quarta-feira, 12 de outubro de 2022

EU NÃO SOU XAMÃ, SQN

 


Marcelo Bolshaw Gomes 1


A história da antropologia pode ser subdividida em três grandes momentos: o período evolucionista e etnocêntrico, em que os antropólogos consideravam os outros povos primitivos; o período funcionalista-estruturalista, em que Franz Boas e Levi-Strauss, entre outros, se descobriram iguais aos selvagens que estudavam; e o período etnoantropológico, em que, invertendo a perspectiva inicial, o antropólogo se conhece cultural e psicologicamente através de tradição que estuda e torna-se um xamã. No decorrer de suas pesquisas, o antropólogo encontra o xamanismo e se apaixona. Passado algum tempo, percebe que conhece apenas uma adaptação das práticas do passado. 

Para curar-me parcialmente dessa ilusão e como prova de agradecimento sincero pela compreensão que me foi generosamente entregue, escrevo aqui uma comparação entre o neoxamanismo urbano e os xamanismos arcaicos. A conclusão é que, elencadas as diferenças positivas e negativas, há dois pontos importantes em comum: o meta sistema de crenças (ou o desencantamento reencantado) e a cura transferencial como prática.


  1. A abordagem platônica do mito

Acorrentados de costas para a luz em um cárcere subterrâneo, os prisioneiros só podem ver, dos homens, animais e figuras que passam pelo exterior, as sombras projetadas no fundo da Caverna. Quando um dos prisioneiros se liberta e retorna ao mundo exterior, é cego pela luminosidade do Sol e só aos poucos consegue se adaptar à nova realidade. Percebe, então, que o mundo no qual vivia era irreal e inconsciente, feita de sombras e reflexos das coisas. Porém, o prisioneiro correria sério risco de vida se, retornando ao interior da caverna, procurasse revelar aos seus antigos companheiros a irrealidade do mundo em que se encontram. Provavelmente, eles o matariam.

Nesta imagem genial, Platão não apenas resumiu sua concepção sobre realidade sensível e realidade inteligível, mas também nos transmitiu sua experiência pessoal, mais precisamente, sua explicação filosófica para o trágico destino de seu mestre, Sócrates, forçado a beber veneno pelas autoridades atenienses em virtude de sua defesa intransigente de uma visão mais objetiva da realidade.

Na Idade Média, Santo Agostinho, no livro A Cidade de Deus (AGOSTINHO, 1990), retoma a ideia de utopia platônica em uma perspectiva histórica. Para o criador da doutrina do pecado original, a Cidade de Deus existe paralela à Cidade dos Homens: as realidades sensível e inteligível de Platão. Ao ser expulso do paraíso, o homem dissociou os dois mundos e o retorno à Nova Jerusalém será a reunificação das cidades. Agostinho colocou a utopia platônica como um objetivo histórico da humanidade, ideia que se será adotado involuntariamente por muitos pensadores posteriores.

Outra adaptação/atualização do pensamento platônico pode ser atribuída a C. G. Jung e aos conceitos de Arquétipos e Inconsciente Coletivo (JUNG, 2002). Nessa versão, o mundo inteligível, o lado de fora da caverna, é uma memória coletiva de imagens arcaicas acessível através dos sonhos e da mitologia. Essa mente coletiva arcaica é formado por Arquétipos, representações coletivas e universais, presentes em diferentes culturas. Palas Atenas, o Júpiter latino e o orixá Xangô, por exemplo, são diferentes representações históricas do arquétipo da justiça, que tem suas raízes em um dispositivo psicológico que equilibra transgressão e culpa.

Joseph Campbell (1990;1995), levou as ideias de Jung aos campos da arqueologia e mitologia comparada, elaborando um modelo universal segundo o qual todos os grandes mitos fundadores das culturas humanas seriam, em última análise, uma única narrativa: o 'monomito' ou a jornada do herói.

E historiador das religiões Mircea Eliade elaborou uma arqueologia estrutural dos mitos (uma ampla classificação dos mitos por arquétipos), principalmente no livro Tratado Histórico das Religiões (1993). Nessa arqueologia, há duas formulações particularmente importantes: o 'centro do mundo' e o 'monoteísmo primitivo'.

Para Eliade (1992, 295-312), a noção de 'Centro do Mundo' faz parte do universo de praticamente todas as sociedades arcaicas. O universo foi criado a partir desse centro e é uma passagem tanto para os infernos subterrâneos como para regiões celestiais. Tal é o sistema simbólico das sociedades tradicionais, do qual derivam as imagens cosmológicas, os mitos e concepções religiosas nas mais diversas culturas: os pilares, as montanhas sagradas, as árvores da vida, as escadas cósmicas são representações do Axis Mundi, em torno do qual o universo se organiza. 

