sábado, 29 de dezembro de 2018

astrosociologia?


UM MODELO PARA ASTRO SOCIOLOGIA
Marcelo Bolshaw Gomes[1]

O presente texto retoma a discussão sobre a cientificidade dos saberes alternativos, principalmente a astrologia, tentando demonstrar que a ciência contemporânea pode (e deve) explicar e compreender esses saberes ao invés de simplesmente refutá-los. Para tanto, discute-se a relação da astrologia com a modernidade e a sua possível compatibilidade com a sociologia. O texto concluí que é possível traçar paralelos entre as duas disciplinas e sugere alguns parâmetros.

1)      Introdução
Existem vários textos apaixonados sobre se a astrologia é ou não é uma ciência. Mas, trata-se de uma diálogo entre surdos, pois nem os astrólogos escutam os argumentos científicos quanto os cientistas se recusam a entender o ponto de vista dos que gostam da astrologia. No entanto, é rara uma abordagem que coloque a questão dentro de uma quadro de referências mais gerais, por exemplo, sobre a relação entre a epistemologia contemporânea e a reinvenção atual de saberes meta tradicionais (como acupuntura ou homeopatia). Tais saberes não-científicos do ponto de vista da física e da química, no entanto, tem comprovação pessoal e estatístico-histórica (da mesma forma que a economia e a psicologia, que atendem apenas a esse tipo de validação para serem consideradas ‘ciência’). Há vários saberes não-científicos que funcionam objetivamente como formas práticas de conhecimento.
Karl Popper demonstra, por exemplo, que o marxismo e a psicanálise não são científicos epistemologicamente. Mas, sua ‘falta de cientificidade’ em nada diminui a eficácia prática explicativa e compreensiva desses saberes frente a realidade. Porém, a ciência deve(ria) investigar 'como' e 'em que condições' tal saber é válido - e não simplesmente dizer que não é científico porque não se enquadra em seus métodos de análise específicos. A ciência deve(ria) incluir, compreender, todos os saberes tradicionais e alternativos em sua teoria e não simplesmente excluir os elementos lógicos e as informações que não consegue explicar.
Há inclusive textos que compilam a comparação entre astrologia e astronomia (ou em relação à epistemologia e geral), sistematizando suas discordâncias: a ilusão de que a força gravitacional ou o eletromagnetismo dos corpos celestes influenciarem os corpos terrestres e as personalidades humanas; a descoberta científica de uma décima terceira constelação zodiacal (e de outros elementos astronômicos gigantescos como buracos negros, nebulosas, supernovas – aparentemente sem nenhum significado astrológico); e, principalmente, o movimento de precessão da terra[2].
O movimento de precessão é causado pelas forças exercidas pela translação do Sol e pela da rotação da Terra e da Lua, fazendo com que o planeta se movimente em relação ao próprio eixo. Esse movimento muda as estrelas de lugar para o observador terrestre. A cada ano, a terra sofre uma precessão de cerca de 20 minutos. Em 2160 anos, a mudança é de 30 graus. Na época em que a astrologia foi concebida, o sol nascia às seis horas da manhã na constelação de Áries; durante muitos séculos, o sol nesse dia nasceu em Peixes; e nos dias atuais, a constelação que abre o equinócio de outono no hemisfério sul é a de Aquário.  
Ou seja: céu astronômico não coincide mais com o céu astrológico!
Tal fato é o principal argumento dos cientificistas – uma vez que não havendo coincidência também não há causalidade nem observação da realidade. O fato também levou a uma minoria dos astrólogos a uma pretensão atualização[3]. Mas, a grande maioria passou a entender que não são os astros que determinam os acontecimentos, mas que são a linguagem dos símbolos que condicionam nossas vidas. A astrologia, assim, não seria uma ciência do sentido estrito, mas sim uma linguagem, uma arte de interpretação. Para esses, a astrologia não é uma ciência e a ideia simplificada de que os corpos celestes determinam a vida das pessoas é falsa. Mas, isto não significa que ela não faça sentido em determinado nível, tanto no que diz respeito à relação entre a personalidade e as características dos signos zodiacais, como em relação aos contextos complexos formados por símbolos astrológicos que influenciam os acontecimentos.
2)      Astrologia e ciência
Antes da escrita e da história, havia diferentes ‘astrologias’: a chinesa, a indiana, a etno-astronomia dos povos pré-colombianos e a sumeriana - cujo modelo solar deu origem à astrologia e à astronomia contemporâneas. Essas astrologias pré-históricas das sociedades tradicionais tinham em comum a simultaneidade temporal (ou tempo circular lunar-solar), o geocentrismo (a terra do centro do universo) e a simetria entre o mundo e o cosmo (o homem como reflexo do universo).
Com o aparecimento das escritas e do tempo contínuo da história, a ciência (ou o projeto de representação objetiva que o universo tem de si próprio) e a modernidade cultural (a imagem pretensamente objetiva que a sociedade faz de si mesma) passou lenta e progressivamente a construir um paradigma do observador onisciente, que o vê o universo de um ponto cego.
Hoje este modelo astrológico não nos serve mais de paradigma de observação científica dos céus mas continua válido como ‘Themata’ ou paradigma simbólico. Assim, no paradigma objetivo da astronomia, sabemos que a Terra gira em torno do Sol; no entanto, continuamos dependendo simbolicamente do paradigma subjetivo da astrologia, que como uma linguagem do inconsciente, condiciona atitudes e comportamentos, através da associação de determinadas características psicológicas aos meses do ano, por exemplo.
A ciência e o pensamento objetivo superaram apenas parcialmente o antigo paradigma de representação e esta ‘superação’ é uma questão muito relativa: ao contrário do que pensam os historiadores da ciência, a ideia de um sistema geocêntrico não significa que Ptolomeu acreditasse que o Sol girasse em torno da Terra, mas sim que ele colocava a questão da representação objetiva do universo em um segundo plano diante da ideia de decifração do destino através da observação especular das estrelas.
Devido ao movimento de precessão do eixo da terra, os céus astrológico e astronômico não coincidem mais. Tal fato, paradigmático da relação geral entre cosmologia científica e cosmogonia simbólica, divide atualmente os astrólogos em dois grandes grupos: os defensores de uma atualização do simbolismo ao céu real e os que dissociam completamente a linguagem astrológica da realidade astronômica (GOMES, 1998, 04).

