou lixo subconsciente, em nada ajudam ou enriquecem a experiência espiritual da DMT. O importante é compreender o quadro de relações (sociais, cósmicas, afetivas, políticas, etc) em que se está inserido. A ideia de ‘miração’ ou ‘sonho lúcido’ (e de diferentes estágios progressivos do transe quimicamente induzido) não pode ser desvinculada do sistema de crenças do sonhador.
Eu, por exemplo, reconheço quatro paradigmas diferentes sobrepostos e simultâneos no trabalho espiritual com DMT: o paradigma da luta do bem contra o mal; o paradigma de ajuda aos espíritos sofredores vivos e mortos; o paradigma de diálogo/conflito do Eu com o Outro; e, finalmente, o paradigma da Consciência da Divindade (ou da recapitulação da biografia pela consciência e a identificação com narrativas míticas e simbólicas). O modelo de estágios progressivos de estados de consciência de Strassman tem seu valor, mas é preciso perceber que ele também se baseia em um sistema de crenças, mesmo que sejam crenças científicas céticas.
Atualmente, várias pesquisas investigam a utilização de medicamentos a base de DMT para tratamento químico de depressão, neuroses, fobias, síndromes neurológicas, bem como sua utilização como potencializador da consciência em processos terapêuticos. (v. Apêndice A)
Como dissemos antes, existem também pesquisas que dão mais ênfase ao contexto que ao aspecto psicoativo. Enquanto os pesquisadores das áreas clínicas e biológicas dão um enfoque enquadrado particularmente aos efeitos químicos da DMT no cérebro, os pesquisadores das áreas antropológicas e psicológicas estudam a mudança nos estados de consciência e de percepção, distribuindo sua atenção em três fatores: a bebida, o ambiente (setting) e a intenção (set). A hipótese, denominada em inglês de 'set and setting', formulada inicialmente por Timothy Leary com LSD nos anos 60, afirma que o conteúdo de uma experiência com substancia psicoativa é uma resultante da interação desses três fatores básicos.
Charles S. Grob fez a mais ampla revisão bibliográfica sobre o Ayahuasca na área da psicologia clínica e neuro psiquiatria (METZNER, 2002, p. 195) e considera a hiper sugestionabilidade como um dos efeitos psico químicos, detalhando o aspecto ambiental (setting) em vários fatores (o papel do líder, do grupo, do local). Ele é um dos pesquisadores que concluem que “o contexto, o roteiro e o propósito” são mais importantes do que os efeitos químicos de substância psicoativas (nos processos de “cura” e de autoconhecimento propiciados pela bebida).
Em relação às características dos estados de consciência quimicamente alterados pelo Ayahuasca, Grob aponta: a) Diminuição ou expansão da consciência reflexiva, com alterações de pensamento, mudanças subjetivas na concentração, na atenção, na memória e no julgamento podem ser induzidas voluntariamente em vários níveis de uma mesma experiência. b) Aumento da imaginação visual. Grob também identifica, dentre as experiências de milhares usuários entrevistados, várias recorrências psicológicas durante o transe: medo de perder o controle; resistência do ego (bad trip) e transcendência para estados místicos (entrega); aumento da expressão emocional - tristeza, alegria, desespero, fé; entre outras menos frequentes.
Outra grande contribuição ao estudo psicológico do Ayahuasca é o trabalho de Benny Shanon, O Conteúdo das visões da Ayahuasca (2003), em que além de trabalhar um levantamento das imagens das mirações e da hipótese de aceleração e desaceleração da percepção do tempo durante o transe, se discute também a pesquisa da mente através do Ayahuasca (e não mais o efeito da Ayahuasca na mente humana).
Shanon já havia escrito sobre o Ayahuasca como instrumento de investigação da mente (in LABATE, 2002; pág. 631), através dos parâmetros teóricos da psicologia cognitiva. Para ele, há questões fenomenológicas de primeira ordem (o que está sendo experimentado?) e de segundo ordem (Há uma ordem e um sentido no que está sendo experimentado?). Em relação às questões fenomenológicas de primeira ordem, Shanon distingue as questões de conteúdo das de domínio e de estrutura. Assim, felinos, pássaros e répteis são as imagens mais recorrentes nos transes, seguidos de perto pelos palácios, tronos e imagens arquitetônicas celestiais. A pesquisa destaca que as imagens são ‘universais da mente’ (semelhantes aos ‘arquétipos’ de Jung), pois surgem em indivíduos culturalmente diferentes. Esses conteúdos podem surgir de diferentes domínios e o encadeamento dessas formas com estes conteúdos forma estruturas narrativas paralelas aos rituais.
E Shanon entrevê, através deste sistema cognitivo de conteúdos/domínios, os parâmetros estruturais da consciência e destaca pelo menos quatro aspectos relevantes em relação ao efeito do Ayahuasca: a percepção do pensamento como uma cognição coletiva, a indistinção entre o interior e o exterior, as experiências desindentificação pessoal e de tempo não-linear.
Sob o efeito da DMT os pensamentos não são individuais, mas sim ‘recebidos em rede’ (a mente como um rádio); que não existe a distinção entre o sensorial e o sensível; podem se transformar em animais (jaguares e águias são frequentes) ou em outras pessoas; e finalmente percebem o transcorrer do tempo de forma desigual, em que alguns segundos demoram séculos e horas se sucedem rapidamente e em que alguns momentos se experimentam a simultaneidade (ou a sensação de eternidade) temporal.
Desses quatro aspectos relevantes o mais interessante é o que trata de nossa percepção do tempo. Quando tomam Ayahuasca as pessoas percebem que seus pensamentos não são individuais, mas sim ‘recebidos em rede’ (a mente como um rádio); que não existe a distinção entre o sensorial e o sensível; podem se transformar em animais (jaguares e águias são frequentes) ou em outras pessoas; e finalmente percebem o transcorrer do tempo de forma desigual, em que alguns segundos demoram séculos e horas se sucedem rapidamente e em que alguns momentos se experimentam a simultaneidade (ou a sensação de eternidade) temporal. Quando baixamos arquivos no computador, pode-se perceber que alguns segundos demoram mais que outros, em função do peso do arquivo e da aceleração da conexão da internet. O que Shanon suspeita é que o mesmo acontece com a mente, mas só é perceptível sob o efeito do Ayahuasca.
