domingo, 30 de novembro de 2014

Símbolos do repouso da Terra úmida



1. O Vinho do Espírito[1]
Tanto os filósofos quanto os críticos literários ficam bastante desconcertados com o fato de Bachelard gastar uma parte significativa de sua investigação sobre os devaneios de repouso no elemento Terra com o vinho dos alquimistas (1990a).
A transformação da água em vinho tem uma longa tradição poética e esotérica, inclusive na tradição cristã. A taberna mística e os vinhos também. Trata-se de uma imagem da tradição da poesia sufi da Pérsia, presente em vários poemas de Rumi e nos Rubaiyat de Omar Khayyam[2]
Busca a felicidade agora, não sabes de amanhã.
Apanha um grande copo cheio de vinho,
Senta-te ao luar, e pensa:
Talvez amanhã a lua me procure em vão.  (estrofe 5)

Hoje os meus anos reflorescem.
Quero o vinho que me dá calor.
Dizes que é amargo? Vinho!
Que seja amargo, como a vida. (Estrofe 10)

A mesma experiência subjetiva dos versos está presente em outros universos de eventos como, por exemplo, a preparação da Ayahuasca[3], o vinho do espírito (tradução literal do quíchua: aya, 'espírito' e waska, 'vinho'). A Ayahuasca, no entanto, não é um vinho, nem uma bebida fermentada, mas uma dupla cocção do cipó Jagube (Banisteriopsis caapi) e da folha da Rainha (Psycotria viridis). Ela, no entanto, também avinagra em virtude de calor e necessita dos mesmos cuidados dos vinhos e das bebidas fermentadas em geral.
O cipó representa o princípio masculino (a força) e a folha, o princípio feminino (a luz). Por isso, eles são colhidos e preparados separadamente por homens e mulheres em regime ritual. Nesse trabalho de preparação do material, há o desenvolvimento de qualidades intrínsecas a cada gênero. Colher e limpar cada folha exige das mulheres aplicação, constância, delicadeza e atenção; enquanto entoam canções.
Enquanto isso, para tratar e macerar o cipó, os homens exercitam um ritual de força e resistência, onde o mais importante é aprender a trabalhar com inteligência. No ritual masculino denominado de ‘batição’, o cipó é macerado com marretas de madeira, com todos cantando e batendo no mesmo ritmo. Os braços se levantam juntos, impulsionados pelo retorno do impacto e descem pela força da gravidade, quase sem exigir esforço dos participantes. Os homens procuram manter o foco da batida nas extremidades do cipó, aonde ele se abre com facilidade. Caso alguém tenta exagerar na força, sem resultados serão negativos: ele se cansará rápido, perderá o ritmo coletivo e não conseguirá macerar o cipó adequadamente. É, portanto, um ritual que ensina o uso inteligente da força através da resistência.
Após a preparação, o cipó e a folha são colocados nas panelas em camadas sobrepostas. A água é outro fator importante. A água da chuva é a mais alcalina. Na Amazônia colhe-se a água da superfície dos igarapés mais fundos. Geralmente, há um responsável pelo fornecimento e qualidade da água, que pode contar com ajudantes. Ele é quem, pessoalmente, enche as panelas.
Também há um especialista responsável pelo fogo. Ele deve conhecer os rumos dos ventos, os tipos de madeira, as manhas das chamas. Também tem ajudantes para cortar a lenha, retirar as brasas e limpar a fornalha das cinzas e do carvão que possam obstruir a força das labaredas. Usam pás e espetos longos, alguns usam óculos escuros para olhar para interior do fogo e melhor poder manobra-lo.
“O fogo sobe, a água desce”. Se olharmos a casa aonde se realiza a preparação da Ayahuasca de lado, veremos as labaredas do fogo na parte de baixo e a caixa d’água acima da edificação. No centro, ponto de encontro da pressão da gravidade da água e da pressão aérea de calor e fumaça ascendentes, está o caldeirão principal e as panelas fumegantes do primeiro cozimento. Elas são supervisionadas por cozinheiro responsável e por ajudantes/aprendizes que colocam e retiram as panelas segundo suas ordens. Eles conhecem os cheiros, os pontos de cozimento, os momentos certos de fogo brando e de fogo forte.
E quando o trabalho encontra o poder, a riqueza se manifesta. Todos os participantes do ritual de preparo – homens, mulheres, trabalhadores da água e do fogo, cozinheiros e ajudantes – tomam a bebida enquanto a fazem. E cantam. As canções mesclam imagens religiosas com os ideais de solidariedade universal e de consciência ecológica. São os ‘hinários’ - coletâneas de canções religiosas em que as experiências espirituais e biográficas dos poetas-músicos ayahuasqueiros ficam gravadas, para ser revividas por todos nos rituais. Assim, as lições vividas e o aprendizado tornam-se arte e memória musical.

Vinho, bálsamo para o meu coração doente,
Vinho da cor das rosas, vinho perfumado
Para calar a minha dor. Vinho, e o teu alaúde
De cordas de seda, minha amada. (Estrofe 66)

No plano mental: a imaginação formal interpreta os arquétipos através da linguagem. Os cânticos celebram o Divino Pai Eterno; a Virgem Maria, chamada de Rainha da Floresta; Jesus Cristo, sincretizado com o fundador do culto ayahuasqueiro e com a própria bebida consumida. É o ‘mestre ensinador’ - inteligência cósmica com quem todos se comunicam telepaticamente através da bebida. Apesar das imagens cristãs, os cantos são alegres, xamânicos, panteístas; distante da ideologia de culpa e sofrimento que caracteriza o cristianismo institucionalizado. É uma reinterpretação popular ameríndia da religião colonizadora, que, apesar de aparentemente ingênua e inocente, mostra a universalidade de seus símbolos de forma poética e musical.

Alguns sábios da Grécia sabiam propor enigmas?
É absoluta a minha indiferença por tanta inteligência.
Dá-me vinho, minha amiga; deixa-me ouvir o alaúde,
Olha como lembra o vento que passa, como nós. (Estrofe 87)

A Ayahuasca promove uma expansão na consciência (o sonhar) que, sem perda da ação voluntária, permite que se observe o próprio sentimento e pensamento com maior clareza (a imaginação simbólica). E a experiência exterior com os elementos leva experiência elementar interior (a sensibilidade). No decorrer do ritual, o estado de consciência intensificada pela bebida amplifica as situações recorrentes da vida cotidiana, revelando contradições existenciais e processos interiores que se repetem inconscientemente em diversos níveis: corporais, mentais, emocionais e espirituais. Esses processos involuntários são compreendidos pela consciência intensificada dos participantes, através da corrente formada pelos hinos e pela sincronia entre as atividades práticas do preparo, sempre sugerindo soluções positivas para os problemas colocados.
Bebe vinho, ele te devolverá a mocidade,
A divina estação das rosas, da vida eterna,
Dos amigos sinceros. Bebe, e desfruta
O instante fugidio que é a tua vida.
Bebe o teu vinho. Vais dormir muito tempo
Debaixo da terra, sem amigos, sem mulheres.
Confio-te um grande segredo:
As tulipas murchas não reflorescem mais. (Estrofes 38 e 39)

E é a reunião do calor humano (a sublimação das almas) com a luz divina revigora a vida. À noite, todos, homens e mulheres, se reúnem para cantar em torno do caldeirão principal – símbolo de poder e de transmutação elemental - e das panelas de cozimento. Uma fumaça branca e doce evapora de suas bocas borbulhantes. Das nuvens de fumaça esbranquiçada emergem ‘mirações’, imagens simbólicas, as visões psíquicas provocadas pela Ayahuasca e por seus cantos.

