sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

mitologia da ayahuasca


A história dos índios Tukano – Primeira descrição - Dr. Ralph Metzner da Green Earth Foundation

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Os índios Tukano, da região Vaupés, na Colômbia, dizem que as primeiras pessoas vieram do céu numa canoa em forma de serpente, e o Pai-Sol prometeu-lhes uma bebida mágica que os ligaria aos poderes radiantes dos céus. Enquanto os homens estavam na Porta das Águas, tentando preparar a bebida, a primeira mulher foi para a floresta para dar à luz. Ela voltou com um rapaz que irradiava luz dourada, e ela esfregou o corpo dela com folhas.

Este rapaz luminoso era a planta trepadeira, e cada um dos homens cortou um pedaço deste ser vivo, que se tornou o seu pedaço da linhagem da planta. Numa variação deste mito pelos índios Desana (da mesma região), a canoa serpente veio da Via Láctea, trazendo um homem, uma mulher, e três plantas para as pessoas - mandioca, coca e B. caapi. Também a viram como uma oferta do Sol, uma espécie de contentor para a luz amarela-dourada do astro, que ensinou às primeiras pessoas as regras de viver e falar. (Metzner 2006)

A história dos índios Tukano – Segunda descrição - Dr. R.E. Schultes e Dr. A. Hofmann

Era uma vez, há muito, muito tempo, uma mulher que vivia com os índios Tukano, a primeira mulher da criação do mundo, que afogou os homens em visões. Para os índios Tukano o sexo é uma experiência visionária, durante a qual os homens são “afogados em visões”.

A primeira mulher engravidou do Deus-Sol, que a fecundou pelos olhos. A criança nasceu num raio de luz. A mulher, cujo nome era Yajé, cortou o cordão umbilical e esfregou o corpo do bebé com ervas mágicas que lhe moldaram o corpo. A criança tornou-se conhecida como Caapi, uma planta narcótica, e viveu até se tornar um homem velho. Ele guarda enciumadamente os seus poderes alucinógenos, a sua Caapi, a qual é a fonte do sémen dos homens da tribo Tukano.

O mito conta essencialmente a história de um casamento alquímico, no qual a mulher e o homem procuram a união com o Deus-Fonte, a força divina da criação do mundo. Por isso a experiência religiosa é sempre também sexual. Citando Schultes e Hofmann: Para o índio, “a experiência alucinógena é essencialmente sexual… torná-la sublime, passando do erótico, do sensual, à união mística com a era mítica, ao estado intra-uterino, é o objectivo final, obtido apenas por poucos mas desejado por todos”.

Mais mitos

Em “Encounters with the Amazon's Sacred Vine”, por L. E. Luna & S. F. White:

"A planta da ayahuasca tem a sua origem sobrenatural no tempo mítico: ou provém da união incestuosa do Pai-Sol com da sua filha, ou da sabedoria secreta do reino subaquático, ou do cadáver de um xamã, ou da cauda de uma serpente gigante que une o céu e a terra. Estas várias tribos índias acreditam que a planta visionária é um veículo que torna o primordial acessível à humanidade”.

"Um exempo deste fenómeno é o mito dos índios Desana (transcrito por G. Reichel-Dolmatoff) sobre a canoa-serpente que desceu da Via Láctea com os primeiros habitantes do mundo, que se transformou na canoa do rio de fogo que transportou o povo yagé (ayahuasca).

"Foi uma mulher. O nome dela era Gaphi Mahso, a Mulher-Yajé. Foi no princípio do tempo, quando a canoa-anaconda desceu aos rios para espalhar a humanidade por toda a terra, que apareceu a Mulher-Yajé. A canoa chegara a um lugar chamado Porta das Águas, e os homens estavam sentados na primeira maloca (uma espécie de cabana central da aldeia), quando a Mulher-Yajé chegou. Ela pôs-se em frente da maloca, e ali deu à luz o seu filho; sim, foi ali que ela deu à luz.

A Mulher-Yajé pegou numa planta e com ela limpou-se a si e ao seu filho. A parte de baixo das folhas desta planta é vermelha como o sangue, e ela pegou nestas folhas e com elas limpou a criança. As folhas eram de um vermelho brilhante, assim como o cordão umbilical. Esta era vermelho e amarelo e branco e muito brilhante. Era um grande cordão umbilical. Ela é a mãe da planta de yajé".

Osho


OSHO: O AVATAR DA REBELDIA
Uma homenagem crítica ao papa do esoterismo pop[1]

Rebelde é aquele que não reage contra a sociedade, é aquele que compreende todo o jogo e simplesmente cai fora dele. O jogo passa a não fazer sentido para ele. Ele não é contra o jogo. E essa é toda beleza da rebelião: trata-se de liberdade. O revolucionário não é livre. Ele está o tempo todo lutando contra algo – como pode haver liberdade na reação?

Liberdade significa compreensão. A pessoa compreende o jogo e, ao ver que ele é um modo de impedir a alma de crescer, um modo de não permitir alguém de ser quem é, ele simplesmente o abandona sem que ele deixe marcas na sua alma. A pessoa perdoa e esquece, seguindo em frente sem nada que a prenda à sociedade em nome do amor ou em nome do ódio. A sociedade simplesmente desaparece para o rebelde. Ele pode viver no mundo ou pode sair dele, mas não pertence mais a ele; é um forasteiro. (OSHO, 2006d, 63).

A noite de 19 de janeiro de 1990 - noite de São Sebastião, em que se comemora também no candomblé afro-brasileiro o culto ao orixá Oxossi, senhor das matas – teve na minha vida um grande significado espiritual. Em primeiro lugar, pela morte do padrinho Sebastião Mota, líder da linha do Santo Daime da qual participo ainda hoje, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. No mesmo dia, com a diferença de algumas poucas horas, na cidade de Puna na Índia, também desencarnava outro grande líder espiritual: Bhagwan Shree Rajneesh, o Osho.

Na ocasião, tive um sonho em que, em uma sala circular xadrez, havia uma polaridade entre as figuras do Padrinho Sebastião, vestido com a farda branca do Daime e com a barba negra, e de Osho, vestindo uma túnica negra e com a barba branca – ambos impassíveis, em estado de meditação profunda. A sala começou adquirir o aspecto oval, semelhante ao símbolo chinês do yin/yang e vôo, levando os dois para o céu longínquo.

Mas, deixe-me abrir um pequeno parêntese aqui para explicar melhor quem é Sebastião Mota.

O padrinho Sebastião que eu conheci era uma pessoa de muitos contrastes: muito sério e ao mesmo tempo sempre alegre e brincalhão; sereno e paciente ao mesmo tempo em que persistente e teimoso; um homem de grande conhecimento e ainda assim um estudante humilde e aplicado nos assuntos da espiritualidade.

Nascido em Eirunepé, Estado do Amazonas, no Seringal Monte Lígia em 1920, o padrinho começou sua carreira de curador lá mesmo no Vale do Juruá, na Doutrina Espírita kardecista. Mudando-se para a capital do Acre com a família por volta de 1957, sete anos mais tarde é que conheceu Raimundo Irineu Serra e o Santo Daime. Participou ainda dos trabalhos do "Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento" com o Mestre e sempre guardou emoldurado seu diploma do Círculo na parede de seu quarto. Fundou a Colônia Cinco Mil dando ênfase a vida comunitária em sua proposta doutrinária.

Em 1980 transferiu a comunidade, que vivia nos arredores de Rio Branco, para uma área virgem no interior da floresta, denominada Seringal Rio do Ouro. Em 1982 fundou, no Amazonas, a Vila Céu do Mapiá, sede de sua entidade religiosa e filantrópica, denominada Cefluris – Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra, principal responsável pelo trabalho espiritual desenvolvido com Santo Daime em diversos países nos 5 continentes do globo.

Porém, para mim, a grande contribuição do padrinho não foi a expansão internacional, a vida comunitária ou mesma a polêmica adoção de outras plantas nos cultos do Santo Daime, mas sim uma determinada relação com a idéia de urgência e com o fim do tempo. E isso está expressa em seu hinário: O Justiceiro. Um hinário reflete o aprendizado da pessoa que o recebeu e expressa sua biografia espiritual, com as provas e experiências que ele enfrentou durante o decorrer de sua vida.

Quando comecei na doutrina, eu não gostava do hinário do padrinho. Achava muito cheio de "chiqueirador" e de "se arrependam pecadores", etc. Até que um dia tive um sonho em que um amigo (Luis Fernando Nobre) me dizia: "você só apanha porque se sente culpado e sente pena de si mesmo. Cante o hinário como justiceiro e não como injustiçado." Foi uma chave para mim. Descobri que, na primeira pessoa do presente do indicativo, o justiceiro é uma arma contra tudo que realmente me oprimia e machucava. Mas passaram-se os anos e vi também um outro lado: pessoas cantando o hinário do padrinho para 'peiar' os outros, sem examinar a consciência. Descobri, então, um segundo segredo: nem se punir nem querer corrigir os outros. Tem que amar os outros ‘igualmente’ a si mesmo. Se amar a si demais ou aos outros mais que si, está fora do fio da navalha do hinário. O ensinamento do justiceiro é assim um estudo muito fino, entre essas duas interpretações opostas equivocadas (a masoquista e a sádica).

Hoje, após muitos hinários do padrinho e anos de trabalho espiritual, percebo que a idéia de que "culto sem castigo ninguém sabe o que vai fazer" (excluídos todos os mecanismos de culpa e auto-punição da ideologia cristã e ficando apenas com o aspecto disciplinar) deriva da idéia de tempo irreversível - um dos traços principais da filosofia e da prática espírita de Sebastião Mota. É comum entre os daimistas que buscam seguir exclusivamente os ensinamentos de Mestre Irineu um determinado modo de entender o tempo que tudo é eterno, com uma ênfase na calma e na segurança espiritual. O castigo, nesta compreensão, é apenas uma limpeza, necessária para se entrar em sintonia com o universal para se reencontrar no Divino[2].

Já a concepção dos seguidores do padrinho Sebastião é bem mais guerreira, com ênfase no fim do mundo e da possibilidade da morte eterna (que só reencarna quem merece). Nesta perspectiva, "a matéria está por fio" - como afirma um dos últimos hinos de seu filho Alfredo. Nesta concepção, é preciso prestar atenção no instante e no detalhe. Há um "sentimento de urgência" que nos impulsiona para a Eternidade (prometida no hinário) do Mestre.

E esta "urgência" em construir um mundo melhor deve ser considerada como sua grande contribuição. A disciplina, nesse contexto cronológico (que conta o tempo de trás para frente), é um esforço consciente e constante de adaptar ao presente imediato. O padrinho Sebastião foi um homem que se alfabetizou cantando o próprio hinário. Foi um homem coerente (que lutava para colocar suas idéias em sua vida e colocar sua vida nas suas idéias) e morreu como um guerreiro batalhando pelo que acreditava. Sebastião Mota de Melo faleceu de problemas cardíacos em 20 de janeiro de 1990, dia de São Sebastião, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, fazendo o que queria e o que mais gostava de fazer, cantando seu próprio hinário durante um trabalho espiritual - no mesmo dia de Rajneesh.