A DMT nos recoloca novamente dentro da simultaneidade. Com base nessas pesquisas e em minha vivência pessoal pode-se dizer que a experiência de ‘mirar’ ou ter ‘sonhos lúcidos’ se aproxima muito mais de uma supercognição (envolvendo os dois hemisférios cerebrais simultaneamente) do que de uma alucinação ou de apenas ilusões visuais. Supercognição que permite à consciência enraizada no presente ativar as memórias do passado com objetividade visual e prever (ou até mesmo influenciar) acontecimentos futuros, “resolver problemas”, conseguir reverter as relações de conflito, submissão ou enaltecimento que se apresentem na própria 'miração'.
É o que também nos revela a perspectiva antropológica. Segundo Calávia Saez (2008), quando os Yaminawa tentam explicar o que o ayahuasca é para eles, usam comparações como o ‘cinema do índio’, a ‘televisão’ do índio e até ‘o avião do índio’. O ayahuasca é o que permite uma visão ao longe e media o modo de ver o universo em seu conjunto. Todavia, além de ser uma tecnologia de transcendência do tempo/espaço, o Ayahuasca teve (ou tem) outro função menos evidente: criar uma linguagem xamânica comum entre grupos étnicos diferentes.
O que eram praticas xamânicas muito diferenciadas tem se transformado, talvez nos últimos 100 anos, numa espécie de ecumene indígena organizada em volta do uso da ayahuasca e dos cantos que acompanham esse uso. O xamanismo dos Shipibo-Conibo, dos Kokama, dos Kaxinawa, dos Yaminawa, dos Kampa, não são mais o que poderíamos chamar de xamanismos locais, étnicos, pertencentes a um pequeno grupo etnolingüístico. Há muito tempo que esse xamanismo se transformou numa linguagem comum, num mundo extremamente comunicado onde as canções da ayahuasca se transmitem de um grupo a outro. Enfim, a ayahuasca tem contribuído de modo muito importante para dar forma a um xamanismo que, apesar pensarmos que é extremamente antigo, provavelmente adquiriu a sua forma atual com a expansão, através da comunicação, da tradução facilitada pelo uso desse veículo, da ayahuasca.
Hoje, vendo os hinos do Daime cantados em vários idiomas, não se pode deixar de pensar que se trata do mesmo fenômeno. Para Calávia Saez, os Yaminawa quando bebem Ayahuasca, além das canções em línguas exóticas, entoam as canções em sua própria língua de um modo diferente. “É um modo de tratar a língua de uma qualidade poética minimalista realmente surpreendente e lembra os poemas curtos japoneses, Hai-kai’s; evocando detalhes infinitesimais que existem nas folhas, nas flores e na pele dos animais.” Experiência estética semelhante a dos hinos do Daime cantados em português mundo a fora. As pessoas cantam e compreendem telepaticamente o conteúdo, mas não sabem o que exatamente significam. “Aprender a tomar ayahuasca significa aprender a entender esse modo de poesia”.
Como dissemos no início, a maioria das pesquisas se subdivide entre as que dão ênfase ao contexto cultural e as que ressaltam o efeito cognitivo da bebida. (v. Apêndice A e B: A pesquisa da Ayahuasca no Brasil e O uso terapêutico e dependência química) Porém, existem também pesquisas que advogam uma perspectiva semelhante à que entendem o Daime como sacramento, que compreende tanto a concepção que valoriza o contexto quanto ao efeito da DMT.

3. Pesquisa enteógena
Com Terence McKenna (1993, 1994, 1995 e 1996) se estabelece uma associação estratégica entre duas hipóteses diferentes até então, que se tornaram os cânones do movimento enteógeno: em primeiro lugar, a hipótese de que foi através da ingestão de substâncias químicas psicoativas que os macacos se tornaram conscientes de si, dando início à evolução da espécie humana. Nesta hipótese, sugere-se que toda nossa experiência com o sagrado derivou originalmente do consumo de substâncias químicas. E depois, a hipótese de Gaia (James Lovelock e Lynn Margulis) segundo a qual a biosfera da Terra é na verdade um organismo vivo. De forma que, mais do que dispositivos de poder para o controle social (as drogas), as substâncias psicoativas teriam como função primordial a re-ligação dos homens com a consciência telúrica do planeta. 
Mas, o que realmente chama atenção nas ideias dos irmãos McKenna é a compreensão das plantas enteógenas no contexto de uma “grande simbiose”. Nesta perspectiva, a simbiose entre as plantas e os animais na biosfera da terra não se limita à troca de oxigênio por gás carbônico ou à produção recíproca de alimento e proteção, mas, sobretudo, a um projeto maior, no qual as plantas enteógenas cumprem um papel estratégico modificando o comportamento humano em relação ao meio ambiente. Ou seja: estamos sendo colonizados e doutrinados pelo mundo vegetal para mudar os padrões de animais predadores e interagir melhor com toda a vida orgânica no planeta. Para nós, essa ‘simbiose’ (entre o homem e o mundo orgânico) realmente existe, mas não é tão ‘grande’ assim, se levarmos em conta a possibilidade de uma simbiose entre o homem e o reino inorgânico, em que haja uma troca de energia vital orgânica por consciência temporal inorgânica, como quer Castaneda.
Nesse caso, a Ayahuasca além de veículo de uma mensagem do reino vegetal - para alguns a DMT seria uma mensagem química para nosso cérebro - para reverter o processo planetário de autodestruição do homem e da vida orgânica, mas também um meio de realização de um simbiose com o reino mineral. Como se sabe, a psicoatividade oral da DMT depende da inibição das enzinas MAO; e nem a folha nem o cipó são psicoativos tomados separadamente. E, então, como os índios descobriram o ‘efeito ayahuasca’? Como os índios descobriram, entre milhares de plantas, sem nenhum tipo de instrumento técnico ou de conhecimento científico, que a combinação de duas delas tinha um efeito capaz de provocar o transe, sem efeitos colaterais nocivos? Para alguns xamâs, foram as próprias plantas que ensinaram os homens.
E esta é questão que norteia a pesquisa transdisciplinar (METZNER, 2002, 264) em que a experiência emergente da espiritualidade transborda os limites de todas as tradições religiosas: o Ayahuasca nos dá saúde, conhecimento, poder espiritual. E nós? O que estamos dando em troca? Amor e alegria? Aperfeiçoamento pessoal, dinheiro e trabalho para as instituições responsáveis? Ou você não se considera em dívida com plantas, nem como pessoas ou instituições?
