quinta-feira, 25 de novembro de 2021

revistas imaginário!

 


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A astrologia e os quatro elementos


 Nova conclusão para o livro Devaneios da Imaginação Simbólica 

Antes da escrita e da história, havia diferentes ‘astrologias’: a chinesa, a indiana, a etno-astronomia dos povos pré-colombianos e a sumeriana - cujo modelo solar deu origem à astrologia e à astronomia contemporâneas. Essas astrologias pré-históricas das sociedades tradicionais tinham em comum a simultaneidade temporal (ou tempo circular lunar-solar), o geocentrismo (a terra do centro do universo) e a simetria entre o mundo e o cosmo (o homem como reflexo do universo). 

Com o aparecimento das escritas e do tempo contínuo da história, a ciência (ou o projeto de representação objetiva que o universo tem de si próprio) e a modernidade cultural (a imagem pretensamente objetiva que a sociedade faz de si mesma) passou lenta e progressivamente a construir um paradigma do observador onisciente, que o vê o universo de um ponto cego. 

Hoje este modelo astrológico não nos serve mais de paradigma de observação científica dos céus mas continua válido como ‘Themata’ ou paradigma simbólico. Assim, no paradigma objetivo da astronomia, sabemos que a Terra gira em torno do Sol; no entanto, continuamos dependendo simbolicamente do paradigma subjetivo da astrologia, que como uma linguagem do inconsciente, condiciona atitudes e comportamentos, através da associação de determinadas características psicológicas aos meses do ano, por exemplo. A ciência e o pensamento objetivo superaram apenas parcialmente o antigo paradigma de representação e esta ‘superação’ é uma questão muito relativa: ao contrário do que pensam os historiadores da ciência, a ideia de um sistema geocêntrico não significa que Ptolomeu acreditasse que o Sol girasse em torno da Terra, mas sim que ele colocava a questão da representação objetiva do universo em um segundo plano diante da ideia de decifração do destino através da observação especular das estrelas. 

Devido ao movimento de precessão do eixo da terra, os céus astrológico e astronômico não coincidem mais. 

O movimento de precessão da terra é causado pelas forças exercidas pela translação do Sol e pela da rotação da Terra e da Lua, fazendo com que o planeta se movimente em relação ao próprio eixo. Esse movimento muda as estrelas de lugar para o observador terrestre. A cada ano, a terra sofre uma precessão de cerca de 20 minutos. Em 2160 anos, a mudança é de 30 graus. Na época em que a astrologia foi concebida, o sol nascia às seis horas da manhã na constelação de Áries; durante muitos séculos, o sol nesse dia nasceu em Peixes; e nos dias atuais, a constelação que abre o equinócio de outono no hemisfério sul é a de Aquário.  

Tal fato, paradigmático da relação geral entre cosmologia científica e cosmogonia simbólica, divide atualmente os astrólogos em dois grandes grupos: os defensores de uma atualização do simbolismo ao céu real e os que dissociam completamente a linguagem astrológica da realidade astronômica.

Assim, fazemos duas representações do universo, uma consciente e pretensamente objetiva (em que a terra é uma bola de pedra que gira em torno de uma bola de fogo); e outra, inconsciente e subjetiva, povoada por símbolos, imagens e energias invisíveis. O paradigma astrológico perdura no campo morfogênico como uma linguagem simbólica do inconsciente. 

E, apesar das inúmeras diferenças dos modus operandi entre o conhecimento científico e o saber tradicional, ambos têm um único objetivo: evitar o infortúnio e a adversidade, procurando antecipar os acontecimentos para melhor enfrenta-los. A previsibilidade de um evento depende, ao mesmo tempo, do saber simbólico e do conhecimento científico. Do lunar e do solar. 

Partiu-se da metapoética de Gaston Bachelard e de seu desafio. Em um segundo momento, aceitou-se a provocação e imaginaram-se conceitos resultantes da inter-relação dos quatro elementos entre si: Calor, Trabalho, Linguagem, Sonhar, Luz, Riqueza, Imaginação Formal, Sensibilidade, Vida, Poder, Arquétipo, Imaginação Simbólica. 