Dito isto, voltemos ao Osho. Apesar de já ter lido alguns livros de Rajneesh e ter gostado, meu sonho (então interpretado de modo maniqueísta como uma luta entre o bem e o mal) me levou a nutrir, durante muitos anos, certa antipatia pelos ensinamentos do Osho. Hoje, percebo que o Rajneesh “não é do mal”, ao contrário deve ser reverenciado, não apenas como um singular líder espiritual, mas, sobretudo, como uma das personalidades mais importantes de nosso tempo. Compreendo também que a polaridade entre ele e o padrinho Sebastião é complementar, representando a contradição entre disciplina e entrega. Ou seja: enquanto o padrinho (re-interpretando a tradição cristã) prescreve o sacrifício, a firmeza e a renúncia como formas de aperfeiçoamento ético, a mensagem principal de Osho é a vulnerabilidade e a entrega prazerosa à vida. Na verdade, sempre gostei dos textos e das idéias de Rajneesh; no entanto, sempre houve algo, uma dissintonia entre o discurso e as práticas espirituais, que me levavam a suspeitar da seriedade de seus ensinamentos. Para por em prática a teoria dos Avatares, segundo a qual um ser iluminado nascia para salvar o espírito da humanidade há cada dois mil anos, descrita na Doutrina Secreta de Madame Blavatsky, sua principal discípula e sucessora na direção da Ordem Teosófica, Annie Besant, se colocou a missão de localizar e preparar a pessoa que seria novo Avatar. Encontrou um jovem indiano e o levou para estudar na Inglaterra. Esse fato teve como conseqüência imediata a dissidência aberta por Steiner: a Antroposofia. Porém, poucos meses antes de assumir a direção internacional de um verdadeiro império organizado em sua volta, Krisnamurti desistiu de cumprir o destino para o qual havia sido educado e iniciou uma cruzada a favor da meditação e do desenvolvimento da consciência acima de qualquer sistema de crenças e rituais.

Para Rajneesh, Krisnamurti fraquejou e não recebeu o espírito solar a que estava destinado a incorporar. Assim, coube a ele concluir essa missão e ser o Avatar, passando a se chamar de Osho, originalmente um título de reverência concedido a certos mestres na tradição Zen do Budismo. Mesmo não sendo budista ou um mestre pertencente à tradição Zen, a partir de certo momento, Rajneesh passou a se chamar de Osho no final dos anos 80.

Em outro trabalho (GOMES, 2001), sem entrar no mérito das idéias de Bhagwan Shree Rajneesh (na verdade, Rajneesh Chandra Mohan Jain) nem de sua pretensão de se chamar de Osho e se considerar o Avatar da Nova Era, afirmei que uma de suas contribuições mais importantes era seu marketing de organização em rede – fato que geralmente passa despercebida tanto aos seus críticos quanto aos seus defensores. Além do Tantra como carro chefe (do qual falaremos adiante), Rajneesh relançou toda uma série de produtos esotéricos de outras correntes e tradições com sua grife (tarô do Osho, massagem do Osho, danças do Osho, Reike do Osho, etc). Mas, ao invés de uma nova síntese dessas técnicas e práticas, Rajneesh criou uma ‘franquia espiritual’ em redes descentralizadas, como uma identidade transnacional de uma extensão planetária: a marca Osho.

Na verdade, Rajneesh formulou uma síntese “Buda-Zorba”, uma espiritualidade que reúne o aspecto meditativo do budismo à alegria de viver, dançar e se divertir do personagem Zorba, o grego. (OSHO, 2004, 214; 1999, 15).

Na mídia, Osho ficou conhecido como o guru do sexo e dos ricos - em função de seu discurso contra a repressão sexual e da frota de 93 Rolls-Royces que existiam em sua comuna nos Estados Unidos, 'Rajneeshpuram' e que recebia, no início dos anos 80, milhares de visitantes de todo o mundo. Osho foi acusado, por parte do governo estadual do Óregon de perversão, realização de lavagem cerebral e evasão fiscal; seus discípulos se envolvem em caso de envenenamento e fraude eleitoral. Foi preso e posteriormente deportado dos Estados Unidos. Em julho de 1986, Osho volta à Índia e instala-se novamente em Puna e funda uma multiversidade (e não uma universidade) de estudos espirituais[3]. Em novembro de 1987, seus médicos diagnosticam uma deterioração generalizada de sua condição física, devido a envenenamento por tálium, um metal pesado de efeito lento, progressivo e fatal. Durante um discurso público, Osho afirmou que o governo dos EUA o havia lentamente envenenado durante os 12 dias em que ele estivera preso em 1985.

O pensamento de Rajneesh está exposto em mais de 1000 livros, embora ele nunca tenha escrito nenhum. Seus livros são transcrições de excertos dos arquivos gravados de palestras feitas em momentos e para públicos diferentes. Textos que, com o passar do tempo, foram sendo reescritos pelos seus seguidores. [4] Desconfie-se, portanto, que o Osho não é uma única pessoa, mas sim uma instituição. Nesse sentido, a compilação póstuma Autobiografia de um místico espiritualmente incorreto (2000) permite vislumbrar claramente, mesmo sendo um texto editado de modo as esconder as diferenças, três fases de Osho: antes, durante e depois sua passagem pelos EUA. Nos últimos anos, ele aprimorou suas meditações e idéias centrais. É o melhor de sua produção.

Também há diferentes estratégias transversais possíveis de leitura a essas três fases dos trabalhos de Osho. Pode-se, por exemplo, observar seu discurso sobre as diferentes tradições (budismo(s), zen, taoísmo, cristianismo, islã). Outra estratégia interessante seria analisar seus livros sobre práticas meditavas e terapêuticas (como O Livro Orange ou a Farmácia da Alma) ou ainda estudar sua interpretações de milhares de estórias, narrativas, anedotas, lendas e casos de que faz uso freqüente para explicar suas idéias.
Será possível, a partir da análise discursiva de seus principais livros, se reconstituir uma concepção de mundo, uma doutrina ou mesmo um conjunto coerente de ensinamentos e modos de pensar? Sim, claro. Há temas recorrentes e uma filosofia própria com características constantes: anarquismo, relativismo, hedonismo e anti-racionalismo com ênfase no instinto e na intuição.

Escolhemos, para estudar a ‘ideologia sanniasi’ os textos ‘morais’ de Osho. Por ‘morais’ entenda-se os textos prescritivos organizados nos dez livros da coleção ‘Dicas para uma nova maneira de viver’ sobre diferentes temas éticos: liberdade, intuição, criatividade, alegria, maturidade, coragem, intimidade, inteligência, compaixão e consciência. É claro que Osho não gostaria de seus textos prescritivos serem chamados de morais, pois ele não é um moralista no sentido normativo, isto é, não estabelece regras de conduta (2004, 127). Todavia, esses textos sugerem procedimentos éticos de conduta para os que desejam a liberdade espiritual. E isto também pode ser considerado ‘moral’.

Inicialmente é preciso observar que Osho faz parte de um contexto internacional e de uma determinada época, guardando vários pontos em comum tanto com outros pensadores esotéricos contemporâneos, como Castaneda e Gurdjieff, como com autores críticos, adeptos da filosofia libertária dos anos 60. Ken Wilber (2000, 33) é quem melhor caracteriza a filosofia do movimento da contracultura como um pluralismo relativista. Para esta forma de pensar não existem regras de raciocínio que transcendam o que é aceito por uma sociedade ou época. O valor de algo é o valor que as pessoas lhe atribuem e cada pessoa tem o direito legítimo de lhe atribuir valor diferente. A ação e o pensamento humanos são inerentemente locais, enraizados em fatos variáveis da natureza e da história humanas. Para Wilber, a principal característica do pluralismo relativista contracultural é que ele não consegue perceber ou admitir que sua forma de pensar também seja relativa a um contexto social e histórico (se encaixando em um quadro de referencias universais) e que ao excluir os universalismos e afirmar radicalmente o relativo, está sendo absoluta.

No campo acadêmico, o descontrutivismo pós-modernista, que acredita que todo comportamento é culturalmente relativo e socialmente construído, é o principal representante do pluralismo relativista. E, no campo esotérico, além de Osho, há também pensadores como Gurdjieff e Castaneda, cujas características se aproximam muito do pensamento pós-moderno, principalmente na recusa radical ao platonismo da ‘Nova Gnose’ e a adoção de uma perspectiva empírica e experimental, em oposição às crenças impostas pelo condicionamento social (2004, 79). O relativismo aqui é perceptivo (e não meramente discursivo): não há uma realidade objetiva e que somos condicionados a acreditar em uma miragem coletiva, uma matrix da qual temos que escapar para, um sonho do qual temos que acordar.

Esse caráter rebelde diante da sociedade é o principal traço comum entre Osho e o esoterismo anti-gnóstico, mas há também outras semelhanças importantes Principalmente em relação a Gurdjieff, que é muito citado por Osho. Para Osho, por exemplo, estamos todos dormindo em um estado de inconsciência e automatismo, precisamos tomar um choque para despertar a consciência (OSHO, 2001, 11). Os nossos múltiplos ‘eus’ são como que ‘amortecedores’ que impedem que os choques da vida nos acordem. Os ‘eus’ dissipam nossa energia (OSHO, 2004, 75), impedindo de nos tornamos mais íntegros e conscientes. A idéia de que preciso reorganizar e economizar a própria energia, principalmente a energia sexual, também é comum a Osho, Gurdjieff e Castaneda. Há também semelhanças menores como a não comemoração de aniversários e de datas festivas. Para Osho, a vida é uma celebração (2004, 35).

Nesse sentido, tanto Osho como Gurdjieff e Castaneda são céticos e hiper-realistas, focando-se quase que exclusivamente no des-condicionamento social da consciência individual. Eles pensavam assim conseguir escapar no sistema de crenças. Mas são as crenças que forjam as experiências, e essas, por sua vez, que formam e reforçam as crenças. No caso de Osho, a recusa em admitir as próprias crenças (como também dos que cultuam a experiência concreta em geral) tem resultado um relativismo subjetivista em que tudo é uma questão de opinião. E esse talvez seja o principal problema de empreender uma crítica sistemática a Osho. Isto por dois motivos. Da forma como coloca suas idéias, principalmente antes de ser expulso dos EUA, é que Osho fala na condição de iluminado, de alguém que já alcançou o nivarna e está orientando aqueles que desejam chegar lá aonde ele já chegou. Essa superioridade ontológica, esse lugar privilegiado da fala e do enunciador, de quem já experimentou a iluminação é que dá a Osho uma autoridade discursiva de ser radicalmente subjetivo.

Outra dificuldade, conexa ao subjetivismo empirista de Osho, é que ele advoga que tem direito de ter sua opinião da mesma forma que seus críticos têm de discordar dele. Ele se dá direito de, por exemplo, dizer que Nietzsche enlouqueceu porque tinha inveja de Jesus Cristo (2006d, 114) ou que os pais destroem a inteligência dos filhos para escravizá-los (2007b, 123). É possível fazer um longo inventário de achismos e bobagens retóricas.

Polêmico? Mais: provocador. Osho é sempre contra o consensual e o senso comum, faz questão de remar contra a maré e mostrar o outro lado de tudo: ele é contra o cristianismo e a favor de Jesus, ele contra todas as religiões e a favor de todas as formas de espiritualidade, etc.

Na verdade, Osho tem um vocabulário próprio, inclusive há uma compilação chamada Osho de A a Z – um dicionário do Aqui e Agora (OSHO, 2004), em que várias palavras são redefinidas de acordo com sua forma de pensar, algumas sendo supervalorizadas, enquanto outras sendo desqualificadas.