Ninguém desvendará o Mistério. Nunca saberemos
O que se oculta por trás das aparências.
As nossas moradas são provisórias, menos aquela última.
Não vamos falar, toma o teu vinho. (Estrofe 26)

Há uma grande diferença entre uma alucinação e a miração, ou as imagens que emergem do inconsciente durante o uso ritual da Ayahuasca. A alucinação é uma distorção cognitiva provocada por entorpecente. Enquanto a miração provoca devaneios simbólicos e sonhos lúcidos.[4]
A miração tem uma série de características cognitivas bastante específicas. Em primeiro lugar, percebe-se que os pensamentos não são individuais, mas sim ‘recebidos em rede’, que a mente funciona como um rádio: a percepção do pensamento se revela uma cognição coletiva. Também não há distinção entre o interior e o exterior, entre o sensorial e o sensível. E, em decorrência destas duas percepções (da mediunidade do pensamento e da indistinção entre o micro e o macro), podem acontecer experiências radicais des-indentificação pessoal. As pessoas podem se transformarem em animais, árvores, pedras ou em outras pessoas.
Mas a característica cognitiva mais importante do efeito da Ayahuasca é a experiência de tempo não-linear. Sob o efeito da Ayahuasca, se percebe o transcorrer do tempo de forma desigual, em que alguns segundos demoram séculos e horas se sucedem rapidamente e em que alguns momentos se experimentam a simultaneidade (ou a sensação de eternidade) temporal. A Ayahuasca nos recoloca dentro da sincronicidade.
Utilizando o esquema dos quatro elementos também se pode pensar um modelo de quatro estados de consciência diferentes sobrepostos e simultâneos no trabalho espiritual com a Ayahuasca: Fogo, a luta do bem contra o mal; Água, a compaixão pelo sofrimento do mundo; Ar, o diálogo/conflito do Eu com o Outro; e Terra, a Consciência Viva da Divindade. Esses temas e níveis elementais se alternam e sobrepõem dentro de viagens sucessivas. A alquimia exterior se torna desenvolvimento interior e a transmutação de água em vinho corresponde também à transformação de seus feitores. É a Ayahuasca que faz seus feitores.
Logo as imagens se dissipam na fumaça das panelas e, após grandes viagens, os participantes voltam onde sempre estiveram: cantando. O efeito da bebida se dá em ondas, ora sonhamos, ora celebramos, mas sempre estamos cantando. Aos poucos, no entanto, os intervalos se tornam cada vez maiores, enquanto o fogo morre e os homens tiram o líquido dourado das últimas panelas, engarrafando-o com cuidado e reverência. A usina de sonhos e energia desliga seus motores mágicos: a terra esfria, a água escorre e seca, o fogo dorme e o vento sopra as últimas nuvens de mirações.

Rosas, taças, lábios vermelhos:
Brinquedos que o Tempo estraga;
Estudo, meditação, renúncia:
Cinzas que o Tempo espalha. (Estrofe 120)

