segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

As 12 Noites Santas

É o assim denominado período que vai da noite de Natal (25) até a noite anterior ao dia dos Reis (05), quando, segundo a antiga tradição cristã,  bençãos divinas se derramam sobre nós através dos portais das 12 constelações do Zodíaco, o cinturão de estrelas em volta do espaço sideral no qual existimos.

As 12 badaladas da meia noite do Natal anunciam a vigília que é um preparo espiritual, como se as Noites Santas fossem uma prévia dos 12 meses do ano que se inicia.

As virtudes recebidas das hierarquias espirituais nesta época, através da meditação, injetam suas forças no nosso desenvolvimento espiritual ao longo do novo ano.

Uma atenção especial deveria ser dada aos sonhos como mensageiros do espírito.


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A tradição das 12 Noites Santas e o Zodíaco


Podemos associar esta tradição à sabedoria antiga do Oriente através do relato da Jornada dos Reis Magos do Evangelho de Mateus. 2.2 a 10
Na noite em que nasceu o Salvador, uma estrela se iluminou e este era o sinal há muito esperado pelos Iniciados do Oriente, que durante 12 noites seguintes seguiram o brilho da estrela que os precedia até alcançar a criança que havia sido  anunciada como o Messias.

O relato do Evangelho de Mateus nos remete para os mistérios espirituais da antiguidade, etapa do desenvolvimento da humanidade
da época do assentamento na região do Mediterrâneo quando aqueles que eram iniciados desenvolviam a visão clarividente através da qual, o que hoje é considerado pela astronomia como corpos siderais, eram vistos por eles como a manifestação de seres espirituais em atividade constante e transmutação contínua. 

A este antigo estado de consciência clarividente está associado o surgimento da astrologia, esta sabedoria baseada na analogia do movimento e posição dos astros com o destino humano. Ao fazermos a vigília das Noites Santas podemos retomar a jornada dos Reis Magos através da ligação interior com este sabedoria a respeito das 12 constelações do Zodíaco.

 


Quem são os seres que vamos encontrar na jornada das 12 Noites Santas?


Rudol Steiner refere-se às hierarquias espirituais em muitas de suas palestras. Inicialmente ele lhes dedica um capítulo na Ciência Oculta (1905) descrevendo a atuação delas na evolução do universo e do ser humano.

As nove hierarquias espirituais podem ser contempladas  como esculturas no portão sul da Catedral de Chartres desde o século XIII. Chartres foi a mais importante catedral gótica da idade média e neste portão, chamado de Portão da Transubstanciação, as hierarquias formam uma escada ascendente que representa o ensino espiritual da Escola de Chartres. O aluno deveria, de degrau em degrau (gradualmente), adquirir consciência destes seres espirituais que representavam diferentes estados de consciência.

Neste aprendizado o pensamento era considerado um instrumento necessário para a percepção do espiritual desde que fosse casado com a vivência dos sentimentos e assim tornavam-se ambos, pensar e sentir, órgãos de compreensão e de participação no mundo espiritual. 

Os nomes das hierarquias se originaram de um manuscrito de Dionísio, o Aeropagita que fundou a primeira escola esotérica cristã da antiguidade. Dionísio, um iniciado dos antigos centros de mistérios gregos,  renomeou os seres divinos que era chamados como os seres de Vênus, os seres de Mercúrio,etc.. a partir da revelação do Cristo feita a ele por Paulo de Damasco em Atenas.

O manuscrito sobreviveu ao longo de séculos até ir parar em Chartres e é intitulado: "Os Nomes divinos e a Teologia Mística", descrevendo dramaticamente os nove níveis de seres divinos associados em grupos de três hierarquias que participaram da evolução da terra e do ser humano.

A primeira hieraquia inclui os Serafins, Querubins e Tronos que iniciaram a evolução estando tanto no seu início como no seu fim – no Alfa e no Omega,
Eles atuam a partir do divino, da esfera macrocósmica que é denominada como a esfera do Pai, de Deus, de Alá, do amor divino, da doação cósmica. Eles são seres de um estado evolutivo anterior ao nosso, tão avançados em sua evolução que foram capazes de fazer fluir de si a sua própria substância dando nascimento ao atual estado do nosso sistema solar.

A segunda hierarquia é formada pelos Kyriotetes, Dynamis e os Exusiai.

Enquanto no processo de configuração do nosso Cosmos a primeira hierarquia atuou de fora, eles, de dentro do processo, acolheram os planos divinos transformando-os em sabedoria, dando-lhe movimento e  forma.

E por último a terceira hierarquia, os Arqueus, Arcanjos e Anjos próximos ao seu humano porque desenvolveram a sua essência nesta etapa evolutiva em que nós, Anthropos, nos encontramos e na qual estamos destinados a nos tornar co-criadores da evolução..

Primeira hierarquia         Segunda hierarquia             Terceira hierarquia
Serafins                          Kyriotetes                             Arqueus
Querubins                       Dynamis                              Arcanjos
Tronos                            Exusiai                                 Anjos   

Já nos últimos anos de sua vida, em uma palestra intitulada a Palavra Cósmica e o Homem Individual (2/05/1923) ,  Rudolf Steiner chama a atenção para o fato de que o homem auto consciente deveria  re-aprender a vivenciar as hierarquias na sua vida interna como realidades.

Nesta palestra ele diz que estes seres espirituais vem ao nosso encontro quando nos preparamos para conhecê-los e falarão à nossa alma primeiramente como pensamentos e sentimentos, e só depois então o perceberemos como realidades.

Em um texto intitulado "O Zodíaco e as Hierarquias Espirituais", Sergej Prokofieff, atualmente um dos dirigentes mundiais da Antroposofia, inspirado por diversas palestras de Rudolf Steiner,  descreve o ensino espiritual de Chartres  nesta tradição da vigília das 12 noites santas.

Ele delineia a escada de expansão da consciência que ajuda a dar nascimento, no último degrau, ao ser divino em cada um de nós.

O primeiro degrau da escada se assenta na esfera humana terrena e cada degrau nos leva gradualmente à esfera macrocósmica, à esfera divina.

Prokofieff faz uma analogia entre este caminho de transformação e o processo de desenvolvimento descrito por R. Steiner como o caminho de Jesus a Cristo.

Jesus nasce como a criança arquetípica destinada a se desenvolver como um ser humano de tal forma que possa acolher em si o Eu do Cosmo no Batismo do Jordão.

Este acontecimento místico  derramará sua influência por sobre toda a história humanidade como um grande arquétipo de desenvolvimento espiritual.
 

 

PRIMEIRA NOITE SANTA

Soam as 12 badaladas da meia noite anunciando o Natal.  Vem a aurora, atravessamos o dia, cai a noite e uma luz se acende no céu irradiando um brilho que emana da Constelação de Peixes e ilumina a primeira vigília santa.

Estamos no primeiro degrau da escada que está assentada na esfera humana terrena na dimensão da existência do anthropos – o ser da liberdade.

A liberdade é uma das duas principais forças espirituais que nos foram destinadas conquistar ao longo da vida. A outra força será ao final da escada, o amor.

A sabedoria antiga nos conta que foram as forças espirituais de Peixes que configuraram os pés humanos. Quando observamos os pés verificamos que eles são formados em forma de uma abobada que vai propiciar simultaneamente com a verticalização da coluna o andar ereto, primeiro grande aprendizado da vida. Quando criança nos arrastamos, engatinhamos e finalmente nos erguemos e nos apoiamos-nos próprios pés superando as forças da gravidade significando isto uma grande conquista e a condição para o desenvolvimento do pensamento, sendo o pensar o que diferencia o Humano dos outros reinos da natureza.

Ao longo da vida seguidamente fazemos uma analogia íntima com este fato:

“andar nos meus próprios pés, saber por onde ando,”, seguir os meus próprios passos,” “não vou andar nos passos de ninguém” são expressões que expressam uma correta relação com a terra e com o destino em termos de liberdade pessoal.

Nesta primeira Noite Santa recebemos da constelação de Peixes os impulsos para se firmar nos próprios pés e se erguer, condições básicas para alcançar a liberdade individual, meta ao qual nos destinamos como seres individualizados
 

SEGUNDA NOITE SANTA 

Nasce o Sol, atravessamos o segundo dia, cai a noite e uma nova luz brilha no céu irradiando da Constelação de Aquário o segundo degrau desta escada espiritual. Deste portal emanam para nós as forças espirituais dos Anjos.

Os anjos são representados pela figura de um ser que derrama a água, o símbolo da vida e assim eles também são chamados de “Filhos da Vida”.  

Eles são os seres espirituais imediatamente superiores a nós mantendo conosco uma relação próxima. O encontramos logo cedo no nascimento quando “parecemos anjos” nosso corpo vital ainda muito latente, cheio de vida.

Na infância ele é chamado de “Anjo da Guarda” e é sempre representado em todas as culturas protegendo a criança dos perigos sendo o seu guia e como guia ele permanece ao longo de toda a nossa vida.

“Pergunte ao seu anjo da guarda” freqüentemente escutamos quando estamos em dúvida em relação ao caminho a seguir, a que decisão tomar.

Na vida adulta ele se transforma em nosso Guia Espiritual, nosso verdadeiro Self . “Assim deverás ser” nos fala no íntimo transmutando continuamente forças vitais em forças de consciência fazendo surgir nos pensamentos as imagens orientadoras para a nossa vida.,  

Nesta segunda Noite Santa recebemos através do Portal da Constelação de Aquário os impulsos dos Anjos para que possamos enxergar e permanecer fieis aos nossos ideais. Os nossos ideais iluminam e protegem o nosso caminho e apontam para onde devemos seguir.


TERCEIRA NOITE SANTA 

Atravessamos mais um dia, cai a noite e uma nova luz brilha no céu irradiando da Constelação de Capricórnio o terceiro degrau nesta escada espiritual e deste portal emanam para nós as forças espirituais dos Arcanjos. Os Arcanjos são denominados de seres da luz. Rudolf Steiner os descreve na Ciência Oculta como aqueles seres que durante a evolução acordaram ao enxergar o seu próprio reflexo no exterior. Quando eles doaram sua própria essência esta sua essência era a própria luz que irradiou para os quatro cantos do universo. A luz dos arcanjos é representada hoje em nós pela nossa inteligência que irradia para o meio ambiente e torna consciente para nós mesmos e para o mundo a nossa própria existência.