Em seguida, aplicaram-se alguns desses conceitos a um universo empírico em particular: o preparo da Ayahuasca. Procedeu-se, então, a uma descrição subjetiva dessa experiência cognitiva, ressaltando sua semelhança ao tema do vinho alquímico dos sufis (tema bachelardiano, por sinal) e, principalmente, a presença dos quatro elementos durante todo percurso. 

Devaneando mais um pouco sobre a terra úmida, discutiu-se sobre o símbolo do útero (a caverna, a casa, o repouso) e sobre a inexistência do matriarcado arcaico; como também se defendeu a necessidade de um reajuste elemental entre os gêneros, com os homens se reconectando ao corpo e às emoções, e as mulheres resgatando o sagrado feminino e sua intelectualidade. 

Dando sequência à viagem, no capítulo “O mito do fogo”, investigou-se a relação entre Vida e Poder através do símbolo do Ferro. Nesse texto, aplica-se o modelo de análise estrutural de narrativas míticas de Lévi-Strauss a autores esotéricos e narrativas cabalísticas, demostrando-se sua curiosa equivalência simbólica. 

Porém, a demonstração da inexistência do matriarcado arcaico (na memória histórica e social) não convenceu aos que acreditam nela (como memória arquetípica). Para não cometer o mesmo erro do primeiro Bachelard (separando radicalmente a verdade da imaginação), sobrepõe-se à realidade histórica (o Ar: o matriarcado nunca existiu) a realidade mítica (a Água: o matriarcado está eternamente em nosso passado presente agora na forma de uma memória). E assim, em Narrativas do Sagrado Feminino, reescreveu-se algumas histórias da relação Ar-Água e se discutiu a noção de coprotagonismo narrativo entre os gêneros e valores masculinos e femininos. 

No texto “Estudos Cabalísticos”, problematizou-se a Árvore da Vida (a Luz dentro do Arquétipo) e o Apocalipse (o Arquétipo dentro da Luz). As relações entre Fogo e Ar também nos colocam a questão do desequilibrio entre o masculino e o feminino, a dissociação simbólica entre fogo sexual e espiritual e o aparecimento impiedoso do ferro e de suas ferramentas mortais. 

Segundo a mitologia suméria, o sistema de doze constelações zodiacais e de dez planetas (sim, os sumérios sabiam de Plutão e o consideravam um planeta) foi concebido pelo deus Enki e ensinado a seu filho Marduk, durante um retiro que fizeram na Lua. O mesmo sistema foi ensinado por Marduk aos homens, através de um personagem sumério semelhante ao Enoch bíblico. 

Sempre considerei um mistério o fato dos antigos sumérios dividirem o ano em doze meses e não por treze – seguindo o ciclo lunar de 28 dias com seria o lógico. 

Os astrólogos – que não pensam de forma de etnoastronômica – derivam a divisão por doze dos quatro elementos e das três qualidades (cardinal, fixo e mutável). Mas, se pensarmos em termos de observação astronômica do céu (e não classificação a partir de elementos simbólicos abstratos), a divisão do ano por doze meses (com uma médida de 29,5 dias) acarreta a perda de 11 dias por ano, ou sete meses a cada 19 anos. 

O mais provável é o apagamento astrológico do décimo terceiro mês pelos próprios sumérios. Entre Escorpião e Sagitário, está a décima terceira constelação zodiacal, Oficus, representada pela serpente e/ou pela águia. Caso algum dia voltemos aos 13 meses lunares de 28 dias + 1 dia fora do tempo, como no calendário maia, haverá um novo mês equivalente ao período entre outubro e novembro. 

A Serpente Alada fica a 180 graus de Orion, o berço das estrelas, entre as constelações de Gêmeos e Touro, ancorada pelo Cruzeiro do Sul. Se o Big-bang foi uma explosão de luz vinda de Orion, origem do universo; então o novo signo aponta para o desconhecido oceano escurdo, buraco negro e destino denso de todo universo. Entramos no universo pelas pleiades da ursa maior e vamos sair através deste ralo devorador de matéria e energia. 