Há uma evidente mudança de atitude na maioria das pessoas que tomam Ayahuasca. Cerca de 10%, aproximadamente, apenas consideram a experiência sem significado para sua vida. Dos 90% que consideram a experiência relevante, mas da metade não volta ou participa esporadicamente dos cultos. As instituições calculam, informalmente, que, em média, 30% dos que conhecem o Santo Daime, escolhem este caminho para seu desenvolvimento espiritual e se fardam. Com passar dos anos, além de uma grande taxa de evasão, a participação dos rituais se banaliza e o impacto de transformação do começo perde seu poder, levando o adepto ou a novos níveis de esforço e aplicação para seguir com seu desenvolvimento ou a uma adaptação conformistas em relação às instituições religiosas e à própria sociedade em geral. Entre as linhas que seguem o Padrinho Sebastião, houve um momento em que a vida comunitária na Amazônia era estimulada como uma forma de continuar o processo de desprogramação da vida social, mas, atualmente, todas as instituições que trabalham com o Santo Daime dão ênfase a integração social de seus participantes. (v. Apêndices C e D)
Também levem-se em conta que há grandes desigualdades culturais na expansão: o Santo Daime do norte do país sempre foi bem diferente da religião no sul e sudeste. No Acre, o Daime é uma religião popular e tem um caráter conservador, um aspecto importante da identidade cultural daquele estado; no sudeste, ele floresceu em extratos da classe média urbana, com jovens culturalmente globalizados oriundos da vida política e do universo das drogas. São estratos sociais bem diferentes, com formações culturais bastante distintas.
Os dirigentes centros da Amazônia dizem que “igreja não é clínica de tratamento de pessoas com distúrbios psicológicos ou com dependentes químicos”. Ocorre, no entanto, que no sul e sudeste do país, a grande maioria dos fardados são ex-dependentes ou portadores de distúrbios de comportamento, que descobriram na doutrina uma forma de conforto e transformação. E essa demanda clínica está em processo de crescimento exponencial no exterior. Penso que não adianta proibir o comércio do sacramento ou restringir sua produção, porque isto leva apenas a devastação devido a incapacidade de conter o poder dinheiro e do consumo internacional. O turismo também. O turismo não surgiu do entretenimento, mas da busca do sagrado (das peregrinações religiosas à terra santa, à meca, ao caminho de santiago, etc). A proibição do turismo associado à ayahuasca não é apenas um absurdo porque impede o desenvolvimento econômico regional, mas sobretudo porque impossibilita o desenvolvimento espiritual da humanidade.
A resolução do CONAD é representa a legalização do Ayahuasca no Brasil. Mas, há também uma contrapartida negativa: a regulamentação poderá levar a uma fossilização institucional do movimento, a uma folclorização cultural dos rituais e/ou a um distanciamento cada maior da verdadeira essência do espírito revolucionário do Ayahuasca. A necessidade de regulamentação do movimento ayahuasqueiro está levando a um progressivo enquadramento social dos grupos e a uma atitude conformista em relação a mudanças na sociedade e nas instituições.
Em minha experiência pessoal, observei que os dois primeiros anos de doutrina são de experiências transpessoais (mirações como as descritas e classificadas por Shanon). São anos, invariavelmente, de grandes transformações. Em seguida, o adepto passa por um período de experiência reeducativas do ponto de vista interpessoal (‘passagens’ que envolvem a projeção dos pais em padrinhos e madrinhas, que envolvem conflitos e amizades com outros participantes, amores platônicos e reais para o aprendizado de suas preferências e afinidades). Acredito que esse período possa se estender indefinidamente. E, após dez anos, caso tenha se aplicado no estágio anterior, em um período de desenvolvimento pessoal, em que a tônica é o aperfeiçoamento ético subjetivo, em que as conquistas são graduais e precisam ser bem consolidadas. Em minha opinião, boa parte dos adeptos da doutrina do Santo Daime chega apenas ao segundo nível de desenvolvimento, ficando trabalhando situações recorrentes, enganchado na rede de suas relações interpessoais. É claro que esses são parâmetros absolutamente subjetivos (mesmo que calcados na observação de outras pessoas além de mim), de quem acha que permaneceu se desenvolvendo dentro da doutrina daimista durante mais de 20 anos. As pesquisas com usuários de longo prazo (desenvolvidas pelo Projeto Hoasca da UDV, entre outros) se limitam ao estudo da inexistência de danos físicos e na atitude de integração social propiciada pela bebida. Ninguém até o momento estudou variáveis menores como mudanças na alimentação ou inibição progressiva de comportamento sexual, e muito menos, é claro, variáveis subjetivas relativas ao desenvolvimento ético e espiritual.
A chave para o desenvolvimento contínuo, e na superação de seus diferentes estágios, talvez esteja tanto na pergunta formulada por Metzner (o que damos em troca do recebemos das plantas de poder?) como da ideia contida na palavra ‘Daime’. A retribuição da generosidade divina com a generosidade humana em um forte sentimento de agradecimento. “Já que tudo me foi dado, vou me dar todo também” – essa ideia é que faz vigorar o sentido do Sacramento, não é mais a planta, a bebida ou a doutrina que é sagrada, mas “Eu sou” (um em conjunto com a divindade).

APENDICE A: A pesquisa da Ayahuasca no Brasil
Uma boa introdução à pesquisa do Ayahuasca é o livro Religiões ayahuasqueiras: um balanço bibliográfico (2008), de Beatriz Caiuby Labate, Isabel Santana de Rose e Rafael Guimarães dos Santos. O balanço das pesquisas realizadas sobre Santo Daime, Barquinha e UDV, contabilizou 52 livros (13 em inglês), 35 dissertações de mestrado, sete teses de doutorado, nove pesquisas em andamento e um número incalculável de monografias e artigos - em 11 áreas distintas de conhecimento.
Os primeiros artigos são dos anos 50. O marco fundador do campo na academia é a tese O Palácio de Juramidam (1983), de Clodomir Monteiro. Em 1984, Alex Polari, Cefluris, lança seu 1º livro. Em 1986 saiu o primeiro artigo acadêmico sobre a UDV, do Anthony Henman, em uma revista mexicana chamada América Indígena. Em 1993 foi realizado o Hoasca Project. A Barquinha tem seu primeiro livro em 1999. A década de 90 é marcada pela expansão do campo de estudos no Brasil e, a partir do ano 2000, começam a ser produzidos trabalhos no exterior. Outro marco importante é a pesquisa, realizada em 2003, sobre adolescentes da UDV.