Por exemplo, Osho evita ao máximo as palavras ‘Absoluto’ e ‘Abstrato’ (2004, 11); “Abstinência’, para ele, é uma perversão; “nunca usa a palavra ‘renúncia’” (2001,11; 2004, 154) não gosta da palavra ‘amigo’, nem ‘amizade’ (2006d, 84). Há também vários temas – como medo, compaixão, meditação e liberdade – permeiam todos os textos e por isso são difíceis de precisar. Outros, secundários, necessitam de uma redefinição – como é o caso das noções de responsabilidade, disciplina, inteligência, maturidade. Existem ainda temas paradoxais.

Mas, o próprio Osho aponta para alguns conceitos chaves, como no caso dos 3 c’s (1999, 13): Consciência (referente à existência e oposta à mente e ao ego), Compaixão (referente ao sentimento e geralmente contraposta ao medo) e Criatividade (referente ao campo da ação e oposto à atividade política).
Consciência e Mente

“O mundo é o arco-íris; a mente, o prisma; e o ser o raio de luz”. (2006c, 168). A mente é como se fosse um invólucro da consciência; uma é periférica, a outra está no centro (2001, 60). Somos como uma cebola de várias cascas sobrepostas e há diferentes níveis de consciência: do corpo, dos pensamentos, dos sentimentos e a consciência da consciência, ou ‘o observador’ (2001, 13). Em outro livro (2006c), a cebola tem seis camadas: os sentidos (2006c, 111), os condicionamentos dos sistemas de crenças (p. 117), as racionalizações, o sentimentalismo, a repressão e a intuição corrompida.

“A mente é a memória, você é a consciência” (2001, 112). Para Osho, a mente está no passado e a consciência é sinônima de percepção presente. A consciência é a ‘lembrança de si’ (Gurdjieff) e a mente, o esquecimento. “A mente é um depósito de amarguras” (2004, 86) , ela coleciona feridas e insultos. Segundo Osho: “O único pecado que existe é a inconsciência, a única virtude é a consciência” (2001, 164). Aliás, para Osho, ‘a mente vazia não é a oficina do diabo’, mas sim o berço divino da criatividade (1999, 21; 2004, 130). A meditação e o silêncio são os métodos para se calar a mente e chegar à consciência (2005, 155).

E segundo Osho (2001, 182), o místico Mahavira afirma que quarenta e oito minutos de meditação Vipassana perfeita, de plena atenção contínua (de consciência) na respiração levam à iluminação. Uma de suas idéias fixas mais repetitivas é que não se deve tentar ser uma pessoa melhor ou fazer qualquer esforço no sentido do aperfeiçoamento. “Seja você mesmo ao invés de tentar ser o que não é. Viva a gratidão do ser e não a neurose do dever ser” – afirma, sem explicar a contradição de estar prescrevendo para pessoas que ‘querem ser’ que apenas ‘sejam elas mesmas’. Este é um ponto importante. É preciso Ser e não ‘tornar-se’. Para Osho, ‘ser uma pessoa melhor’ é um desejo nefasto (2004, 169; 1999, 42). A pessoa deve ser total em cada ato, procurar ser integral, espontâneo, intenso, autêntico – imediatamente e a cada segundo.

Há, portanto, dois caminhos (2004, 30): o caminho da iluminação instantânea, o despertar da consciência para o presente em um único choque (é o ‘caminho sem caminho’ - idéia retirada do Zen que Osho repete constantemente) e o caminho do auto-aperfeiçoamento, que se dá através de vários choques através dos quais a pessoa vai mudando seus padrões energéticos e evolui, até chegar à ausência de desejos inconscientes. Sobre esse caminho, Osho fala muito pouco e quase sempre de forma negativa. Para ele, o importante é a presentificação imediata da consciência. Aos que não alcançarem a iluminação instantânea (pessoalmente, nunca tive notícias de ninguém), resta à espera:

A espera precisa ser pura. Desfrute da espera em si, sem querer nada mais. Você não vê a beleza que há em apenas esperar? A pureza, a benção, a inocência? Apenas esperar, sem nem mesmo saber o que virá. [...] Ao descobrir que não há como imaginar o futuro, não há como imaginar o desconhecido, então aquilo que é conhecido cessa e todas as idéias dentro da mente desaparecem: as idéias sobre Deus, as idéias sobre samadhi, iluminação, todas elas desaparecem. Nesse desaparecimento está a iluminação [...] Mas uma coisa é certa: a espera é infinitamente bela, a espera é infinitamente cheia de alegria. (OSHO, 2004, 69-70)

Há muitas doenças, mas um só remédio: a consciência. “Toda minha mensagem se resume nisso: você precisa de consciência, não precisa de caráter” (2001, 166). Aliás, há duas palavras em inglês para designar a consciência: consciouness e conscience (2001, 171). Assim, ‘consciência’ para Osho não é a consciência moral ou mental, mas sim percepção imediata do presente, sem levar em conta os valores que a contextualiza (2001, 175).

Em outros momentos, a consciência é oposta ao ego, ao intelecto e à atividade racional. Para tanto, também se redefine a idéia de Inteligência. Segundo Osho, ‘Inteligência’ não é a capacidade de sobrevivência do mais adaptado, mas a capacidade solucionar novos problemas. Ela não é adquirida culturalmente, ao contrário, o ser humano nasce inteligente, a sociedade o emburrece (2007b, 33). A inteligência é uma dádiva da natureza, é inata e intrínseca à vida. Somente o homem é burro, o universo é inteligente. Nascemos sem ego, o ego é um espelho para nos vermos através dos outros porque tememos olhar para nós mesmos, face-a-face (2004, 62).

A inteligência verdadeira é intuitiva e vem do coração (2007b, 27). Ela é naturalmente rebelde, não aceita adestramentos. Já a mente é externa e coletiva, um conjunto de crenças adquirido pelo ego, que, por sua vez, foi estruturado socialmente. O Conhecimento (intelectual) não é o Saber (experencial) da consciência.

Porém, o irracionalismo de Osho, às vezes, comete exageros.

Por exemplo: “a intuição não pode ser explicada cientificamente porque é irracional” (2006c, 09). A intuição hoje em dia é vista pela neurociência como um atalho cognitivo entre neurônios, como uma sinapse criativa. Hoje em dia explicamos a intuição cientificamente de forma inclusive a confirmar as idéias de Osho sobre a atividade cognitiva.

Vários outros exemplos poderiam ser dados desses exageros irracionalistas, utilizados para desqualificar outras formas de pensar. Eis mais uma das contradições do Osho: ele é um pensador que desqualifica o pensamento.

Por outro lado, Osho é bastante condescendente com o uso de drogas pela juventude (2006a, 138; 2006c, 81-82; 1999, 124-125), que vê como uma tentativa selvagem da juventude de destruição do ego para chegar à espiritualidade, e considera que os computadores são ‘mentes artificiais’, que poderão substituir a mente humana com várias vantagens. “O computador permite que o homem medite. O computador pode ser um grande salto quântico, uma ruptura com vários dos condicionamentos do passado” (2007b, 156). Para ele, a memória psicológica desaparecerá (2007b, 177) e a memória factual se tornará mais precisa (1999, 151). Osho acredita ainda que o “inconsciente não é natural”, é um subproduto da civilização (2007b, 143). E isto nos leva a um segundo par de conceitos opostos.

Medo e Compaixão

O tema do medo (2004, 123) perpassa todo discurso de Osho. Pode-se encontrá-lo como o oposto do amor (tanto do amor-dádiva como do amor-necessidade que por vezes ele se recusa a chamar de amor[5]), como um instinto natural a ser respeitado, como um mecanismo de controle da sociedade sobre a pessoa, como um desafio à superação dos limites, entre outros.

Para Osho, ‘coragem’ é a disposição para viver na incerteza; confiança é a disposição para viver na insegurança. “Não chame de incerteza – chame de assombro; não chame de insegurança, chame de liberdade” (OSHO, 1999). Coragem é enfrentar o desconhecido apesar do medo. Bravura contrafóbica não é destemor. O homem fica destemido aceitando seus medos. (1999,153), pondo em risco o conhecido pelo desconhecido. E mais: um homem destemido não apenas ‘não tem medo de ninguém’, mas também não faz com que ninguém o tema.

Nessa lógica, o medo, quando aceito, vira liberdade, o medo negado vira culpa. O único modo de transcender o medo da morte é aceita-la. Então, a energia gasta com o medo vira liberdade. “Todos têm medo. Mas por quê? Ninguém tem nada a perder” (1999, 87). Segundo Osho, o medo atua na mente de modo a manter todos sobre controle do sistema de crenças e impedir o desenvolvimento natural do homem. Em contrapartida, acredita também que, quanto maior o risco, maior a possibilidade de crescimento pessoal e espiritual.

E nesse sentido, o maior medo do mundo é o da opinião dos outros (1999, 113). Por um lado, todo mundo tem medo da intimidade. Somos estranhos de nós mesmos e a intimidade nos revela. Assim, por outro lado, todo mundo quer intimidade. Não ter nada a esconder é aceitar-se. A simplicidade despretensiosa que inspira confiança (2006b, 11-12). Osho chama isso de ‘Vulnerabilidade’ (2004, 209). Nascemos livres de condicionamentos, intuitivos e confiamos naturalmente nas pessoas e em nós mesmos. E a essa espontaneidade inata, ele chama ‘Inocência’. Ser inocente é permanecer ignorante apesar do conhecimento e confiar. “Não agir em função do passado, manter-se sempre disposto a aprender e procurar a felicidade em pequenas coisas” (1999, 119). Mas, para que a inocência e a vulnerabilidade não descambem na ingenuidade e na irresponsabilidade, Osho desenvolve também a noção de Maturidade (2004, 120), que é aceitar a responsabilidade de ser[6].

A sociedade destrói nossa autoconfiança e nos ensina a confiar nas instituições (as crenças). E uma vez que se não confia em si, não confia mais em ninguém e se passa a crer em idéias abstratas, encaixando-se nas configurações sociais. A própria sociedade nada mais é que uma crença que depende de outras e toda sua estrutura é auto-hipnótica. (2006b, 43) Com a socialização, se perde a confiança, se adota crenças e se elaboram máscaras para esconder nossa intimidade dos outros. Ora, “tudo que se esconde, cresce; e tudo que se expõe, se for errado, desaparece” (1999, 163). Osho acredita que a vulnerabilidade acaba com a falsidade do ego e permite retornar à inocência original com maturidade. Ser sincero é ser autentico (2006b, 31), é ser verdadeiro consigo mesmo, “não há outra responsabilidade” (2006b, 41). No momento em que você se aceita, torna-se aberto, vulnerável e receptivo. Confiar se tornar um verbo intransitivo. “Comece confiando em si mesmo, confie então nos outros e um dia você confiará no desconhecido” (2006b, 49). “Não preciso mais melhorar a si mesmo” (2006b 125).

Outros temas éticos constantemente opostos à questão do medo imposto pelo condicionamento do sistema de crenças no discurso de Osho são a alegria e a compaixão. Alegria, para Osho, é superior ao prazer e à felicidade (2004, 15). Para ele, o prazer é biológico; a felicidade, psicológica; e a alegria, espiritual. Alegria é transcendência espiritual, está além do tempo e do espaço. Aceitar a alegria é seguir o fluxo dos acontecimentos, sendo grato pela vida, desafios e oportunidades, deixando de impor condições e de fazer exigências. É viver sem medo a aventura do presente.