 Os arcanjos se tornaram na evolução guardiões da inteligência cósmica com a missão de proteger o amor divino contido nesta inteligência que criou e transformou tudo em sabedoria para o bem de todos .

Nesta terceira Noite Santa recebemos através do Portal da Constelação de Capricórnio os impulsos dos Arcanjos para o fortalecimento da nossa personalidade através da expansão da luz e autonomia da nossa inteligência.
 

QUARTA NOITE SANTA

Atravessamos mais um dia, cai a noite e uma nova luz brilha no céu irradiando

da Constelação de Sagitário de onde emanam as forças espirituais dos Arqueus, os Seres da Personalidade. Isto significa que eles não só possuem um Eu como sabem que o possuem e através desta consciência intensificada eles criam uma imagem de si no exterior.. Eles projetam no exterior a força de sua luta interna que é a própria luta do centauro, do ser humano emancipado por um lado na sua inteligência mas por outro lado, em luta constante para superar suas forças animalescas, seus instintos selvagens, suas forças egoísticas.

Os arqueus são considerados os Espíritos do Tempo porque esta luta é a própria luta de desenvolvimento humano do nosso tempo abrangendo algo que ultrapassa todas as etnias e se torna uma influência cultural na nossa civilização.

Aqui a tarefa anterior dos Arcanjos que era proteger a sabedoria cósmica das intenções egoístas é ampliada pelos Arqueus estando expressa no desafio da nossa civilização moderna na luta entre o materialismo exarcebado e a preservação dos recursos naturais.

No portal sul da Catedral de Chartres a escultura de Micael preside as 3 hierarquias. Rudolf Steiner constantemente se refere a ele como o Regente desta nossa Época com a missão de dominar o dragão o ser mítico em cuja forma está representado o nosso intelecto onde a sabedoria cósmica foi apropriada através da compreensão das leis, através da ciência natural e precisa ser colocada no mundo de forma mais ampla para o bem de todos. Tanto no aspecto pessoal de construção da personalidade como neste aspecto temporal esta luta representa um cair e levantar constantes.

Nesta quarta Noite Santa recebemos através do Portal do Sagitário os impulsos espirituais dos Arqueus para o fortalecimento da personalidade de forma que tenhamos forças de estabelecer e sustentar impulsos mais abrangentes na nossa vida que nos orientem para o futuro e que contenham metas espirituais para a nossa existência.
 

QUINTA NOITE SANTA

Nasce de novo o sol, atravessamos um novo dia e cai a noite e uma nova estrela brilha no céu irradiando da Constelação de Escorpião através do qual emanam as forças espirituais dos Exusiai os Seres da Forma. Agora atingimos o âmbito da segunda hierarquia. Eles também foram seres de um estado evolutivo anterior tão avançados em sua evolução que podem acolher os planos divinos e torná-los manifestos de forma que haja uma concordância entre a esfera macróscomica da consciência cósmica e o nosso sistema solar que é uma expressão microcósmica onde a nossa existência humana está inserida, onde a biografia humana transcorre.

Os Exusiai estão envolvidos nos processos de criação de um novo ser, na transformação de uma forma em outra, na metamorfose constante da substância,.

Na Bíblia eles são chamados de Elohins e no corpo humano as forças de     

Escorpião configuraram os genitais a partir dos quais é possível a procriação ou seja a criação de um novo ser físico.

Estamos no âmbito das forças sexuais que são as forças que oscilam tanto para o egoísmo mais absoluto, aquilo que pode ser caracterizado como o mal porque ao oferecer a possibilidade da maior satisfação imediata podem subjugar o humano ao nível do animalesco. Mas que também trazem uma das maiores possibilidades para a superação do egoísmo e transcendência de forças. Se em Sagitário tínhamos a imagem de um cair e levantar constantes entre o animalesco e o humano aqui temos a imagem de uma luta na nossa vida interior entre a morte e ressurreição. E esta é uma luta que ocorre em âmbito muito individual onde em liberdade oscilamos entre as sombras que obscurecem o nosso ser, os esconderijos onde vive o Escorpião venenoso e as forças de expansão do ser representadas pela águia que se eleva às alturas e de lá contempla o Todo.

O Escorpião é então o signo das forças duplas, tanto destrutivas, retrógadas que mudam constantemente de aparência e invadem a nossa alma caotizando a vida como é também portador de forças construtivas que tem a ver com transmutação constante e contínua superação para que a substância divina, o Espírito possa em nós ser plasmado de novo e sempre. No apocalipse esta característica de forças duplas é apresentada como a espada de dois gumes.

Nesta quinta Noite Santa recebemos através do portal de Escorpião os impulsos espirituais dos Exusiai para aceitar por um lado as nossas fraquezas, e por outro lado recebemos impulsos espirituais para a superação e transformação destas forças.

 

SEXTA NOITE SANTA

Temos o nascer do sol, a passagem de mais um dia e o cair da sexta Noite Santa. Uma nova estrela brilha no céu irradiando da Constelação de Balança o portal através do qual emanam as forças espirituais dos Dynamis os Seres do Movimento. Continuamos no âmbito da segunda hierarquia. Na evolução os Dyamis acordaram ao perceber o que estava ocorrendo em volta deles e atuaram criando um equilíbrio dinâmico, uma correta relação, uma permanente reciprocidade entre as coisas. Estar em desequilíbrio significa estar separado, não está inserido na unicidade de todas as coisas. Suas forças configuraram a bacia que é responsável pelo equilíbrio no manter-se ereto.

No trabalho biográfico estudamos a expressão da Balança por volta dos 28 anos que é o marco de mudanças entre as forças do passado que nos carregaram até aí e as forças do futuro que trazem a possibilidade de uma nova expressão da nossa individualidade através da nossa capacidade de transformar a herança da educação herdada. . Os Dynamis nos oferecem a possibilidade de colocar as influências do passado e as possibilidades do futuro, o dentro e o fora, os processos de fusão e de separação em uma correta relação de reciprocidade, em um equilíbrio dinâmico.

Na sexta Noite Santa através do portal da Balança recebemos dos Dynamis os impulsos espirituais para desenvolver o equilíbrio interior e conseguir conter as forças de dispersão para se ter uma vida coerente e harmoniosa.


SÉTIMA NOITE SANTA

De novo temos o nascer do sol que anuncia o novo dia e no final deste o cair da noite. Uma nova estrela brilha no céu emanando luz da Constelação da Virgem o portal do qual emanam as forças dos Kyriotetes os Seres da Sabedoria.

Na evolução eles acordaram ao perceber a existência de outros seres para os quais criaram então o espaço do acolhimento. Estamos ainda no âmbito da segunda hierarquia que acolhem e realizam os planos divinos.

As forças do Signo da Virgem configuraram o ventre que é um aspecto físico do feminino que pode receber e gerar outro ser. A alma, a nossa vida interna também tem esta qualidade do feminino de levar para dentro, de acolher no íntimo e de guardar a nossa essência, o nosso Eu.. A Virgem é a imagem terrestre da Alma cósmica, a Sofia e ela é considerada virgem porque corresponde a um aspecto de nossa alma que permanece intocada pelas necessidades terrestres e pode então acolher e gerar o Espírito individualizado em nós. Isto significa um estado de entrega e doação constantes, de cortesia e polidez.

Na sétima Noite Santa através do portal da Virgem recebemos os impulsos espirituais dos Kyriotetets que são capacidades de criar o espaço para algo novo ser gestado no íntimo e de encontrar forças a partir do seu próprio interior para fazer desabrochar a sua vida.

 

OITAVA NOITE SANTA

Nasce um novo Sol, atravessamos mais um dia e vem o cair da noite.

Uma nova estrela brilha no céu emanando luz da Constelação de Leão, o portal do qual emanam as forças dos Tronos os Seres da Vontade .

Alcançamos a primeira hierarquia, de seres espirituais muito evoluídos que manifestam as intenções divinas atuando da esfera macrocósmica para dentro do nosso sistema solar.

Na evolução os Tronos eram seres tão completamente conscientes de si que seu querer era sua própria substância e este querer é tão exaltado que estes seres produziam calor e doaram sua própria substância.

As forças de Leão configuraram o coração humano e os dirigentes da antiguidade e os reis da idade média associavam sua realeza com este signo que era relacionado com a coragem e a prontidão de realizar no exterior o que é determinado a partir de dentro: a voz do coração.

Na oitava Noite Santa, a partir do portal do Leão recebemos os impulsos de entusiasmo e coragem para enfrentar as provas que o destino nos trazem

 

NONA NOITE SANTA

De novo sai o Sol, atravessamos um novo dia e vem o cair da noite.

Uma estrela brilha no céu emanando o seu brilho da Constelação de Câncer o portal do qual emanam as forças espirituais dos Querubins os Seres da Harmonia.

Foi a ação dos Querubins no início da evolução que criou o cinturão protetor de estrelas em volta do nosso sistema separando-o da totalidade macrocósmica

Esta ação está expressa na própria configuração do tórax: as forças de Câncer configuram os doze pares de costela, o invólucro protetor físico do coração, o órgão da vida.

Os Querubins trazem o impulso para que as transições de um ciclo para outro ocorram de forma harmoniosa. Eles atuam na forma da espiral cujas forças vem do ciclo anterior, criam um invólucro e se direcionam para o próximo ciclo – em uma seqüência repetitiva, harmoniosa. Podemos observar estas espirais cósmica também em ciclos menores da natureza . São os Querubins que cuidam por exemplo que a semente do outono renasça como uma nova planta na primavera.

Na biografia encontramos também estas transições no nosso desenvolvimento que às vezes se apresentam de forma dramática como crises.