O décimo terceiro elemento é a morte, ponto cego da imaginação simbólica. O dia de todos os santos e de finados, bem como tradições mais antigas como Halowwen e o dia da morte mexicana, podem ser considerados vestígios da celebração deste 'símbolo ausente'.

É possível que o apagamento simbólico da morte seja o motivo do desequilíbrio elemental. O planeta Terra corresponde ao elemento Terra e os céus, ao elemento Ar. A Lua, por sua vez, é universalmente associada à Água e ao feminino. O Sol é o Fogo original. Os quatro elementos nesse contexto astrológico estão em constante interação e suas interações correspondem às doze relações elementais que descrevemos. No entanto, essas relações são dinâmicas e não metafísicas. A transformação da natureza é permanente, a morte é eterna e é o 'motor contínuo' das interações. 

Para se tecer uma investigação meta simbólica, a imaginação, depurada de suas ilusões, ajuda a construção científica e lógica do sentido, da interpretação. Não se trata apenas de metapoesia (ou de teorizações esotéricas e/ou antropológicas), os devaneios de investigação simbólica também estudam as narrativas míticas e suas ressonâncias subjetivas. Para investigar o inconsciente arcaico, a imaginação simbólica procede a uma releitura das narrativas mitológicas, fazendo associações cognitivas entre os discursos teóricos, poéticos, esotéricos, tradicionais e filosóficos – por dentro. “Experimentando” as narrativas. 

E, dessa convergência discursiva e narrativa, nascem novas imagens, novas ideias. Somos seres miméticos, mimetizamos nossas histórias de outras. Um dia, seremos mimetizados também. Essa é nossa vida. Nossos sonhos são simulações de nossas vidas, de nossos medos e esperanças. As estruturas narrativas reduzem a complexidade dos sonhos a histórias que simulam a polaridade entre antagonismo e coprotagonismo, entre morte e amor, entre o passado e o futuro. 

As causas de existência de antagonistas em nossas vidas e sonhos são diversas e complexas. Alguns, com inclinação para biologia, acreditam que a consciência moral (ou a distinção entre o bem e o mal) surgiu a partir do desenvolvimento de uma parte da memória filogenética da espécie humana, usada para distinguir as plantas venenosas das nutritivas. 

Outros, habitantes de um universo mais físico, pensam que o que se chama de mal (oposto à luz) é a força entrópica dos buracos negros. Outros ainda, voltados para o interior, acreditam que a natureza é perfeita e que o mal é um ruído subjetivo que nos impede de viver plenamente essa perfeição. São histórias das origens do mal e das causas ocultas de nosso antagonismo conosco mesmo. 

Mais complexas ainda são as metanarrativas sobre coprotagonismo e sobre nossos sonhos de amor. Existem narrativas que desejam desmascarar a afetividade interesseira do amordependente e afirmam a superioridade do amor-dádiva; outras equiparam o amor à liberdade, consideram-no mais importante do que a própria vida. 


Ulisses

O mito é o nada que é tudo.

O mesmo sol que abre os céus

É um mito brilhante e mudo -

O corpo morto de Deus,

Vivo e desnudo.


Este, que aqui aportou,

Foi por não ser existindo.

Sem existir nos bastou.

Por não ter vindo foi vindo

E nos criou.

Assim a lenda se escorre

A entrar na realidade.

E a fecundá-la decorre.

Embaixo, a vida, metade

De nada, morre.