Para os judeus, o monte Tabor é o Centro do Mundo; enquanto, para os gregos, é o Olimpo. O monte Meru dos hindus, o Himinghjor dos germânicos, o Haraberezaiti dos iranianos, a Kaaba dos islamitas, Jerusalém para os cristãos – todos são passagens verticais para outras dimensões e se situam no Centro do Mundo dessas cosmovisões. Eliade acredita ainda que nas sociedades mais antigas a “imagem visível deste pilar cósmico é, no céu, a Via Láctea”, que se expande a partir da constelação da Ursa Maior (polo norte estelar, possível local do 'Big Bang') e se direciona para um buraco negro abaixo da constelação do Cruzeiro do Sul (polo sul estelar).

Outra formulação significativa é que, possivelmente, o politeísmo é uma invenção judaico-cristã. Eliade (1993, 39-102) após estudar diversas mitologias tidas como ‘politeístas’, observou que deuses celestes como Tangri, Urano e Olorum não tinham altar ou culto e eram ‘pais’ dos outros deuses, a quem entregou a administração do mundo. Elaborou as categorias de ‘deus oticius’ e de ‘monoteísmo primitivo’.

E essa forma universalista de pensar arquetipicamente o mito é hegemônica não somente em vários campos de estudo, mas também em vários grupos esotéricos atuais – que se fundamentam em autores como Jung e Campbell – buscando dar uma maior credibilidade a suas crenças e práticas rituais.

  1. A visão antropológica do mito

Porém, o maior e mais completo estudo sobre a universalidade do mito é a tetralogia ‘Mitológicas’ de Lévi-Strauss (2004; 2005; 2006; 2011). Após, estudar, durante 20 anos, diferentes mitologias ameríndias, o antropólogo passou a crer, senão na unidade primordial de todos os mitos, pelo menos da universalidade da experiência mítica. Lévi-Strauss não só explicou cientificamente o significado cultural do mito (em suas particularidades linguísticas, econômicas e hereditárias), mas pôs-se a pensar (parcialmente) como selvagem.

Jung, Campbell e Eliade partem do geral (do inconsciente coletivo, dos arquétipos) para o particular (os mitos culturais específicos) e são universalistas, cultuando o sagrado como uma epifania transcultural. Enquanto a antropologia, no sentido contrário, descreve o aspecto local das narrativas míticas dentro de um quadro aberto de referências linguísticas, alimentares, culturais. Ambos abordam 'o todo e as partes' – mas de modo bem diferente, inverso e até complementar em alguns aspectos. Os antropólogos são mais indutivos; os mitólogos, mais dedutivos.

Lévi-Strauss chega à mesma conclusão que os mitólogos, mas por caminhos muitos mais tortuosos, fragmentados e complexos: a análise estrutural de 813 mitos com algumas variantes, de culturas nativas das duas Américas.

E, ressalte-se também que ideia de um único mito arcaico de dimensões continentais é bastante diferente da noção de monomito universal de Campbell e da jornada do herói. Na ótica da antropologia, os mitólogos se deixam possuir pelo mito sem perceber e, muitas vezes, acabam tecendo generalizações etnocêntricas, adequando outras mitologias à sua. Para estudar um mito, é necessário se distanciar culturalmente dele e vê-lo de fora.

E a importância da experiência mítica de um homem desencantado, como Lévi- Strauss, é justamente que ele vê (e vive) o mito ao mesmo tempo como cientista e como selvagem, sem abrir mão de nenhum dos dois lados. A conclusão de Strauss de que todos os mitos são um só, não é só devida às semelhanças de personagens e ações dramáticas nas diferentes narrativas, mas, sobretudo, ao fato das estruturas narrativas se perpetuarem tendo a si mesmo como referência, sempre contando sua própria história.

O pensamento selvagem classifica as coisas (cores, sons, cheiros, animais, datas, pessoas) segundo critérios subjetivos derivados de experiências sensoriais; em oposição ao pensamento científico domesticado, que classifica o mundo segundo critérios objetivos universais. Mas, o 'pensamento selvagem' de Strauss não é o 'pensamento dos selvagens', mas sim o pensamento em estado selvagem, ainda não domesticado. Ele não é incompatível com o pensamento científico. O pensar selvagem se refere a propriedades sensíveis; o pensar científico se refere às propriedades abstratas.

Assim, o pensamento antropológico é selvagem e civilizado ao mesmo tempo, não separando os dois lados da caverna, observando uma única realidade de modo sensível e inteligível simultaneamente.