2. A Inveja do Útero
É notável que os psicanalistas pensem que as mulheres tenham inveja do pênis! Talvez, a verdade, seja justamente o contrário.
Do ponto de vista do desenvolvimento pessoal, as mulheres levam uma grande vantagem sobre os homens. Todos os meses, elas passam por um processo biológico de morte e renascimento; enquanto os homens não contam com essa vantagem, são mais lineares e precisam se esforçar para produzir condições semelhantes. O xamanismo tolteca ressalta o papel espiritual do útero, visto como um órgão sensorial voltado para a atividade de sonhar. A imaginação desvairada, o delírio e a loucura histérica seriam disfunções uterinas.
Para simular um útero e as mesmas condições propiciadas pelo incentivo biológico feminino, os homens necessitam viver segundo a lua e as marés, seguindo seus ciclos de regulação da água. Através da observação e sincronia com a lua, segundo vários tipos de xamanismo e de saber ancestral, os homens conseguem se equiparar às mulheres na arte do sonhar. No xamanismo tolteca, ‘sonhar’ significa entrar em sintonia com a terra, com o sagrado feminino. A terra, como organismo vivo se comunica através dos sonhos com outros viventes. Mas, os homens se afastaram da natureza e apenas algumas mulheres de útero aguçado conseguem escutá-la.
Será que o útero está na raiz de todas as imagens de recolhimento e repouso, símbolo universal de intimidade e de retorno ao universo primordial?
O símbolo do útero extrapola bastante o arquétipo de acolhimento e proteção (o complexo de Jonas, de Bachelard). No mito da caverna de Platão, por exemplo, o útero, como um véu lunar da realidade sensível, impede que se veja a realidade inteligível e solar. Ele significa acolhimento e proteção, mas também aprisiona seus protegidos em um tipo de confinamento cognitivo.
Freud cometeu o erro de pensar que os ‘símbolos axiais’ eram 'símbolos fálicos'. Mas, as espadas, torres pontiagudas, cruzes, cetros e até o ‘ligam’ indiano, que realmente é representado por um pênis – são na verdade símbolos do eixo do universo (Axis Mundi), como demonstrou Rene Guenon (1989,277-293). Os totens, por exemplo, com várias cabeças sobrepostas representam os diferentes mundos e em torno do qual se dança, canta e se ascende a níveis superiores.
Também para o historiador das religiões Mircea Eliade (1992, 295-312), a noção de 'Centro do Mundo' faz parte do universo de praticamente todas as sociedades arcaicas. O universo foi criado a partir desse centro e é uma passagem tanto para os infernos subterrâneos como para regiões celestiais. Tal é o sistema simbólico das sociedades tradicionais, do qual derivam as imagens cosmológicas, os mitos e concepções religiosas nas mais diversas culturas: os pilares, as montanhas sagradas, as árvores da vida, as escadas cósmicas são representações do Axis Mundi, em torno do qual o universo se organiza. Para os judeus, o monte Tabor é o Centro do Mundo; enquanto, para os gregos, é o Olimpo. O monte Meru dos hindus, o Himinghjor dos germânicos, o Haraberezaiti dos iranianos, a Kaaba dos islamitas, Jerusalém para os cristãos – todos são passagens verticais para outras dimensões e se situam no Centro do Mundo dessas cosmovisões. Eliade acredita ainda que nas sociedades mais antigas a “imagem visível deste pilar cósmico é, no céu, a Via Láctea”, que se expande a partir da constelação da Ursa Maior (polo norte estelar, possivel local do 'Big Bang') e se direciona para um buraco negro abaixo da constelação do Cruzeiro do Sul (polo sul estelar).
Então, não estaríamos cometendo uma versão feminina do mesmo erro de Freud, pensando que o útero é um símbolo demiurgo do elemento terra? Que ele está na base das representações da intimidade e dos devaneios de repouso?
Para Eliade (1992, 313), o lar é uma 'Imago Mundi', um micro universo que reflete o macro universo, um local de intimidade cósmica. Nas sociedades arcaicas e tradicionais, o templo ocupava essa função. Com a desacralização promovida pela modernidade, o sagrado refugiou-se no aconchego do lar e a casa/família se tornou o Centro do Mundo do homem moderno. Houve uma pulverização do sagrado em pequenos núcleos. E, acrescentamos: o útero se tornou o maior patrimônio desses novos centros.
Vilém Flusser (APUD BAITELLO, 2010, 29) diz os homens são convexos e as mulheres, côncavas. A concavidade exerce uma atração irresistível sobre o convexo, que deseja preenche-la, completa-la. Para o filósofo, essa concavidade feminina vai muito além da questão de gênero ou do consumismo. Segundo Flusser, o feminino é a morte e a natureza, a terra é a grande devoradora do mundo material, o retorno ao vazio sem tempo. A terra, tanto do sentido de planeta como no de elemento material, é a devoradora de tudo e de todos. Ela dá e ela tira. Cria a vida e se alimenta de sua criação. A terra é a concavidade, o princípio feminino que provoca o movimento. O útero é uma de suas imagens mais profundas, viva nas estranhas da terra; mas é apenas uma representação (a Imago Mundi primária) de sua concavidade arquetípica.
A verdadeira solidão é um sentimento de intimidade com a terra. Não é uma solidão mórbida ou depressiva. Não se trata de estar sozinho, mas de estar em contato com a concavidade que nos chama à ação. A intimidade é essa conexão afetiva constante, esse solitário cuidado íntimo como a própria natureza.
Ande como se estivesse beijando a Terra com seus pés, como se estivesse massageando a Terra. As suas pegadas serão como marcas de um selo imperial chamando o agora de volta ao aqui; para que a vida esteja presente; para que o sangue traga a cor do amor ao seu rosto; para que as maravilhas da vida se manifestem, e todas as aflições sejam transformadas em paz e alegria.  (TOCANDO A TERRA - Thich Nhat Hanh)[5]
3. Matriarcado Arcaico
Digamos então sem arrodeio: não há provas arqueológicas consistentes nem evidências científicas de que houve um período matriarcal no desenvolvimento do homo sapiens. Trata-se de uma fantasia anti-patriarcal imaginar que nem sempre houve o domínio masculino nas sociedades humanas.
O único registro relativamente confiável é o de Platão sobre a cultura minoica em Creta antes do período helênico. E mesmo esse relato pode derivar de um mito e do desejo do filósofo. Platão sonhava com uma república utópica. E, não por acaso, a grande maioria dos crentes do matriarcado arcaico são defensores de um mundo mais justo no futuro.
Santo Agostinho, adequando este simbolismo à ideologia cristã, transformou a utopia platônica em objetivo histórico da humanidade, colocando-a no final da História como retorno ao ético paraíso perdido. Para o criador da doutrina do pecado original, a Cidade de Deus existe paralela à Cidade dos Homens (como as realidades sensível e inteligível de Platão). Ao ser expulso do paraíso, o homem dissociou os dois mundos e o retorno à Nova Jerusalém será a reunificação das cidades.
Durante séculos de cristianismo, o matriarcado arcaico sobreviveu como um símbolo selvagem do pluralismo não permitido. Na ótica patriarcal, baseada na família monogâmica e no credo monoteísta, os povos primitivos são sempre politeístas e poligâmicos. Os homens primitivos seriam nômades, caçadores/coletores que viviam em bandos de acordo com as fases da lua, em um tempo cíclico, sem história. O patriarcalismo começou com a vida em sociedade propriamente dita: a agricultura extensiva, a escrita de codificação gráfica fonética, os calendários solares anuais e a vida urbana e sedentária das primeiras grandes cidades. Os partidários do matriarcado arcaico imaginam que essas mudanças e o controle dos homens sobre o feminino, tiveram como fator principal as religiões dos deuses solares.
E essa premissa ideológica foi compartilhada pela antropologia evolucionista do século XIX. Para J.J. Banhofen (Mito, Religião e Direito Materno, 1861), devido à promiscuidade sexual das comunidades primitivas, onde imperava um acasalamento circunstancial, imediato, sem regras ou compromissos estabelecidos, as mulheres com inúmeros parceiros eram o centro da vida social e religiosa. Segundo Banhofen, a evolução da promiscuidade para a família monogâmica ocorreu graças à supremacia dos deuses solares que, progressivamente, substituíram os mitos das deusas-mães. Banhofen influenciou muitos pensadores importantes, entre eles Joseph Campbell.
Lewis Morgan (A Sociedade Antiga, 1877), estudando as relações de parentesco das tribos dos iroqueses (que são matrilineares), acreditou confirmar a teoria do Direito Materno de Banhofen, como sendo o direito-matriz das sociedades humanas. Banhofen havia se apoiado em lendas e em tragédias gregas.
Eliade (1993, 39-102) após estudar diversas mitologias tidas como ‘politeístas’, como a Grega, a Hindu e a Ioruba, observou que deuses celestes como Urano, Olorum e Brahma[6] não tinham altar ou culto e eram ‘pais’ dos outros deuses, a quem entregou a administração do mundo.  Elaborou as categorias de ‘deus oticius’ e de ‘monoteísmo primitivo’. Possivelmente, o politeísmo é uma invenção judaico-cristã.
As diferentes religiões agrárias indo-europeias da antiguidade - que deram origem às culturas 'pagãs' celta, nórdica e eslava – não eram matriarcais, como acredita o feminismo esotérico atual. No caso das religiões da antiga eurásia, Tangri, o 'deus-céu' reinava sobre um panteão de divindades. Há realmente evidências de predomínio das deusas e dos cultos lunares, mas, a presença de mulheres nos tronos ou em postos de mando foram quase sempre fatos isolados e circunstanciais, pois elas na sua totalidade nunca conduziram inteiramente uma sociedade. Nunca houve uma sociedade matriarcal. Isso não significa negar que em várias tribos ou civilizações as mulheres fossem altamente consideradas, que o sagrado feminino fosse mais cultuado que o masculino, nem mesmo que houvesse uma relativa liberdade de gênero antes do patriarcalismo. Nada, no entanto, indica que nesse cenário arcaico houvesse um predomínio social das mulheres sobre os homens ou que os valores femininos fossem dominantes. O mais provável, dentro da lógica evolucionista da ciência, é que o patriarcalismo seja resultando da exacerbação social do comportamento biológico do rebanho humano, presente em outros mamíferos, principalmente entre os símios.
Drauzio Varella (2000) elenca as principais semelhanças de comportamento entre homens e macacos: a dependência por anos dos filhos, disputas violentas dos machos pelas fêmeas, defesa territorial, a mesma importância dada à diferença do tamanho entre os dois sexos da espécie[7] e as mesmas estratégias reprodutivas de cada gênero: a principal tática masculina é a de procurar o acasalamento com diversas fêmeas, fazendo o possível para impedir que outros machos façam o mesmo; e a principal estratégia feminina é a de seduzir o macho que tenha as maiores chances de gerar filhos saudáveis e protegê-los – por isso o interesse pelo macho vencedor, que ascende na hierarquia social (2000, 80-82). A infidelidade feminina, mecanismo de fortalecimento genético da espécie, nesse contexto, era (ou é) pouco frequente e secundária. Mas, a ideia de uma organização grupal centrada em uma ‘rainha matriarcal’ só existe mesmo nos insetos gregários: formigas, abelhas, etc. Tais semelhanças sugerem que a 'poligamia matriarcal' também nunca existiu e que o (que chamamos de) patriarcalismo é uma exacerbação de características biológicas mamíferas, uma institucionalização (pelo uso repetido da força bruta) das estratégias reprodutivas masculinas e femininas do rebanho humano.
Nesse cenário, é fácil entender porque os elementos Terra e Água, associados à alimentação e aos cuidados pessoais, são femininos; e os elementos Ar e Fogo, representando o conhecimento abstrato e a guerra/tecnologia, masculinos. Os homens eram exploradores do universo e as mulheres, as guardiãs de sua intimidade. A institucionalização social desta divisão de domínios separou subjetivamente o masculino do corpo e de suas emoções (da Terra e da Água), como também apartou a mente feminina do saber e do sagrado (o Ar e o Fogo). E, do ponto de vista externo, o crescimento exagerado do Ar e do Fogo, destroem a Água e a Terra.
Dissolver o desequilíbrio ecológico externo implica em harmonizar os elementos dentro de si. Que os homens liquidifiquem seus corações e aterrissem em seus corpos; e que as mulheres se incendeiem e se lacem no espaço sem fim.