Assim, fazemos duas representações do universo, uma consciente e pretensamente objetiva (em que a terra é uma bola de pedra que gira em torno de uma bola de fogo); e outra, inconsciente e subjetiva, povoada por símbolos, imagens e energias invisíveis. O paradigma astrológico perdura no campo morfogênico como uma linguagem simbólica do inconsciente.

Atualmente, vivemos um terceiro momento epistemológico: a pós-escrita[4]. A partir dos anos 60, voltamos a viver na simultaneidade de tempo, acrescida agora da sua irreversibilidade histórica. A internet e as redes digitais em suportes móveis (como o celular, o GPS, o tablete) aprofundaram ainda mais a revolução que a linguagem audiovisual já havia começado.  Esta nova concepção corresponde a noção de ‘múltiplos tempos simultâneos compreendidos dentro de um único tempo irreversível’ proveniente da mecânica quântica e oferece um novo paradigma de representação onde a previsibilidade de um evento depende, ao mesmo tempo, do simbólico e do científico. E, apesar das inúmeras diferenças dos modus operandi entre o conhecimento científico e o saber tradicional, ambos têm um único objetivo: evitar o infortúnio e a adversidade, procurando antecipar os acontecimentos para melhor enfrenta-los.
3)      Sociologia e ciência
E a sociologia? É uma ciência? Sim e não. Depende do que entendemos por sociologia e ciência. A sociologia de Durkheim, que tem por objeto o ‘fato social’ e busca explicar as causas últimas dos fenômenos, se pretende científica. Ele pressupõe um corte epistemológico com o senso comum, uma ruptura com a percepção do imediato.
Já a sociologia de Max Weber, que tem por objeto a ‘ação social’ e busca compreender a realidade social a partir da observação direta engajada, não tem a mesma pretensão de objetividade e de cientificidade que Durkheim e seus seguidores. Weber define uma sociologia interpretativa, mais preocupada em compreender os motivos do que determinar e explicar as causas.
A ciência também pode ser entendida como uma forma de saber racionalista e empirista, superespecializada e sem noção de conjunto (a ciência determinista e mecanicista do paradigma imposto pela escrita); e como uma ciência da complexidade, relativista (multi-subjetiva) e integral, como um saber geral que tenta englobar compreensivamente os outros saberes específicos: o saber universal por consenso[5].
Edgar Morin, no livro O retorno dos astrólogos (1972), foi o pioneiro na possibilidade de aproximação da sociologia interpretativa com a astrologia, entendida como uma linguagem simbólica popular universalizada pela mídia. Há também outras iniciativas interdisciplinares nos estudo do imaginário e da mitologia. Devaneios da Imaginação Simbólica (GOMES, 2017), por exemplo, faz uma aproximação entre os quatro elementos e antropologia.
Porém, falta ainda quem sugira um modelo de equivalência dos elementos astrológicos com os sociológicos, estabelecendo parâmetros operacionais explícitos para comparações e analogias diferentes.
Tabela 1: A equivalência de elementos astrológicos e sociológicos
PLANETA
SIGNIFICADO
EQUIVALENTE
ROTAÇÃO
Planetas transpessoais (Modernidade)