Na nona Noite Santa através do portal de Câncer recebemos os impulsos espirituais dos Querubins que nos trazem força para nos harmonizarmos com o novo e cria aconchego para que os momentos de transição ocorram de forma harmoniosa.


DÉCIMA NOITE SANTA

De novo sai o sol, atravessamos um novo dia e vem o cair da noite.

Uma estrela brilha no céu emanando seu brilho da Constelação de Gêmeos, o portal através do qual emanam as forças espirituais dos Serafins os Seres

do Amor. Amor que não está mais assentado nos laços físicos, nos laços da paixão mas em laços espirituais. O amor fraterno.

Os gregos tem um mito através do qual podemos saber do que se trata.

O mito do Kastor e do Polydeukes irmãos que eram filhos da mesma mãe com pais diferentes sendo que Castor era mortal e o Polydeukes imortal. Ocorreu que Castor morreu e o seu irmão foi até Zeus e pediu que a sua imortalidade fosse retirada e concedida ao Castor e Zeus comovido tornou-os ambos imortais e os colocou no céu na forma de uma constelação. Ou seja elevou-os a condição macrocósmica e o que os tornou imortais não foram os laços de sangue mas o abrir mão de si que resultou numa forma ainda mais elevada de amor.

No Evangelho temos a sentença desta forma de amor: “onde dois estiverem reunidos em meu nome eu estarei no meio deles” – ou seja abre-se mão do próprio Eu e ganha-se outro Eu que é eterno.

A fraternidade é o mais poderoso impulso para a vida social porque ela pode quebrar as barreiras de status, de etnia e de crenças.

Na décima Noite Santa através do portal de Gêmeos os impulsos espirituais dos Serafins ajudam a vencer a barreira do individualismo e da solidão.


DÉCIMA PRIMEIRA NOITE

De novo vem o Sol e um novo dia e ao cair da noite uma estrela brilha no céu emanando seu brilho da Constelação de Touro portal por onde adentra à esfera do Zodíaco vindo das regiões macrocósmicas o sopro do espírito.

Se lembrarmos dos Reis Magos estava próximo o lugar onde se encontrava a criança e iluminando a noite o brilho da estrela que os precedia ampliava enormemente a dimensão do deserto. A alma se elevou tocando outra dimensão que não é terrena e o Espírito Santo adentra a dimensão humana manifestada no Batismo de João sob a forma de uma pomba.

É uma noite de grande expansão da alma, os horizontes se ampliam e a nossa alma pode se elevar a um estado anímico cósmico alcançando a dimensão da alma do Cosmos, da Sofia divina e sentir a presença do espírito . No Antigo Egito isto era representado nas esculturas que portavam os chifres do Touro com o espaço entre eles preenchido por um disco solar coroando a cabeça do faraó considerado o descendente direto de Deus.

Foram as forças do Touro que configuraram a laringe, o órgão da fala que segundo o Steiner está em transformação e que nos estágios evolutivos futuros do ser humano a palavra terá de novo a força plasmadora referida nas Gênesis de todas as religiões. No princípio era o verbo e o verbo estava em Deus.

A palavra será como uma lança sagrada de expressão do amor divino.

Na décima Noite Santa através do portal do Touro o Espírito Santo emana a plenitude do amor divino inspirada como persistência em relação ao que se pretende alcançar.


DÉCIMA SEGUNDA NOITE

Um novo Sol e um novo dia e no cair da última noite desta ascensão através das hierarquias espirituais. Alcançamos o último degrau desta escada que já nos transportou para as fronteiras do universo.

Este é o portal por onde o filho de Deus, o Eu cósmico adentrou da esfera macrocósmica, da esfera do Brama, Javé, de Alá, da esfera do divino para a nossa existência. Através deste portal ressoa no nosso cosmos vindo das regiões macrocósmicas além do zodíaco a voz do Pai

“Este é o meu filho muito amado, hoje eu o engendrei.”

Como um eco longínquo é feito o Reconhecimento a síntese de todo o caminho unindo o Natal ao Batismo. O Natal como o nascimento da criança natural e o Batismo como o posterior nascimento da criança divina o Cristo como uma luz brilhando no interior, como um Sol interno na alma livre e plenamente consciente.

A voz de Deus é a voz da consciência humana que eleva o Eu de uma condição terrena, inferior a uma condição cósmica, superior trazendo para o ser humano a possibilidade de se tornar o ser da liberdade e do amor – a décima hierarquia espiritual .

 


Palestra proferida por Edna Andrade na Clínica Tobias em São Paulo no Natal de 2006
O texto pode ser reproduzido desde que citada a autoria.

Bibliografia
A Ciência Oculta – R. Steiner – Ed. Amtroposófica
O Zodíaco e as Hierarquias Espirituais – Sergei Procoffiev
The Golden Age of Chartres – René Querido – Floris Books

 

domingo, 25 de dezembro de 2022

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

terça-feira, 25 de outubro de 2022

As oito sinapses

 

Fenomenologia da Consciência


A teoria dos oito cérebros, de Timothy Leary (1961), recentemente atualizada por Robert Anton Wilson (1987), como oito circuitos neurocerebrais.

Essas teorias dividem a cognição em duas:

A Cognição Ordinária ou o lado esquerdo do Cérebro1 responsável pela cognição atual do mundo, formada por quatro circuitos integrados: o circuito da sobrevivência (ou a Consciência), o circuito das emoções (ou o Ego), o circuito da linguagem (ou Mente) e o circuito sócio-sexual (ou a Personalidade). Esta cognição é, em parte, é consciente de si e de seu contexto de formação.

A Cognição Extraordinária ou o lado direito do Cérebro, formado por funções ainda adormecidas que correspondem às nossas possibilidades de evolução: o circuito neurosomático, o circuito neuroelétrico, o circuito neurogenético e o circuito neuroatômico. Também é chamada, por vários, autores, de Individualidade, em oposição à Personalidade.

Cognição Ordinária

A Consciência equivale neste sistema à percepção sensorial da realidade, que remonta à cognição dos invertebrados, ao 'cérebro réptil' ou à capacidade de agir instintivamente. A neurociência atual considera que essa consciência-percepção é produzida pelo 'Arqueocortex'.

"Este cérebro invertebrado foi o primeiro a evoluir (faz de 2 a 3 milhares de milhões de anos) e é o primeiro a ativar-se quando nasce uma criatura humana. Programa a percepção numa espécie de codificação dividida em coisas 'boas e nutritivas' (para as que se sente atraído) e 'perigosas e tóxicas' (as que evita ou ataca)." (WILSON, 1987, 1)

Assim entendida, a consciência não é algo transcendente ou metafísico, mas um circuito de informações instintivas essenciais à sobrevivência. A consciência é o 'ser-no-mundo'. Ela não é um fenômeno em si, mas o espaço em que os fenômenos acontecem, uma clareira em meio a um universo sombrio, uma abertura pela qual vemos a realidade2.

O Ego, por sua vez, corresponde ao circuito das emoções e a uma estruturação de identidade espacial e de uma relação de poder, de propriedade em relação ao meio ambiente e a outros egos (alter-egos). O ego é uma estrutura de identidade territorial, em que o animal se apossa do espaço.

"Este segundo e mais avançado biocomputador se formou quando apareceram os vertebrados e a competição pelo território (talvez uns 500.000.000 A.C.). No indivíduo este enorme túnel de realidade é ativado quando as cintas mestras do DNA disparam a metamorfose do arrastar-se ao andar. Como sabem todos os pais, o menino que começa a caminhar já não é uma criatura passiva orientada a sobrevivência biológica, mas um mamífero político, cheio de exigências territoriais físicas e psíquicas, rápido em intrometer nos assuntos familiares e nos objetos de decisões." (WILSON, 1987, 1)

Assim, enquanto a Consciência corresponde à sensação de estar aqui e agora em corpo orientado para a sobrevivência animal; o Ego orientado por afetos e desafetos é o segundo circuito sensorial mamífero do status (atualidade-não atualidade) no grupo ou tribo. Para a neurociência é o Paleocortex ou "cérebro límbico".

Atualmente, à identificação/negação da consciência com as formas do mundo estrutura o que chamamos de Ego. Dentro dessa definição, há duas formas de compreender o ego: a oriental e a ocidental. A oriental deseja que ele seja transcendido pela consciência. Um belo exemplo atual dessa forma é a de Eckahart Tolle:

O ego é um conglomerado de formas de pensamento recorrentes e de padrões emocionais e mentais condicionados que estão investidos de uma percepção do Eu” (2002, 52-53).

Para Tolle, o Ego é o eixo do tempo/horizontal (uma sucessão de momentos – mas o passado só existe quando nos lembramos e o futuro só existe quando nós o imaginamos); a consciência (ou a presença, a sensação pessoal imediata) é o eixo místico agora/vertical. A forma ocidental é ternária e descende da ideia de que temos um demônio pessoal (o eu inferior, o instinto animal, a criança interior) e um anjo da guarda (o eu superior); e sua grande vantagem consiste em colocar o ego como observador tanto em relação aos impulsos instintivos como às demandas espirituais. Nesse modelo ternário, o Ego é um mediador externo e não há a oposição radical entre ego e consciência da tradição oriental.

A Mente, neste sistema, representa a organização do circuito da linguagem. Ela se formou quando os hominídeos começaram a se diferenciar dos demais primatas (uns 4-5 milhões A.C.) e é ativado quando o menino, já maior, começa a administrar utensílios e a linguagem de forma própria. Para Wilson, a ...

(...) "impressão desses três circuitos determina, aproximadamente à idade de três anos e meio, o grau e o estilo básicos de confiança/desconfiança que coroaram a 'consciência', o grau e estilo de truculência/sujeição que determinaram o status do 'ego', e o grau e estilo de perícia/deselegância por meio do que a 'mente' manejará instrumentos ou ideias." (1987, 2)

E, assim, do ponto de vista evolutivo, a Consciência é basicamente invertebrada, flutuando passivamente para a alimentação e a proteção do perigo; o Ego é mamífero, sempre lutando pelo status dentro da ordem tribal do grupo; e a Mente é paleolítica e formadora da cultura humana e confrontando-se com a vida através de uma matriz de instrumentos e de simbolismos.