(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

homenagem a um mestre feiticeiro


 

EU E ALEJANDRO


Marcelo Bolshaw Gomes


A primeira vez que ouvi falar de Alejandro Jodorowsky foi lendo O Incal. Nos anos 80, no Rio de Janeiro, meu amigo Mario Marcio Rocha tinha a coleção da revista Heavy Metal e eu havia lido O Homem é Bom?, de Jean Giraud (Moebius). Então, quando vi seu nome e seu desenho inconfundível em O Incal, devorei a história assim que pude. Publicado originalmente em dezembro de 1980 na revista Métal Hurlant e seus seis álbuns foram publicados entre 1981 e 1988 pela Les Humanoïdes Associés com o título Uma Aventura de John Difool. Em 1998, a série mudou de nome para O Incal. No Brasil, foi publicada no ano de 2012 de duas formas distintas; pela editora Devir. Em 2021 a série foi relançada (acrescida por novas histórias que Jodorowsky fez com outros desenhistas) pela editora Pipoca e Nanquim com o nome "Todo Incal".

Em um futuro imaginário, o detetive particular John Difool faz uma jornada espiritual do heroi (cerrtamente inspirada em Joseph Campbell) para defender o Incal, um cristal com o poder da luz, de vários antagonistas concorrentes e dos antagonistas sistêmicos, detentores do Incal das trevas. A narrativa iniciática do protagonista, com elementos mitológicos, está colocada em um contexto de ficção científica em que a consciência luta contra o mecânico, mas com referências políticas, econômicas e sociais da cultura pop. Ao longo do tempo, outras histórias são criadas dentro do mesmo universo narrativo de ficção científica psicodélica , o jodoverse, com elementos simbólicos em comum, como os Metabarões e os Tecnopadres.

Dez anos depois, em Natal, a amiga Milena Azevedo me deu os arquivos digitais dos filmes El Topo (1970)4 e Montanha Sagrada (1973), comparando a linguagem de Jodorowsky a de Glauber Rocha. El Topo é um western surrealista, com cenas bizarras de sexo e mutilação para criticar comportamentos religiosos, retoma o modelo da jornada espiritual do herói, agora com um Cowboy como protagonista, vencendo vários inimigos em seu percurso mítico. O filme foi elogiado por John Lenon e George Harrison, fato que abriu as portas para o financiamento da Montanha Mágica.

Achei os filmes herméticos, prolixos, cansativos – ou seja: não entendi nada. E fiquei com vergonha de não entender, me senti humilhado culturalmente. Como não podia conviver com esses sentimentos. Então, procurei me informar melhor e acabei encantado com as explicações críticas do próprio autor sobre seu trabalho.

Na sinopse da Montanha Sagrada descobri que se tratava dos “nove dos mais poderosos industriais e políticos do planeta desejam obter a imortalidade. Um Alquimista (interpretado por Jodorowsky) lhes fala da Montanha Sagrada e da busca pela imortalidade”. Jodorowsky acrescenta: “Esse filme é minha própria busca por iluminação”.

Então, munido dessas informações, assisti novamente aos filmes e (acho) que os entendi. De certa forma, os filmes aprofundam a estrutura narrativa (da jornada heroica) de O Incal, deslocando o contexto cenográfico da ficção cientifica para o faroeste e para o misticismo. Mas, continuava desconfortável a experiência de um cinema que tinha que ser explicado para ser entendido. Por vezes, pensei que era uma confusão entre metáforas e símbolos, que Jodorowsky fazia um cinema de metáforas pensando que fazia um cinema simbólico. Em outras ocasiões, imaginei que sua concepção de cinema era muito elitista e se aproximava de um teatro filmado, de um ritual ético/político e estético/psicológico, acessível apenas a alguns. Percebi que havia muita gente que se sentia (mal) como eu e que Jodorowsky não era uma unanimidade: havia quem achasse que ele era um gênio e havia quem pensasse que era apenas um artista confuso.

Só compreendi a grandeza e a importância de Alejandro como artista multimídia e pensador quando vi Jodorowsky's Dune (2013). 

'Dune de Jodorowsky' é um documentário americano 2013 dirigido por Frank Pavich. O filme conta a tentativa frustrada do diretor chileno Alejandro Jodorowsky de adaptar, para o cinema em meados dos anos 1970, o romance de ficção científica Dune, de Frank Herbert escrito em 1965. 