E com alegria, a auto-aceitação, a vulnerabilidade e a inocência chegam também os sentimentos de compaixão. A Compaixão (2004, 39) é a mais elevada forma de amor. No entanto, ela não deveria se chamar com-Paixão, mas sim contra-paixão, pois para Osho, é a qualidade para onde vai a energia quando cessa o desejo. Compaixão é dar amor a todos os seres, mas sem se compadecer deles. Osho defende uma compaixão sem piedade, que ajuda os outros em beneficio próprio. Para ele, a idéia de caridade não passa de enganação (2004, 32). E a verdadeira compaixão é uma forma de amor universal não-altruísta (2007a, 147-154).

Reparem que Osho procede a uma re-interpretação de vários importantes conceitos budistas: a felicidade, que se torna mais psicológica; a compaixão, que fica impessoal e se torna menos piedosa; e a aceitação, que passa a não ser mais tão conformada e sim uma forma rebelde de “dar a outra face”.

Osho distingue reagir (mecanicamente) de responder (conscientemente). Em diversos momentos, ele afirma que a aceitação total de si mesmo e da vida não implica em se conformar com as desigualdades do mundo (2004, 23). Aliás, a palavra ‘Responsabilidade’, na cartilha do Osho, significa capacidade de responder criativamente à realidade e não o respeito às obrigações e deveres impostos pela sociedade (2006b, 173; 2004, 158).

Criatividade e liberdade política

A vida em si, não tem sentido, é preciso dar um sentido à vida, isto é, criatividade (1999, 193). E se você não usar sua energia de modo criativo, usará de modo destrutivo. Em relação a você mesmo e em relação à natureza. A natureza dá energia criativa a todos, ela só se torna destrutiva quando é obstruída. A criatividade é maior forma de rebeldia. Para criar é preciso romper com o condicionamento do passado. Os que dormem são mecânicos, de comportamento coletivo, e não criam. O criativo é solitário e inconformista.
Osho considera a emergência da intuição e da criatividade é resultante de um processo de desenvolvimento, em que a pessoa se torna cada vez mais individual, singular e livre das identidades sociais coletivas. Tudo começa com o relaxamento que leva à economia de energia e à mudança dos padrões destrutivos para os padrões criativos. O instinto está para o corpo assim com a intuição está para a alma (2006c, 27-28): “quando uma pessoa é completamente criativa, ela transcende o sexo sem reprimi-lo” (2004, 172).

Não há propriamente uma repressão à sexualidade, mas sim a obstrução da energia que deveria ser utilizada criativamente. A questão não é o sexo em si, mas o uso que se faz dele[7].

Um ponto muito importante é que Osho faz constantemente em toda sua obra uma analogia estrutural entre orgasmo e o nirvana, em vários níveis do discurso. Como conteúdo, tanto se chega a iluminação através da catarse, quanto o orgasmo é tratado de modo sagrado. Mas, a analogia tem também um aspecto sutil na forma como o discurso de Osho trata todo processo de desenvolvimento da consciência.

"Quer ser uma pessoa infeliz? Então ignore as necessidades de seu corpo e siga nos desejos de sua mente”. Quer ser feliz? Atenda às suas necessidades biológicas e silencie sua mente, fique apenas observando aos seus desejos, sejam eles de aversão ou de cobiça. Você ficará cada vez mais intuitivo, mais criativo. E, continuando assim, um dia, a iluminação explodirá dentro de você.

Dito assim é fácil. Jejuar, dormir pouco, não manter relações sexuais, não falar, ficar em posições estáticas – para não falar de mortificações – são práticas comuns entre os místicos cristãos, budistas, judeus, mulçumanos. E por que será que todas as tradições religiosas, principalmente os místicos, sempre preferiram a ascese, isto é, a privação dos sentidos e das necessidades?

E que as religiões organizadas transformaram a ascese voluntária dos místicos em repressão sexual para as massas, dessacralizando a sexualidade e instituindo a culpa como uma forma de controle social. E re-inserindo o sexo sagrado como prática espiritual no Ocidental no contexto de liberação dos costumes da contracultura, Osho reinventou a ‘arte erótica’ do Oriente como uma nova terapia catártica (algo bem diferente do Tantra tradicional) – o que é, sem sombra de dúvida, um feito realmente criativo.

O tantra original é uma senda mística, vertical, em que o objetivo principal é elevar o praticante à transcendência e à Unidade com o Divino. O Tantra (2004, 186) do Osho dá muita ênfase à afetividade, à relação horizontal com o Outro, a superação de bloqueios e de problemas psicológicos. O homossexualismo masculino no contexto tradicional é condenado, uma vez que os pólos energéticos são essenciais. Já para Osho, o sexo dos parceiros tântricos é secundário diante do sentimento e do afeto necessário ao desenvolvimento da kundalini. Há, portanto, enfoques bastante diferentes, resultantes de contextos históricos diversos.

Na verdade, essa transformação de práticas espirituais em terapias de catarse (ou seria o inverso?) é uma característica das técnicas prescritas por Osho, tais como as meditações dançantes - caótica, dinâmica, kundalini, a meditação do falatório (tagalerar até o silencio) entre outras menos conhecidas - e o processo iniciático conhecido como Rosa Mística (uma semana de risos, uma semana de choro e uma semana de plena atenção).

Todas elas têm por objetivo, acaba com a tensão do corpo e o relaxamento permite a consciência: “É preciso colocar para fora o grande gorila que há dentro de você” (2001,105).

E em oposição direta a esse redirecionamento da energia sexual para criatividade e para intuição está o tema da liberdade espiritual em oposição ao campo da política e da dissociação entre as atividades mecânicas e ação consciente (1999, 26).

“Aproveite a vida para celebrar, não perca tempo brigando ou lutando para mudar nada” (2006d, 112). Para Osho, nascemos livres, mas a sociedade redefiniu com regras a liberdade individual. Segundo ele, nenhuma sociedade até hoje ajudou o ser humano a se realizar como pessoa. E só os seres humanos precisam de regras; os outros animais, não as seguem. Osho acredita que as regras sociais são contrárias à evolução natural dos indivíduos e que novas formas de coletividade surgirão a partir do desenvolvimento dos indivíduos.

Aliás, segundo Osho, a sociedade não existe (2006d, 11-28; 2004, 178), ela é apenas uma palavra. Para ele, o coletivo é uma abstração composta por indivíduos concretos. Não cabe aqui duvidarmos da honestidade desta opinião, ou seja, se Osho realmente acredita desta sandice (que contraria toda história da sociologia) e porque os indivíduos (que só passaram a existir realmente da revolução francesa para cá) são menos (ou mais) abstratos que a sociedade. O importante é observar que Osho faz política quando parece condená-la.

“Sou um Anarquista de uma outra dimensão muito diferente. Primeiro, deixe que as pessoas se preparem, e então os governos desaparecerão por conta própria. Não sou a favor de acabar com os governos; eles estão preenchendo uma necessidade. O homem é tão bárbaro, tão vil, que, se não fosse impedido pela força, toda sociedade seria um caos.” [...] “Os governos evaporarão como gotas de orvalho sob o sol da manhã.” [...] “Não sou contra o governo, sou contra a necessidade de governo.” (2006d 96-98).

Outra opinião polêmica é a de que a família é a raiz de todos os nossos problemas (2006d, 28) e está obsoleta (2006d, 24). Ela surgiu com a propriedade privada (como dizem Platão e Marx) me vai dar lugar à comuna (p. 25). Osho nunca votou (2004, 63), diz “o que existe hoje não democracia” (2006c, 105) e é a favor de um governo mundial (2007b, 43). Para ele, a diferença entre autoridade e autoritarismo é que no primeiro caso a decisão vem de quem obedece e no segundo é imposta (2006d, 35).

Uma das idéias mais importantes de Osho é que “o tempo é horizontal e a eternidade é vertical” (2005, 100-101; 2004, 202). Horizontalmente, somos todos iguais, nivelados pela morte; porém, há alguns que estão mais próximos da eternidade do que outros. E esta verticalização tem dois desdobramentos igualmente importantes para entendermos as idéias de Osho: 1) Nos singulariza como indivíduos no processo de evolução espiritual, é a experiência da eternidade que nos produz o desenvolvimento da consciência; e, 2) estabelece uma hierarquia espiritual (e política), existem os que estão mais próximos da eternidade (são mais responsáveis) e os que ainda estão distantes.

Segundo Osho, o homem que se move verticalmente é como um espelho (2005, 103), em que os outros homens (que se movem exclusivamente na horizontal) se vêem. E isso, ao mesmo tempo que confere uma autoridade natural sobre os homens indiferenciados, gera também uma solidão e uma singularização ainda maior. Em outro texto, Osho diz que os animais vivem sua vida horizontalmente, apenas o homem, ao entrar em contato vertical com a eternidade adquire uma alma (2006d, 64). Aproxima-se, assim, da tese defendida por Castaneda e Gurdjieff, para quem não existe alma eterna e apenas com bastante esforço consegue-se escapar da segunda morte. Em outros momentos, no entanto, Osho afirma que “somos imortais” (2004, 99) e a eternidade existe (2004, 75). A Eternidade e a Transcendência de Osho em relação a esses pensadores não se resume apenas a este aspecto, mas coloca em questão, mesmo que parcialmente, o relativista perceptivo em relação ao Universal.

Osho pensa através de paradoxos (Koans Zen): ele se diz contra a moral e prescreve como as pessoas devem viver; é um pensador que desqualifica o pensamento; é um crítico mordaz das tradições e das autoridades políticas que apresenta como solução o individualismo radical (o fim da família) e a comuna teocrática, baseada no reconhecimento consensual dos mais espiritualizados. Defende o hiper-realismo da consciência lutando contra o condicionamento de sua crenças e uma iluminação instantânea que nunca ninguém viu. Mas, a maior de todas as contradições, aquela que, segundo o próprio Osho, sintetiza todas as outras, é o ideal paradoxal de mestre-rebelde: a imagem de Zorba, o Buda.

Rebeldia social e espiritual

Imaginemos que estamos em uma sala fechada, onde só há um banheiro e que todos os presentes subitamente têm a necessidade de usá-lo. Em um primeiro paradigma, que chamaremos de pré-convencional ou natural, a forma de escolha dos primeiros a utilizarem o banheiro seria ‘o mais forte, o mais rápido, o mais esperto’. Em um segundo momento, em um paradigma que denominaremos de convencional ou cultural, estabelecer-se-ia regras: ‘os mais velhos’, ‘crianças e mulheres primeiro’. Mas é possível ainda um terceiro paradigma, em que a escolha seria feita através olhares silenciosos e levaria em conta a situação específica de cada necessitado.

No âmbito da psicologia do desenvolvimento, Wilber (2000, 33) definiu esses comportamentos: os pré-convencionais são aqueles comportamentos egocêntricos que recusam se submeter às regras sociais e os pós-convencionais são os comportamentos que se rebelam contra as regras que os disciplinaram, que ‘quebram as regras por dentro’. Acredito que estamos fazendo a passagem do paradigma convencional para o terceiro nível, baseado na coordenação não arbitrária das relações, em que seja possível uma desregulamentação, em que as diferenças e as pluralidades possam ser integradas em fluxos naturais interdependentes.

O nível convencional é democrático, comunitário, ecológico. Chega a decisões através do consenso em debates intermináveis. Valores fortemente igualitários, anti-hierárquicos e pluralistas, construção social da realidade, diversidade, subjetivismo, multiculturalismo, sistemas de valores relativistas; esta visão do mundo é designada por Wilber de ‘pluralismo relativista’. No nível pós-convencional, o igualitarismo é complementado com graus naturais de hierarquia e de excelência. O conhecimento e a competência devem tomar o lugar do poder, do estatuto ou da sensibilidade grupal. As principais prioridades são a flexibilidade, a espontaneidade e a funcionalidade.