Os estudos sobre Ayahuasca hoje se multiplicam em progressão geométrica, levando os autores a declarar de que a “lista já nasce desatualizada, porque enquanto estamos falando tem alguém publicando alguma coisa”. E, de fato, de lá para cá várias teses, dissertações e monografias foram defendidas, diversos artigos científicos e ensaios foram escritos em nome da Pesquisa do Ayahuasca.
Gostaria de destacar algumas iniciativas recentes. Ayahuasca: uma experiência estética (2009), de Rafael Barroso Mendonça, dissertação sobre a adequação entre o estado visionário e as práticas de vida do usuário, o modo de subjetivação do indivíduo. Uma etnografia ayahuasqueira nordestina (2009), de Wagner Lins Lira, uma análise etnográfica de duas dissidências nordestinas do Santo Daime e da UDV - a Sociedade Espiritualista União do Vegetal, localizada no município de Riacho das Almas (PE) e o Centro de Harmonização Interior Essência Divina, situado em Riacho Doce (AL) – buscando compreender suas relações empatia e oposição com as antigas matrizes ayahuasqueiras.
Um dos trabalhos mais interessantes é o de José Eliézer Mikosz, A arte visionária e a Ayahuasca: Representações Visuais de Espirais e Vórtices Inspiradas nos Estados Não Ordinários de Consciência (2009). Mikosz estuda várias formas visuais (espirais, mandalas, labirintos, universos em camadas) e suas possíveis significações. Apesar de usar como referência os Estados Não Ordinários de Consciência (ENOC), em vários momentos aproxima-se bastante da idéia de sonhos lúcidos, de Stephen LaBerge, desenvolvida por Strassman.
A ayahuasca talvez permita entrar no rio mercurial (streaming of consciousness) que corre entre a vigília e o sono, a interseção entre a realidade cotidiana e seu fluido reflexo nos infinitos mundos da imaginação. A ayahuasca, como outras plantas e substâncias psicointegradoras, possui a potencialidade de aproximar o ser humano do lugar, por assim dizer, de onde os mitos procedem. Essa suspeita surgiu pela semelhança da experiência vivida com a ayahuasca e os estados hipnagógicos e mesmo dos sonhos. De onde vêm os pensamentos, são deliberados por volição, são sempre escolhas do “pensador” ou surgem como acontecimentos independentes, interagindo então com o indivíduo? Os devaneios, o estado hipnagógico, este muitas vezes similar às mirações, parecerem se desenvolver em uma corrente de consciência que passa como pano de fundo, independentemente da direção consciente do indivíduo. Essa corrente pode ser comparada a um filme contendo uma mistura de conteúdos pessoais e impressões e experiências vindas do meio ambiente. É possível interagir com esse conteúdo à medida que o estado de vigília vai relaxando seu controle, seja no início do sono, seja pela ação de psicoativos como a ayahuasca. Estudos mais profundos sobre essa característica da consciência certamente trarão conhecimentos maiores sobre os esforços cognitivos da mente. (MIKOSZ, 2009,249 )
Também merece ser citado o trabalho de doutorado de José Erivan Bezerra de Oliveira, Santo Daime, o professor dos professores (2008) focado na transmissão de conhecimento através dos hinos. A partir dos conceitos de memória social e performance, a tese investiga a relação entre ensino e aprendizagem nos rituais e em sua experiência cognitiva. Nessa perspectiva o aspecto histórico (a memória social) e biográfico dos hinários dão sentido pedagógico à experiência religiosa.
Tais pesquisas (entre outras) atestam não apenas a qualidade e a importância do Ayahuasca como objeto de reflexão transdisciplinar, mas, sobretudo, a singularidade e relevância desta produção acadêmica no contexto científico internacional contemporâneo. Ou seja: o Ayahuasca e seu estudo são importantes contribuições brasileiras ao patrimônio da humanidade – não apenas ao patrimônio cultural do Acre e da União. O que está em jogo não a sobrevivência cultural do Santo Daime, da Barquinha ou da União do Vegetal, nem mesmo o uso indígena ou psiconáutico do Ayahuasca, mas sim, o papel extraordinário que a DMT desempenhou e desempenha na evolução psíquica e biológica humana, como também, o que pode vir a desempenhar no futuro, seja na recuperação de dependentes químicos e de psicoses depressivas, seja no seu desenvolvimento ético e de novas qualidades cognitivas no âmbito da percepção e da consciência. Ou seja: a discussão tem uma importância bem maior do que enxerga a maioria dos envolvidos.

APENDICE B: Uso terapêutico e dependência química
No entanto, boa parte da literatura acadêmica mais recente sobre Ayahuasca trata de seu uso terapêutico, principalmente da possibilidade de sua utilização em tratamentos de dependência química, uma vez que já existe um alto de número de ex-usuários recuperados entre os adeptos das religiões ayahuasqueiras.
O texto coletivo Considerações sobre o tratamento da dependência por meio da ayahuasca (LABATE, SANTOS, ANDERSON, MERCANTE, BARBOSA, 2009) faz uma revisão bibliográfica específica desta literatura e sistematiza as principais reflexões sobre o potencial terapêutico do uso ritual da ayahuasca no tratamento ao abuso de substâncias psicoativas. O texto analisa a experiência de dois centros terapêuticos que combinam elementos da medicina e da psicologia ao uso da ayahuasca: o Instituto de Etnopsicologia Amazônica Aplicada (IDEAA), próximo à comunidade do Santo Daime Céu do Mapiá, no município de Pauini (AM) e o Takiwasi, em Tarapoto, no Peru. São ainda discutidas perspectivas para uma futura agenda de pesquisas científicas interdisciplinares sobre este tema, refletindo sobre as possibilidades de diálogo entre biomedicina, antropologia e psicologia, além dos impasses éticos e metodológicos envolvidos neste tipo de investigação.