Jodorowsky queria que seu filme fosse como uma viagem de ácido lisérgico, que fosse uma experiência estéica capaz de mudar o comportamento das pessoas. Concepção Visual e storyboard de Moebius; trilha sonora do Pink Floyd (Dark side of the moon); artistas HR Giger, Chris Foss e Jean Giraud para set e para o projeto; Dan O'Bannon para efeitos especiais; e Salvador Dalí Orson Welles, Gloria Swanson, David Carradine, Mick Jagger, Amanda Lear, e outros para o elenco. Jodorowsky treinou seu próprio filho em artes marciais e esgrima. O filme nunca foi feito por falta de visão dos estúdios de Hollywood. 

Mas, a influência do trabalho de Jodorowsky/Moebius (a concepção visual, os figurinos, as naves, alguns efeitos especiais) é evidente em vários filmes de ficção científica que se seguiram, como Star Wars. Em 1982, no entanto, os direitos do filme foram comprados pelo cineasta italiano Dino De Laurentiis, que acabou lançando o filme Dune 1984, dirigido por David Lynch – que foi um grande fracasso de crítica e público. Apesar de tudo, Jodorowsky não guarda mágoas, conta a história de sua vida com uma paixão e uma compreensão generosas. E, no final do documentário 'Dune de Jodorowsky', o cineasta convida cineastas e desenhistas, com a ajuda dos computadores, a realizarem seu sonho: a produção do storyboard de Moebius. O que esperamos que aconteça em breve.

O filme é uma lição de vida. Além de ser a história do mais fantástico filme nunca realizado (pelo menos, por enquanto), com impacto na história do cinema e da ficção científica, mostra a relação de aprendizagem existencial do criador com sua criação.

Em seguida, descobri a psicomagia e sua proposta audiovisual de cura através da arte (2019). Jodorowsky se contrapoe à cartarse verbal psicanalítica, racional e bem comportada, que não favorece transformações orgânicas. Para ele a cartase libertadora é a artística, expressiva, corporal, encenada com a força simbólica necessária para despertar os sentimentos reprimidos dos traumas do passado. Ele também acredita na reconstrução teatral psicomágica das narrativas de vida. Devemos recontar a história de nossas vidas - “como na recapitulação de Carlos Casteneda” (1) e do xamanismo tolteca.

Jodorowsky é um xamã pós moderno! Por onde passa, ele trabalha com pessoas, dramatizando suas vidas em narrativas; fazendo grupos e oficinas sobre temas simbólicos; desencadeando mudanças de todos os tipos.

Será que Jodorowsky deseja curar as pessoas com seus filmes? (2)

Talvez em seus primeiros filmes, ele tenha tipo a pretensão de curar através do cinema, mas depois do episódio de Duna, seus filmes ficaram mais pessoais e terapeuticamente autoficcionais, com reinvenções explícitas de sua própria história. Nas cineautobiografias A dança da realidade (2013) e Poesia sem fim (2016), o diretor Alejandro Jodorowsky rememora e reimagina seu passado, recontando sua história com intervenções, curando a si mesmo “metagenealogicamente”, superando a “origem de seus problemas pessoais e coletivos através da arte”. Ele continua o mesmo, mas agora é o protagonista de suas histórias.

Em agosto de 2019, tive a honra de ser convidado como avaliador da banca de mestrado (em Comunicação e Culturas Midiáticas da Universidade Federal da Paraíba de Agamenon Porfirio de Lima Filho) que defendeu a dissertação: Escritas de Si e fabulação da memória no cinema autobiográfico de Alejandro Jodorowsky (2020).

Por tudo, passei a me identificar profundamente com o cineasta-xamã e a entender sua contribuição decisiva para o entrecruzamento entre arte, terapia e pensamento.

