sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A HUMILHAÇÃO DE INDRA



Segundo a mitologia Védica, um poderoso Dragão chamado Vrtra, rei dos demônios Asuras, represou dentro de si todas as águas do universo e houve, então, uma grande seca cósmica que durou milhares de anos. O rei dos Devas, Indra, Senhor do Céu e dos relâmpagos, então, atirou um raio no Dragão e explodiu Vrtra, e... a água fluiu novamente sobre a Terra e o universo teve sua sede saciada. A vitalidade havia recomeçado a brotar. As águas se libertaram e correram pela terra, circulando mais uma vez pelo corpo do mundo. E o sangue que corria pelas veias do Dragão morto se transformou na seiva dos campos e florestas. Os deuses voltaram para o topo da montanha central da Terra e passaram a reinar lá do alto.

Como recompensa pelo seu feito, Indra se proclamou rei dos deuses da Terra, responsável por toda vida do planeta, fosse mineral, vegetal ou animal. Decidiu, então, fazer da Terra um majestoso palácio, como nenhum outro no universo e convocou o espírito humano, Vishvakarman, o artífice dos deuses.

- Vamos construir uma civilização inteiramente nova aqui – uma que seja merecedora da minha dignidade – disse Indra.

Então, Vishvakarman começa as obras. Porém, Indra sempre volta com novas ideias, exigências absurdas e detalhes grandiosos. O empreiteiro começa a pensar: Meu Deus, ambos somos imortais, então esse trabalho não vai terminar nunca. O que eu posso fazer? Então, decide procurar Brahma, o criador do Universo e queixar-se a ele sobre o trabalho interminável a que está submetido.

Brahman é onipotente, onipresente, onisciente, infinito, além do espaço e do tempo é o Brahman. Ele não tem atributos como a forma, a magnitude e as qualidades e está além do tempo, do espaço e da imaginação por isso não pode ser descrito com palavras. Brahman é o absoluto, supremo, impessoal, infinito, eterno, a fonte pré-cósmica da divindade, a causa de todas as causas, sem começo e sem fim, do qual todo emana e ao qual todo retorna.

Quando Vishvakarman entrou, Brahma estava sentado em um lótus que cresce a partir do umbigo de Víshnu – o mestre dos sonhos, modelador de todas as formas – dormindo e flutuando no espaço cósmico, montado em uma grande serpente. E ao fundo, Shiva, Senhor do Tempo e da Morte, dançava sua dança de espadas com seus seis braços. Brahma é o Criador do Universo; Vishnu, o preservador da vida; e Shiva, o transformador de todas as formas. Eles criavam e destruíam mundos.

Ao ouvir o pedido de Vishvakarman, Brahma diz: “Tudo bem. Eu darei um jeito nisso”.

Na manhã seguinte, logo cedo, chegaram ao portal do palácio de Indra dois brâmanes: um menino de apenas dez anos, vestido em ricas túnicas azuis e um velho ancião, coberto apenas por alguns panos velhos vermelhos. Ambos caminhavam juntos com elegância, exalando sabedoria e graça, tinha um olhar sereno e extático, como se estivessem com os seus pensamentos perdidos no infinito.

O rei dos deuses recebe-os em seu trono, no salão central do palácio, e depois de os cumprimentar formalmente, perguntou aos visitantes santos:

— Ó veneráveis brâmanes, dize-me o propósito de tua vinda.

A bela criança respondeu:

— Ó Indra, rei dos deuses, ouvi falar do majestoso palácio que estás construindo, e vim te fazer algumas perguntas. Quantos anos levará para que fique pronto? Que outras proezas de engenharia o artesão Vishvakarman será solicitado a realizar? Ó Supremo dentre os Deuses, nenhum Indra antes de ti conseguiu terminar um palácio como será o teu e gostaríamos e saber como pretende fazê-lo.

— Indras anteriores a mim? - disse Indra, confuso - Do que você está falando?

— Sim, Indras anteriores a você — diz o jovem — Pare e pense: o lótus cresce do umbigo de Vishnu, então, desabrocha e nele se senta Brahma. Brahma abre os olhos e nasce um novo universo, governado por um Indra. Ele fecha os olhos. Abre-os novamente – outro universo, um novo Indra. Fecha os olhos... e, durante toda sua vida (311.040.000.000.000 anos terrestres), Brahma faz isso – até que chegue o momento da encerrar a grande expansão e começar a grande retração do universo, quando todas as coisas criadas serão absorvidas à unidade primordial.