A aparente melhora de muitos casos de abuso e dependência de substâncias psicoativas, segundo o relato de vários grupos terapêuticos e religiosos voltados para o uso ritual da ayahuasca, bem como de antropólogos, psicólogos e psiquiatras que estudam o tema, representa um fenômeno de saúde promissor. Esse pode ser melhor compreendido a partir de estudos interdisciplinares sistemáticos que combinem a abordagem quantitativa com uma sutileza qualitativa e etnográfica. Tal esforço interdisciplinar deve ser acompanhado também de uma tentativa de diálogo com os saberes nativos, colaborando para que o conhecimento adquirido durante décadas pelos diferentes grupos que utilizam a ayahuasca no tratamento da dependência auxilie futuros estudos clínicos de terapias psicodélicas voltadas para abordar o problema.
Em relação ao uso terapêutico, há três assuntos centrais em pauta hoje: a) a emergência de surtos psicóticos; b) como utilizar o Ayahuasca na recuperação de dependentes químicos; e c) quais são os métodos de trabalho e as técnicas mais adequadas para esta integração.
O ayahuasca tem o efeito de agravamento dos sintomas, ele promove e desenvolve mudanças existenciais, levando as situações contraditórias a níveis críticos. Assim, outro tema correlato ao uso terapêutico do ayahuasca, é que ele desencadeia crises psíquicas e emergências espirituais. A experiência atesta que tais casos tanto podem ser vistos como uma superação de tendências psicóticas como podem causar danos irreversíveis, caso o sujeito das crises não encontre o apoio e a compreensão necessários para entender a situação em que se encontra. O papel da família, da comunidade religiosa e do ambiente profissional é preponderante para a recuperação e a superação das crises. Daí a necessidade de se estabelecer critérios e parâmetros para propiciar a emergência espiritual de conteúdos psíquicos não se torne uma psicose ou uma esquizofrenia irreversível.
Movidos por esta preocupação a resolução do CONAD prescreve - e muitas instituições religiosas acreditam se defender dessas situações através de – uma rigorosa entrevista (chamada incorretamente de anamnese), que realizada de forma burocrática por pessoas despreparadas faz uma triagem preconceituosa e de baixa qualidade. Uma entrevista preliminar com as pessoas que vão tomar ayahuasca pela primeira vez é fundamental para o aproveitamento adequado da experiência, mas não deve tentar enquadrar os entrevistados em categorias de risco, pois essa prática além de moralista e politicamente incorreta é ineficaz no sentido de identificar comportamentos problemáticos ou possíveis emergências espirituais.
A verdade é que nada substitui uma conversa franca e compreensiva. Mas do que perguntar, o entrevistador deve responder as dúvidas e questões postas pelo entrevistado. E mesmo que identificados fatores de risco nos entrevistados, isto não deve ser motivo para exclusão ou para constrangimento, mas sim como uma informação relevante para compreensão do processo de transformação que se iniciará. A responsabilidade é mais importante do que o registro de controle.
Como também não basta informar os possíveis prejuízos da utilização de outras substâncias (como o álcool e a cafeína) e de excessos sexuais em conjunto com a ayahuasca, é preciso explicar, sem fanatismo ou superstições, quais sãos esses danos e quais são as consequências do uso indisciplinado da ayahuasca.
Porém, se os próprios adeptos dos cultos não obedecerem às prescrições que professam aos neófitos, as restrições necessárias à experiência soarão como hipocrisia e farisaísmo. E se é incorreto tentar escapar às crises antecipadamente pela triagem e exclusão, também é errado tentar encobri-las depois que emergem.
Nesses casos, além de um atendimento terapêutico individualizado, deve-se manter a participação do sujeito em crise nos rituais religiosos ou nas práticas terapêuticas de grupo (caso isto seja possível) sem o consumo da ayahuasca ou com doses simbólicas. A exclusão do sujeito em crise do contexto da emergência espiritual (e seu deslocamento para outros cenários – psico-terapêutico ou médico-psiquiátrico) será prejudicial à conclusão satisfatória do processo.
Outro assunto recorrente das pesquisas recentes sobre o Ayahuasca é sobre distinção entre as noções de ‘uso religioso’ e de ‘uso terapêutico’ de substâncias químicas que promovem a expansão da consciência. Alguns pesquisadores argumentam que essa distinção – agora oficialmente adotada pela resolução do CONAD - não faz nenhum sentido e que o ‘uso’ indígena seria mais terapêutico e recreativo do que religioso.
Em minha perspectiva, há diferenças: o uso religioso caracteriza-se principalmente por ser vertical, enfatizando a relação entre o Ego e o Eu Superior (ou a divindade); enquanto o uso terapêutico é horizontal, focado na relação entre o ‘Eu’ e o ‘Outro’. Embora essa seja uma distinção teórica, pois na prática os dois aspectos são indissociáveis, há intenções e ambientes (sets and settings) bem diferentes nas duas propostas.
E essa diferença nos faz levantar várias questões. Por exemplo: será que um dependente químico de drogas não tem maiores chances de recuperação em um paradigma (= ambiente + intenção) religioso, em que sua dependência transmuta-se em autonomia espiritual, do que em um paradigma psicológico onde ela pode ser transferida para o terapeuta ou para outros objetos horizontais? Ou ainda: será que Ayahuasca facilita ou amplifica a catarse emocional? Por que a exposição de sentimentos e emoções negativas (como a raiva e a tristeza) tão apropriadas no processo terapêutico pode gerar obsessões psíquicas e espirituais, quando realizada em estados de consciência alterada? O louvor ao sagrado cura devido sua gratuidade, já dar suporte ao desenvolvimento de resiliências (trabalho terapêutico) é uma atividade profissional remunerada – como conciliar essas questões?
O uso religioso objetiva o desenvolvimento ético e moral dos participantes do culto em geral, enquanto o uso terapêutico pressupõe um problema específico a ser resolvido por alguém em particular. Mas, é preciso definir melhor como se pode (e como não se deve) usar o Ayahuasca em uma resistência específica ao desenvolvimento individual e não estabelecer um ‘novo uso’ para a bebida.
A tradição daimista prescreve rigorosamente a não-intervenção, seja a forma de toque corporal ou tentativa verbal de comunicação, quando um participante do culto faz uma ‘passagem’, isto é, encontra com uma resistência em desenvolvimento e sofre algum tipo de mal-estar. Nesta ótica, é aconselhável que ‘a bebida e a pessoa se entendam’ ou que o processo psíquico desencadeado seja resolvido através de uma auto-adaptação da pessoa à situação emergente sem interferências. Tal prescrição é extremamente válida, principalmente no âmbito das igrejas e templos religiosos em que pessoas sem preparação (sem formação profissional específica) podem querer ajudar outras em um momento crítico.
