sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Mito do Andrógino


 (Banquete de Platão[1])
No início, a raça dos homens não era como hoje. Era diferente. Não havia dois sexos, mas três: homem, mulher e a união dos dois. E esses seres tinham um nome que expressava bem essa sua natureza e hoje perdeu seu significado: Andrógino. Além disso, essa criatura primordial era redonda: suas costas e seus lados formavam um círculo e ela possuía quatro mãos, quatro pés e uma cabeça com duas faces exatamente iguais, cada uma olhando numa direção, pousada num pescoço redondo. A criatura podia andar ereta, como os seres humanos fazem, para frente e para trás. Mas podia também rolar e rolar sobre seus quatro braços e quatro pernas, cobrindo grandes distâncias, veloz como um raio de luz. Eram redondos porque redondos eram seus pais: o homem era filho do Sol. A mulher, da Terra. E o par, um filhote da Lua.
Sua força era extraordinária e seu poder, imenso. E isso tornou-os ambiciosos. E quiseram desafiar os deuses. Foram eles que ousaram escalar o Olimpo, a montanha onde vivem os imortais. O que deviam fazer os deuses reunidos no conselho celeste? Aniquilar as criaturas? Mas como ficar sem os sacrifícios, as homenagens, a adoração? Por outro lado, tal insolência era perfeitamente intolerável. Então...
O Grande Zeus rugiu: Deixem que vivam. Tenho um plano para deixá-los mais humildes e diminuir seu orgulho. Vou cortá-los ao meio e fazê-los andar sobre duas pernas. Isso com certeza irá diminuir sua força, além de ter a vantagem de aumentar seu número, o que é bom para nós. E mal tinha falado, começou a partir as criaturas em dois, como uma maçã. E, à medida em que os cortava, Apolo ia virando suas cabeças, para que pudessem contemplar eternamente sua parte amputada. Uma lição de humildade. Apolo também curou suas feridas, deu forma ao seu tronco e moldou sua barriga, juntando a pele que sobrava no centro, para que eles lembrassem do que haviam sido um dia.
E foi aí que as criaturas começaram a morrer. Morriam de fome e de desespero. Abraçavam-se e deixavam-se ficar assim. E quando uma das partes morria, a outra ficava à deriva, procurando, procurando...
Zeus ficou com pena das criaturas. E teve outra idéia. Virou as partes reprodutoras dos seres para a sua nova frente. Antes, eles copulavam com a terra. De agora em diante, se reproduziriam um homem numa mulher. Num abraço. Assim a raça não morreria e eles descansariam. Poderiam até mesmo continuar tocando o negócio da vida. Com o tempo eles esqueceriam o ocorrido e apenas perceberiam seu desejo. Um desejo jamais inteiramente saciado no ato de amar, porque mesmo derretendo-se no outro pelo espaço de um instante, a alma saberia, ainda que não conseguisse explicar, que seu anseio jamais seria completamente satisfeito. E a saudade da união perfeita renasceria, nem bem os últimos gemidos do amor se extinguissem.


sábado, 9 de fevereiro de 2019

mensageiros do vento


O livro perdido de Enki


Em inúmeras lendas e mitos, a liberdade aparece como um castigo ou como resultado de uma desobediência da humanidade em relação aos deuses. Em algumas narrativas, a liberdade é dada ao Homem por outros seres, como no mito de Prometeu, em que o fogo dos deuses é roubado para que o homem conquiste a própria liberdade; em outras, é a consciência que, mascarada por diferentes símbolos (o fogo, a bebida sagrada), é engendrada por conflitos entre seres de outra ordem evolutiva, em que alguns são favoráveis e outros contrários à humanidade.

Enquanto no hinduísmo, os Devas correspondem aos ‘bons’ e os Asuras, aos ‘maus’; na mitologia persa/zoroastrismo ocorre o contrário. Os anjos dos hindus são os demônios dos persas e vice-versa. As razões para essa inversão simétrica são complexas. É possível que se deva à rivalidade entre impérios vizinhos, mas também a interpretações diferentes do ‘complexo de Prometeu’ e da liberdade furtada pelos anjos decaídos e partilhada com a humanidade. Nesse aspecto, os Asuras persas são semelhantes a Lúcifer, aos titãs gregos e aos gigantes do gelo nórdicos do Ragnarök (o crepúsculo dos deuses germânicos), seres primordiais rebeldes em relação à criação, em virtude dos quais a liberdade (ou insubmissão da consciência do bem e do mal) chegou até os homens, tornando-os uma espécie transgressora e destrutiva.