A neurociência chama de 'Neocortex' à porção de 85% da massa cerebral que desempenha essas funções. Pode-se dizer que o ego é formado pela fala e a mente, pela escrita (pelo pensamento abstrato, descontextualizado).

Osho usa uma metáfora interessante, dizendo que a Mente é um espelho, coletivo e externo, e o Ego é nosso reflexo, circunstancial e efêmero, neste suporte no qual nos vemos indiretamente, uma vez que nos recusamos a olhar frente e a frente para nós mesmos (OSHO, 2004, 62). Ambos, no entanto, mente e ego, são estruturas de identidade construídas por nós (por nossa consciência) através dos outros.

A 'Personalidade adulta' ou 'quarto cérebro' é, para Leary/Wilson, a estrutura psíquica que organiza o circuito sócio sexual, é típico do Homo Sapiens.

Este quarto cérebro se formou quando os grupos de hominídeos evoluíram para sociedades e programaram comportamentos sexuais específicos para seus membros, uns 30.000 a.C. É ativado na puberdade, quando os sinais de DNA desencadeiam a liberação glandular de hormônios sexuais e se inicia a metamorfose ao estado adulto. Os primeiros orgasmos ou experiências de acoplamento imprimem um rol sexual característico que, novamente, é gerado de forma bioquímica e permanece constante durante toda a vida, a menos que alguma forma de lavagem de cérebro ou reimpressão bioquímica o altere (1987, 3).

Não existem estudos neurocientíficos sobre onde e como essa atividade psíquica se desenvolva. Aqui se considera que a Personalidade é um circuito de sinapses cerebrais que coordena as relações entre a Consciência, o Ego e a Mente. A personalidade assim entendida é também uma máscara, uma persona, atrás da qual se esconde uma individualidade psíquica formada pelos circuitos da cognição extraordinária.

Nos meios esotéricos chama-se de Personalidade a este ‘eu falso’, construído a partir do medo e das exigências da socialização, e de Individualidade ao ‘eu verdadeiro’. A função da Personalidade é interpretar a Individualidade e não a esconder ou reprimir. É como uma vitrine que apresenta ao conteúdo da loja, não adianta quebrá-la ou subtraí-la, é preciso reorganizá-la.

Atores e atrizes de teatro costumam ‘se trabalhar’ escolhendo personagens semelhantes aos de suas personalidades, como uma forma de reinterpretá-los e superá-los, lapidando sua individualidade.

Também se pode pensar na Personalidade como os 40% da identidade pessoal que pode ser modificada (as sinapses móveis entre os neurônios) e na Individualidade como o que não se pode mudar (os circuitos cerebrais fixos, que se formam ao longo da vida). De toda forma, a Personalidade é uma estrutura de identidade construída pela consciência através do medo externo (o Ego) e de um espelho para se ver através dos olhos dos outros (a Mente).

A consciência vive no fundo da caverna e projeta a personalidade como fachada para o lado de fora.

Cinema e percepção

O místico Ramana Maharshi (1972) desenvolve uma analogia entre cinema e percepção, em que se observa o processo cognitivo descendente, do abstrato para o concreto

Em um primeiro momento, a Consciência é a percepção. Representa a luz que projetada sob diferentes objetos. Se prestarmos atenção ao que vemos, os olhos se iluminam; se buscarmos perceber os sons, a consciência se focara em nossa capacidade auditiva; e assim por diante. Nesta analogia, a consciência é a atenção que se desloca segundo nossa percepção seletiva.

Assim, como a luz é produzida por uma lâmpada, a consciência é produzida por um suporte, de uma esfera luminosa, o Self, Eu superior ou centelha divina. E este é o segundo momento da comparação de Mararshi. O terceiro momento desta analogia consiste na lente que a luz da lâmpada transpassa na projeção de um filme e a Mente Coletiva e externa por onde consciência do Self passa ao perceber as diferentes dimensões (racional, sentimental, sensorial) da realidade. A mente aqui não é individual, e sim um filtro social, intersubjetivamente construído.

No quarto momento do processo, a Consciência projeta sua luz através da Mente Coletiva com assertividade, formando um foco, um centro direcional da consciência imediata chamado de 'atenção'. A criação do Ego, este centro de direcionamento da consciência, cria também o tempo contínuo, a narrativa do passado e as esperanças futuras.

No quinto passo da analogia de Maharshi surge a comparação entre a projeção do filme e o "Observador", isto e, um eu-foco formado para observar o pensamento, a mente e as percepções da consciência. Este observador é um determinado enquadramento autoconsciente que criamos para nos tratar na terceira pessoa e existe em várias meditações. Nesse ponto também se pode localizar a Personalidade – uma vez que apenas uma minoria observa ao próprio filme, preferindo simplesmente projetá-lo. Portanto, desenvolver um 'Eu Observador' ou um 'Eu Exibidor' (a Personalidade) vai depender da consciência em relação ao Ego e à Mente.

No sexto nível da analogia, surge um elemento externo: a película. E, internamente, os fotogramas do filme projetado correspondem às variadas formas mentais (arquétipos, memórias, imagens) que formam o pensamento e a imaginação simbólica. Agora, percebe-se que realidade é semelhante à projeção das imagens na tela do cinema. A diferença é apenas no modo de representação: no cinema as imagens são projeções bidimensionais; e a realidade é holográfica e solida. Mas, também, tanto no cinema como na percepção, há as imagens de referências externas (sensoriais, mentais, emocionais); há imagens produzidas pela memória, outras pela imaginação. O sétimo nível da percepção, então, é a interpretação seletiva das imagens, em que classificamos involuntariamente os diferentes itens de nossa percepção.

E finalmente, há o mecanismo responsável pela projeção das imagens, a máquina ou o corpo. Este mecanismo recebe as imagens automaticamente e não tem consciência plena de seu significado. Chama-se aqui essa instância de espaço exterior. O importante nessa analogia entre cinema e percepção é visualizar o processo cognitivo em seu conjunto em sete etapas sucessivas: a consciência (a luz e o self), a mente coletiva, o ego, o observador/personalidade, a linguagem simbólica, a realidade interior e a realidade exterior.

Cognição extraordinária

Esses modelos são apenas algumas das várias fenomenologias dos estados de consciência possíveis. Estudando várias tradições religiosas diferentes, Ken Wilber (2006, 272-273) oferece um modelo de analogia universal das fenomenologias quaternárias, a partir das categorias de corpo, mente, alma e espírito.

Gurdjieff afirma que a personalidade é construída horizontalmente através do tempo e a individualidade, pela experiência vertical da eternidade. Horizontalmente, somos todos iguais, nivelados pela morte; porém, há alguns que vivem o presente de modo mais profundo. Os animais vivem suas vidas horizontalmente, apenas alguns homens, ao entrar em contato vertical com a eternidade, adquirem uma alma (OUSPENSKY, 1980, 89).

Nessa perspectiva, o homem só constrói uma individualidade quando ativa os circuitos cerebrais da cognição extraordinária. Conhecendo a si mesmo, "somos mais e mais capazes de acelerar nossa própria evolução" - acredita Wilson, propondo que enquanto os quatro circuitos do lóbulo esquerdo (Consciência, Ego, Mente e Personalidade) contêm as lições aprendidas de nossa biografia e presentes (pessoal e coletivo); os quatro circuitos do lóbulo direito (Neuro-somático, Neuro-elétrico, Neuro-genético e Neuro-atômico) é um verdadeiro anteprojeto evolutivo de nosso futuro.

O circuito neuro-somático entra em atividade quando o sistema nervoso percebe sua capacidade de lúdica e compreensiva. Este "quinto cérebro" surgiu faz uns 4.000 anos nas primeiras civilizações do ócio. Quando ativado, este circuito produz uma conexão hedonista, uma diversão extática, um desapego de todos os anteriores mecanismos compulsivos dos primeiros quatro circuitos. Leary achava que essa sensação, no momento evolutivo adequado, desencadearia uma mutação neuro-somática ou uma desprogramação nos mecanismos de manutenção da Cognição Ordinária. Também se pode associar essa auto percepção somática como um estado propiciar de regeneração orgânica, quando entramos em um estado de consciência que "nos cura" através da compreensão e da adaptação às situações.

Já o circuito neuro-elétrico entra em atividade quando o sistema nervoso descobre sua função de meta programação, atuando como um tradutor universal das linguagens ao um padrão binário de uma linguagem primária.

Enquanto o circuito neuro-somático havia uma mudança de comportamento pela adaptação passiva, a cognição neuro-elétrica é propositiva e há uma mudança existencial por reprogramação ativa. Para Leary ...

" (...) o sexto cérebro consiste no sistema nervoso sendo consciente de se mesmo, independentemente dos mapas de realidade impressos cognitivamente (circuitos I-IV), e até mesmo independentemente do êxtase corporal (circuito V) e suas características (...) são: a simultaneidade, a eleição múltipla, a relatividade e a fusão instantânea de todos os sentidos em universos paralelos de possibilidades alternativas."

O circuito neuro-genético é ativado quando o sistema nervoso começa a receber sinais do interior do genoma individual, por meio do diálogo DNA-RNA. Aqui o Ser se torna consciente de seu Destino. Para Leary, esta mutação leva a diferentes tipos de experiências "fora do corpo": "recordações de vidas passadas", "projeções astrais", etc. Wilson associa esse circuito ao "inconsciente coletivo" de Jung e ao "inconsciente filogenético" de Groff e Ring.

E o circuito neuro-atômico é ativado quando o sistema nervoso é percebe sua fonte de energia quântica, a luz e a idéia de espaço-tempo são eliminadas. A barreira einsteiniana da velocidade da luz é transcendida e escapamos da realidade eletromagnética das coisas e dos objetos para viver em um universo relacional. Para Leary, a "consciência atômica" é a conexão explicativa máxima do homem, que no futuro unirá a parapsicologia e a metafísica na primeira teologia científica, empírica e experimental da história. E para Wilson, "o 'cérebro' cósmico inteiro micro-miniaturizado na hélice do DNA, é a inteligência local guiando a evolução planetária."