[1] Etnografia poética do feitio-escola de Santo Daime, em outubro de 2014, em Guanassés (CE), sob o comando de Alfredo Gregório de Melo.
[2]             Os Rubaiyat de Omar Khayyam - versão em português de Alfredo Braga.
[3] Os registros mais antigos que conhecemos vêm dos Incas. O uso da Ayahuasca como bebida sacramental era restrito a família imperial inca, descendente de Inti, o rei Sol. Conforme relatos históricos, o príncipe Atahualpa se rendeu aos invasores espanhóis e acabou assassinado. Segundo a lenda, o príncipe seu irmão, Huascar, se refugiou na floresta amazônica. Lá divulgou a bebida, que recebeu o seu nome e se difundiu entre várias tribos indígenas, perto da fronteira com o Peru e a Bolívia. O uso da Ayahuasca foi, durante séculos, utilizado por várias tribos indígenas da região. No início do século XX, com o intercâmbio cultural entre índios e seringueiros, a Ayahuasca passou a ser conhecida e usada pelos nordestinos que colonizaram a Amazônia ocidental. Destes contatos surgiram vários grupos sincretizaram o seu uso com o catolicismo popular, normatizando doutrinas de grande penetração urbana. O Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) publicou, no dia 25 de janeiro de 2010, resolução regulamentando o uso religioso da Ayahuasca no Brasil. A resolução estabeleceu regras para que a bebida não seja comercializada ou utilizada fora do contexto religioso. Atualmente, várias pesquisas investigam a utilização de medicamentos para tratamento químico de depressão, neuroses, fobias, síndromes neurológicas, bem como seu uso em processos terapêuticos.
[4]             A experiência de ‘mirar’ ou ter ‘sonhos lúcidos’ se aproxima muito mais de uma supercognição (envolvendo os dois hemisférios cerebrais simultaneamente) do que de uma alucinação ou de apenas ilusões visuais. Supercognição que permite à consciência enraizada no presente ativar as memórias do passado com objetividade visual e prever (ou até mesmo influenciar) acontecimentos futuros, “resolver problemas”, conseguir reverter relações de conflito, submissão ou enaltecimento que se apresentem na própria 'miração'. A Ayahuasca é uma tecnologia de transcendência do tempo/espaço. Segundo Calávia Saez (in LABATE & GUIMARÃES, 2008), quando os Yaminawa tentam explicar o que a Ayahuasca é para eles, usam comparações como o ‘televisão do índio’, o ‘telefone’ e até ‘o avião do índio’.
[5] http://fteixeira-dialogos.blogspot.com.br/p/oracoes-interreligiosas.html
[6] O caso de Brahma é um pouco diferente, mais ainda pode ser incluído na categoria.
[7] Quanto maior o dimorfismo sexual, mais dominadores são os machos e mais desunidas as fêmeas. Quanto menor esta variação, mais as fêmeas são capazes de alianças e menos poder tem masculino.

Narrativas Pré-históricas



A imaginação investigando o imemorial

1. Mito + Realidade
Escrever por aforismos ou pensar a marteladas, por vezes, nos torna pensadores assistemáticos, deixando lacunas e pontas soltas.
Recapitulemos, pois.
Partiu-se aqui da metapoética de Gaston Bachelard e de seu desafio. Em um segundo momento, aceitou-se a provocação e imaginaram-se conceitos resultantes da inter-relação dos quatro elementos entre si. Em seguida, após uma breve pausa para analisar o simbolismo do útero e do vinho, aplicou-se alguns desses conceitos a um universo empírico em particular: o preparo da Ayahuasca. Procedeu-se, então, a uma descrição subjetiva dessa experiência cognitiva, ressaltando a presença dos quatro elementos durante todo percurso.
Devaneando mais um pouco, chegou-se à refutação científica da hipótese do matriarcado arcaico e à necessidade de um reajuste elemental entre os gêneros, com os homens se reconectando ao corpo e às emoções; e as mulheres resgatando o sagrado feminino e sua intelectualidade. Mas, a demonstração da inexistência de um matriarcado arcaico (na memória histórica e social) não convenceu aos que acreditam nela (como memória arquetípica). O matriarcado arcaico não existiu do ponto de vista histórico, mas existe do ponto de vista psicológico. O matriarcado arcaico é uma lembrança do inconsciente coletivo, símbolo do útero histórico, de tempo anterior ao dilúvio e à memória.
E, não podemos cometer o mesmo erro do primeiro Bachelard separando radicalmente a verdade da imaginação. É preciso sobrepor à realidade histórica (o matriarcado nunca existiu) com a realidade mítica (o matriarcado está eternamente em nosso passado presente agora).
Para se tecer um texto metapoético, portanto, o corte epistemológico deve ser seguido de uma costura hermenêutica, em que a imaginação, depuradas de suas ilusões, ajude a construção científica e simbólica do sentido, da interpretação. E para investigar o inconsciente arcaico, a imaginação simbólica deve proceder a uma releitura das narrativas mitológicas, fazendo associações cognitivas entre os discursos teóricos, poéticos, esotéricos, tradicionais e filosóficos. E, dessa convergência discursiva e narrativa, nascem novas imagens, novos conceitos, novas ideias. Para tanto, é preciso libertar os simbolismos das tipologias nos quais eles foram confinados. É preciso deixar o simbolismo fluir como devaneio.