Plutão
A IMPERMANÊNCIA
TRANSFORMAÇÃO
248 anos
Netuno
A TRANSCENDÊNCIA
PSICODELIA
164 anos
Urano
A UNIDADE
TECNOLOGIA
84 anos
Planetas sociais (países, classes sociais, gerações)

Saturno
SEVERIDADE
CICLOS ECONOMICOS
29 anos e 167 dias
Júpiter
BENEVOLÊNCIA
POLÍTICAS PÚBLICAS
11,86 anos
Planetas pessoais (age mais individualmente)

Marte
AGRESSIVIDADE
POLÍCIA/EDUCAÇÃO
687 dias
Lua
VITALIDADE
SAÚDE/ALIMENTAÇÃO
28 dias
Vênus
SEXUALIDADE/ LINGUAGEM
MEIOS DE COMUNICAÇÃO
224,65 dias
Mercúrio
TROCAS
COMÉRCIO/TRANSPORTE
88 dias
Sol
ESPIRITUALIDADE
GOVERNO/RELIGIÃO
365,24 dias
Fonte: elaborado pelo próprio autor
Para o sociólogo contemporâneo Anthony Giddens (1991), as sociedades tradicionais têm uma reflexibilidade entre o passado e o presente, onde a memória formata o vivido e o agora confirma o passado. A modernidade se caracteriza pelo risco e pela imprevisibilidade, uma reflexibilidade entre o presente e o futuro, entre a simulação do devir e a reconfiguração do atual. Para ele, a modernidade e a tradição convivem lado a lado em nossos dias. As tradições culturais ainda modelam nossa identidade enquanto o risco transforma nossas vidas em aventuras. Estamos em um estágio avançado da modernidade ou pós-modernidade, em que os aspectos significantes da linguagem (a imagem, os sentimentos, os sons, as impressões subjetivas) – festejados nos tempos tradicionais e reprimidos em função dos significados durante toda ditadura do emissor imposta pela escrita – retornam mesclados com feminismo e com a democratização das relações pessoais.
4)      Modelo astro sociológico
No modelo aqui proposto, os planetas transpessoais representam a reflexibilidade moderna e os sete planetas clássicos correspondem a reflexibilidade tradicional. Urano representa a tecnologia e a eletricidade. Plutão, a impermanência, a eterna mudança. E Netuno, a consciência transcendente. Essa discussão (sobre Netuno, Urano e Plutão em relação à modernidade) foi desenvolvida (pasmem) pelo ideólogo ultradireitista Olavo de Carvalho[6], adepto da astrologia tradicional.
Urano, por exemplo, recebe uma interpretação já muito ligada ao próprio espírito moderno. Certas organizações esotéricas agem, ritualmente, no sentido da interpretação que elas próprias atribuíram ao planeta. Os ciclos destes astros começam a trabalhar mais neste sentido, porque são reforçados pela ação humana. Eu não acredito, realmente, que um planeta possa trazer a ideologia da revolução francesa. Agora, quando se quer realizar uma grande mudança no mundo, saber da existência de um novo planeta pode ser maravilhoso, já que possibilita a realização de toda uma reinterpretação da história, com base nos significados que você mesmo quis atribuir a ele. Acontece a mesma coisa com Netuno e Plutão, mas isto não quer dizer que estas interpretações não funcionem, porque parcialmente estes efeitos podem corresponder ao dos planetas, embora sejam apenas uma parte destacada do significado total daquele astro. Até o sétimo planeta, os astrólogos contavam com uma interpretação estável entre várias civilizações e não dá para justificar estas interpretações apenas como produto ideológico de tais civilizações. Mas nestes últimos, você tem interpretações específicas da astrologia ocidental, feita quase que totalmente por sociedades secretas. Essas interpretações não tem universalidade, apesar de poderem ser parcialmente válidas.
Reparem que o argumento de Carvalho é que ‘planetas modernos’ rompem com a reflexibilidade tradicional e não existem em diferentes tradições, se confundindo com a própria ação social que deseja transformar o mundo. A revolução moderna é baseada nas mudanças tecnológicas de Urano, na destruição das velhas estruturas sociais por Plutão e no sonho encantado de Netuno. Para ele, não há sentido nos ciclos astrológicos de longa duração em relação aos movimentos históricos.
Outra distinção relevante do modelo de analogia proposto entre elementos astrológicos e sociológicos é diferenciação entre os planetas Saturno e Júpiter - que devido a sua rotação lenta representam elementos coletivos (estados nacionais, classes sociais, gerações); dos planetas pessoais, que, mais rápidos, correspondem as relações sociais mais individualizadas.
Na antiguidade não havia o que chamamos de ‘adivinhação individual’. Até mesmo os oráculos dos reis não se referiam a eles como pessoas mas como instituições. Nas artes divinatórias primitivas o que importava era a interpretação e a manipulação das forças naturais e não o destino individual dos consulentes. Ao contrário: o destino individual era constantemente ‘sacrificado’ em nome da harmonia cósmica (GOMES, 1998, 03).
E, assim, os ‘deuses planetários’ (personificações de forças naturais, representavam simultaneamente lugares, vocações, dramas arquetípicos que fundam costumes e tradições) foram reduzidos a meros ‘tipos psicológicos’ modernos, os signos zodiacais modernos. A astrologia contemporânea, nesse sentido, é anti-sociológica, porque compreende a sociedade como um conjunto de indivíduos autônomos. Na verdade, não havia ‘indivíduos’ assim como entendemos antes da revolução francesa, mas pessoas e identidades coletivas.
No modelo astro sociológico proposto, o percurso do sol está associado ao ano litúrgico e à agenda do governo. O estado laico é uma tentativa de desvincular as duas agendas, marcadas pela passagens das estações. A atividade econômica, o trabalho, o consumo e a organização do tempo em função do corpo são atributos regidos pela lua em seu ciclo de 28 dias. O sol é a política; a Lua, economia. E Vênus, do ponto de vista sociológico, é representada pelos meios de comunicação, no sentido que essas instituições controlam as imagens que agentes fazem de si e a sua ‘energia sexual’. O planeta Mercúrio, comumente associado à comunicação, figura no modelo como um mediador das trocas sociais, representando as atividades do comércio de bens e serviços, bem como o sistema de transporte da sociedade. Pode parecer arbitrário associar Marte às instituições policiais e educacionais ao mesmo tempo, mas se pensarmos em termos de administração da agressividade social, essa associação fará o maior sentido. Porém, os dois parâmetros mais importantes para uma análise histórica e sociológica baseada em elementos astrológicos está na observação dos planetas Saturno (macro ciclos econômicos) e Júpiter (planejamento de políticas públicas e/ou ação governamental/institucional involuntária).
(CONTINUA)