Enquanto a psicologia analítica de Jung e suas derivações (Bachelard, Campbell, Eliade) estudam o mito do ponto de vista platônico e universal; a antropologia valoriza mais a estrutura dos mitos do que seu conteúdo manifesto, como se eles fossem mensagens fragmentadas do passado, que, com o passar do tempo, quase perderam o sentido.

Defende-se aqui que os dois métodos não se excluem e são complementares na investigação das ressonâncias subjetivas das narrativas míticas.

  1. A reinvenção do xamanismo

O xamanismo está se tornando uma nova forma de espiritualidade global, atraindo jovens de várias partes do planeta, misturando diferentes tradições indígenas na espiritualidade pós moderna, new age.

A palavra “Shaman” é de origem siberiana (Tungue) e significa 'feiticeiro'. O historiador Mircea Elidade, em seu livro O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase (2002) considera que o complexo xamânico, além existir em todos os povos da Ásia Central e Setentrional (árticos, turco-mongóis, himalaios), está presente ainda no Extremo Oriente (Japão, Coreia, Indochina), da Oceania (Austrália, Havaí), em diferentes regiões da África (Bantos, Iorubas, Ewes) e nas duas Américas.

Por 'complexo xamânico', o historiador entende a presença de vários elementos em comum: o tambor, os maracás, o tabaco, a fogueira sagrada, o contato com os deuses e ancestrais, a doença iniciática (morte e ressureição do xamã), a cura de doenças através da sucção, a 'visão do esqueleto', entre outras.

O xamanismo não é um sistema de crenças religiosas propriamente dito, mas um conjunto de práticas extáticas e terapêuticas cujo o objetivo é entrar em contato com o a realidade invisível. Coexiste com várias tradições (escritas e orais) e está presente nos cinco continentes. Eliade considera que não são as formas religiosas que o caracterizam, mas sim as práticas extáticas e uma maior intensidade espiritual que a experiência religiosa da maioria das pessoas de cada tradição.

O xamã, deste ponto de vista geral, não é apenas o feiticeiro, o medicine-man ou o vidente de uma comunidade tribal, que conhece a energia da natureza e a utiliza em rituais em benefício do grupo; ele é sobretudo o 'psicopompo' (o guia condutor das almas mortas, o viajante dos céus e dos infernos através de transes místicos) e pode desempenhar, segundo a região e a tradição a que pertença, as funções de sacerdote, místico e poeta. O xamã é sempre o grande sonhador, o mediador com o mundo invisível, o personagem que vive no encontro entre duas realidades.

Porém, nos dias atuais: “Ser xamã, é viver uma vida comum de forma extraordinária. É saber ler os sinais claros, que 'falam' conosco, nas entrelinhas dos acontecimentos” - como explica Carminha Levy, no site Vya Estelar2:

A tradução da palavra xamã é "aquele que sabe". É aquele que faz a descoberta da consciência. O sacrifício do xamã é a busca da autoconsciencia, sacrificando o ego, ou seja, todos os os aspectos negativos do ser, nos níveis espiritual, mental, emocional e físico. O trabalho do xamã consiste em sair fora do corpo, em estado alterado de consciência, utilizando a imaginação, ou saindo fora do corpo mesmo. Isto acontece quando a pessoa trabalha com fenômenos fora do corpo. Enfim, todos os seres são xamãs. Mas precisam ser acordados para este dom. Geralmente, as pessoas despertam para o xamanismo através de uma doença, um acidente ou a perda de um ente querido...

Segundo essa ótica, músicos, poetas, escritores, pintores, escultores, atores, bailarinos, cineastas, todos que tenham uma ligação especial com natureza e que vivam com o lado direito do cérebro, onde exercita seu lado intuitivo, instintivo e criativo – são meio xamãs. Também os médicos, enfermeiros, psicólogos, terapeutas e psiquiatras são xamãs por excelência. Todo curador, criativo ou religioso é um xamã, mesmo que totalmente dissociado de rituais arcaicos de êxtase e das culturas ancestrais.

A passagem dos 'xamanismos locais tradicionais' para o neoxamanismo global se deve, principalmente, a dois antropólogos, que, na década de 60, trocaram a perspectiva científica pela visão dos saberes ancestrais: Carlos Castañeda e Michael Harner.

Castaneda reinventa o xamanismo tolteca de forma pós-moderna3, adaptando-o para a vida cotidiana atual através de uma 'ética do guerreiro'; e Michael Harner resgata o essencial do antigo xamanismo para espiritualidade contemporânea: a ênfase na auto cura ou na canalização/transformação do negativo em positivo. Pode-se até distinguir dois grupos diferentes de neoxamanismo a partir dessas duas influências de transição, uma mais voltada para o descondicionamento social; e outra mais platônica e gnóstica.