A grande dificuldade da passagem do nível de relacionamento convencional para o pós-convencional é a questão da autoridade. No paradigma convencional, a autoridade é eleita e, no paradigma pós-convencional, ela é natural e técnica (embora reconhecida por todos). A dificuldade em distinguir as hierarquias sociais impostas das hierarquias naturais (ou holarquias, como chama Wilber) é que nos impede de viver em um paradigma pós-convencional - o que equivaleria dizer em nosso exemplo: nossa incapacidade de dar a chave do banheiro à pessoa mais idosa para que coordene a entrada.

“Deixe a sociedade ficar com está. Não brigue com ela” (2006d, 27). Osho nos conclama a ser um transformador silencioso e não um revolucionário. No revolucionário, há uma dissociação entre o ‘de’ e o ‘para’. No rebelde, a destruição e a criatividade andam juntas. Pode-se definir rebeldia com desobediência à autoridade constituída, às hierarquias sociais impostas, como também se pode defini-la como a não observância de regras negociadas e consensualmente aceitas. A primeira é uma rebeldia vertical que gera o desejo de uma liberdade ‘de’ quem nos obriga a fazer coisas que não desejamos. A segunda é uma rebeldia ‘para’ com os outros e com nós mesmos, horizontal, e nos coloca a questão da disciplina.

Se alguém estabelecer uma diferença entre a rebeldia contra as instituições sociais (na verdade, contra o condicionamento do sistema de crenças) e a rebeldia como indisciplina pessoal, indolência ou incapacidade de alcançar os próprios objetivos estará demarcando uma fronteira clara entre Osho e Sebastião Mota.

Para Osho, rebeldia é sinônimo de inteligência. “É preciso aprender a dizer não de forma definitiva, pois somente assim se atinge o ponto a partir do qual se pode dizer sim” (2004, 152). E Disciplina “significa apenas uma metodologia para nos tornamos mais centrados, mais alertas, mais receptivos [...]” (2004, 58) A palavra ‘disciplina’ vem da palavra ‘discípulo’ (1999, 129) e significa ‘capacidade de aprender’ (2005, 167-168). Para Osho, a obediência castra o desenvolvimento da criatividade (2004, p. 133) e alivia o fardo da responsabilidade, mantendo as pessoas na inconsciência. As máquinas obedecem sem consciência. “Tudo que é feito em nome do dever (e não da alegria) é feio” (2004, 55). A noção de ‘responsabilidade’, como vimos, é redefinida como a “capacidade de responder”, sendo destituída de qualquer conteúdo próximo às idéias de dever e obrigação.

É claro que Osho e Sebastião Mota viveram em contextos diferentes e falaram para públicos diferentes. Osho falava para europeus ricos e estressados, na sua maioria em um estágio pós-convencional de desenvolvimento; o padrinho Sebastião falava para ayahuasqueiros e seringueiros pobres do Acre, na sua maioria em um estágio pré-convencional de desenvolvimento. Mas, mesmo levando em conta essas diferenças de contexto, é possível perceber que o discurso de Osho confunde rebeldia social com indisciplina espiritual. Para Osho, os homens verdadeiros não têm ideais (2006b, 39); viver na incerteza é viver na simplicidade; é viver sem ideais (2007b, 141-142; 2004, 176). Mas, às vezes, surge uma certa confusão entre simplicidade e simplificação. A simplicidade é profunda; a simplificação, superficial. A ênfase excessiva no presente (e na desconsideração das realidades históricas e sociais) leva a um não aprofundamento das condições que estruturam a pessoa no mundo. E a aceitação radical de si (desprovida de responsabilidade social com os outros e adicionada à falta de empenho de aperfeiçoamento ético) leva à acomodação de alguns de seus leitores ainda em estágio pré-convencional.

Mas, mesmo com todas essas pequenas objeções, impossível não reconhecer a importância das idéias de Osho para o pensamento esotérico contemporâneo, a tal ponto, que, várias de suas idéias e de seus temas ainda se confundem, inconscientemente, com a forma de pensar das gerações espiritualistas atuais.

Aliás, hoje me sinto, guardadas as devidas proporções, em uma situação semelhante à descrita por Carlos Castaneda, quando teve sua percepção em dividida em duas por Don Juan e Don Genaro: enquanto um chamava sua primeira atenção para o horizontal-tonal, o mundo material; o outro fixava sua segunda atenção do nagual-vertical, a eternidade. No meu caso, no entanto, a situação é imaginária e a polaridade entre o Padrinho Sebastião e Osho, vivida no sonho que contei no início deste texto, me influenciou durante muitos anos sem que eu o percebesse conscientemente.

Fica, então, aqui essa homenagem crítica deste aplicado, digamos assim, anti-discípulo do Osho. Como prova de gratidão e de reconhecimento pela sua inestimável contribuição ao nosso crescimento e, sobretudo, à nossa liberdade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

OSHO Coragem – o prazer de viver perigosamente. Tradução Denise de C. Rocha Delela. Coleção: Dicas para uma nova maneira de viver. São Paulo: Cultrix, 1999a.
_____ Criatividade – liberando sua força interior. Tradução Milton Chaves de Almeida. Coleção: Dicas para uma nova maneira de viver. São Paulo: Cultrix, 1999b.
_____Autobiografia de um místico espiritualmente incorreto. Tradução Melania Scoss. São Paulo: Cultrix, 2000.
_____ Consciência – a chave para viver em equilíbrio. Tradução Denise de C. Rocha Delela. Coleção: Dicas para uma nova maneira de viver. São Paulo: Cultrix, 2001.
____ Osho de A a Z – um dicionário espiritual do Aqui e Agora. Tradução de Carlos Irineu Costa. Rio de Janeiro: Editora Sextante, 2004.
____ Maturidade – a responsabilidade de ser você mesmo. Tradução Alipio Correia de Franca Neto. Coleção: Dicas para uma nova maneira de viver. São Paulo: Cultrix, 2005.
_____ Alegria – a felicidade que vem de dentro. Tradução Leonardo Freire. Coleção: Dicas para uma nova maneira de viver. São Paulo: Cultrix, 2006a.
_____ Intimidade – como confiar em si mesmo e nos outros. Tradução Henrique Amat Rego Monteiro. Coleção: Dicas para uma nova maneira de viver. São Paulo: Cultrix, 2006b.
_____ Intuição – o saber além da lógica. Tradução Henrique Amat Rego Monteiro. Coleção: Dicas para uma nova maneira de viver. São Paulo: Cultrix, 2006c.
_____ Liberdade – a coragem de ser você mesmo. Tradução Denise de C. Rocha Delela. Dicas para uma nova maneira de viver. São Paulo: Cultrix, 2006d.
_____ Compaixão – o florescimento supremo do amor. Tradução Denise de C. Rocha Delela. Coleção: Dicas para uma nova maneira de viver. São Paulo: Cultrix, 2007a.
_____ Inteligência – a resposta criativa ao agora. Tradução Leonardo Freire. Coleção: Dicas para uma nova maneira de viver. São Paulo: Cultrix, 2007b.
OUSPENSKY, P. D. Fragmentos de um ensinamento desconhecido - Em busca do milagroso. Coleção Ganesha. São Paulo: Pensamento, 1980.
______Psicologia da Evolução Possível ao Homem. São Paulo: Pensamento, 1986.


[1]Homenagem também ao amigo Deepech (Stefan Lauschner).
[2]Há uma tendência geral de opor a peia (o castigo) à miração (o primor) dando uma idéia de adestramento moral do ego, uma lavagem cerebral em que os hinos são auto-hipnóticos e o daime se torna um facilitador químico. Sobre um enfoque mais complexo do tema, há um excelente trabalho acadêmico de Leandro Okamoto da Silva, publicado no site do NEIP: Marachimbé veio foi para apurar. Estudo sobre o castigo simbólico, ou peia, no culto do Santo Daime. http://www.neip.info/downloads/t_lea2.pdf
[3]http://www.osho.com/
[4]http://www.oshobrasil.com.br/livros.htm
[5]“O amor é um tipo sutil de servidão” (2005, 87).
[6]Osho resume a teoria biográfica dos ciclos de sete anos proposta pela Antroposofia (2005, 41).
[7]Osho tem uma posição semelhante sobre a riqueza “É preciso renunciar a mentalidade dirigida pelo dinheiro e não ao dinheiro em si” (2004, 57).

A lenda do rato saltador


Era uma vez um ratinho. Ele e seus amigos gostavam de passar as noites ouvindo os velhos ratos contando suas histórias. E a história favorita do ratinho era, de longe, a história das terras distantes, para além das altas montanhas. Tanto é que ele gostava dessa história que todas as noites, sonhava em ir viver nas terras distantes.

Um dia, o ratinho disse para si mesmo:

- Eu simplesmente preciso ver essas terras distantes!

Naquela mesma manhã, partiu em sua jornada. Ele viajou quase o dia inteiro, parando apenas para descansar e comer. Até que chegou a um grande rio, largo e profundo, impossível de ser cruzado pelo pequeno ratinho.

- Oh, como eu nunca atravessar este rio? - disse para si mesmo.

De trás dele, ele ouviu uma voz grave.

- Você não sabe nadar?

Ele olhou e viu um sapo tomando sol deitado em uma Vitória-Régia.

- Nadar? O que é isso? - perguntou o rato.

O sapo pulou na água e começou a bater as pernas.

- Isto é a natação, idiota - disse o sapo.

- Agora, me diz por que você quer para atravessar o rio afinal?

- Eu tenho o sonho de viver nas terras distantes por muitas noites. Eu simplesmente preciso ver isso! - explicou o rato.

- Meu nome é Kambô - disse o sapo - e eu vou ajudá-lo. Vou te dar dois dons mágicos. O primeiro te fará capaz de dividir seus sentidos com os outros e o segundo passará minha capacidade de pular para você. Se agache e pule o mais longe que puder.

O rato pulou e sentiu uma sensação estranha nas pernas. Elas pareciam muito mais fortes do que antes e percebeu que ele tinha saltado mais longe do que ele já tinha conseguido antes.

- Obrigado, amigo! Que bom esse remédio que você deu para mim.

- Você vai experimentar muitas dificuldades em sua viagem, mas se você mantiver a esperança viva dentro de você, você vai chegar às terras distantes - disse Kambô - e eu dar-lhe um novo nome. Você agora será chamado de rato saltador.

E acenou, pulando de volta para dentro da suas plantas. Enquanto o rato saltador pulou para o outro lado do rio e seguiu viagem. Em sua mente, ele ainda podia ouvir palavras mágicas de Kambô: "Manter viva a esperança dentro de você ..." O rato saltador continuou andando até o anoitecer, e, em seguida, cavou um buraco e foi dormir.

No dia seguinte, o rato chegou a uma pradaria. Ele estava caminhando quando viu uma pedra enorme pela frente. Ao se aproximar, ele viu que não era uma pedra, mas um grande búfalo deitado no chão.

- Meu amigo - disse o rato - por que você está deitado ai como se estivesse morrendo?

- Estou morrendo - disse o búfalo - eu bebi de um poço com água envenenada e eu perdi minha visão, não posso encontrar as águas frias a beber ou a erva-doce para comer. Estou aqui deitado esperando o fim.