Bibliografia
ELIADE, M. Tratado Histórico das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. 1ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 1991.
GOMES, Marcelo Bolshaw. O Hermeneuta - Uma introdução ao estudo de Si. Dissertação de mestrado em Ciências Sociais (1997). Livro, v.01. p.164. Natal: Editora Universitária da UFRN (EDUFRN), 2010a. <https://www.academia.edu/34061443/O_HERMENEUTA.pdf>
___ Hermenêutica e os erros de interpretação (Segunda parte de O hermeneuta). Revista Vivência v.12, n.02; p.05-18. Natal: UFRN, 1998. <https://www.academia.edu/1583736/Os_Tr%C3%AAs_Erros_de_Le%C3%B4nidas_Princ%C3%ADpios_de_Interpreta%C3%A7%C3%A3o_Dial%C3%B3gica> último acesso em 16/07/2015.
Devaneio da Imaginação Simbólica. Natal: Editora Universitária da UFRN, 2017, v.1. p.120
MORIN, Edgar. O retorno dos astrólogos. Lisboa: Moraes, 1972.
ZOHAR, D. Através da Barreira do Tempo - um estudo sobre a precognição e a física moderna. São Paulo: Pensamento, 1982.
VON FRANZ, M. L. Adivinhação e sincronicidade. São Paulo: Pensamento, 1990.



[1] Professor de Comunicação Social com doutorado em ciências sociais.
[4] A pós-escrita é uma noção definida por Flusser, mas já existia de forma parcial em muitos outros autores. Mc Luhan é o pioneiro em perceber que a televisão nos levaria a uma aldeia global. Pierre Levy estabelece três modos de interação: o um-um (a oralidade); o um-muitos (um emissor, muitos receptores); e muitos-muitos (redes em que todos os pontos se ligam). Kerckhove fala de contexto, texto e hipertexto. Pross prefere mídia primária (corporal), secundária e elétrica. E assim por diante.
[5] E não o universal imposto pelo etnocentrismo cultural sobre os saberes regionais.