Neste modelo, a cognição ordinária é composta por quatro circuitos neurológicos e a cognição extraordinária é construída, hipoteticamente, por quatro circuitos sinápticos possíveis. Cada circuito extraordinário corresponde ao desenvolvimento de um circuito da cognição ordinária.

Modelo biográfico

Segundo os chineses, em uma vida “há 20 anos para crescer/aprender, 20 anos para lutar e 20 anos para alcançar a sabedoria”. A psicologia biográfica subscreve esta afirmação e ainda subdivide em setênios (períodos de sete anos) cada uma destas três grandes fases.

Na primeira fase, do nascimento até os 21 anos, observa-se a formação do corpo e da personalidade em três etapas: até os sete anos, dos oito aos 14 e daí a maturidade. Cada uma dessas etapas de sete anos corresponde a um determinado estágio de desenvolvimento do corpo e da personalidade e a passagem de uma etapa para outra implica em uma crise e uma adaptação. Ao final dos sete anos, a criança vive uma crise de socialização; aos 14, a crise da sexualidade; e aos vinte a crise de identidade.

Da mesma forma, a psicologia biográfica subdivide a fase adulta (21-42) e fase madura (42-63) em três etapas de sete anos cada, com crises de transição. Enquanto nos primeiros três setênios da vida o indivíduo vive um predomínio dos fatores biológicos sobre os subjetivos, ele terá também um período igual em que há um equilíbrio e um período de decadência biológica e oportunidade espiritual a partir dos 42 anos de ipossibilidade de desenvolver, aos 49 anos, uma alma inspirativa (ou buddhi) a partir da mente (ou de repensar os aspectos morais adquiridos dos sete aos 14).

Aos 56, há possibilidade de formar uma alma intuitiva (ou atma) a partir do corpo vital (ou de reviver os aspectos mais profundos da formação da personalidade, moldados durante a primeira infância) – o que corresponde ao circuito neuro-genético.

E, finalmente, o circuito neuro-atômico corresponde à consciência quântica, ao nagual.

Há um espelhamento dos três aspectos (motor, mental e emocional) da Personalidade entre a primeira e a última das etapas da vida. Ao invés do desabrochar potencial de várias almas a partir dos diversos corpos esotéricos, pensa-se aqui em termos de desenvolvimento de circuitos cerebrais da consciência e da reforma da Personalidade. Mas é apenas uma diferença de linguagem. O importante é a consciência das etapas e fases da vida, das crises etárias e possibilidades de mudanças pelas quais todos passam. E, é claro, das estratégias e objetivos de vida que traçamos para cada fase.


1 Para saber tradicional, em que o (sujeito) observador é o (objeto) observado, o racional é o lado direito e o esquerdo, o lado mais emotivo. Para o saber científico, em que o observador é externo, a relação é invertida: o lado esquerdo é que é o racional; e o direito, o emotivo.

2 Além da dimensão perceptiva, a Consciência tem também uma dimensão moral, que leva em conta os valores que a contextualiza. Ser consciente não é exatamente a mesma coisa que perceber-se no mundo, mas Ser no mundo e do mundo, referenciando a percepção em valores construídos culturalmente. Alguns filósofos chamam de consciência fenomenal à experiência da percepção, e de consciência de acesso ao processamento das coisas que vivenciamos durante a experiência. O desenvolvimento perceptivo da consciência se dá através do treinamento da Atenção. O desenvolvimento ético da consciência só é possível através de sucessivas mudanças de valores.

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

EU NÃO SOU XAMÃ, SQN

 


Marcelo Bolshaw Gomes 1


A história da antropologia pode ser subdividida em três grandes momentos: o período evolucionista e etnocêntrico, em que os antropólogos consideravam os outros povos primitivos; o período funcionalista-estruturalista, em que Franz Boas e Levi-Strauss, entre outros, se descobriram iguais aos selvagens que estudavam; e o período etnoantropológico, em que, invertendo a perspectiva inicial, o antropólogo se conhece cultural e psicologicamente através de tradição que estuda e torna-se um xamã. No decorrer de suas pesquisas, o antropólogo encontra o xamanismo e se apaixona. Passado algum tempo, percebe que conhece apenas uma adaptação das práticas do passado. 

Para curar-me parcialmente dessa ilusão e como prova de agradecimento sincero pela compreensão que me foi generosamente entregue, escrevo aqui uma comparação entre o neoxamanismo urbano e os xamanismos arcaicos. A conclusão é que, elencadas as diferenças positivas e negativas, há dois pontos importantes em comum: o meta sistema de crenças (ou o desencantamento reencantado) e a cura transferencial como prática.


  1. A abordagem platônica do mito

Acorrentados de costas para a luz em um cárcere subterrâneo, os prisioneiros só podem ver, dos homens, animais e figuras que passam pelo exterior, as sombras projetadas no fundo da Caverna. Quando um dos prisioneiros se liberta e retorna ao mundo exterior, é cego pela luminosidade do Sol e só aos poucos consegue se adaptar à nova realidade. Percebe, então, que o mundo no qual vivia era irreal e inconsciente, feita de sombras e reflexos das coisas. Porém, o prisioneiro correria sério risco de vida se, retornando ao interior da caverna, procurasse revelar aos seus antigos companheiros a irrealidade do mundo em que se encontram. Provavelmente, eles o matariam.

Nesta imagem genial, Platão não apenas resumiu sua concepção sobre realidade sensível e realidade inteligível, mas também nos transmitiu sua experiência pessoal, mais precisamente, sua explicação filosófica para o trágico destino de seu mestre, Sócrates, forçado a beber veneno pelas autoridades atenienses em virtude de sua defesa intransigente de uma visão mais objetiva da realidade.

Na Idade Média, Santo Agostinho, no livro A Cidade de Deus (AGOSTINHO, 1990), retoma a ideia de utopia platônica em uma perspectiva histórica. Para o criador da doutrina do pecado original, a Cidade de Deus existe paralela à Cidade dos Homens: as realidades sensível e inteligível de Platão. Ao ser expulso do paraíso, o homem dissociou os dois mundos e o retorno à Nova Jerusalém será a reunificação das cidades. Agostinho colocou a utopia platônica como um objetivo histórico da humanidade, ideia que se será adotado involuntariamente por muitos pensadores posteriores.

Outra adaptação/atualização do pensamento platônico pode ser atribuída a C. G. Jung e aos conceitos de Arquétipos e Inconsciente Coletivo (JUNG, 2002). Nessa versão, o mundo inteligível, o lado de fora da caverna, é uma memória coletiva de imagens arcaicas acessível através dos sonhos e da mitologia. Essa mente coletiva arcaica é formado por Arquétipos, representações coletivas e universais, presentes em diferentes culturas. Palas Atenas, o Júpiter latino e o orixá Xangô, por exemplo, são diferentes representações históricas do arquétipo da justiça, que tem suas raízes em um dispositivo psicológico que equilibra transgressão e culpa.

Joseph Campbell (1990;1995), levou as ideias de Jung aos campos da arqueologia e mitologia comparada, elaborando um modelo universal segundo o qual todos os grandes mitos fundadores das culturas humanas seriam, em última análise, uma única narrativa: o 'monomito' ou a jornada do herói.

E historiador das religiões Mircea Eliade elaborou uma arqueologia estrutural dos mitos (uma ampla classificação dos mitos por arquétipos), principalmente no livro Tratado Histórico das Religiões (1993). Nessa arqueologia, há duas formulações particularmente importantes: o 'centro do mundo' e o 'monoteísmo primitivo'.

Para Eliade (1992, 295-312), a noção de 'Centro do Mundo' faz parte do universo de praticamente todas as sociedades arcaicas. O universo foi criado a partir desse centro e é uma passagem tanto para os infernos subterrâneos como para regiões celestiais. Tal é o sistema simbólico das sociedades tradicionais, do qual derivam as imagens cosmológicas, os mitos e concepções religiosas nas mais diversas culturas: os pilares, as montanhas sagradas, as árvores da vida, as escadas cósmicas são representações do Axis Mundi, em torno do qual o universo se organiza. 

Para os judeus, o monte Tabor é o Centro do Mundo; enquanto, para os gregos, é o Olimpo. O monte Meru dos hindus, o Himinghjor dos germânicos, o Haraberezaiti dos iranianos, a Kaaba dos islamitas, Jerusalém para os cristãos – todos são passagens verticais para outras dimensões e se situam no Centro do Mundo dessas cosmovisões. Eliade acredita ainda que nas sociedades mais antigas a “imagem visível deste pilar cósmico é, no céu, a Via Láctea”, que se expande a partir da constelação da Ursa Maior (polo norte estelar, possível local do 'Big Bang') e se direciona para um buraco negro abaixo da constelação do Cruzeiro do Sul (polo sul estelar).

Outra formulação significativa é que, possivelmente, o politeísmo é uma invenção judaico-cristã. Eliade (1993, 39-102) após estudar diversas mitologias tidas como ‘politeístas’, observou que deuses celestes como Tangri, Urano e Olorum não tinham altar ou culto e eram ‘pais’ dos outros deuses, a quem entregou a administração do mundo. Elaborou as categorias de ‘deus oticius’ e de ‘monoteísmo primitivo’.

E essa forma universalista de pensar arquetipicamente o mito é hegemônica não somente em vários campos de estudo, mas também em vários grupos esotéricos atuais – que se fundamentam em autores como Jung e Campbell – buscando dar uma maior credibilidade a suas crenças e práticas rituais.

  1. A visão antropológica do mito

Porém, o maior e mais completo estudo sobre a universalidade do mito é a tetralogia ‘Mitológicas’ de Lévi-Strauss (2004; 2005; 2006; 2011). Após, estudar, durante 20 anos, diferentes mitologias ameríndias, o antropólogo passou a crer, senão na unidade primordial de todos os mitos, pelo menos da universalidade da experiência mítica. Lévi-Strauss não só explicou cientificamente o significado cultural do mito (em suas particularidades linguísticas, econômicas e hereditárias), mas pôs-se a pensar (parcialmente) como selvagem.