2. O cru e o cozido
O maior e mais completo estudo sobre a universalidade do mito é a tetralogia ‘Mitológicas’ de Lévi-Strauss. Após, estudar, durante 20 anos, diferentes mitologias ameríndias, o antropólogo estruturalista passou a crer, senão na unidade primordial de todos os mitos, pelo menos da universalidade da experiência mítica. Lévi-Strauss não apenas explicou cientificamente o significado cultural do mito (em suas particularidades linguísticas, econômicas e hereditárias), mas pôs-se a pensar (parcialmente) como ele.
Joseph Campbell, o conhecido mitólogo que levou as ideias de Jung aos campos da arqueologia, antropologia e história das religiões, que elaborou um modelo universal segundo o qual todos os grandes mitos fundadores das culturas humanas seriam, em última análise, uma única narrativa: o 'monomito' ou a jornada do herói. Campbell parte do geral (do inconsciente coletivo, dos arquétipos) para o particular (os mitos culturais específicos) e é universalista e cultua o sagrado como uma epifania transcultural. Enquanto a antropologia estruturalista, no sentido contrário, descreve o aspecto local das narrativas míticas dentro de um quadro aberto de referências linguísticas, alimentares, culturais. Ambos abordam 'o todo e as partes' – mas de modo bem diferente, inverso e até complementar em alguns aspectos. Os estruturalistas são mais indutivos; os mitólogos, mais dedutivos.
Lévi-Strauss chega à mesma conclusão que os mitólogos, mas por caminhos muitos mais tortuosos, fragmentados e complexos: a análise estrutural de 813 mitos com algumas variantes, de culturas nativas das duas Américas. E, ressalte-se também que ideia de um único mito arcaico de dimensões continentais é bastante diferente da noção de monomito universal de Campbell e da jornada do herói. Os mitólogos, no entanto, se deixam possuir pelo mito sem perceber e acabam tecendo generalizações etnocêntricas, adequando outras mitologias à sua. Para estudar um mito, é necessário se distanciar culturalmente dele e vê-lo de fora. E a importância da experiência mítica de um homem desencantado, como Lévi-Strauss, é justamente que ele vê o mito ao mesmo tempo como cientista e como selvagem, sem abrir mão de nenhum dos dois lados.
A conclusão de Strauss de que todos os mitos são um só, não é só devida às semelhanças de personagens e ações dramáticas nas diferentes narrativas, mas, sobretudo, ao fato das estruturas narrativas se perpetuarem tendo a si mesmo como referência, sempre contando sua própria história, mesmo com diversas variações de armadura, de código e de tema – como bem observou Greimas em sua homenagem teórica ao antropólogo (2088, 61-109).
O cru e o cozido é o primeiro dos quatro livros de Mitológicas[1] e trata do mito de referência o ‘desaninhador de pássaros’, denominado de M1, que serve como fio condutor de todas as análises que se seguem.
O mito foi colhido pelo próprio Lévi-Strauss quando esteve no Brasil, a partir de um canto conhecido por xogobeu pertencente ao clã paiowe dos índios Bororo do Mato Grosso. O mito conta a história de um incesto cometido por um índio com sua mãe. Ao descobrir a transgressão, o pai obriga o filho a realizar para se redimir várias missões impossíveis. Com a ajuda de uma avó feiticeira, que ensina ao neto a se transformar em animais, o índio consegue realizar todas as tarefas e no final se vinga do pai.
A narrativa mítica é bastante longa, muito fragmentada e se mistura com outras, principalmente com as narrativas de roubo do fogo de animais-donos-do-fogo pelos homens, tema bastante frequente na mitologia ameríndia brasileira: a onça para os jês, os corvos para os Guarani, o jacaré para os Yanomami, o urubu-rei para os Sapés.
Em algumas dessas lendas, o fogo não é furtado pelos homens, mas sim dado em troca de uma aliança e de um casamento do herói nativo com a filha de seres encantados. No mito da origem do fogo Xerente, o M124, por exemplo, (em que também há o incesto com a mãe e as provas impossíveis impostas pelo pai tirano), o fogo é um presente do casamento e da aliança entre os homens e os seres mágicos.
As Mitológicas começam e terminam com o mito de obtenção do fogo de cozinha, que é também um mito de origem da cultura humana. No último volume da série (O homem nu), Lévi-Strauss mostra como o motivo do “desaninhador de pássaros”, que enquadra a origem do fogo nos mitos Bororo e jê discutidos no primeiro volume (O cru e o cozido), é a versão semanticamente atenuada de um macro-esquema mítico de difusão continental. Os protagonistas desse “mito único”, ligados entre si por uma relação de afinidade matrimonial, são a raça humana, terrestre, e um povo celeste, os donos do fogo. Para resumir um longo raciocínio: o fogo, fundamento da cultura, é posto como correlato da aliança de casamento, fundamento da sociedade. Cozinhamos a carne que comemos assim como, e porque, não comemos de nossa própria carne. (Viveiros de Castro, 2000).