E a partir do sucesso desses dois escritores, surgiu um novo xamanismo universal que combina diferentes ideias e técnicas, desenraizadas culturalmente de suas origens geográficas, voltadas para a (auto) regeneração planetária e para a (re) integração com meio ambiente.

Há também xamanismo étnicos que se globalizam, gerando um turismo de desenvolvimento pessoal: como a Sun Dance dos Sioux; o peiote dos Navarro nos EUA; e o San Pedro, a ayahuasca e a coca, no Peru. No Brasil, há controvérsias extensas sobre o caráter xamânico das religiões ayahuasqueiras4

Embora xamãs e antropólogos aceitem a distinção entre os antigos xamanismos locais e o crescente neoxamanismo urbano (MAGNANI, 1999a; 1999b; 2000; 2005), na prática existe uma grande confusão entre os dois fenômenos religiosos distintos. Muitos xamanismos indígenas são menos tradicionais do que pensam, tendo sido concebidos recentemente sob a influência externa.

Por outro lado, vários pesquisadores acadêmicos consideram o neoxamanismo como 'uma moda cultural da nova era', um produto artificial da sociedade de consumo – menosprezando o fato dele representar uma forma de espiritualidade contemporânea global viva e em crescimento exponencial. Daí a importância premente de se ressaltar as diferenças e de se repensar as semelhanças entre os diferentes tipos de 'xamanismos'.

  1. Comparando o passado e o presente

Por exemplo, enquanto 'todos são xamãs quando despertos' no neoxamanismo, o recrutamento dos antigos xamãs combinava a transmissão hereditária da profissão com a vocação espontânea do pretendente. Havia um 'chamado' da natureza e uma 'escolha' a ser feita por quem era chamado. A confirmação, segundo Eliade, era dada pelo transe – mesmo que a criança nascesse com marcas ou sinais característicos dos xamãs ou houvesse algum oráculo a respeito. Na verdade, a própria intensidade da experiência extática excluia severamente a criança do convívio da comunidade e era decisiva para determinar sua vocação xamânica. E o inverso também acontecia: uma criança sem família e/ou com problemas de adaptação grupal acabava desenvolvendo o transe e se tornava xamã. Em ambos os casos, no entanto, o transe é causa e consequência de um comportamento de um desajuste psicossocial. Eliade gasta algumas páginas explicando as diferenças entre o transe extático e os ataque epilépticos e outros distúrbios nervosos (2002, 37- 47).

Atualmente, o transe está sendo substituído gradativamente pela mediunidade espírita5 e pelo uso de plantas de poder. Houve também uma democratização da experiência de canalização, antes uma prerrogativa do xamã, hoje partilhada pelos participantes.

O importante é perceber que o recrutamento, o treinamento e a outorga de poderes xamânicos eram conferidos a indivíduos desajustados e socialmente excluídos, que por algum motivo não suportavam a vida familiar e grupal, em um regime de disciplina intenso que prescrevia, não apenas dietas e rituais, mas sobretudo isolamento e autocontrole. Os antigos xamãs eram assim indivíduos circunspectos e solitários, que geralmente não casavam e viviam à margem de seu grupo social.

Hoje, o processo de recrutamento, seleção social e treinamento prático de xamãs não obedece mais a esses rigores devido a uma mudança de contexto cultural. A antiga disciplina pode até ser simulada em detalhes (como no caso da 'busca da visão', dos índios norte- americanos, atualmente transformada em jornada de auto conhecimento), mas não terá o mesmo sentido social.

Outra diferença marcante entre os xamanismos arcaicos e o neoxamanismo urbano reside no fato de que, enquanto grande parte desse último se propor formar pessoas mais intuitivas e instintivas; os xamanismos antigos enfatizarem o descondicionamento social e biológico dos participantes, cujo objetivo é “perder a forma humana”. O neoxamanismo deseja ser mais humano (no sentido adjetivo); os xamanismos arcaicos intentam ser menos humanos (no sentido substantivo).

Segundo Castaneda, 'abandonar o molde humano' (ou romper com o condicionamento biológico) significava, para os antigos videntes, conhecer seu animal totêmico de poder, adotando outra forma nos sonhos. Para ele, atualmente, a perda da forma humana é marcada pela percepção de si como um campo de energia ou como um 'ovo luminoso'.

Porém indiferentes a essa colocação, muitos grupos de neoxamanismo entendem os animais de poder como se fossem símbolos que caracterizam aqueles com as quais estão associados, como signos astrológicos ou orixás do candomblé6, e não como um marco de transformação nos padrões cotidianos de comportamento instintivo e emocional humanos – conquistados através da iniciação e de uma vida de restrições e sacrifícios.