Porém, na minha perspectiva, a sua maior contribuição para posteridade (e também o ponto em nossa afinidade se torna mais profunda) é seu livro O Caminho Tarot (2016), escrito com Marianne Costa. Na verdade, toda criatividade arquetípica de personagens, ações e situações; todo trabalho narrativo (seja nos quadrinhos, no cinema, no teatro, na terapia e na literatura) de Jodorowsky é baseado nos arcanos do tarô. Na conclusão do livro, o velho xamâ faz uma espécie de testamento tarológico, em que justifica toda sua ética em relação ao outro e ao mundo - a partir da perspectiva de um jogador frente ao seu consulente.

Jodorowsky confirmou vários pontos (contra cartomancia, contra as adaptações esotéricas de outros sistemas simbólicos como a astrologia e a cabala, a perspectiva da psicologia analítica junguiana, entre outros) que desenvolvi em meu livro Cartografia Arquetípica, indo muito mais além no estudo do simbolismo do Tarô de Marselhe, principalmente em relação à leitura do sistema como um todo.

Hoje, vendo seu trabalho em panorâmica, vejo uma parte de mim mesmo em desenvolvimento paralelo. História em quadrinhos, cinema, tarô. Não havia ainda a internet, mas eu já compartilhava pela alma meus interesses com este mestre feiticeiro. Imagino que não seja o único e que sua herança ainda esteja para ser vislumbrada.

NOTAS

(1) Entrevista ao jornalista Fernando Sanchez Dragó . Primeira parte < https://youtu.be/Sm8xAlFF18c > e segunda parte < https://youtu.be/bZt4v4UIdv0 >.

(2) A monografia Cinema como instrumento de psicomagia – a cura do espectador, de Eric Mendonça Carraro (2017) faz um resumo destes textos < https://dspace.unila.edu.br/handle/123456789/2275 >


domingo, 8 de agosto de 2021

sexta-feira, 14 de maio de 2021

tarô jodorowsky



Conclusão: o pensamento tarótico1


Alejandro Jodorowsky


Meus longos anos de contato com o Tarot me aportaram novas maneiras de captar o mundo e o outro, deixando que a intuição dançasse com a razão e se amalgamasse com aquilo que chamei de "pensamento tarótico"2 ... descrever o pensamento tarótico poderia constituir o objeto de um outro livro. Aqui, me contentarei em dar alguns exemplos.



Os Arcanos possuem múltiplos significados que vão do particular ao geral, do evidente ao inabitual. É preciso considerar cada Arcano como um conjunto de significações. Essas significações adquirem mais ou menos importância conforme o sistema cultural de quem os interpreta.

Na realidade, cada ser humano é um Arcano. Nós podemos viver bem a vida inteira ao lado de alguém, mas não poderemos dizer que o conhecemos totalmente. Estamos habituados a seus pensamentos, seus sentimentos, seus desejos, seus gestos, suas atividades rotineiras, mas basta um único acontecimento extraordinário - uma doença, uma catástrofe, um fracasso ou um sucesso - para descobrirmos nessa pessoa aspectos inabituais que nos surpreenderão feliz ou dolorosamente. Aquilo que pensamos ser a realidade é apenas uma parte da realidade. Aquilo que projetamos de uma pessoa é apenas uma parte de sua personalidade. Os defeitos ou qualidades que vemos nos outros são igualmente nossos. Essas condutas inesperadas com as quais o mundo e os outros nos surpreendem provocam reações que dependem do nosso nível de consciência. Em um nível de consciência pouco desenvolvido, qualquer mudança nos apavora, nos deixa desconfiados, nos faz fugir, nos paralisa, nos torna furiosos ou prestes a atacar. Uma consciência desenvolvida aceita a mudança contínua e avança, confiante, sem objetivo, desfrutando da existência presente, construindo passo a passo a ponte que atravessa o abismo.

Para chegar às leituras que curam, as primeiras coisas que precisei vencer foram as antipatias e simpatias. Cada habitante do nosso mundo representa um ponto de vista distinto, novo, que não existia antes de seu nascimento. Algo de original, de único. Quando um ente querido nos deixa, nós temos a impressão de que o universo inteiro se esvazia ... Quem quer que seja, o consulente merece nosso respeito como uma obra divina que jamais se repetirá, com a possibilidade de aportar ao mundo a semente de um bem desconhecido.