Enquanto os antropólogos, como Eduardo Viveiros de Castro, suspeitam que o fogo, a aliança e o casamento representam a entrada do homem branco na vida indígena ou a sua previsão mítica; alguns mitólogos menos rigorosos podem considerar que os ‘homens do céu’ são seres alienígenas. O fato que a descoberta do fogo desencadeou um desequilíbrio no universo humano. O fogo, nessa perspectiva antropológica, representa a tecnologia que transforma a Natureza (o cru) em Cultura (o cozido). Os homens praticamente não caçavam nem comiam carne antes do advento do fogo controlado e até hoje ainda não têm a anatomia e fisiologia adequadas para serem comedores de carne.
O advento do fogo nos transformou, não apenas em animais carnívoros, mas, sobretudo, em uma nova espécie predadora desequilibrando a antiga cadeia alimentar e o meio ambiente. A carne foi nosso fruto proibido e o fogo, nosso pecado ambiental.
3. O Dilúvio
O tema do dilúvio, por exemplo, está intimamente ligado ao do matriarcado arcaico e também é objeto de discussão entre cientistas (que o consideram um evento localizado) e mitólogos de diferentes tipos, que acreditam em uma inundação de proporções globais.
O dilúvio aparece em narrativas em americanas, asiáticas, sumérias, assírias, armênias, egípcias e persas, entre outras. Os registros históricos mais antigos que se conhece têm cerca de 4.500 anos. Em todos os continentes existem narrativas míticas tradicionais que aludem à ocorrência de um dilúvio global com paralelismos espantosos entre diversas culturas que não tiveram nenhum contato entre si, tendo sido documentadas mais de 250 em contextos culturais diferentes.
As narrativas mais conhecidas são as da Bíblia e do mito platônico de Atlântida. Mas, há estórias africanas, asiáticas e americanas, bem como lendas ocidentais mais antigas com elementos semelhantes.
Possivelmente, a estória de Noé é uma adaptação hebraica de uma narrativa bem mais antiga, um episódio da lenda suméria de Gilgamesh, que conta a estória de Utanapistim, que sobreviveu ao dilúvio construindo uma arca.
No hinduísmo, Matsya, uma encarnação de Vishnu (um Avatar) na forma de um peixe, avisa ao rei Manu do dilúvio e o aconselha a construir um barco.
A mitologia grega relata um grande dilúvio feito por Poseidon e Zeus para pôr fim à humanidade, uma vez que os homens haviam aceitado o fogo roubado por Prometeu do Olimpo. Deucalião e Pirra sobreviveram porque construíram uma arca a conselho de Prometeu.
Na África, o dilúvio resultou de uma briga de casal dos deuses primordiais Olokun, a Senhora dos Oceanos; e Olorun, Senhor dos Céus. Obatalá, deus solar filho do céu, ajuda os homens a sobreviver e ao pai a aprisionar a mãe no fundo dos mares.
Nas tradições da América pré-colombiana, Mapuche, Asteca, Inca, Uru e Maia também existem relatos diluvianos. No Popoc Vodul, por exemplo, livro sagrado recente dos Maias-quiché, escrito no período pós-clássico,  a criação da humanidade tem três momentos: primeiro são feitos homens de barro, mas como são frágeis, são substituídos por homens de madeira; esses são muito vaidosos, não adoram os deuses, e por isso são dizimados por um dilúvio enviado pelo deus Huracán; e, finalmente, são feitos atuais homens de milho.
Na interpretação cabalística do velho testamento também há três involuções: a queda de Adão e Eva, que marca a descida do mundo arquetípico das emanações ígneas (Atzluth) para o mundo aquático da criação das almas andrógenas (Briah); a destruição da torre de Babel, que representa a passagem para o mundo das formas aéreas (Yetzirah), para multiplicidade de linguagens mentais e para divisão entre os sexos; e o dilúvio de Noé, que corresponde à chegada ao mundo material (Assiah).
Há atualmente muitos esoterismos ‘involucionistas’ que seguem esse modelo de criação descendente do universo em quatro estágios/dimensões. Alguns acreditam que viemos de outros planetas ou dimensões que eram matriarcais. A cultura racional do livro Universo em Desencanto, por exemplo, fala de um tempo em que os homens não falavam e os úteros eram órgãos de comunicação, e assim, as mulheres centralizavam as decisões e governavam telepaticamente os homens. Nesses casos, não se trata de negar ou afirma a existência de um período histórico matriarcal antes do dilúvio, mas sim de se recordar de um tempo mítico antes da história.
Entre todas as narrativas sobre involução do sutil para o denso, a lenda Hopi de criação é bastante significativa:
No início dos tempos, uma faísca de consciência se incendiou na grande noite do espaço infinito. Esta luz era Tawa, o espírito do Sol.
Tawa então criou o Primeiro Mundo: uma enorme caverna povoada unicamente por insetos e governada pela Avó Aranha ou Kokyang Wuhti – a tecelã dos destinos, velha como o tempo e jovem como a eternidade, mãe de tudo na terra com quem se ela se funde e se confunde.
Observando como se moviam os insetos, Tawa achou sua criação pouco inteligente, incapaz de Lhe compreender e dar louvor.  Então lhes enviou a Avó Aranha que disse aos insetos:
- Tawa, o espírito do Sol que os criou, está descontente com vocês, porque não compreendeis em absoluto o sentido da vida. Assim, me foi ordenado que os encaminhassem ao Segundo Mundo, que está acima do teto da caverna.
Os insetos então começaram a escalar as paredes da caverna em direção ao Segundo Mundo. A subida era tão alta e tão penosa que, antes de chegarem ao Segundo Mundo, muitos dos insetos já haviam se transformado em animais serpentes, lagartos e dragões.
Tawa os contemplou e disse:
- Esses répteis são tão estúpidos quanto os insetos. Também não são capazes de compreender o sentido da vida.
Novamente pediu a Avó Aranha para que os conduzisse para o Terceiro Mundo – em um nível acima na caverna. E no transcurso desta nova viagem, alguns animais se transformaram em homens. No Terceiro Mundo, a Avó Aranha ensinou aos homens a tecerem e as mulheres a fazerem potes. Ela também instruiu convenientemente e na cabeça dos homens e mulheres começou a despontar uma vaga ideia sobre o sentido da vida. Entretanto, bruxos malvados, extinguiram a luz e cegaram os humanos. As crianças choravam, os homens guerreavam e se lastimavam, haviam perdido o sentido da vida.
A Avó Aranha voltou e lhes disse:
-  Tawa, o espírito do Sol, está muito triste com vocês, porque perderam a centelha de luz que havia brotado em suas cabeças. Agora, vão ter que subir ao Quarto Mundo. Mas desta vez, deverão encontrar o caminho sozinhos.
Os homens, perplexos, se perguntavam como poderiam subir sozinhos para o Quarto Mundo. Em fim, um ancião tomou a palavra:
- Vamos enviar nosso amigo Sapo como mensageiro para explorar o Quarto Superior e nos contar o que há por lá.
O Sapo pulou até o alto da caverna e encontrou no centro de um grande deserto, uma linda mulher, toda vestida de preto. Reconheceu então aquele personagem: era a Morte.
- Venho da parte dos homens que habitam o mundo debaixo deste – disse o Sapo. - Eles desejam compartilhar contigo este país. Isso é possível?
A Morte refletiu por alguns momentos.
- Se os homens querem vir, que venham!  Mas, como comigo tudo é passageiro, eles só durante algum tempo. Depois, só os que se desenvolverem, vão poder voltar ao Terceiro Mundo, os demais serão dados como alimento aos lagartos do plano debaixo e voltarão a serem insetos.