— Então o lótus murcha e, após uma eternidade, outro lótus desabrocha, aparece Brahma, abre os olhos, fecha os olhos. . . Indras, Indras e mais Indras — completou o visitante mais velho — cada galáxia do universo um lótus, todas com seu Brahma. Vários homens levariam várias vidas para contar as gotas d'água do oceano e os grãos de areia das praias do mundo; mas quem contaria esses Brahmas, sem falar nos Indras? Quem será capaz de contar os universos que desapareceram, ou as criações que brotaram de novo do abismo amorfo das águas? Quem saberá contar as eras que passam no mundo? E quem irá vasculhar as vastas infinitudes do espaço para contar os universos lado a lado, cada qual com seu Brahma e seu Vishnu? Quem há de contar todos os Indras, ascendendo um a um ao reinado divino, e um após outro desaparecendo?

Enquanto falavam, um formigueiro gigantesco, marchando em milhares de colunas perfeitas, aproximou-se pelo teto, paredes e piso do palácio de Indra. Os visitantes as olham e riem entre si.

— Do que você está rindo?

— Preferimos não te contar — disseram ambos, rindo ainda mais.

— Ó veneráveis visitantes — Ó criança, suplicou Indra, com uma nova e visível humildade — Não sei quem sois. Revela-me esse segredo de todas as eras, essa luz que dissipa a escuridão.

— Cada uma dessas formigas já foi um Indra um dia — disse o menino, completando em seguida — Como você, cada uma matou o dragão Vrtra e ascendeu à categoria de deus planetário. Agora, porém, através de muitos renascimentos e reencarnações, cada um voltou a se transformar em formiga. — concluiu o menino, olhando serenamente para seu anfitrião humilhado.

O rei dos deuses da terra, do mar e do céu, apesar de todo seu esplendor, tornara-se insignificante diante de seus próprios olhos.

— Quem são vocês? Quais os seus nomes? Onde moram? — perguntou Indra.

— Não temos família, nem casa – respondeu o mais velho — A vida é curta. Toda vez que morre um Indra, cai um fio de cabelo. Metade deles já caiu. Logo, logo, todos vão cair. Quando todos caírem, o atual Brahma irá morrer e eu também morrerei – por isso não temos casa ou família, nem trabalho ou divertimento que não seja a tarefa de gerar e destruir universos dentro do breve intervalo de tempo em que vivemos.

Nesse momento, os dois visitantes misteriosos se transformaram nos deuses Vishnu e Shiva, se despediram e foram-se embora. Indra sentiu-se totalmente arrasado e se perguntou se aquilo teria sido um sonho. Mas já não sentiu mais nenhum desejo de ampliar o esplendor celestial de seus domínios. Mandou chamar Vishvakarman, cobriu-o de presentes e mandou o artesão descansar. Porém, seu coração não estava feliz, amargando sua humilhação. Resolveu então renunciar a sua posição de deus planetário, se refugiar na floresta e se tornar um eremita em uma vida de ascetismo e meditação.

Mas sua bela rainha Indrani implorou ao conselheiro espiritual do rei, Brihaspati, senhor da Sabedoria Mágica, que afastasse da mente de seu marido essa decisão radical. O hábil Brihaspati falou com Indra sobre as virtudes da vida espiritual, mas falou também das virtudes da vida secular, e deu a cada uma seu valor.

– Você está no trono do universo e representa a virtude e o dever – o dharma – e encarna o espírito divino em seu papel terreno – disse o sábio, acrescentando – O que acha de representar nesta vida terrena a imanência desse mistério da eternidade?

Indra cedeu e cumpriu o papel que lhe fora destinado no universo transitório do qual era parte, e não mais teve despeito do desfile das formigas - e dos diversos Indras que haviam existido antes, e que tornariam a existir repetidamente por toda a eternidade.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CAMPBELL, Joseph. Mitos de Luz: Metáforas Orientais do eterno. São Paulo: Editora Madras, 2006. pp. 22-25


ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1991. pp 56-72.