Jung, Campbell e Eliade partem do geral (do inconsciente coletivo, dos arquétipos) para o particular (os mitos culturais específicos) e são universalistas, cultuando o sagrado como uma epifania transcultural. Enquanto a antropologia, no sentido contrário, descreve o aspecto local das narrativas míticas dentro de um quadro aberto de referências linguísticas, alimentares, culturais. Ambos abordam 'o todo e as partes' – mas de modo bem diferente, inverso e até complementar em alguns aspectos. Os antropólogos são mais indutivos; os mitólogos, mais dedutivos.

Lévi-Strauss chega à mesma conclusão que os mitólogos, mas por caminhos muitos mais tortuosos, fragmentados e complexos: a análise estrutural de 813 mitos com algumas variantes, de culturas nativas das duas Américas.

E, ressalte-se também que ideia de um único mito arcaico de dimensões continentais é bastante diferente da noção de monomito universal de Campbell e da jornada do herói. Na ótica da antropologia, os mitólogos se deixam possuir pelo mito sem perceber e, muitas vezes, acabam tecendo generalizações etnocêntricas, adequando outras mitologias à sua. Para estudar um mito, é necessário se distanciar culturalmente dele e vê-lo de fora.

E a importância da experiência mítica de um homem desencantado, como Lévi- Strauss, é justamente que ele vê (e vive) o mito ao mesmo tempo como cientista e como selvagem, sem abrir mão de nenhum dos dois lados. A conclusão de Strauss de que todos os mitos são um só, não é só devida às semelhanças de personagens e ações dramáticas nas diferentes narrativas, mas, sobretudo, ao fato das estruturas narrativas se perpetuarem tendo a si mesmo como referência, sempre contando sua própria história.

O pensamento selvagem classifica as coisas (cores, sons, cheiros, animais, datas, pessoas) segundo critérios subjetivos derivados de experiências sensoriais; em oposição ao pensamento científico domesticado, que classifica o mundo segundo critérios objetivos universais. Mas, o 'pensamento selvagem' de Strauss não é o 'pensamento dos selvagens', mas sim o pensamento em estado selvagem, ainda não domesticado. Ele não é incompatível com o pensamento científico. O pensar selvagem se refere a propriedades sensíveis; o pensar científico se refere às propriedades abstratas.

Assim, o pensamento antropológico é selvagem e civilizado ao mesmo tempo, não separando os dois lados da caverna, observando uma única realidade de modo sensível e inteligível simultaneamente.

Enquanto a psicologia analítica de Jung e suas derivações (Bachelard, Campbell, Eliade) estudam o mito do ponto de vista platônico e universal; a antropologia valoriza mais a estrutura dos mitos do que seu conteúdo manifesto, como se eles fossem mensagens fragmentadas do passado, que, com o passar do tempo, quase perderam o sentido.

Defende-se aqui que os dois métodos não se excluem e são complementares na investigação das ressonâncias subjetivas das narrativas míticas.

  1. A reinvenção do xamanismo

O xamanismo está se tornando uma nova forma de espiritualidade global, atraindo jovens de várias partes do planeta, misturando diferentes tradições indígenas na espiritualidade pós moderna, new age.

A palavra “Shaman” é de origem siberiana (Tungue) e significa 'feiticeiro'. O historiador Mircea Elidade, em seu livro O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase (2002) considera que o complexo xamânico, além existir em todos os povos da Ásia Central e Setentrional (árticos, turco-mongóis, himalaios), está presente ainda no Extremo Oriente (Japão, Coreia, Indochina), da Oceania (Austrália, Havaí), em diferentes regiões da África (Bantos, Iorubas, Ewes) e nas duas Américas.

Por 'complexo xamânico', o historiador entende a presença de vários elementos em comum: o tambor, os maracás, o tabaco, a fogueira sagrada, o contato com os deuses e ancestrais, a doença iniciática (morte e ressureição do xamã), a cura de doenças através da sucção, a 'visão do esqueleto', entre outras.

O xamanismo não é um sistema de crenças religiosas propriamente dito, mas um conjunto de práticas extáticas e terapêuticas cujo o objetivo é entrar em contato com o a realidade invisível. Coexiste com várias tradições (escritas e orais) e está presente nos cinco continentes. Eliade considera que não são as formas religiosas que o caracterizam, mas sim as práticas extáticas e uma maior intensidade espiritual que a experiência religiosa da maioria das pessoas de cada tradição.

O xamã, deste ponto de vista geral, não é apenas o feiticeiro, o medicine-man ou o vidente de uma comunidade tribal, que conhece a energia da natureza e a utiliza em rituais em benefício do grupo; ele é sobretudo o 'psicopompo' (o guia condutor das almas mortas, o viajante dos céus e dos infernos através de transes místicos) e pode desempenhar, segundo a região e a tradição a que pertença, as funções de sacerdote, místico e poeta. O xamã é sempre o grande sonhador, o mediador com o mundo invisível, o personagem que vive no encontro entre duas realidades.

Porém, nos dias atuais: “Ser xamã, é viver uma vida comum de forma extraordinária. É saber ler os sinais claros, que 'falam' conosco, nas entrelinhas dos acontecimentos” - como explica Carminha Levy, no site Vya Estelar2:

A tradução da palavra xamã é "aquele que sabe". É aquele que faz a descoberta da consciência. O sacrifício do xamã é a busca da autoconsciencia, sacrificando o ego, ou seja, todos os os aspectos negativos do ser, nos níveis espiritual, mental, emocional e físico. O trabalho do xamã consiste em sair fora do corpo, em estado alterado de consciência, utilizando a imaginação, ou saindo fora do corpo mesmo. Isto acontece quando a pessoa trabalha com fenômenos fora do corpo. Enfim, todos os seres são xamãs. Mas precisam ser acordados para este dom. Geralmente, as pessoas despertam para o xamanismo através de uma doença, um acidente ou a perda de um ente querido...

Segundo essa ótica, músicos, poetas, escritores, pintores, escultores, atores, bailarinos, cineastas, todos que tenham uma ligação especial com natureza e que vivam com o lado direito do cérebro, onde exercita seu lado intuitivo, instintivo e criativo – são meio xamãs. Também os médicos, enfermeiros, psicólogos, terapeutas e psiquiatras são xamãs por excelência. Todo curador, criativo ou religioso é um xamã, mesmo que totalmente dissociado de rituais arcaicos de êxtase e das culturas ancestrais.

A passagem dos 'xamanismos locais tradicionais' para o neoxamanismo global se deve, principalmente, a dois antropólogos, que, na década de 60, trocaram a perspectiva científica pela visão dos saberes ancestrais: Carlos Castañeda e Michael Harner.

Castaneda reinventa o xamanismo tolteca de forma pós-moderna3, adaptando-o para a vida cotidiana atual através de uma 'ética do guerreiro'; e Michael Harner resgata o essencial do antigo xamanismo para espiritualidade contemporânea: a ênfase na auto cura ou na canalização/transformação do negativo em positivo. Pode-se até distinguir dois grupos diferentes de neoxamanismo a partir dessas duas influências de transição, uma mais voltada para o descondicionamento social; e outra mais platônica e gnóstica.

E a partir do sucesso desses dois escritores, surgiu um novo xamanismo universal que combina diferentes ideias e técnicas, desenraizadas culturalmente de suas origens geográficas, voltadas para a (auto) regeneração planetária e para a (re) integração com meio ambiente.

Há também xamanismo étnicos que se globalizam, gerando um turismo de desenvolvimento pessoal: como a Sun Dance dos Sioux; o peiote dos Navarro nos EUA; e o San Pedro, a ayahuasca e a coca, no Peru. No Brasil, há controvérsias extensas sobre o caráter xamânico das religiões ayahuasqueiras4

Embora xamãs e antropólogos aceitem a distinção entre os antigos xamanismos locais e o crescente neoxamanismo urbano (MAGNANI, 1999a; 1999b; 2000; 2005), na prática existe uma grande confusão entre os dois fenômenos religiosos distintos. Muitos xamanismos indígenas são menos tradicionais do que pensam, tendo sido concebidos recentemente sob a influência externa.

Por outro lado, vários pesquisadores acadêmicos consideram o neoxamanismo como 'uma moda cultural da nova era', um produto artificial da sociedade de consumo – menosprezando o fato dele representar uma forma de espiritualidade contemporânea global viva e em crescimento exponencial. Daí a importância premente de se ressaltar as diferenças e de se repensar as semelhanças entre os diferentes tipos de 'xamanismos'.

  1. Comparando o passado e o presente

Por exemplo, enquanto 'todos são xamãs quando despertos' no neoxamanismo, o recrutamento dos antigos xamãs combinava a transmissão hereditária da profissão com a vocação espontânea do pretendente. Havia um 'chamado' da natureza e uma 'escolha' a ser feita por quem era chamado. A confirmação, segundo Eliade, era dada pelo transe – mesmo que a criança nascesse com marcas ou sinais característicos dos xamãs ou houvesse algum oráculo a respeito. Na verdade, a própria intensidade da experiência extática excluia severamente a criança do convívio da comunidade e era decisiva para determinar sua vocação xamânica. E o inverso também acontecia: uma criança sem família e/ou com problemas de adaptação grupal acabava desenvolvendo o transe e se tornava xamã. Em ambos os casos, no entanto, o transe é causa e consequência de um comportamento de um desajuste psicossocial. Eliade gasta algumas páginas explicando as diferenças entre o transe extático e os ataque epilépticos e outros distúrbios nervosos (2002, 37- 47).

Atualmente, o transe está sendo substituído gradativamente pela mediunidade espírita5 e pelo uso de plantas de poder. Houve também uma democratização da experiência de canalização, antes uma prerrogativa do xamã, hoje partilhada pelos participantes.