- Eu sou rato saltador. Meu amigo Kambô me deu alguns poderes da medicina. Eu não sou tão forte como ele, mas vou ajudá-lo. Eu te nomeio “Os olhos de um rato”, passando par a você minha visão.

Mal o rato disse isso quando o búfalo levantou, olhou em volta e piscou os olhos de espanto. Ele bufou com a felicidade. Rato saltador ouviu isso, mas não podia mais vê-lo, pois ele tinha doado a vista e ficado cego.

- Como posso agradecer a você, meu pequeno amigo? - disse ‘Olhos de um rato’ - Este é um dom maravilhoso que você me deu. Em retribuição, vou levá-lo à beira da pradaria.

E o rato saltador subiu no búfalo e, desta forma, chegou à beira da pradaria.

Quando eles chegaram, ‘Olhos de um rato’ disse:

- Eu sou uma criatura das pradarias, então eu devo parar por aqui. Meu amigo, como você vai fazer sobre as montanhas, se você não pode ver?"

- Não sei, mas tenho uma esperança viva dentro de mim.

Rato saltador deu adeus ao amigo ‘Olhos de um rato’ e, mesmo sem enxergar, tomou o caminho para as montanhas. E quando a noite caiu, ele sentiu frio e cavou um buraco para dormir.

Acordou com o sol já alto e saiu tateando o longo caminho até as montanhas, cheirando e, ocasionalmente, mordiscando gramíneas de pequeno porte. Repente, ele bateu em algo. Sentiu pele sob as patas pequenas. Ele cheirou e percebeu que tinha tropeçado em cima de um lobo.

- Olá! Estou o rato saltador. Quem é você?

- Eu sou apenas um lobo.

- Por que você está sentado lá no meio do caminho? - perguntou o rato.

- Eu era uma vez uma criatura muito orgulho, com muito bom senso do olfato - suspirou o lobo - Porque fui muito orgulhoso, tive esse dom tirado. Eu aprendi a ser humilde, mas agora não posso cheiro para encontrar comida para comer. Eu certamente vou morrer.

O rato ficou triste com a história do lobo.

- Meu amigo Kambô me deu alguns poderes da medicina. Eu não sou tão forte como ele, mas vou ajudá-lo. Eu te nomeio “Nariz de um rato”, passando par a você meu olfato. E o lobo farejou o ar da montanha e uivou de alegria, dançando em círculo.

- Eu posso cheirar as árvores e as flores de novo!

E o rato saltador ouviu alegria do lobo, mas, infelizmente, não podia mais cheirar as árvores e flores, tinha dado o seu sentido ao amigo.

- Este é verdadeiramente um dom maravilhoso que você me deu - disse o ‘Nariz de um rato’ - Deixe-me retribuir. Suba em mim e te levo para as montanhas perto das terras distantes.

E o lobo levou o rato em suas costas até as altas montanhas, perto das terras distantes. Quando chegaram, lobo ajoelhou-se com cuidado para que o amigo pudesse descer e disse:

- Pequeno amigo, eu sou uma criatura das montanhas, por isso não posso ir em frente. Mas você ... como você vai seguir até as terras distantes, não sendo capaz de cheirar ou ver?

- Não sei, mas a esperança está viva dentro de mim.

Os dois disseram adeus, e nariz de um rato trote de volta para as montanhas.

- Estou aqui nas terras distantes - disse o rato - ouço o som das folhas das árvores, o sol aquece meu corpo, também sinto o vento ... Mas eu nunca vou ser como eu era. O que devo fazer?

E começou a chorar.

- Rato Saltador - ouviu uma voz grave.

- Kambô, é ... é você?"

- Sim, meu amigo, sou eu Kambô, o sapo mágico. Você tem sofrido muito em sua longa jornada e experimentou muitas dificuldades. Mas foi o seu coração generoso, sua generosidade, que ajudou a trazê-lo aqui. Você não tem nada a temer, meu pequeno amigo.

Em seguida, Kambô levou o rato à beira de um precipício e gritou:

- Pule, rato saltador, pule!

E o rato saltador pulou e sentiu que seu corpo se transformava. Suas patas esticaram e se tornaram poderosas. E logo ele estava sentindo o vento fluindo sobre ele e sob ele. Ele olhou e podia ver as montanhas lá embaixo. Ele respirou e sentiu o cheiro dos pinheiros e da terra.

E, de lá de baixo, ele ouviu o sapo:

- Eu Kambô, o sapo mágico, te dou um novo nome, rato saltador. Você agora será chamado de Águia Dourada ... e você vai viver nas terras distantes, voando livre para sempre.

Kambô, O Espírito do Pajé


“O kambô circula no coração. Nosso pajé disse que quando tomamos kambô, ele faz o coração se movimentar da maneira correta, fazendo com que as coisas fluam, trazendo coisas boas para a pessoa. É como se houvesse uma nuvem sobre a pessoa, impedindo as coisas boas de chegar, então, quando ela toma o kambô, vem uma ‘luz verde’ que abre seus caminhos, facilitando as coisas" [1]

Conta uma lenda Kaxinawá que os índios da aldeia estavam muito doentes e de tudo havia feito o Pajé Kampu para curá-los. Todas as ervas medicinais que conhecia foram usadas, mas nenhuma livrara seu povo da agonia. Kampu então se entrou na floresta e, sobre o efeito da Ayahuasca, recebeu a visita do grande Deus. Este trazia nas mãos uma rã, da qual tirou uma secreção esbranquiçada, cuja aplicação nos enfermos ensinou como deveria ser feita. Voltando à tribo e seguindo as orientações que havia recebido, o Pajé Kampu pode curar seus irmãos índios. Depois, com sua morte, o espírito do Kampu passou a habitar no sapo e os índios passaram a utilizar a sua secreção para se manter ativos e saudáveis[2].

A rã verde - Phyllomedusa bicolor, apelidada de sapo Kambô [3], é a maior espécie do gênero da família Hylidae, encontrada no sul da Amazônia e em todo o território do Acre, podendo ser encontrado também em quase todos os países amazônicos. Por extensão, também se chama de Kambô a resina retirada desse sapo e à sua aplicação medicinal: “Vamos tomar Kambô”.

Esta resina contém substâncias peptídeas analgésicas (a dermorfina[4] e a deltorfina[5]) e de fortalecimento do sistema imunológico que provocam a destruição de microorganismos patogênicos. As substâncias da secreção do sapo também possuem propriedades antibióticas, de fortalecimento do sistema imunológico através da produção de anticorpos pelo organismo contra o veneno, e ainda revelaram grande poder no tratamento do mal de Parkinson, AIDS, câncer, depressão e outras doenças. A Deltorfina e Dermorfina hoje estão sendo produzidos de forma sintética pelos laboratórios farmacêuticos. [6]

Há também, devido ao seu efeito purgante, um evidente processo de desintoxicação do fígado (geralmente vomita-se bílis amarga), do intestino (através de evacuações) e do todo sistema digestivo. Os katukina usam-no também como antídoto em caso de picada de cobra, medicamento para males diversos, fortificante e purgatório.

Mas, para os índios, a principal causa de tomar Kambô é combater a ‘panema’. A panema é a tristeza, a falta de sorte, a irritação: “o baixo astral” – como alguém certa vez bem traduziu. A pessoa está com “panema” quando nada dá certo e nada está bom. A finalidade básica do kambo é "tirar a panema" para atrair a caça e as mulheres. E esse, por mais difícil que seja aceitar para o pensamento ocidental, é o principal efeito do Kambô: ele estabelece um ‘choque de gestão’ espiritual na vida das pessoas, “um realinhamento dos chackras”, um marco de reorganização orgânica e psicológica a partir do qual a pessoa muda de atitude e altera seus padrões futuros de saúde.

Das 53 etnias indígenas brasileiras de lá que usavam a vacina, hoje existem apenas 13. Três delas grandes, com reservas na região do Alto Juruá: os Kaxinawás, os Ashaninkas e os Katukinas. Existem variações nos rituais e nomes dados ao sapo verde. Os Katukinas, no entanto, tem maior afinidade com o Kambô, tomando seu veneno mais vezes que as outras etnias e têm sua identidade marcada diretamente por essa prática[7].

A terapeuta floral e acupunturista Sonia Maria Valença Menezes[8] é a grande responsável pela divulgação dos procedimentos Katukina com o Kambô, mantendo um escritório em São Paulo em conjunto com a tribo – para ministrar aplicações – e promovendo viagens terapêuticas para a reserva no Alto Juruá.

Há alguns anos surgiu também um uso caboclo do Kambô. Seringueiros acreanos aprenderam estes conhecimentos com os índios e começaram a aplicar kambô em brancos, nas cidades de Cruzeiro do Sul e Rio Branco. O principal deles foi Francisco Gomes (ou Shiban) de Cruzeiro do Sul, que conviveu anos com os índios da região e aprendeu a arte do Kambô. Genildo Gomes, filho de Francisco Gomes, continuou seu trabalho de difusão do Kambô e criou, em 2002, a Associação Juruaense de Recursos Extrativistas e Medicina Alternativa, AJUREMA, principal centro de irradiação do Kambô.

Embora difícil de achar (confunde-se com as folhas), os sapos Kambôs podem ser encontrados nas proximidades dos igarapés, quando cantam anunciando chuva. Os índios geralmente os ‘colhem’ ao amanhecer, também cantando. Em algumas tradições, apenas o pajé ‘colhe’ o sapo; em outras todos os que ouvem seu chamado à noite. Os sapos são extremamente venenosos e não reagem à captura. Nem se mexem, como se não tivessem predadores. Aparentemente, são intragáveis - as cobras, espécimes quase sempre cegos, que se orientam pelo calor das presas, os cospem, desesperadas, quando os abocanham. A técnica de extração do veneno é tão antiga quanto simples. Amarra-se o bicho pelos pés, em forma de "X" e cospe-se nele três a quatro vezes, para irritá-lo. Liberada a secreção, basta raspá-la com um pedaço de pau. A secreção (parece espuma) cristaliza-se rapidamente, podendo ser utilizada a qualquer hora.

Não há segredo na aplicação do kambô: com um pedaço de cipó em brasa, queima-se p braço várias vezes, abrindo pequenos furos na epiderme (chamados de pontos). A aplicação da resina diluída em água é realizada sobre a pele e transportada rapidamente para todo o corpo pelos vasos linfáticos. A quantidade de pontos (geralmente em número impar) pelos quais o veneno será introduzido em seguida (com uma espátula de madeira) depende da estatura física, do número de vezes que já tenha utilizado o kambô, do motivo da aplicação e da avaliação do aplicador, baseada nos seus conhecimentos.

Há diferentes filosofias entre os aplicadores, principalmente entre os katukinas e os caboclos que o utilizam nas cidades. Para os caboclos, há contra-indicação no caso de mulheres grávidas, lactantes e no ciclo menstrual, já que pode causar hemorragias, devido à dilatação dos vasos sangüíneos, assim como em crianças menores de dez anos e os idosos com problemas cardíacos e de pressão alta. Para os Katukinas, não há essas restrições e as crianças começam a tomar kambô a partir dos dois anos, quando acaba o período de amamentação. Os Katukinas tomam até 100 pontos em uma única aplicação e se aplicam em diferentes épocas do ano, durante toda a vida.