Não existe tarólogo impessoal. Todo tarólogo é marcado por uma época, por um território, por uma língua, uma família, uma sociedade, uma cultura.

Da mesma maneira que na literatura o romance deixou de ser narrado por um escritor-testemunha - considerado um deus -, deixando que as coisas se desenvolvam sem intervenções e sem ser afetado, e passou a ser contado por um personagem intimamente ligado aos acontecimentos, mais um ator na trama, eu precisei dar o mesmo passo na leitura do Tarot: de nenhuma maneira suportei a ideia de me colocar na posição de um vidente que conhece o presente e o futuro do consulente, observando-o desde uma altura mágica, impessoal, emprestando a voz a entidades de outro mundo... Sendo os Arcanos como telas de projeção, era necessário que eu me desse conta de que tudo o que via nas cartas estava impregnado pela minha personalidade. Não podendo me libertar de mim mesmo, eu me perguntei: "O que eu sou quando leio o Tarot? Será que meu pensamento é masculino? Será que é latino-americano? Europeu? Será adolescente ou maduro? Será que a minha moral é judaico-cristã? Será que sou crente, ateu, comunista, servidor do regime estabelecido? Será que percebo as características da minha época?"... Para chegar a uma leitura útil, eu me dei conta de que, sem poder me separar da minha personalidade, eu devia "trabalhá-la", poli-la até chegar a sua essência. Eu prometi a mim mesmo não obedecer às modas, não cair na peça de nenhuma tradição ou folclore ... Observei com atenção a minha imagem do mundo e tentei com todas as minhas forças modificar meu espírito masculino, aceitando o feminino, para fundir os dois até atingir o pensamento andrógino... Se nasci no Chile e me formei no México e na França, dentro de mim deixei de ter uma nacionalidade, conseguindo com toda sinceridade me sentir um cidadão do cosmos. Isso me levou a me dar conta dos meus limites enquanto ser humano. Minha consciência não era prisioneira de um corpo mineral, vegetal ou animal, ela era a essência do universo inteiro. O que me permitiu me colocar no lugar não apenas de outras pessoas, mas igualmente de objetos. O que será que sente o meu gato, esta árvore, o relógio no meu pulso, o sol, as pedras do calçamento onde piso, meus órgãos, minhas vísceras etc.? Nesse trabalho de desprendimento e refinamento, perdi não só a nacionalidade, mas também a idade, o nome, os rótulos como "escritor", "cineasta", "terapeuta", "místico" e muitos outros. Parei de me definir: nem gordo, nem magro, nem bom, nem mau, nem generoso, nem egoísta, nem bom pai, nem mau pai, nem isso, nem aquilo. Parei igualmente de esperar objetivos ideais: nem campeão, nem herói, nem santo, nem gênio. Tentei com todas as minhas energias ser aquilo que eu era. Parei de me prender a uma única língua e desenvolvi um amor, um respeito por todas as línguas, ao mesmo tempo em que me dei conta de que, se as palavras não atingiam a poesia, se tornavam engodos. Creio que a origem de todas as doenças psicossomáticas é um conjunto de palavras ordenadas em forma de proibição. Impor uma visão é proibir outras. O universo não possui limites e funciona com um conjunto de leis diferentes, às vezes contraditórias, em cada dimensão. Quanto mais eu expandia os meus limites, mais enxergava os limites do outro. Hoje em dia, quando leio o Tarot e entro em transe, meu eu quase transformado em você, eu me sinto diante do consulente como diante de um céu azul que recebe a passagem de uma nuvem... Na realidade, não lemos para dizer ao consulente aquilo que ele é, mas para compreendê-lo. No dia em que o compreendermos totalmente, nós desapareceremos... No fundo, creio que nossa verdadeira consulente é a morte. Tentemos compreendê-la. Quando morremos, isto é, quando nos tornamos ela, nós nos dissolvemos, por fim, na Verdade.