O neoxamanismo, porém, prefere valorizar as vontades do corpo e os sentimentos do coração para compensar o racionalismo da nossa sociedade patriarcal. E é claro que existem exceções. Para grupos neoxamânicos como o Caminho Vermelho, o Fogo Sagrado e o próprio Castaneda não existem arquétipos ou dimensões transcendentes: a única realidade é um inventário sensível-inteligível feita pela mente.

E a questão chave da desanimalização não é o controle individual dos desejos e instintos, mas o comportamento em relação ao seu grupo. Ao estudar os rebanhos mamíferos, Kurt Lewin (1989) observou três comportamentos recorrentes: identificação (eu sou o poder), contestação (eu sou contra o poder) e e submissão (aceito o poder como algo fora de mim).

Em outras ocasiões (GOMES, 2001; 2013), associei os que se identificam com o poder à categoria de Pastores; os contestadores foram definidos como Lobos; e os submissos denominados de Ovelhas. O Pastor é o macho-alfa, gerente do capital do grupo; enquanto, o Lobo é o xamã por excelência, aquele que expressa o inconsciente grupal.

Assim, um grupo é (mais e menos que) a soma dos seus componentes. O trabalho coletivo é mais que a soma dos trabalhos individuais gerando um excedente, o resto que sobra do todo menos as partes (o Capital). Porém, o grupo também é menos que a soma das suas partes e recalca as qualidades de seus componentes. A esse déficit inibido das partes através do todo, chamamos inconsciente grupal. (GOMES, 2013, 13).

Embora existam casos, como o de Gengis Khan, em que o xamã é também o líder do grupo (Lobo e Pastor, ao mesmo tempo), o mais comum é que os dois papéis sejam distintos e polarizados (pelas Ovelhas). Deleuze e Guatarri (1980) elaboraram o termo 'espírito de matilha' em oposição ao 'espírito de rebanho' para caracterizar o comportamento de contestação e independência dos indivíduos parcialmente excluídos do condicionamento grupal, incluindo aí os xamãs; mas a desanimalização dos padrões grupais prescrita pelas técnicas arcaicas de êxtase é ainda mais radical, exigindo a morte do ego do iniciado e a retomada teatral de suas funções na comunidade, superando o papel de Lobo do rebanho.

E a maioria dos grupos do neoxamanismo urbano (assim como outros grupos esotéricos atuais) não observam a existência das relações de poder (de dominação, contestação e submissão) em seu interior; e vive inadvertidamente pelas regras do rebanho, sem esperanças de desanimalização do condicionamento biológico e social a que está submetido. Seus xamãs são apenas Pastores disfarçados com pele de Lobo.



Xamanismos

Neoxamanismo

O recrutamento

Transmissão hereditária e vocação espontânea (chamado + escolha)

Todos podem ser xamã, basta ser despertado

O transe

Diferenças com a psicopatologia

Mediunidade e plantas de poder

A desanimalização

Abandonar a forma humana

Ser mais afetivo e instintivo

O rebanho

O espírito de matilha

O neoxamã é um pastor


  1. O neoxamanismo gnóstico vs. neoxamanismo pós-moderno

Pode parecer ao leitor que aqui também se deprecia as manifestações culturais mais recentes em nome das mais antigas, com saudades do encantamento do mundo, mas esse não é o caso. Se ressaltamos a incapacidade do neoxamanismo de entender suas raízes arcaicas é apenas para melhor enquadrá-lo e compreende-lo historicamente.

Existem muitas outras diferenças de contexto e de propósito (além do recrutamento, do transe e da desanimalização) entre os antigos xamanismos e o neoxamanismo, algumas até mais favoráveis ao xamanismo atual. Por exemplo: no passado, os xamanismos eram, na sua maioria, masculinos; agora, são predominantemente femininos – não apenas em quantidade de participantes, mas, sobretudo, em suas práticas rituais e objetivos. Ou ainda: tanto o neoxamanismo quanto os xamanismos arcaicos dão ênfase à natureza, mas de formas diferentes. O neoxamanismo trabalha mais com a ideia de meio ambiente e de consciência planetária. Castaneda formula o interessantíssimo conceito de 'seres inorgânicos', formas de vida de outra escala de tempo que se alimentam dos homens e da vida orgânica. E tudo isso pode ser considerado um avanço em relação às antigas práticas e para um panteão de deuses arcaicos representando a mãe natureza. Também destaque-se que, entre as formas atuais de neoxamanismo, há dois tipos polares: o neoxamanismo gnóstico, que vive em função de outro mundo e acredita em toda sorte de imagens e símbolos; e o 'xamanismo pós-moderno', que ignora a dimensão transpessoal da psique e considera que 'o além' é apenas ilusão ou ideologia das religiões institucionalizadas. E, entre esses polos, há diversos tons de cinza.