No uso caboclo, o tratamento básico é de três doses, em intervalos de tempo que variam segundo o nível de desenvolvimento da pessoa com o kambô. O primeiro tratamento é de três meses, são três doses crescentes (por exemplo: 5, 7 e 9 pontos) de 28 em 28 dias, de preferência das luas nova e minguante. Em seguida, após pelos menos seis meses da última aplicação do primeiro tratamento, pode-se fazer um segundo, agora de 15 em 15 dias, com doses crescentes menores (por exemplo: 3, 5 e 7). Também se fazem tratamentos de 7 dias (todas as luas menos a cheia) e de 3 dias seguidos, combinadas com mudanças alimentares (dieta sem sólidos e sem sal) e o uso da ayahuasca. O importante é que o intervalo máximo entre duas aplicações é uma lua, 28 dias. “Se passa mais tempo que isso entre uma dose e outra, o kambô vai ter que trabalhar tudo que havia trabalhado antes novamente”.[9]

De acordo com Davi de Paula Nunes, filho de seringueiro e um dos principais terapeutas amazônicos, não há qualquer obrigatoriedade em tomar em três vezes consecutivas e alerta: “O Kambô é uma vacina e como tal não deve ser usada em baixa dosagem de forma seguida para que o corpo não se acostume às substâncias e perca seu efeito”. Os homens geralmente aplicam nos braços ou no peito. Se for mulher, a aplicação dos pontos é na perna. No caso, dos Katukinas, na parte de frente da perna. Os caboclos costumam, por motivos estéticos, aplicar na batata da perna. Para os índios, a marca dos pontos na pele é motivo de orgulho e não deve ser escondida ou colocada na parte detrás do corpo. Outra diferença interessante: tanto os Katukinas como os caboclos pedem que se faça uma dieta de sólidos e de sal de pelo menos 12 horas. Mas, enquanto os índios ingerem uma grande quantidade (3 a 5 litros) de caiçuma de milho durante a noite, antes de tomar kambô; os caboclos prescrevem apenas 2 litros de água pura poucos minutos antes da aplicação.

A reação da vacina dura cinco minutos. Nesse tempo, o coração dispara, o sangue corre acelerado nas veias, a pressão cai ou sobe muito, a pessoa fica tonta ou nauseada. Algumas pessoas vêem tudo branco, como se o mundo estivesse coberto por uma névoa difusa, ou caem no chão, sem forças. Há também relatos de sensação de correntes elétricas epidérmicas formigando pelo corpo. Muitos usuários incham, ficando com a aparência semelhante a um sapo. Então, de repente, o organismo reage ao mal-estar e põe tudo para fora. Vômito forte e diarréia são as respostas mais comuns. Só então, aos poucos, os sentidos voltam ao normal. A pessoa se sente leve, limpa, disposta, de bem com a vida. Depois de 30 minutos da aplicação, a pessoa já está apta para suas atividades normais.

Minha experiência pessoal indica que a água desempenha um papel fundamental em todo processo, não apenas em sua ingestão pelo paciente, mas, sobretudo, na diluição do veneno pelo aplicador. Ao que parece um número maior de pontos com pequenas quantidades bem diluídas (perspectiva homeopática) faz mais efeito (e tem menos riscos de envenenamento) que aplicações com poucos pontos com quantidades maiores de secreção. A água é ainda prescrita na forma de um banho posterior a diminuição dos efeitos, não somente como uma forma de limpar o corpo dos excessos provados pelo mal-estar (suor, vómitos, feses), mas também, no sentido simbólico, como um complemento do processo da cura do Kambô.

As pesquisadoras Edilene Coffaci de Lima (UFPR) e Beatriz Caiuby Labate (UNICAMP) estudam a difusão do Kambô nos centros urbanos, analisando, sobretudo, o discurso que esses diversos aplicadores (índios, ex-seringueiros, terapeutas holísticos e médicos) têm elaborado sobre o uso da secreção. Para elas, as “falas são pendulares, ora inclinam-se para uma explicação espiritualista, ora para uma interpretação cientificista ou médica das doenças”. Passa-se da panacéia universal (da cura de todos os males) ao placebo (a cura por indução psicológica). E muitas vezes essas oscilações escondem algumas simplificações. A palavra ‘panema’, por exemplo, é re-interpretada como ‘depressão’ pelos terapeutas urbanos. Ou ainda como uma energia negativa capaz de gerar um amplo espectro de doenças. Por outro lado, as pesquisadoras entendem que a produção e comercialização das substâncias retiram da aplicação do Kambo a parte mais impactante de seu efeito. Que o remédio da ciência é indissociável do remédio da alma (LIMA; LABATE, 2007).

Pesquisas científicas internacionais, nas áreas química e farmacêutica, são realizadas sobre as propriedades do Kambô desde a década de 80. Pesquisadores italianos, franceses e israelitas Já entraram com pedidos de patente sobre a dermorfina. Mais recente, a Universidade de Kentucky (EUA) está pesquisando (e patenteando) a deltorfina em colaboração com a empresa farmacêutica Zymogenetics. Diversos laboratórios internacionais já estão interessados no veneno do kambô para desenvolver um medicamento que pode levar à cura do câncer[10].

Em 2003, alguns katukina de Cruzeiro do Sul procuraram o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) para denunciar o mau uso do kambô. Pediram providências contra o pirateamento do kambô por urbanos; estavam preocupados, também, com seus direitos intelectuais no caso de remédios derivados da substância. Vale lembrar que uma patente pode demorar muitos anos até chegar a eventualmente virar um remédio.

Em 29 de abril de 2004, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), proibiu qualquer propaganda das virtudes terapêuticas e medicinais do kambô[11]. A ministra Marina Silva decidiu tratar esse caso como um caso-modelo. Para isso, designou um grupo de trabalho do Ministério do Meio Ambiente para uma ação conjunta. O grupo, que vem se reunindo desde 2004, congrega representantes de etnias indígenas, antropólogos, indigenistas, herpetólogos (biólogos que estudam sapo), biólogos moleculares e médicos.

Mas o Kambô é, como vimos, um objeto complexo e escorregadio, irredutível aos diferentes discursos científicos (clínico alternativo, fármaco-químico, antropológico, etc) e dificilmente será regulamentado ou reduzido sem antes uma redefinição das perspectivas com as quais ele é descrito até o momento. Quando se fala de Kambô e de sua definição, alguns se preocupam com o manejo florestal do sapo, outros com a patente das substâncias químicas, outros ainda com as possibilidades terapêuticas da prática de sua aplicação, mas, para os índios, a explicação é mais simples: o Kambô é o espírito do Pajé Kampu cumprindo sua missão de defender a saúde dos defensores das florestas.[12]


LIMA &; LABATE, Edilene Coffaci de, Beatriz Caiuby. “Remédio da Ciência” e “Remédio da Alma”: os usos da secreção do kambô (Phyllomedusa bicolor) nas cidades. Campos - Revista de Antropologia Social v. 8, n. 1 (2007). http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/campos/article/view/9553/6626>

NOTAS

[1] Sonia Maria Valença Menezes é terapeuta e acupunturista.

[2] LABATE, Bia. O pajé que virou sapo e depois promessa de remédio patenteado, Comunidade Virtual de Antropologia, n 27, São Paulo, 2005.

[3] Existem vários nomes: kampu, wapapatsi, Kembo.

[4] A dermorfina é um opiácio que atua como analgésico 300 vezes mais potente que a morfina. Além do sapo phyllomedusa bicolor, essa substância só é encontrada na urina de crianças autistas.

[5] Deltorfina pode ser aplicada no tratamento da Ischemia - um tipo de falta de circulação sanguínea e falta de oxigênio, que pode causar derrames.

[6]CAMURÇA, Denizar Missawa. Estudo sobre a atividade edematogênica, pró-inflamatória, antibacteriana e perfil eletroforético da secreção cutânea de Phyllomedusa bicolor (Boddaert, 1772) (Anura, Hylidae, Phyllomedusinae). Trabalho de Conclusão de Curso de Bacharelado em Ciências Biológicas. Universidade Guarulhos, 2006. Neste trabalho, foram realizadas análises do perfil eletroforético (SDS-PAGE) das proteínas constituintes da secreção da Phyllomedusa bicolor coletada em 2004 e 2006 e da atividade antibacteriana das amostras da secreção. Foram feitas análises in vivo para avaliar o efeito local da inoculação como: formação de edema e presença de infiltrado inflamatório; e alterações sistêmicas como: contagem total e diferencial de leucócitos sangüíneos. A atividade antibacteriana da secreção foi constatada, entretanto não superou a atividade dos antibióticos utilizados no experimento.

[7]Para estudar os Katukinas, v. verbete sobre os katukina, por Lima, Instituto Socioambiental:

[8]Palestra apresentada 16/03/2005 no I Encontro Brasileiro de Xamanismo.

[9] Ni-í da Associação Katukina do Campinas (AKAC), no I Encontro de Brasileiro Xamanismo.

[10]Para acompanhar a situação da patente do kambô, bem como a das patentes da ayahuasca, da copaíba, da andiroba e de outras plantas amazônicas piratiadas para o exterior, veja o site da Amazonlink, ONG que ficou conhecida mundialmente pela campanha "o cupuaçu é nosso", http://www.amazonlink.org/biopirataria/index.htm

[11] Resolução da Anvisa http://www.abpvs.com.br/resolucoes/resolucao08.htm

[12] Outros aportes sobre a Phyllomedusa bicolor, http://www.erowid.org/archive/sonoran_desert_toad/bicolor.htm

lenda Kashinawá da Ayahuasca


Na mitologia dos índios Kashinawá, no Alto do Bode, subindo o Rio Jordão, no Acre, a origem do cipó Runipan (Ayawaska) tem um destaque especial, sua narrativa é rica em detalhes, onde os animais se transformam em gente e vice-versa.

Yo buié Nawa Tarani, um antepassado Kashinawá, foi à mata um dia procurar genipapo para pintar o corpo de seu filho recém-nascido. Na beira do lago, ele encontrou um genipapeiro coberto de frutas. Subiu na árvore carregada e começou a sacudir para fazer cair as frutas. De repente, ele ouviu um barulho debaixo dele. Viu então uma anta a roer as frutas do chão. Divertindo-se, ele ficou quietinho em cima da árvore, só olhando.

Ora, tudo começou a ficar estranho quando a anta, após ter roído algumas frutas, começou a jogar elas no meio do lago, gritando:

- Toma aqui esses genipapos do meu roçado!

Após alguns minutos, uma jovem saiu do fundo da água, carregando um tibungo cheio de caiçuma de banana. A anta estava escondida atrás do tronco de uma árvore. A jovem mulher se aproximou, tomou pé na terra e chamou:

- Amigo, onde está você? Aonde se escondeu?
Saindo do seu esconderijo, a anta disse:

- Tô aqui! E então bebeu da bebida que a mulher ofereceu.
Em seguida, a linda mulher se entregou à anta e eles se amaram. Do seu esconderijo, Yo buié Nawa Tarani não podia acreditar no que via.

A mulher voltou para o fundo do lago e a anta para a mata. Yo Buié Tarani desceu da árvore, juntou ainda algumas frutas caídas e voltou para sua aldeia. Chegando em casa, deu as frutas para sua mulher, sem contar nada. Não quis comer a comida oferecida por ela. Em seguida, deitou em sua rede, onde ficou por muito tempo com os olhos abertos e perdidos. Ele não podia esquecer o que havia visto no lago. Como se estivesse enfeitiçado. Sua mulher ficou preocupada, mas ele disse estar um pouco doente.