O Sapo voltou ao Terceiro Mundo e contou aos homens o que ouvido.
- A Morte aceita compartilhar com vocês o Quarto Mundo, comunicou, mas depois de um tempo apenas os que se desenvolverem poderão voltar.
Então os homens escalaram a Árvore que havia no centro do Terceiro Mundo. Nada levavam consigo, estavam nus, alegres como crianças, tão desprovidos como no seu primeiro dia de vida.
- Sejam prudentes e corajosos para voltarem quando chegar o dia! - recomendou a Avó Aranha - E não se esqueçam de que sou sua Mãe e que Tawa, o espírito do Sol, é seu pai!
Entretanto os homens já não mais a escutavam, pois já tinham alcançado às alturas.
Ao chegarem ao Quarto Mundo, os homens mortais construíram povoados, plantaram mandioca, milho, melões, fizeram jardins e hortas.
E desta vez, para dar sentido às suas vidas, se lembrarem de quem eram, de onde vieram e para onde estão indo – os homens inventaram as lendas e estórias sagradas, em homenagem a grande tecelã dos destinos.
4. Do mito ao tipo
Na África antiga, quando se nascia nas praias, se era filho de Yemanjá; se nas montanhas, de Xangô; e assim por diante. Os orixás eram ligados aos locais e não às pessoas individualmente. Por isso, eles eram passados de pai para filho. No Brasil, com a mistura das etnias, foi que surgiu o orixá como tipo psicológico individual e as referencias simbólicas espaciais foram colocadas em segundo plano.
Também na astrologia antiga não havia horóscopos individuais. As previsões eram meteorológicas e sobre guerras; e o mesmo o oráculo dos reis não era voltado sua vida pessoal, mas para seu reinado.
O simbolismo dos quatro elementos inspirou a tipologia dos quatro temperamentos hipocráticos (melancólico, fleumático, colérico e sanguíneo), até hoje utilizados pela medicina antroposófica; e a moderna tipologia psicológica junguiana (sensorial-motor, emocional, intuitivo e mental). Hoje vários tipos de simbologias tradicionais sobrevivem através de tipologias psicológicas: animais de poder, signos astrológicos chineses, kins do calendário maia.
E, talvez, um dos mais interessantes seja a tipologia do Eneagrama, desenvolvido por Claudio Naranjo, a partir das ideias de Gurdjieff sobre o simbolismo tradicional sufi da estrela de nove pontas. O místico armênio G. Gurdjieff elaborou um sistema de aprendizado que utilizava um modelo de síntese do Universo e do Homem, visto como um processo de três níveis em três etapas. A aplicação deste modelo ao corpo humano resultava na teoria das três oitavas. As atividades biológicas de alimentação, respiração e percepção através de vibrações audiovisuais são assim os três principais processos da máquina humana a serem desautomatizados. Esses processos por sua vez seriam interdependentes dentro de uma grande oitava.
Nesse modelo, o corpo humano é uma máquina biológica com quatro entradas e quatro saídas, todas relacionadas com trocas com o meio ambiente. E realizar a grande oitava através da desmecanização das oitavas menores, para Gurdjieff e seus seguidores, é a principal finalidade da existência humana no ecossistema, nossa missão fotossintética e espiritual: a produção do hidrogênio número um (o ouro alquímico).
Nesta lógica, aqueles que não conseguem chegar a estágios de consciência superiores, capaz de produzir essa refinada substância alquímica (muitas vezes comparadas aos sentimentos nobres como o amor) terão seus espíritos fatalmente reabsorvidos pela Lua, serão ceifados como árvores estéreis pelo universo. Gurdjieff cultivava a ideia de que apenas através do desenvolvimento tríplice integrado pode o homem construir uma alma e escapar da morte.
Seu programa de descondicionamento social se chama ‘Quarto Caminho’ justamente porque realiza uma síntese do caminho do faquir (o controle sobre o corpo/terra), do caminho do monge (devoção emocional/água) e do caminho do iogue (o poder da mente/ar), mantendo o elemento Fogo invisível em seu sistema ternário, como matéria-prima e produto final de sua alquimia musical.
Certo dia, diverti-me bastante com as críticas de Olavo de Carvalho a Gurdjieff[2], imaginando que, apesar de depreciativas e desqualificadoras, o próprio Gurdjieff concordaria com elas plenamente. Gurdijieff se considerava um relevador de segredos tradicionais e se identificava com os mitos rebeldes de Lúcifer e Prometeu. De nada vale, portanto, chama-lo de diabólico ou satanista, pois isso seria um elogio para quem acredita que, se não conseguir a energia necessária para fugir, será devorado.
Outra característica era que Gurdjieff adorava escandalizar religiosos. Carvalho ficou particularmente chocado com a ideia de que, durante a Santa Ceia, Jesus Cristo não deu pão e vinho aos seus apóstolos, mas sim a própria carne e o próprio sangue – a exemplo dos cultos arcaicos para Dionísio, deus grego do vinho, e de Osíris, deus solar egípcio - em que os deuses eram devorados – através de um sacrifício humano ou de um animal que os representava - pelos discípulos durante o ritual para depois ressuscitar (na pele de outro sacerdote do culto).
Porém, a própria existência desses cultos trágicos aos deuses solares arcaicos – a que se atribui o nascimento do teatro – é incerta e de difícil comprovação. Na verdade, a Santa Ceia é uma reinvenção do ritual da pascoa judaica, celebrando a fuga dos judeus do Egito, em que o pão e o vinho já cumpriam o papel de comunhão espiritual da eucaristia cristã. Nunca houve canibalismo ou culto trágico a deus solar – essas leituras só se tornaram possíveis após muitos séculos de miscigenação ideológica. A estória, por mais sugestiva que seja, é apenas uma provocação absurda.
Lembra-nos de outra estória igualmente absurda e provocativa: a ideia de parricídio arcaico de Freud, no livro Totem e Tabu (1969), segundo a qual o complexo de Édipo é a repetição neurótica do assassinato de um pai por seus filhos em tempos imemoriais.
Tanto Freud quanto Gurdjieff tentam explicar o comportamento cristão e a compulsão da culpa patriarcal com fábulas teóricas. O mesmo pode ser dito (mas em outro sentido) da fábula judaico-cristã da Queda de Adão e Eva, que coloca a culpa na mulher; ou nas lendas de dissociação do fogo carnal do fogo divinal de inúmeras sociedades. São apenas estórias para explicar o que não entendemos.
Ceuci era uma índia virgem que engravidou misteriosamente. Como não sabia o nome do pai de seu filho, foi forçada a tê-lo muito longe da aldeia, em terras estranhas. A índia deu ao menino o nome de Jurupari, mandado pelo sol para reformar os costumes da terra e também encontrar nela uma mulher perfeita com quem o sol pudesse casar.
Já ao sair do ventre de sua mãe, falou-lhe: "Não tenha receio mãe: eu venho de Tupã, que é meu pai, com a missão de reformar os costumes dos homens. Venho trazer a lei e o segredo, que ainda não existe nas tabas: por isso foi adequado o nome que me deste, Jurupari. Boca fechada, sigilo!".
Quando o Jurupari chegou a terra, as mulheres é que mandavam. De imediato, retirou-lhes o poder, transferindo-os para os homens, sob o argumento que o poder feminino contrariava as leis do Sol, a divindade máxima que era masculina.