Mas, bem vistas toda essa diversidade atual e ainda as diferenças positiva e negativas entre passado e presente, há dois elementos universais: a) a cura pela transferência não- analítica como prática principal; e b) o meta sistema de crenças.

A ênfase de converter negatividade em atividade positiva, de mediar os conflitos através de rituais simbólicos parece ser universal. É claro que o antigo xamã mediava o conflito entre forças das natureza personalizadas em deuses; e hoje o neoxamã busca revelar o lado feminino dos homens em oposição ao lado masculino das mulheres. Mas, a técnica base continua a mesma: canalizar o negativo, compensá-lo com o oposto e devolver equilibrado. Os xamanismos e o neoxamanismo tem essa ênfase na prática da cura ou, se preferirem, nas relações de transferência e contra-transferência não-analíticas de conteúdo simbólico.

Outra continuidade entre os antigos xamanismos e o neoxamanismo atual é que os primeiros são sistemas mágicos meta religiosos, um conjunto de práticas místicas, psicológicas e extáticas, anteriores e paralelas à elaboração dos grandes sistemas de crença religiosa. O ceticismo, o pragmatismo, o empirismo avesso a transcendências – são características comuns de diferentes tipos de xamanismo no transcorrer do tempo. Eles são laicos e objetivos, sistematizações da experiência prática e não um conjunto de crenças, mágicas, anteriores aos sistemas de crenças religiosos. Mas em paralelo a esse desencanto religioso, há também a afirmação viva do cotidiano como uma aventura extraordinária, povoado de mistérios e situações singulares. E o neoxamanismo, herdeiro destas práticas e dessa visão ecumênica e agnóstica, também – embora de formas diferenciadas.

No neoxamanismo pós-moderno de Castaneda, esse desencanto e reencantado é individual e é chamado de 'ética do guerreiro'. O guerreiro deve aprender a agir por agir, sem esperança nem desespero, a dar o melhor de si sem esperar retribuição, a confiar sem crer, a viver deliberadamente através de desafios constantes, a sempre escolher o caminho de seu coração, entre outros preceitos. Porém, mais do que um simples código de conduta contra a auto importância e a auto piedade, a ética do guerreiro é uma configuração energética em que o praticante se alinha ao Intento, uma energia inteligente que pode treiná-lo e guia-lo até seu salto para o infinito. O caminho do guerreiro consiste sobretudo em acumular e redistribuir energia de forma a sobreviver à morte e não ser absorvido pelos seres inorgânicos. Alcançar a 'liberdade total' significa sair da cadeia alimentar e não ser devorado dos predadores.

Não há rituais, imagens, indumentárias indígenas ou quaisquer elementos do 'complexo xamânico' proposto por Eliade. Ao contrário, Castaneda prescreve uma atitude de espreita, sobriedade e extrema discreção, despindo o xamanismo de todo seu simbolismo para enfatizar o que considerava principal: a construção de um 'corpo sonhador' para escapar dos predadores inorgânicos e sair deste universo do carbono.

Já para os neoxamanismos gnósticos, o reencantamento do mundo é coletivo: os xamãs devem lutar pela mudança do 'sonho planetário'. Para don Miguel Ruiz (2005), por exemplo, há dois sonhos coletivos em desenvolvimento: o sonho que chamamos de realidade – “o tonal, a primeira atenção, sonho do inferno ou o sonho da vítimas” – e o sonho dos guerreiros, um sonho alternativo de realidade - “o nagual, o sonho da segunda atenção”.

Ruiz foi criado pelo avô, Leonardo Macias, um autêntico nagual mexicano. No entanto, seduzido pela vida moderna, formou-se cirurgião e renegou a tradição familiar até que certo dia sofreu um acidente de carro, teve uma experiência de quase morte. Desde então se tornou uma grande referencia do xamanismo tolteca, com pontos em comuns e diferenças do ensinamento proposto pelos naguais don Juan Mathus e Carlos Castaneda. Ruiz fala da conquista da liberdade pessoal e não da liberdade total de Castaneda, é contra a autopiedade mas não contra a compaixão, acredita na construção de um sonho sem medo (ou sem parasitas mentais) não é meramente individual, mas luta de guerreiros em favor da condição humana, entre outros paralelos.