No dia seguinte bem cedo, Yo Buié juntou suas armas como se fosse caçar, e saiu na direção do lago. Passando debaixo do genipapeiro, ele juntou algumas frutas, roeu elas com os dentes e jogou no lago dizendo:

- Toma aqui os genipapos do meu roçado!

Depois correu e se escondeu atrás de uma árvore. E aconteceu que a linda mulher apareceu, como na véspera, com seu tibungo de caiçuma. Saiu for a da água, colocou o tibungo na terra e chamou:

- Amigo, onde está você? Aonde se esconde?

- Estou aqui, respondeu Yo Buié, e jogou-se sobre ela, tentando pegar à força. Mas ela se defendeu e eles rolaram pela terra até derrubarem a bebida.

De repente, a mulher se transformou numa cobra e enrolou-se no corpo dele. Mas ele não se deixou pegar. Ela tentou ainda escapar de Yo Buié, transformando-se num cipó espinhoso. Mas ele não a soltava de jeito nenhum. Então ela se transformou em aranha, serpente, fogo, mas sem nenhum resultado. Yo Buié não largava dela. E na confusão dessas mudanças, a cabeça da mulher reapareceu e perguntou:

- Quem é você? E o que deseja de mim?

Mas ele não respondeu, pois estava segurando a presa com os dentes.

A mulher então voltou a sua forma humana até os peitos, mas continuou sem ter a resposta de Yo Buié.

Resolveu então tomar forma inteiramente humana, da cabeça aos pés.

- Bem, disse. Agora diga-me o que quer de mim. Por que não me solta para conversarmos feito gente?
Yo Buié explicou então que tinha visto ela e a anta fazendo amor e que a partir daí passou a desejar ela para mulher.

- Por que pegou-me pela força em vez de falar claro comigo? Olhe, você me fez derramar toda a caiçuma.

Então ela pegou o que restava dentro do tibungo e fez ele beber, enquanto carinhosamente livrava-se dele. Depois eles repousaram um pouco e acariciando Yo, a mulher perguntou:

- Quem é você? Tem mulher e filhos?

- Não, mentiu ele. Não tenho família.

- Então, por que você não fica comigo? Eu serei sua mulher e teremos muitos filhos. Levarei você comigo para minha casa.

Ela colheu em seguida todos os tipos de ervas e fez delas um suco. Depois derramou nos olhos, orelhas e em todas as juntas do corpo de Yo buié Nawa Tarani.

Então a mulher disse: Segure nos meus cabelos!

E os dois mergulharam no lago. Chegando lá no fundo, encontraram uma roça de bananeiras e uma casa onde a mulher vivia com seus parentes. Eram as cobras e serpentes, habitantes do lago.

Porém, antes de entrar na aldeia, a mulher disse a Yo Buié:

- Esconda-se aqui e espere-me, que eu vou prevenir meus parentes de sua chegada e explicar a eles que você é meu marido. Não tenho medo que voltarei logo.

O homem ficou só, ouvindo os barulhos estranhos e assustadores que saíam das águas do lago. Eram as cobras gigantes agitando-se ao redor da mulher. Rapidamente ela apareceu, tomou Yo Buié pela mão e apresentou-o como seu marido na grande casa dos habitantes do lago. E deste dia em diante Yo Buié e a mulher-cobra passaram a viver juntos como marido e mulher.

Algum tempo depois, as cobras e serpentes do lago resolveram tomar cipó. Yo Buié perguntou a sua mulher se ela também iria tomar cipó.

- É claro, disse ela.

- E eu, poderei também?

- Não, por que você terá muito medo. Você verá cobras e serpentes e pensará que elas querem te devorar. Então você gritará como um louco. Não se meta com isso. São nossos costumes e não os seus.

Mas Yo Buié insistiu tanto que terminaram por aceitar ele no círculo de cobras para tomar o cipó.

Logo nas primeiras mirações, Yo Buié se pôs a gritar “Socorro, as cobras querem me engolir!”

Na mesma hora sua mulher se transformou em cobra, enrolou-se carinhosamente nele, aproximou a cabeça de sua orelha direita e cantou docemente. A sua sogra aproximou-se e fez o mesmo, cantando em sua orelha esquerda. Enfim, seu sogro se enrolou nos três e, balançando seu rosto na frente de Yo Buié, acompanhou também a canção.

Um dia quando eles repousavam em suas redes, as frutas do genipapo roídas começaram a cair dentro do lago e a anta estava de volta.

Como a jovem mulher não respondeu a seus apelos, a anta entrou na água, mergulhou e permaneceu debaixo da água muito tempo, como aliás faz até hoje. Assim mergulhada, a anta chegou bem perto da roça. A sogra de Yo Buié foi então a seu encontro explicar que sua filha não era mais livre. Pediu para a anta parar de procurar sua filha, e a anta não insistiu mais.

A vida seguiu muito feliz debaixo das águas. Os esposos tiveram quatro filhos: dois meninos e duas meninas.
Neste mesmo lago vivia Iskin, um pequeno peixe encouraçado. Um dia, Iskin foi nadando até um igarapé formado pelas águas do lago e encontrou na margem a antiga mulher de Yo Buié. Esta acreditava estar viúva e não parava de reclamar a falta de seu marido. Com tantos filhos para criar, ela sobrevivia com a ajuda de seus parentes e amigos da aldeia.

Nesse dia ela tinha ido ao igarapé para tentar pegar algum peixe com as mãos, como fazem as mulheres. E enquanto pescava, chorava alto, contando detalhe por detalhe de sua desgraça. Nisso, ela quase pegou Iskin pela barbatana de couro que protégé sua cabeça.

Ah! Gritou Iskin, jogando seu corpo para trás. E se ele conseguiu escapar da mulher, foi com o preço de deixar sua barbatana presa entre os dedos dela.

Quando ela se afastou, Iskin voltou ao lago. Ele não estava nada satisfeito com o que tinha ouvido. Foi direto onde estava Yo Buié para jogar sua raiva sobre ele.

- O que é que você está fazendo aqui no lago? Gritou Iskin. Você nunca nos falou de sua outra família que está morrendo de fome na terra. Eu encontrei sua mulher. E foi ela quem arrancou minha barbatana! E talvez você nem saiba, mas ela e seus filhos da terra estão todos morrendo de fome, vivendo com a ajuda dos amigos. E você aqui, dando de comer às pessoas que não são nem da sua espécie.

Yo Buié então abaixou a cabeça e compreendeu todo o mal que tinha feito à sua família da terra.

Mas como farei para sair daqui? Suspirou ele. Se eu não posso nem mais viver ao ar livre?

- Eu vou te ajudar, disse Iskin. Mas prometa para mim que não dirá nada a ninguém.

- Prometo, disse Yobuié.

Então Iskin colheu muitas ervas e jogou suco nas orelhas, olhos e em todas as juntas do corpo de Yobuié. Depois, levou ele até as margens do lago. Em seguida, Iskin abandonou o lago e foi viver no leito de um rio.
Quando Yobuié chegou à sua aldeia, foi logo recebido com espanto de alegria por todos. ”Eu pensava que você estava morto há muito tempo!” Disse sua mulher.

- Não, eu não estava morto. Foram as cobras que me raptaram e me prenderam entre elas. Hoje é que consegui fugir. Esconda-me porque tenho medo delas virem me buscar.

Yobuié pendurou sua rede no ponto mais alto da casa e foi dormir meio assustado.Então as águas do lago começaram a se agitar e transbordaram em ondas que iam uma a uma inundando a aldeia.

As cobras apareceram na superfície para chamar Yobuié. Como ele não aparecia, sua família do lago terminou por voltar para o fundo das águas que por fim baixaram ao nível normal.

Era a família das cobras que desta vez estava triste e com dificuldades, sentindo a falta de Yobuié.

Depois de algum tempo escondido lá em cima em sua rede, Yobuié resolveu ir caçar para ajudar a sua família da terra, que sentia fome. Pegou seu arco e flecha e se arrumou para sair. Sua mulher, com medo, fez todo o esforço para ele desistir da idéia.

- Não tenha medo, dizia Yobuié.

E ele partiu para caçar. A primeira caça que avistou foi um pássaro de crista vermelha.

Atirou uma flecha, mas o pássaro voou. A flecha foi então cair na água a dois metros da margem do lago. E Yobuié resolveu ir buscar de qualquer maneira.Logo que pôs os pés na água, deu de cara com uma de suas filhas cobras ”Você aqui?”Mas sua filha não respondeu. E com muita raiva perguntou “por que você abandonou minha mãe, meus outros irmãos, meus avós e eu?”

E como seu pai, de cabeça baixa, não deu resposta, ela gritou:

- Já que é assim, nós vamos comer você todinho, papai.

E a filha cobra atacou o pé de Yobuié, mas como era muito pequena ainda, não conseguiu comer mais que o dedão. Seu pai ficou paralisado de dor. Ela então chamou seus irmãos para ajudar a comer seu pai.

E ferozmente eles tentaram comer Yobuié, mas não conseguiram nem mesmo engolir metade de seu pé com suas gargantas pequeninas de filhotes.

Chegou então sua mulher, que conseguiu, cheia de raiva, devorar Yobuié até a metade das pernas.

Então deu lugar à sua sogra, cobra gigante, que num só bote devorou seu genro até a cintura. Quando o sogro chegou, antes de começar a comer seu genro, fez as devidas reprovações ao gesto de Yobuié. Este não conseguiu responder e, envergonhado, ficou de cabeça baixa.

Foi então que chegaram seus parentes da terra, preocupados com sua demora. Como fazer para livrar Yobuié? Pensaram eles. Se atirarmos flechas nas cobras, acabaremos por matar ele também.

- Ah, já sei, disse um deles. Vamos esmagar o rabo da cobra, ela acabará por abandonar Yobuié.

E assim foi feito. A cobra ferida fugiu e os homens puderam ainda salvar Yobuié e levar ele para a aldeia. Mas daquele dia em diante, ele ficou paralítico dos ombros para baixo.

Pouco tempo depois, sentindo-se enfraquecido e próximo da morte, Yobuié reuniu em redor seus parentes e amigos.

- Enquanto eu estava debaixo das águas, as cobras me ensinaram a preparar e tomar esta bebida que é o cipó. Eu não quero morrer sem passar para vocês o meu segredo:

- Corram à mata e juntem todos os cipós que encontrarem.

E todos partiram, e quando voltaram, vinham carregados de muitas espécies de cipós.Yobuié examinou cada cipó, dizendo “Não é este!” Até que por fim ele gritou ”É esse aqui!” Por sorte haviam encontrado um pedaço do verdadeiro cipó.Yobuié disse ainda: “Isto não é suficiente. Tragam-me agora as folhas de todas as árvores pequenas que vocês encontrarem na mata.”

E a busca recomeçou. O doente examinava com muita paciência todas as folhas que eram trazidas e suspirava: “Não, ainda não é esta!”

Até que um dia ele gritou: “É esta aqui!” E ele mostrou a folha do arbusto que chamamos Cauá (ou chacrona).

Nosso antepassado amassou então os talos do cipó, meteu-os numa panela com água e juntou as folhas e pôs os dois para ferver.

Após o cozimento, era coado e posto para esfriar. À noite,eles se reuniram todos, beberam a bebida e tiveram muitas mirações!

Ao saírem daquele estado provocado pela bebida, Yobuié disse:

- Eu tive a miração da minha morte bem próxima.

E três dias depois Yobuié morreu.

FRÓES, Vera. Santo Daime. Cultura amazônica. História do povo Juramidã. Manaus: SUFRAMA, 1986.