O importante é perceber que o recrutamento, o treinamento e a outorga de poderes xamânicos eram conferidos a indivíduos desajustados e socialmente excluídos, que por algum motivo não suportavam a vida familiar e grupal, em um regime de disciplina intenso que prescrevia, não apenas dietas e rituais, mas sobretudo isolamento e autocontrole. Os antigos xamãs eram assim indivíduos circunspectos e solitários, que geralmente não casavam e viviam à margem de seu grupo social.

Hoje, o processo de recrutamento, seleção social e treinamento prático de xamãs não obedece mais a esses rigores devido a uma mudança de contexto cultural. A antiga disciplina pode até ser simulada em detalhes (como no caso da 'busca da visão', dos índios norte- americanos, atualmente transformada em jornada de auto conhecimento), mas não terá o mesmo sentido social.

Outra diferença marcante entre os xamanismos arcaicos e o neoxamanismo urbano reside no fato de que, enquanto grande parte desse último se propor formar pessoas mais intuitivas e instintivas; os xamanismos antigos enfatizarem o descondicionamento social e biológico dos participantes, cujo objetivo é “perder a forma humana”. O neoxamanismo deseja ser mais humano (no sentido adjetivo); os xamanismos arcaicos intentam ser menos humanos (no sentido substantivo).

Segundo Castaneda, 'abandonar o molde humano' (ou romper com o condicionamento biológico) significava, para os antigos videntes, conhecer seu animal totêmico de poder, adotando outra forma nos sonhos. Para ele, atualmente, a perda da forma humana é marcada pela percepção de si como um campo de energia ou como um 'ovo luminoso'.

Porém indiferentes a essa colocação, muitos grupos de neoxamanismo entendem os animais de poder como se fossem símbolos que caracterizam aqueles com as quais estão associados, como signos astrológicos ou orixás do candomblé6, e não como um marco de transformação nos padrões cotidianos de comportamento instintivo e emocional humanos – conquistados através da iniciação e de uma vida de restrições e sacrifícios.

O neoxamanismo, porém, prefere valorizar as vontades do corpo e os sentimentos do coração para compensar o racionalismo da nossa sociedade patriarcal. E é claro que existem exceções. Para grupos neoxamânicos como o Caminho Vermelho, o Fogo Sagrado e o próprio Castaneda não existem arquétipos ou dimensões transcendentes: a única realidade é um inventário sensível-inteligível feita pela mente.

E a questão chave da desanimalização não é o controle individual dos desejos e instintos, mas o comportamento em relação ao seu grupo. Ao estudar os rebanhos mamíferos, Kurt Lewin (1989) observou três comportamentos recorrentes: identificação (eu sou o poder), contestação (eu sou contra o poder) e e submissão (aceito o poder como algo fora de mim).

Em outras ocasiões (GOMES, 2001; 2013), associei os que se identificam com o poder à categoria de Pastores; os contestadores foram definidos como Lobos; e os submissos denominados de Ovelhas. O Pastor é o macho-alfa, gerente do capital do grupo; enquanto, o Lobo é o xamã por excelência, aquele que expressa o inconsciente grupal.

Assim, um grupo é (mais e menos que) a soma dos seus componentes. O trabalho coletivo é mais que a soma dos trabalhos individuais gerando um excedente, o resto que sobra do todo menos as partes (o Capital). Porém, o grupo também é menos que a soma das suas partes e recalca as qualidades de seus componentes. A esse déficit inibido das partes através do todo, chamamos inconsciente grupal. (GOMES, 2013, 13).

Embora existam casos, como o de Gengis Khan, em que o xamã é também o líder do grupo (Lobo e Pastor, ao mesmo tempo), o mais comum é que os dois papéis sejam distintos e polarizados (pelas Ovelhas). Deleuze e Guatarri (1980) elaboraram o termo 'espírito de matilha' em oposição ao 'espírito de rebanho' para caracterizar o comportamento de contestação e independência dos indivíduos parcialmente excluídos do condicionamento grupal, incluindo aí os xamãs; mas a desanimalização dos padrões grupais prescrita pelas técnicas arcaicas de êxtase é ainda mais radical, exigindo a morte do ego do iniciado e a retomada teatral de suas funções na comunidade, superando o papel de Lobo do rebanho.

E a maioria dos grupos do neoxamanismo urbano (assim como outros grupos esotéricos atuais) não observam a existência das relações de poder (de dominação, contestação e submissão) em seu interior; e vive inadvertidamente pelas regras do rebanho, sem esperanças de desanimalização do condicionamento biológico e social a que está submetido. Seus xamãs são apenas Pastores disfarçados com pele de Lobo.



Xamanismos

Neoxamanismo

O recrutamento

Transmissão hereditária e vocação espontânea (chamado + escolha)

Todos podem ser xamã, basta ser despertado

O transe

Diferenças com a psicopatologia

Mediunidade e plantas de poder

A desanimalização

Abandonar a forma humana

Ser mais afetivo e instintivo

O rebanho

O espírito de matilha

O neoxamã é um pastor


  1. O neoxamanismo gnóstico vs. neoxamanismo pós-moderno

Pode parecer ao leitor que aqui também se deprecia as manifestações culturais mais recentes em nome das mais antigas, com saudades do encantamento do mundo, mas esse não é o caso. Se ressaltamos a incapacidade do neoxamanismo de entender suas raízes arcaicas é apenas para melhor enquadrá-lo e compreende-lo historicamente.

Existem muitas outras diferenças de contexto e de propósito (além do recrutamento, do transe e da desanimalização) entre os antigos xamanismos e o neoxamanismo, algumas até mais favoráveis ao xamanismo atual. Por exemplo: no passado, os xamanismos eram, na sua maioria, masculinos; agora, são predominantemente femininos – não apenas em quantidade de participantes, mas, sobretudo, em suas práticas rituais e objetivos. Ou ainda: tanto o neoxamanismo quanto os xamanismos arcaicos dão ênfase à natureza, mas de formas diferentes. O neoxamanismo trabalha mais com a ideia de meio ambiente e de consciência planetária. Castaneda formula o interessantíssimo conceito de 'seres inorgânicos', formas de vida de outra escala de tempo que se alimentam dos homens e da vida orgânica. E tudo isso pode ser considerado um avanço em relação às antigas práticas e para um panteão de deuses arcaicos representando a mãe natureza. Também destaque-se que, entre as formas atuais de neoxamanismo, há dois tipos polares: o neoxamanismo gnóstico, que vive em função de outro mundo e acredita em toda sorte de imagens e símbolos; e o 'xamanismo pós-moderno', que ignora a dimensão transpessoal da psique e considera que 'o além' é apenas ilusão ou ideologia das religiões institucionalizadas. E, entre esses polos, há diversos tons de cinza.

Mas, bem vistas toda essa diversidade atual e ainda as diferenças positiva e negativas entre passado e presente, há dois elementos universais: a) a cura pela transferência não- analítica como prática principal; e b) o meta sistema de crenças.

A ênfase de converter negatividade em atividade positiva, de mediar os conflitos através de rituais simbólicos parece ser universal. É claro que o antigo xamã mediava o conflito entre forças das natureza personalizadas em deuses; e hoje o neoxamã busca revelar o lado feminino dos homens em oposição ao lado masculino das mulheres. Mas, a técnica base continua a mesma: canalizar o negativo, compensá-lo com o oposto e devolver equilibrado. Os xamanismos e o neoxamanismo tem essa ênfase na prática da cura ou, se preferirem, nas relações de transferência e contra-transferência não-analíticas de conteúdo simbólico.

Outra continuidade entre os antigos xamanismos e o neoxamanismo atual é que os primeiros são sistemas mágicos meta religiosos, um conjunto de práticas místicas, psicológicas e extáticas, anteriores e paralelas à elaboração dos grandes sistemas de crença religiosa. O ceticismo, o pragmatismo, o empirismo avesso a transcendências – são características comuns de diferentes tipos de xamanismo no transcorrer do tempo. Eles são laicos e objetivos, sistematizações da experiência prática e não um conjunto de crenças, mágicas, anteriores aos sistemas de crenças religiosos. Mas em paralelo a esse desencanto religioso, há também a afirmação viva do cotidiano como uma aventura extraordinária, povoado de mistérios e situações singulares. E o neoxamanismo, herdeiro destas práticas e dessa visão ecumênica e agnóstica, também – embora de formas diferenciadas.

No neoxamanismo pós-moderno de Castaneda, esse desencanto e reencantado é individual e é chamado de 'ética do guerreiro'. O guerreiro deve aprender a agir por agir, sem esperança nem desespero, a dar o melhor de si sem esperar retribuição, a confiar sem crer, a viver deliberadamente através de desafios constantes, a sempre escolher o caminho de seu coração, entre outros preceitos. Porém, mais do que um simples código de conduta contra a auto importância e a auto piedade, a ética do guerreiro é uma configuração energética em que o praticante se alinha ao Intento, uma energia inteligente que pode treiná-lo e guia-lo até seu salto para o infinito. O caminho do guerreiro consiste sobretudo em acumular e redistribuir energia de forma a sobreviver à morte e não ser absorvido pelos seres inorgânicos. Alcançar a 'liberdade total' significa sair da cadeia alimentar e não ser devorado dos predadores.

Não há rituais, imagens, indumentárias indígenas ou quaisquer elementos do 'complexo xamânico' proposto por Eliade. Ao contrário, Castaneda prescreve uma atitude de espreita, sobriedade e extrema discreção, despindo o xamanismo de todo seu simbolismo para enfatizar o que considerava principal: a construção de um 'corpo sonhador' para escapar dos predadores inorgânicos e sair deste universo do carbono.

Já para os neoxamanismos gnósticos, o reencantamento do mundo é coletivo: os xamãs devem lutar pela mudança do 'sonho planetário'. Para don Miguel Ruiz (2005), por exemplo, há dois sonhos coletivos em desenvolvimento: o sonho que chamamos de realidade – “o tonal, a primeira atenção, sonho do inferno ou o sonho da vítimas” – e o sonho dos guerreiros, um sonho alternativo de realidade - “o nagual, o sonho da segunda atenção”.