Para Ruiz, o sistema de crenças é uma estrutura parasita de energia. Sonhamos um sonho coletivo que nos aliena da vida e nos mantêm em uma realidade virtual, uma ‘Matrix’ formada por nossas crenças e valores. Segundo ele, é libertar nosso sonho pessoal do sonho coletivo do medo de exclusão, do sonho de domesticação social engendrado pela sociedade; e, em conjunto com outros sonhadores conscientes, transformar esse sonho social de destruição planetária, induzindo toda humanidade a um salto quântico evolutivo.

Tanto para Castaneda como para Ruiz, o sonhar é a base de toda experiência cognitiva: estamos sonhando o tempo todo, seja dormindo ou quando estamos acordados. A diferença é o enquadramento mental-sensorial no estado de vigília (ou tonal) da percepção da energia sem realidade sensorial dos estados alterados de consciência (ou nagual). 

Os conceitos de Tonal e Nagual representam campos perceptivos opostos e complementares, em que o primeiro é nossa percepção ordinária (sensorial-mental) do mundo como algo formado por objetos concretos e coisas sólidas; e o último é a percepção de que estamos em um universo de relações, em que tudo é feito de energia em diferentes níveis de organização e de adaptação.

Mas, há também duas interpretações dessa polaridade cognitiva básica. Ruiz (e o xamanismo gnóstico) entende a tarefa do xamã em uma dimensão social: o sonho coletivo do medo só poderá ser transformado com grande número de sonhadores que desejem a liberdade pessoal. Ruiz acredita poder romper com o sonho social de medo tecendo um novo sonho.

Para Castaneda (e o xamanismo pós-moderno), o tonal é uma ilha (ou bolha da percepção) e o nagual a um oceano-universo que o engloba: o mar escuro da consciência. A vida orgânica (o tonal) é uma gota em um universo inorgânico. A tarefa do xamã é sair individualmente do seu ovo tonal e viver em um universo nagual, deixando para trás a condição humana. Enquanto o neoxamanismo gnóstico sonha em salvar a terra e a humanidade, o neoxamanismo pós-moderno intenta antes salvar-se do destino da humanidade de ser absorvido pela terra.

  1. A simetria cognitiva

Há sempre uma dupla realidade, uma simetria entre o lado de dentro e o de fora, o micro e o macrocosmo. No campo filosófico há, para Platão, um mundo sensível-concreto e outro inteligível-abstrato; uma cidade dos homens e uma cidade de Deus para Santo Agostinho; para Descartes, coisas extensas e objetos virtuais. Com Kant, há uma inversão de perspectiva: a realidade deixa de ser uma percepção e passa a ser uma interpretação. O mundo externo se torna uma projeção estruturada do sujeito, a simetria torna-se um reflexo invertido.

No campo religioso também há simetria, mas é o metafísico que se reflete no físico: “assim em cima, como embaixo” - expressão presente não apenas nas Tábuas de Esmeralda de Hermes Trimegisto, mas presente em todas as grandes tradições, como a chinesa (céu e a terra), a indiana (o universo-templo e o corpo-templo), e a ocidental (o homem como a imagem e semelhança de Deus). No humanismo iluminista, há cruzamento desses dois modos de representação simétricos, o filosófico e o tradicional, em que o homem ocupa o lugar central (como na tradição judaico cristã), mas o universo externo que enquadra e determina a experiência subjetiva (como crê a modernidade).

Assim como a antropologia pós-estruturalista entende a realidade como uma sobreposição das dimensões sensíveis e inteligiveis e nâo é antropocêntrica; Castaneda (Osho, Gurdjieff, entre outros autores esotéricos contemporâneos) recusam a ideia de semelhança entre o homem e o universo; e a dicotomia transcendentalista da caverna de Platão. Eles preferem entender o homem dentro da cadeia alimentar no meio ambiente e concentram seus esforços na descondicionamento dos hábitos e rotinas, na desmecanização do corpo e no desenvolvimento da consciência.

Para Castaneda, a simetria entre a cognição ordinária e a extraordinária está além do homem e é um paradoxo insuperável para o qual não existe totalização ou unificação globalizante. O Mundo e a Consciência são termos irredutíveis.

Para as tradições, a simetria é dada como certa (o mundo material é um desdobramento denso dos universos sutis); para modernidade, a simetria é parcial e invertida (o subjetivo parcialmente reflete a realidade total); para o pensamento pós-moderno (seja filosófico, antropológico ou esotérico), não há simetria ontológica (nem reflexividade entre dimensões paralelas): os objetos é que são duplos construídos intersubjetivamente em um único plano imanente bifacetado: como a onda e a partícula.