Por outro lado, o uso consorciado da ayahuasca com algumas experiências com mudanças dos padrões corporais se mostrou bastantes produtivas, devido ao relaxamento muscular propiciado pela ingestão da bebida, como as aplicações sucessivas de massagem da técnica desenvolvida por Ida Roofing. Este processo de alinhamento postural pode ainda ser potencializado através de alongamentos e de exercícios regulares diários (de Pilates, RPG ou de Iso-stretching).
Já o uso do Ayahuasca consorciado diretamente às práticas catárticas da bioenergia e das meditações dançantes do Osho não apresentaram (para mim) nenhum benefício visível e certamente podem reforçar, ao invés de dissolver, as resistências psicológicas, sejam elas ‘couraças energéticas’ ou complexos comportamentais. Ou seja: a tradição espiritual desaconselha a prática da intervenção terapêutica no paradigma religioso, mas a experiência psicológica incentiva o uso da DMT como uma forma de intervenção espiritual no paradigma terapêutico. Portanto, não se trata de utilizar técnicas e práticas de outras paragens para ‘completar’ ou ‘aperfeiçoar’ os rituais associados ao Ayahuasca e às plantas de poder brasileiras, mas sim de aprender a utilizar estes rituais e estas plantas em processos terapêuticos. E, dentro de processos terapêuticos, dentro das experiências que organizei e presenciei, o Ayahuasca tem se mostrado muito mais adequado às técnicas de regressão biográfica através de sugestão hipnótica do que, diretamente, aos exercícios de movimento corporal e as massagens voltados para catarse.
Há também outras possibilidades de integração, como as técnicas de roda. A ciranda de vozes e de dança é um suporte de transmissão de memória e conhecimento anterior ao advento da escrita, quando os contextos de recepção e de transmissão de informação eram comuns. A roda centralizava o acesso ao conhecimento e instituía um tempo circular, simultâneo, sem continuidade. Com a escrita (e a memória social), surgiu a história (e o tempo linear baseado na acumulação de informação), os contextos de recepção passaram a ser múltiplos e distintos do contexto da fala. Hoje (graças à Internet) retornamos parcialmente ao tempo simultâneo e a esse suporte arcaico da cultural oral. O próprio ritual do Daime, o hinário bailado e cantado, é um excelente exemplo de uso da roda de vozes e danças como estrutura trifásica (de movimento, canto e pensamento), como forma de propiciar um aprendizado existencial significativo e de transmitir conteúdos simbólicos, integrado ao paradigma histórico da escrita e do pensamento objetivo.
Ou seja: mesmo com o foco na DMT, percebe-se que os cantos e a dança em roda fazem parte da experiência espiritual do Ayahuasca. A química prescinde de práticas rituais para se realizar com sentido para seus usuários. E o CONAD foi bastante feliz em observar que, sem os rituais e práticas associadas ao culto da bebida, a DMT descontextualizada é apenas uma droga psicodélica que provoca acessos visuais.

APENDICE C: Um seminário provinciano
De 12 a 15 de abril de 2010, ocorreu no Horto Florestal de Rio Branco (AC) o seminário ‘Construindo Políticas Públicas para Ayahuasca’ - realizado Câmara Temática de Cultura Ayahuasqueiras da Fundação Garibaldi Brasil, Assembléia Legislativa, Governo do Estado, através da Fundação Elias Mansour e com a participação de (quase) todas as comunidades tradicionais ayahuasqueiras. O objetivo declarado foi debater questões relativas às áreas da cultura, meio ambiente, educação, turismo, saúde, urbanismo e segurança pública que afetam diretamente os centros que usam ayahuasca no Acre. O resultado dos debates foi entregue aos deputados estaduais, durante sessão solene de entrega dos títulos de Cidadão Acreano aos três fundadores das ‘religiões ayahuasqueiras’, Raimundo Irineu Serra (do Santo Daime), José Gabriel Costa (da União do Vegetal - UDV) e Daniel Pereira de Mattos (da Barquinha).
Em primeiro lugar é preciso reconhecer a importância da merecida homenagem aos “Três Mestres Fundadores” das religiões ayahuasqueiras pelo estado do Acre, porém, também é necessário dizer que as propostas para elaboração de ‘políticas públicas para a ayahuasca’ feitas pelas ‘comunidades tradicionais ayahuasqueiras’ de Rio Branco deixaram muito a desejar. Foram muito tímidas, sem compreensão da dimensão nacional e internacional na atualidade, voltadas principalmente para secretarias estaduais visando atender as necessidades básicas de cidadania das comunidades urbanas de Rio Branco.
Faltou a compreensão correta do que seja uma ‘política pública’. E consequentemente do que seria uma ‘política pública para ayahuasca’. O único texto sobre o tema, A elaboração das políticas públicas brasileiras em relação ao uso religioso da ayahuasca, de Edward MacRae (2008), segue uma abordagem antropológica (e não das ciências políticas de onde vem o termo ‘políticas públicas’) apenas descreve o processo de legalização e regulamentação da bebida pelo CONAD, lamentando a inevitável ingerência governamental nos assuntos da religiosidade popular. E, na falta de um referencial teórico adequado, o conceito de ‘política pública’ foi reduzido à noção de política setorial (ou de um conjunto de ações governamental para um setor específico) no âmbito exclusivamente estadual e interpretado dentro de cultura política clientelista acreana, lugar comum no norte e nordeste do país.
Tal interpretação deu origem a vários equívocos, visíveis nas resoluções do seminário. Por exemplo: a proposta 9 na área de urbanismo – “Garantir a implementação de iluminação pública e projeto de arborização com espécies adequadas, nas vias que dão acesso aos Centros Ayahuasqueiros” – não pode ser considerada uma ‘política pública’, é sim, uma obrigação da prefeitura municipal com todos os tipos de igrejas e grupos religiosos. Ou ainda: a proposta 10 da área de educação entre outras semelhantes, “Realizar projeto piloto de ensino religioso focado nas culturas tradicionais da ayahuasca, na escola (pública) Raimundo Irineu Serra” é rigorosamente inconstitucional, pois o Estado é laico e tem o dever de resguardar a liberdade religiosa das crianças diante da comunidade.