Jurupari também estabeleceu uma nova e rigorosa distribuição de trabalho: os homens deveriam ir à guerra, à caça e pesca e às derrubadas da mata. As mulheres deveriam dedica-se à cerâmica, tecelagem, transporte de carga, trato dos filhos e agricultura. Além disso, Jurupari obrigou as jovens da tribo a manterem a virgindade até a primeira menstruação; condenou o homossexualismo; o incesto e o adultério que eram punidos com a morte. E para que os homens aprendessem a viver sem mulheres, Jurupari instituiu grandes festas que só eles podiam tomar parte. Inconformada com as leis e saudosa do filho, Ceuci resolveu, certa noite, dar uma espiadinha no cerimonial dos homens. Furtivamente, então, entrou na "Casa dos Homens", mas logo foi descoberta e morta pelos guerreiros do próprio filho.
Jurupari foi chamado às pressas para ver a mãe, mas não pode fazer mais nada, porque não podia abrir precedentes em suas leis. “Minha mãe morreu porque desobedeceu à lei de Tupã. A lei que eu vivo a ensinar. Não posso ressuscita-la, mas posso recomendá-la a meu pai que vai recebê-la de braços abertos lá no céu”.  E Ceuci subiu aos céus, em um arco-íris, transformou-se na estrela mais resplandecente da constelação das Sete Estrelas.
Jurupari veio a mando do Sol para reformar os costumes dos homens e também encontrar a mulher perfeita com quem o Sol pudesse casar. Não a encontrou e jamais encontrará. Talvez porque nenhuma mulher aceitará plenamente suas leis, talvez por ter renegado a própria mãe em nome delas, o herói solar é prisioneiro de sua missão. Ou maldição, pois Jurupari só regressará ao céu no dia em que tiver encontrado seu amor novamente.
A lenda de Jurupari, de origem tupi, traz alguns elementos simbólicos para nossa compreensão. O primeiro é que, em determinado momentos surgiram as leis e, consequentemente, o poder patriarcal entre os índios. As leis institucionalizavam a divisão do trabalho entre os gêneros e previam punições às transgressões. A maior de todas as transgressões, penetra no domínio proibido do sagrado masculino, foi realizada pelo poder feminino, o que levou a sua punição e posterior sublimação. O resultado, no entanto, é a infelicidade do herói solar, cujo destino é viver sem a metade que o completa e o une à totalidade.
Reparem que, em relação a Adão e Eva, a curiosidade Ceuci não é um pecado original feminino, não há o mal (a serpente). Também não há culpa e remorso, mas sim infelicidade trágica de Jurupari ao ter que cumprir as próprias leis. E, por outro lado, em relação a historietas macabras de Freud e Gurdjieff, não há o complexo de Édipo: os homens não matam o pai, mas sim a mãe. Morta e sublimada como mãe celeste, Ceuci é uma representação sagrada da mulher patriarcal.
5. Édipo tupiniquim
Muito já se escreveu sobre o mito de Édipo: Freud, Malinowski, Lévi Strauss, Lacan, Foucault. O Édipo tornou-se um ‘mito teórico’ dos intelectuais ocidentais. Uma narrativa para sociedade ocidental explicar sua culpa inconsciente de dominar todos e destruir tudo. E muito ainda se escreverá a respeito do mito grego, uma vez que existem aspectos astronômicos e políticos históricos na narrativa (CARVALHO, 1984) que escaparam ilesos da guerra travada entre psicanálise e a análise estrutural.
O termo ‘Complexo de Édipo’ foi criado por Freud e designa o conflito entre desejos amorosos e hostis que a criança experimenta com relação aos seus pais. Para Freud, um desejo edipiano é um fenômeno universal psicológico inato (filogenético) dos seres humanos e a causa de grande culpa inconsciente de “dirigir nosso primeiro impulso sexual para nossa mãe e nosso primeiro ódio e nosso primeiro desejo assassino contra nosso pai”. O complexo é formado pela repetição neurótica dos crimes de nossos antepassados, pelos assassinatos e incestos que cometemos para aprender a ser humanos e rejeitarmos nossos instintos animais, fundando assim a cultura, nossa humanidade.
Para antropologia, o simbólico não é resultante do recalque dos desejos e instintos; o mito não é uma lenda ou fabulação, mas sim uma organização da realidade a partir da experiência sensível. Levi Strauss reconhece que a proibição do incesto é uma condição necessária da cultura, mas não como culpa inconsciente e sim como um sistema de parentesco, um sistema de troca entre as famílias de um mesmo grupo. Para Strauss, o interdito do incesto é uma regra cuja função principal é mais obrigar a dar a mãe e a irmã a outro do que simplesmente impedir de se ter relações com elas.
Assim, enquanto Freud crê no complexo de Édipo e na sublimação dos instintos, Lévi-Strauss prefere descrever o tabu do incesto matrilinear como o centro de um sistema de recorrências involuntárias que tem como estrutura a perpetuação das relações de parentesco, isto é: a reprodução de um modelo de trocas sexuais.
Além disso, o interdito do incesto matrilinear é uma intercessão entre os domínios da natureza e da cultura. A Natureza é universal, espontâneo e inconsciente; enquanto a Cultura corresponde ao conjunto das regras relativas e particulares a cada lugar. Há diversas culturas e uma única natureza. E a proibição do incesto é a única regra universal, presente em todas as culturas humanas.
A proibição, como se sabe, também gera a transgressão. E, ao mesmo tempo em que funciona como um impedimento para a maioria, o interdito do incesto também provoca atração de alguns poucos transgressores. E esse é contexto preliminar do mito da conquista do fogo: o incesto e a expulsão do herói solar por seu pai. O herói, no entanto, enfrenta e vence os seres encantados, casa-se com eles e recebe o domínio do fogo. Então, dono de grande poder, volta à sua terra e mata o pai, a mãe e todos que o humilharam no passado. O mito assim tanto prescreve o tabu como sua transgressão heroica e destrutiva. E esses transgressores dos limites entre natureza e cultura estão destinados a se tornarem senhores do fogo e da guerra. E essa armadura narrativa do mito ameríndio engendrada por Lévi-Strauss pode ser aplicada a outros mitos de origem ocidentais, como a tragédia de Édipo, o drama de Percival ou mesmo a estória de Adão e Eva.
O trabalho de Lévi-Strauss teve (e tem) uma repercussão gigantesca. Formou-se uma longa tradição acadêmica de estudos sobre a origem do fogo em ameríndios brasileiros, mais um ‘mito acadêmico’: Roberto Da Matta estudou a origem do fogo na versão dos Timbiris; Terence Turner escreve sobre o mito do fogo Kaiapó; Clastres estudou a versão Guarani do mito; Betty Mindlin (2002) faz um extenso levantamento sobre os mitos ameríndios do fogo e seus estudos principais. Segundo esses estudos, o aparecimento do fogo e dos deuses solares entre os nativos das Américas foi posterior ao dilúvio, enquanto nas lendas clássicas ocidentais o advento do fogo foi anterior à catástrofe. Aliás, o roubo do fogo foi ‘o’ motivo do dilúvio ser enviado como castigo dos deuses em várias mitologias ocidentais.
E o mais importante: o que chamamos de 'matriarcado' é, na verdade, o período que antecede ao advento do fogo.


[1]O cru e o cozido’ publicado na França em 1964; ‘Do mel às cinzas’ (1967); ‘Origens das maneiras à mesa’ (1968); e ‘O homem nu’ (1973).
[2]    www.olavodecarvalho.org/avisos/Quem_Gurdjieff.pd