É conhecida a prescrição de Carlos Castaneda de que seus aprendizes deveriam estudar antropologia. Florinda Donner, Taisha Abelar, Armando Torres – entre outros tiveram que estudar ciências sociais na UCLA para se tornarem feiticeiros. É possível que a prescrição de Castaneda seja uma garantia anti-gnóstica, uma forma de fortalecer o tonal e manter a mente dentro da realidade objetiva, sem ilusões transcendentes.

  1. Conclusão: por amor, obrigado e desculpem.

O sistema de xamanismo havaiano conhecido como Ho’oponopono é baseado nesses três operações transferenciais: Te amo; Sou grato; e Sinto muito-Me perdoe. Em Havaiano, Ho'o significa “causa”, e ponopono quer dizer “perfeição”, portanto Ho’oponopono significa “corrigir um erro” ou “tornar certo”. O Ho’oponopono permite limpar recordações dolorosas, que são a causa de tudo que é tipo de desequilíbrios e doenças, com base nessas três operações: amar, agradecer e perdoar/ser perdoado.

Quando uma pessoa doente procura o xamã, o curador se identifica com seu paciente (eu te amo) adquirindo sua doença. O xamã passa a partilhar da enfermidade para poder curá- la. O segundo passo consiste em fazer o paciente agradecer pela sua doença, entendê-la como uma mensagem do corpo para sua consciência que precisa ser decifrada. Caso consiga fazer com que o paciente agradeça sinceramente pela sua enfermidade, há ‘a cura espiritual’ e o xamã consegue libertar-se do karma da doença.

A ‘cura material’ ou completa só poderá ser alcançada através do perdão, isto é, de um reconhecimento de que foram seus próprios erros que formaram a doença e que isto prejudicou a outras pessoas além de si próprio.

Este, aliás, é o propósito deste texto. Agradecer, perdoar e retribuir à dádiva com uma colaboração transformada e transformadora do presente original.

Obrigado, me desculpe, eu te amo.


Referências bibliográficas

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NOTAS

1 Doutor em ciências sociais pela UFRN, autor de vários textos jornalísticos sobre temas antropológico: Jurema Rainha (2010a) e Kambô, o espírito do pajé (2010b). 

2 Xamanismo: Caminho de autocura para uma vida extraordinária. Nesta entrevista a professora de xamanismo Carminha Levy, elabora um teste para você saber se é um xamã, explica por que a apresentadora Angélica é uma xamã. Carminha é iniciada no xamanismo há 26 anos, é discípula do antropólogo americano Michael Harner. <http://www2.uol.com.br/vyaestelar/vya_estela15.htm>

3 Escrevemos um artigo específico só sobre o posmodernismo de Castaneda: <http://mbolshaw.blogspot.com.br/2010/02/recapitulando-castaneda.html>

4A aproximação entre o Santo Daime e o xamanismo, por exemplo, é polemizada por vários autores (LABATE, 2002, p. 240-242). Segundo Clodomir Monteiro (1983), o Santo Daime está inserido em um contexto de práticas xamânicas, marcado por transes xamânicos individuais e coletivos; seus líderes são equivalente a xamãs. Couto (1989) desenvolve o conceito, corroborado por Macrae (1992), do Santo Daime como um 'xamanismo coletivo', em que todos são “xamãs em potencial”. Cemin (1998) considera o Santo Daime como sistema xamânico, mas apenas o Alto Santo e não o CEFLURIS, porque neste último há transes de incorporação. Para Groisman, o Santo Daime não é sistema xamânico, mas há uma aglutinação do saber xamânico nesta religião (1999, p. 23).

5 Um dos requisitos do transe genuinamente xamânico é que ele não é uma possessão ou uma incorporação. São os xamãs que manipulam os espíritos e não o contrário. Devido a isso, a umbanda, o catimbó e outras formas de espiritismo popular não são consideradas 'xamanismo'.

6 Ressalte-se que nem a astrologia nem o candomblé eram tipológicos em suas versões originais. Na África antiga, quando se nascia nas praias, se era filho de Yemanjá; se nas montanhas, de Xangô; e assim por diante. Os orixás eram ligados aos locais e não às pessoas individualmente. Por isso, eles eram passados de pai para filho. No Brasil, com a mistura das etnias, foi que surgiu o orixá como tipo psicológico individual e as referencias simbólicas espaciais foram colocadas em segundo plano. Também na astrologia antiga não havia horóscopos individuais. As previsões eram meteorológicas e sobre guerras; e o mesmo o oráculo dos reis não era voltado sua vida pessoal, mas para seu reinado. Hoje vários tipos de simbologias tradicionais sobrevivem através de tipologias psicológicas: os quatro elementos, signos astrológicos chineses, kins do calendário maia, o eneagrama.