Mas a principal decepção com o resultado do seminário foi mesmo pelo foco restrito e deslocado da realidade internacional em que a ayahuasca está inserida. Também se ressalte que a grande causa e consequência desta falta de sintonia com o cenário globalizado, foi a ausência do Cefluris (ou ICEFLU, sigla abreviada atual) no seminário, a maior e mais importante entidade daimista, responsável pela expansão mundial da bebida e pelo aparecimento de várias propostas híbridas de trabalho com ayahuasca com outras tradições espirituais. A exclusão (ou não-participação) dos seguidores da linha de Sebastião Mota de Melo foi orquestrada pelos centros que se autodenominam de ‘tradicionais’ em virtude não apenas do preconceito com a postura expansionista e globalizada do Cefluris, mas também da responsabilização, de forma não-declarada, da trágica morte do cartunista paulistano Glauco Villas Boas e das várias reportagens negativas sobre o Santo Daime na mídia brasileira. Embora não digam claramente, os centros tradicionais entendem que a expansão da doutrina daimista, bem como sua conjugação com outros rituais e outras plantas de poder, são os responsáveis por todas as desgraças do culto e pela sua péssima imagem na opinião pública. Não vamos entrar aqui diretamente nesta discussão, apenas ressaltar que tal atitude de exclusão unilateral (ou bilateral) em nada colabora para elaboração de políticas públicas efetivas de âmbito nacional que diminuam os problemas de todos, aumentando a animosidade entre os centros acreanos e os diferentes tipos de grupos em outros estados e em outros países, gerados pela política expansionista do Cefluris.
Além de incorrer neste equívoco, muito comum em se tratando de políticas públicas petistas, o seminário acreano sobre ayahuasca ficou muito limitado ao âmbito estadual, como dissemos antes. Vou dar alguns exemplos. Os pontos 4 (“Incentivar os processos de cultivo, garantindo sua sustentabilidade, através do programa do Ativo Florestal e outros) e 5 (“Disponibilizar profissionais qualificados do serviço público, como responsáveis técnicos pela elaboração de planos de cultivo e manejo, conforme as demandas dos Centros das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca”) das resoluções na área de meio ambiente não levam em conta o crescimento exponencial do consumo global de ayahuasca nem são efetivas no combate à biopirataria. Devia-se propor grandes plantios de cipó jagube e da folha rainha em outras regiões que não à amazônica (o cerrado e o semi-árido) de forma a atender essa demanda de crescimento global e evitar o contrabando dos produtos e a depredação da floresta. O mesmo pode ser dito quanto a regulamentação necessária para o transporte da bebida e do material entre estados – que não leva em conta a possibilidade de produção em outros lugares.
Ou ainda, na área de cultura, há várias propostas enfatizando a necessidade de “registro, valorização, preservação” da memória histórica dos cultos ayahuasqueiros locais (isto é: o passado da ayahuasca); mas absolutamente nada em relação à necessidade de pesquisa transdisciplinar (terapêutica, botânica, neuroquímica, espiritual) e às possibilidades de desenvolvimento futuro da bebida. E uma política pública nacional em relação à ayahuasca deve ter como uma das prioridades à pesquisa científica em todos os seus aspectos. Se reduzirmos o estudo da ayahuasca à promoção da cultura popular acreana, estaremos sucumbindo ao subdesenvolvimento.
Na área do turismo, há um único ponto: “Formar uma Comissão com representantes das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca para atuar no âmbito do Conselho Estadual de Turismo, com vistas a emitir Resolução regulamentando as atividades turísticas nas comunidades citadas, em consonância com a regulamentação do CONAD”. Ignora-se, assim, tudo que o ecoturismo fez e que está se fazendo em termos de desenvolvimento sustentado, principalmente na região Juruá. A atividade turística associada aos cultos da ayahuasca deveria ser vista como uma poderosa ferramenta de desenvolvimento social e não como um problema. Os centros de Rio Branco deveriam elaborar um evento anual, semelhante ao Centenário em 1992, para atrair visitantes e não reclamar da cidade ter ser tornado apenas um local de passagem para o Juruá ou para o Mapiá. Outros pontos ignorados? O projeto Linha do Tucum em Ipixuna: o governo do Acre, as prefeituras, o Sebrae e o Banco do Brasil deveriam criar vários projetos como este, incentivando o beneficiamento do extrativismo. Também o trabalho desenvolvido pelo Centro Medicina da Floresta tem hoje projeção internacional e deveria ser apoiado e multiplicado por políticas públicas voltadas para sustentabilidade das comunidades daimistas dentro da floresta.
Porém, infelizmente tanto o ecoturismo religioso como essas importantes iniciativas são de daimistas partidários da linha do padrinho Sebastião e ficaram de fora do seminário das políticas públicas das comunidades tradicionalistas. Aliás, a própria história do desenvolvimento institucional do primeiro Cefluris e do atual Ida-cefluris, visto de forma crítica mas sem preconceitos, pode ser a base para formulação de uma política pública de primeiro mundo - sem clientelismo político.

APENDICE D: Uma análise da evolução institucional da linha cefluristaO primeiro CEFLURIS (Centro Eclético Fluente da Luz Universal Raimundo Irineu Serra), na concepção visionária de seu criador Sebastião Mota e Melo, foi uma entidade que queria combinar três tipos de organização: uma igreja, uma associação de moradores (uma forma de representação política em relação ao poder público) e uma cooperativa comunitária. Religião, Política e Economia em uma única organização holística. Mas, não deu certo! Ou foi necessário para que se entendessem melhor os problemas de convivência social.