Ruiz foi criado pelo avô, Leonardo Macias, um autêntico nagual mexicano. No entanto, seduzido pela vida moderna, formou-se cirurgião e renegou a tradição familiar até que certo dia sofreu um acidente de carro, teve uma experiência de quase morte. Desde então se tornou uma grande referencia do xamanismo tolteca, com pontos em comuns e diferenças do ensinamento proposto pelos naguais don Juan Mathus e Carlos Castaneda. Ruiz fala da conquista da liberdade pessoal e não da liberdade total de Castaneda, é contra a autopiedade mas não contra a compaixão, acredita na construção de um sonho sem medo (ou sem parasitas mentais) não é meramente individual, mas luta de guerreiros em favor da condição humana, entre outros paralelos.

Para Ruiz, o sistema de crenças é uma estrutura parasita de energia. Sonhamos um sonho coletivo que nos aliena da vida e nos mantêm em uma realidade virtual, uma ‘Matrix’ formada por nossas crenças e valores. Segundo ele, é libertar nosso sonho pessoal do sonho coletivo do medo de exclusão, do sonho de domesticação social engendrado pela sociedade; e, em conjunto com outros sonhadores conscientes, transformar esse sonho social de destruição planetária, induzindo toda humanidade a um salto quântico evolutivo.

Tanto para Castaneda como para Ruiz, o sonhar é a base de toda experiência cognitiva: estamos sonhando o tempo todo, seja dormindo ou quando estamos acordados. A diferença é o enquadramento mental-sensorial no estado de vigília (ou tonal) da percepção da energia sem realidade sensorial dos estados alterados de consciência (ou nagual). 

Os conceitos de Tonal e Nagual representam campos perceptivos opostos e complementares, em que o primeiro é nossa percepção ordinária (sensorial-mental) do mundo como algo formado por objetos concretos e coisas sólidas; e o último é a percepção de que estamos em um universo de relações, em que tudo é feito de energia em diferentes níveis de organização e de adaptação.

Mas, há também duas interpretações dessa polaridade cognitiva básica. Ruiz (e o xamanismo gnóstico) entende a tarefa do xamã em uma dimensão social: o sonho coletivo do medo só poderá ser transformado com grande número de sonhadores que desejem a liberdade pessoal. Ruiz acredita poder romper com o sonho social de medo tecendo um novo sonho.

Para Castaneda (e o xamanismo pós-moderno), o tonal é uma ilha (ou bolha da percepção) e o nagual a um oceano-universo que o engloba: o mar escuro da consciência. A vida orgânica (o tonal) é uma gota em um universo inorgânico. A tarefa do xamã é sair individualmente do seu ovo tonal e viver em um universo nagual, deixando para trás a condição humana. Enquanto o neoxamanismo gnóstico sonha em salvar a terra e a humanidade, o neoxamanismo pós-moderno intenta antes salvar-se do destino da humanidade de ser absorvido pela terra.

  1. A simetria cognitiva

Há sempre uma dupla realidade, uma simetria entre o lado de dentro e o de fora, o micro e o macrocosmo. No campo filosófico há, para Platão, um mundo sensível-concreto e outro inteligível-abstrato; uma cidade dos homens e uma cidade de Deus para Santo Agostinho; para Descartes, coisas extensas e objetos virtuais. Com Kant, há uma inversão de perspectiva: a realidade deixa de ser uma percepção e passa a ser uma interpretação. O mundo externo se torna uma projeção estruturada do sujeito, a simetria torna-se um reflexo invertido.

No campo religioso também há simetria, mas é o metafísico que se reflete no físico: “assim em cima, como embaixo” - expressão presente não apenas nas Tábuas de Esmeralda de Hermes Trimegisto, mas presente em todas as grandes tradições, como a chinesa (céu e a terra), a indiana (o universo-templo e o corpo-templo), e a ocidental (o homem como a imagem e semelhança de Deus). No humanismo iluminista, há cruzamento desses dois modos de representação simétricos, o filosófico e o tradicional, em que o homem ocupa o lugar central (como na tradição judaico cristã), mas o universo externo que enquadra e determina a experiência subjetiva (como crê a modernidade).

Assim como a antropologia pós-estruturalista entende a realidade como uma sobreposição das dimensões sensíveis e inteligiveis e nâo é antropocêntrica; Castaneda (Osho, Gurdjieff, entre outros autores esotéricos contemporâneos) recusam a ideia de semelhança entre o homem e o universo; e a dicotomia transcendentalista da caverna de Platão. Eles preferem entender o homem dentro da cadeia alimentar no meio ambiente e concentram seus esforços na descondicionamento dos hábitos e rotinas, na desmecanização do corpo e no desenvolvimento da consciência.

Para Castaneda, a simetria entre a cognição ordinária e a extraordinária está além do homem e é um paradoxo insuperável para o qual não existe totalização ou unificação globalizante. O Mundo e a Consciência são termos irredutíveis.

Para as tradições, a simetria é dada como certa (o mundo material é um desdobramento denso dos universos sutis); para modernidade, a simetria é parcial e invertida (o subjetivo parcialmente reflete a realidade total); para o pensamento pós-moderno (seja filosófico, antropológico ou esotérico), não há simetria ontológica (nem reflexividade entre dimensões paralelas): os objetos é que são duplos construídos intersubjetivamente em um único plano imanente bifacetado: como a onda e a partícula.

É conhecida a prescrição de Carlos Castaneda de que seus aprendizes deveriam estudar antropologia. Florinda Donner, Taisha Abelar, Armando Torres – entre outros tiveram que estudar ciências sociais na UCLA para se tornarem feiticeiros. É possível que a prescrição de Castaneda seja uma garantia anti-gnóstica, uma forma de fortalecer o tonal e manter a mente dentro da realidade objetiva, sem ilusões transcendentes.

  1. Conclusão: por amor, obrigado e desculpem.

O sistema de xamanismo havaiano conhecido como Ho’oponopono é baseado nesses três operações transferenciais: Te amo; Sou grato; e Sinto muito-Me perdoe. Em Havaiano, Ho'o significa “causa”, e ponopono quer dizer “perfeição”, portanto Ho’oponopono significa “corrigir um erro” ou “tornar certo”. O Ho’oponopono permite limpar recordações dolorosas, que são a causa de tudo que é tipo de desequilíbrios e doenças, com base nessas três operações: amar, agradecer e perdoar/ser perdoado.

Quando uma pessoa doente procura o xamã, o curador se identifica com seu paciente (eu te amo) adquirindo sua doença. O xamã passa a partilhar da enfermidade para poder curá- la. O segundo passo consiste em fazer o paciente agradecer pela sua doença, entendê-la como uma mensagem do corpo para sua consciência que precisa ser decifrada. Caso consiga fazer com que o paciente agradeça sinceramente pela sua enfermidade, há ‘a cura espiritual’ e o xamã consegue libertar-se do karma da doença.

A ‘cura material’ ou completa só poderá ser alcançada através do perdão, isto é, de um reconhecimento de que foram seus próprios erros que formaram a doença e que isto prejudicou a outras pessoas além de si próprio.

Este, aliás, é o propósito deste texto. Agradecer, perdoar e retribuir à dádiva com uma colaboração transformada e transformadora do presente original.

Obrigado, me desculpe, eu te amo.


Referências bibliográficas

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NOTAS

1 Doutor em ciências sociais pela UFRN, autor de vários textos jornalísticos sobre temas antropológico: Jurema Rainha (2010a) e Kambô, o espírito do pajé (2010b). 

2 Xamanismo: Caminho de autocura para uma vida extraordinária. Nesta entrevista a professora de xamanismo Carminha Levy, elabora um teste para você saber se é um xamã, explica por que a apresentadora Angélica é uma xamã. Carminha é iniciada no xamanismo há 26 anos, é discípula do antropólogo americano Michael Harner. <http://www2.uol.com.br/vyaestelar/vya_estela15.htm>

3 Escrevemos um artigo específico só sobre o posmodernismo de Castaneda: <http://mbolshaw.blogspot.com.br/2010/02/recapitulando-castaneda.html>

4A aproximação entre o Santo Daime e o xamanismo, por exemplo, é polemizada por vários autores (LABATE, 2002, p. 240-242). Segundo Clodomir Monteiro (1983), o Santo Daime está inserido em um contexto de práticas xamânicas, marcado por transes xamânicos individuais e coletivos; seus líderes são equivalente a xamãs. Couto (1989) desenvolve o conceito, corroborado por Macrae (1992), do Santo Daime como um 'xamanismo coletivo', em que todos são “xamãs em potencial”. Cemin (1998) considera o Santo Daime como sistema xamânico, mas apenas o Alto Santo e não o CEFLURIS, porque neste último há transes de incorporação. Para Groisman, o Santo Daime não é sistema xamânico, mas há uma aglutinação do saber xamânico nesta religião (1999, p. 23).

5 Um dos requisitos do transe genuinamente xamânico é que ele não é uma possessão ou uma incorporação. São os xamãs que manipulam os espíritos e não o contrário. Devido a isso, a umbanda, o catimbó e outras formas de espiritismo popular não são consideradas 'xamanismo'.

6 Ressalte-se que nem a astrologia nem o candomblé eram tipológicos em suas versões originais. Na África antiga, quando se nascia nas praias, se era filho de Yemanjá; se nas montanhas, de Xangô; e assim por diante. Os orixás eram ligados aos locais e não às pessoas individualmente. Por isso, eles eram passados de pai para filho. No Brasil, com a mistura das etnias, foi que surgiu o orixá como tipo psicológico individual e as referencias simbólicas espaciais foram colocadas em segundo plano. Também na astrologia antiga não havia horóscopos individuais. As previsões eram meteorológicas e sobre guerras; e o mesmo o oráculo dos reis não era voltado sua vida pessoal, mas para seu reinado. Hoje vários tipos de simbologias tradicionais sobrevivem através de tipologias psicológicas: os quatro elementos, signos astrológicos chineses, kins do calendário maia, o eneagrama.