Descobertas arqueológicas recentes apontam para uma convergência mitológica em torno da cultura suméria. Além de antecipar várias passagens da Bíblia (Adão e Eva, Caim e Abel, a torre de Babel, o final dos tempos), as religiões babilônicas também têm temas comuns aos Vedas, às narrativas egípcias (as histórias de Rá, Osiris, Isis, Horus, Set) e ao panteão astrológico da mitologia grega. A cultura suméria é a base da maioria das culturas antigas ocidentais, um sistema de crença complexo que antecipa e compreende outras mitologias posteriores, dela derivadas. 

Segundo o livro perdido de Enki de Zecharia Sitchin, compilação de centenas de tabuletas traduzidas da antiga escrita cuneiforme, os Anunnakis vieram de Nibiru em suas carruagens celestes para terra a procura de ouro para corrigir um desequilíbrio em seu planeta. Para minerar o metal, criaram e escravizaram outra espécie de seres – os Igigi (os gigantes). Eles, no entanto, se rebelaram contra Enlil e os Annunakis. Foi então que Enki sugeriu a criação da humanidade, inseminando o DNA Anunnaki a espécies de símios. Porém, os homens também se rebelaram e os alienígenas decidem acabar com todos, através de um dilúvio. Enki, sempre dissidente, conta aos homens dos planos de Enlil e os ensina a fazer um submarino e um banco de dados genéticos para sobreviver a catástrofe e repovoar a terra. O fato dos deuses serem astronautas não é tão interessante quanto a síntese mitológica que a narrativa engendra, explicando toda mitologia ocidental.

Os mitos sumérios, assírios e babilônicos têm muitas versões e interpretações, em que os deuses trocam de nomes e de papéis, se fundem em um só deus ou se dividem em dois. Enki é o "Senhor da Terra" e um deus de oposição aos céus: genro do usurpador Alalu; pai do rebelde Marduk, líder da revolta Igigi; ele é chamado de "ushumgal", a Grande Serpente.

Por exemplo: Anu proíbe que os Anunnakis ensinem segredos aos homens, que devem ser mantidos ignorantes e trabalhando na lavoura. Os Anunnakis, entretanto, conclui que os homens serão mais úteis se aprenderem os segredos do pão, do vinho, da cerveja e das roupas. Com este conhecimento, os homens passam a produzi-los para si e para os deuses. Inicialmente, os homens não consomem o pão e as bebidas, pois o deus Enlil lhes diz que morreriam se o fizessem, mas Enki lhes explica que não haveria problema. Há também uma versão em que o homem vivia no reino celestial e Anu lhe oferece o alimento que lhe daria vida eterna, mas ele o recusa porque Enki lhe diz que o alimento o mataria. O homem é então expulso do reino.

Outro exemplo interessante (de como os sumérios entendem o papel de Enki e o mito dos jardins do Éden) é o épico Gilgamesh. Enkidu (que personifica a humanidade) vive como um animal, comendo capim e bebendo água do rio. Mas, seduzido por uma prostituta do templo, Enkidu experimenta pão e vinho, passando a usar roupas e vai morar na cidade de Uruk, onde conhece Gilgamesh. Para a cultura sumeriana, a vida urbana era o ideal, a vida rural era selvagem e atrasada. Os deuses moravam em cidades e o Éden era o local onde a humanidade vivia como bicho, incessantemente trabalhando sem perceber para alimentação de seus senhores. Para os antigos sumérios, o atual desejo dos judeus, cristãos e muçulmanos de voltar para o Éden pareceria loucura.

Mais do que um conflito entre a terra e o céu (Nibiru), há uma oposição filosófica entre Destino (representado por Enlil) e Sorte (encarnado em Enki). O deus da terra sempre defende a liberdade e que somos nós que fazemos nosso destino; enquanto Enlil e Anu obedecem aos ciclos e suas determinações, repetindo o passado no futuro.