Em primeiro lugar devido à divisão entre irmandade (os fardados de fora, que moravam na cidade, principalmente o padrinho Wilson Carneiro e o pronto socorro de Rio Branco) e comunidade (os que moravam na colônia 5000). Esta dissociação igreja x comunidade do modelo ceflurista se reproduziu durante os anos 80 em várias igrejas do sul que embarcaram na fantasia comunitária. Era comum escutar dos fardados urbanos, profissionais liberais, afirmações de que sustentavam os de dentro; enquanto que viviam em comunidade reclamavam que seguravam a situação espiritual dos que vivem na ilusão do lado de fora. Dissociação que os centros e igrejas daimistas de outras linhas sem preocupações comunitárias, em que cada um volta para sua casa e para seu o trabalho após o hinário, nunca tiveram. O certo é que: enquanto nos anos 80 os fardados do cefluris do sul país eram encorajados a abandonar seus trabalhos urbanos para irem para o Mapiá ou viver em comunidades semi-rurais em torno das igrejas; nos anos 90, o discurso será de reintegração social e familiar; e em 2000 vários dos que foram viver no Mapiá nos anos 80 voltaram às suas cidades natais para que os filhos façam faculdade ou devido a problemas de saúde. Hoje o modelo de organização da igreja ceflurista já não se caracteriza mais essa dicotomia estrutural entre comunidade e irmandade. Porém, o grande problema do modelo ceflurista original não era a relação entre a comunidade interna e a igreja de todos, mas sim entre a “federação de famílias” e a ‘cooperativa’, ou melhor, entre os aspectos ‘familiar’ e o ‘produtivo’ da proposta do padrinho Sebastião. A comunidade do padrinho Sebastião era uma ‘federação de famílias’ – ao contrário das comunidades daimistas do sul. Quando conheceu a comunidade do Céu da Montanha, em Visconde de Mauá, ele disse: “A comunidade aqui do Alex (Polari) é melhor que a minha” – se referindo não apenas a sustentabilidade material da comunidade ao grau de responsabilidade individual das pessoas do sul em relação aos seus conterrâneos. Aliás, o que há de mais revolucionário e apocalíptico no padrinho Sebastião é sua proposta de comunidade auto-sustentável na floresta – proposta completamente abandonada hoje por seus seguidores. A evolução do Céu do Mapiá de uma comunidade que aspirava à sustentabilidade ao vilarejo rico, cujas principais atividades econômicas estão associadas à prestação de serviços direta ou indiretamente ligados ao turismo dá um estudo a parte. O certo é que, neste novo contexto, tanto o antigo CEFLURIS perdeu seu sentido original, como o seu modelo exportado e reproduzido pelo mundo a fora foi perdendo seu valor de referência e hoje praticamente não existem comunidades das igrejas associadas a esta linha de trabalho. A verdade é a própria família do padrinho boicotou sua proposta de vida material integrada à espiritual, gerando, desde o começo, a divisão atual entre fardados e filiados. E esta segunda dicotomia, entre a proposta comunitária e a proposta cooperativa, persiste até agora sob uma forma de três comportamentos éticos diferentes.
Os três comportamentos cefluristas se baseiam na dissociação da tríplice estrutura que forma o Santo Daime: a igreja, a doutrina e o sacramento. Há adeptos cefluristas que dão mais ênfase ao aspecto institucional; outros enfatizam o aspecto doutrinário e uns poucos, nos quais me incluo, consideram ser o sacramento, o elemento mais importante. Os institucionalistas dão ênfase às regras administrativas; os doutrinaristas, às normas litúrgicas e ritualísticas; e o sacramentalistas, ao desenvolvimento da consciência e são flexíveis diante das regras dos primeiros e das normas dos segundos. Geralmente, os doutrinaristas criticam os institucionalistas. Dizem que estão burocratizando a doutrina, que querem administrar tudo e todo mundo e que, no fundo, só querem mesmo o dinheiro (os doutrinaristas mais radicais são totalmente contrários que se pague pelo sacramento). Os institucionalistas por sua vez gostariam de associar os doutrinaristas e argumentam que já não é possível um comportamento tradicional no mundo moderno, que é preciso se modernizar, ser democrático, pagar mensalidade para que o sacramento não seja vendido, etc e tal. Mas, no fundo, os institucionalistas acham os doutrinaristas meio hipócritas e falsos, que usam o rigor tradicionalista para esconder sua incapacidade de mudança pessoal e social, presos que estão em uma rede de fofocas paróquias. Ambas as concepções, a institucionalista e a doutrinarista, são consumidoras de Daime. Apenas o sacramentalistas entendem o Santo Daime como um processo de produção capaz de mudar seus agentes. A igreja e a doutrina vieram de dentro do sacramento. Mas, o Santo Daime para se desenvolver como um todo tem que integrar os aspectos institucionais, doutrinários e de auto-suficiência. O desenvolvimento exagerado dos dois tipos consumidores leva à dependência dos grupos com a floresta.
Fundado em 1997, o IDA-CEFLURIS também tem uma proposta tríplice, mas de caráter mais amplo. Ele é: a) a entidade mantenedora da igreja do Culto Eclético Raimundo Irineu Serra, do Céu do Mapiá; b) uma ONG de filiação individual voltada para o desenvolvimento sustentado da floresta amazônica (na verdade, o prefixo ‘IDA’, adicionado ao antigo nome, significa Instituto de Desenvolvimento Ambiental); e c) uma federação de filiação corporativa (igrejas, pontos, grupos). Ou seja: os seguidores da linha do padrinho Sebastião são os únicos que estão institucionalmente capacitados para exercer políticas públicas, pois tem uma ONG ou um Instituto que os habilita a exercer um papel público mesmo sendo uma entidade privada. Por outro lado, a organização é também uma corporação formada para representar muitas igrejas, formar quadros, fornecer orientação doutrinária e espiritual – e não de forma federativa, mas de modo autocrático e centralizador. E o resultado é que não desempenha bem nenhuma das duas funções, nem de ONG voltada para o desenvolvimento ambiental, nem função religiosa, assistindo a igrejas de todo mundo.
Assim a instituição atual é herdeira tanto dos acertos como dos erros de sua antecessora. A ideia de reunir religião, representação política e autonomia econômica em uma única organização persistiu. Mas também persiste a dicotomia interna do grupo. Hoje, deve existir uma quantidade de ‘fardados-não-filiados’ cinco vezes ou mais superior ao número dos que pagam mensalidade à entidade que substituiu o antigo Cefluris. E esse é, em minha opinião, a causa principal que gera tantos problemas – e não a expansão internacional, o uso de outras plantas de poder ou o contato com outras tradições espirituais: a absoluta falta de controle do Cefluris sob seus fardados, que não prestam contas a ninguém. A solução, no entanto, me parece bem simples: a criação de federações de igrejas que assumam o trabalho doutrinário e controlem diretamente seus fardados e a contratação de uma auditória externa de planejamento estratégico, redefinindo os objetivos e os projetos do Instituto de Desenvolvimento Ambiental desvinculado de assuntos religiosos e aberto a outras comunidades amazônica

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