Nenhum tarólogo pode dizer a verdade. Ele só pode dizer sua interpretação da verdade. Quando se lê o Tarot, não se sabe. Uma vez que ele lê para compreender, o tarólogo deve continuar a leitura mesmo que não compreenda o que ele vê. Da mesma maneira que toda interpretação é fragmentária, a abundância de interpretações faz com que o consulente se aproxime do conhecimento... Não existe pergunta insignificante. As perguntas superficiais e as profundas, as inteligentes e as estúpidas possuem a mesma importância: as interpretações de cada Arcano sendo infinitas, o valor da pergunta dependerá não de sua qualidade, mas da qualidade da resposta do tarólogo.

Eu me dei conta de que compreender aquilo que eu via era uma ilusão. Para compreender verdadeiramente uma coisa, era preciso decifrar o que é o universo. Sem abarcar o todo, era impossível saber com certeza o que era uma de suas partes. O consulente não é um indivíduo isolado. Para saber quem ele é, o tarólogo, além de sua vida desde o instante em que foi concebido e viu a luz do dia, deveria conhecer a vida de seus irmãos, de seus pais, de seus tios, de seus avós e, se possível, a vida de seus bisavós. Saber a educação que ele recebeu, conhecer os problemas da sociedade na qual ele viveu, assim como os arquétipos e a cultura que formaram seu espírito ...



Uma vez que é impossível captar a totalidade do outro, é da mesma maneira impossível julgá-lo. A positividade ou a negatividade de um acontecimento não são intrínsecas; são apenas interpretações subjetivas. Em deferência ao consulente, é preferível sempre buscar a interpretação positiva.

Uma árvore, ao mesmo tempo que eleva seus galhos para o céu, mergulha suas raízes na terra. A luz é infinita, a escuridão é infinita. Cavar no sofrimento contido em nosso inconsciente faz com que nos impregnemos com o sofrimento de toda a humanidade; a dor é infinita. Uma vez expressos o pranto e a cólera, é mais útil buscar valores escondidos como tesouros em nosso ser essencial. A paz é infinita.



Um tarólogo não deve comparar o consulente com outras pessoas que se parecem fisicamente. Comparar, enquanto maneira de definir, é uma falta de respeito para com a diferença essencial de cada ser.

O consulente pode não conhecer a si mesmo e, na maior parte do tempo, ignorar as influências recebidas de sua árvore genealógica. Se ele fala uma única língua, se ele não viajou para países distantes, se ele não estudou outras culturas, se ele jamais imobilizou seu corpo para meditar, se tendo de escolher entre fazer ou não fazer, ele fugiu de toda experiência nova com medo do fracasso, podemos dizer que seu inconsciente se apresenta para ele não como aquilo que é, ou seja, um aliado, mas como um mistério inquietante, um inimigo... Jamais ele saberá a base real daquilo que pensa, sente, deseja ou faz ... Isso porque, durante a leitura do Tarot, suas perguntas, por mais superficiais que pareçam, ocultarão processos psicológicos profundos ... "Será que devo ir ao salão de beleza, tingir o cabelo e mudar de penteado?": a pergunta é muito simples, aparentemente frívola, mas, no entanto, pode receber uma resposta profunda. Se fosse só isso que dizem as palavras, que necessidade a pessoa teria de ser aconselhada? Bastaria tomar a decisão sozinha ... Podemos ver nessa tintura e nessa mudança de penteado que a consulente exprime seu desejo de mudar de vida, de não estar mais sozinha, ou ao contrário, de terminar seu casamento, ou sob outro aspecto, de empreender novas experiências, de buscar ser reconhecida - que ela exprime sua insatisfação diante de si mesma ou sua descoberta de novos valores que a obrigam a se separar de uma personalidade antiga ... O Tarot nos ensina a respeitar todas as perguntas: cada pergunta é uma oportunidade de aprofundar a descoberta de nós mesmos para vivermos engastados como um pedra preciosa na joia que é o presente. A maior parte dos consulentes não se sente como algo que existe e é, mas como algo que ainda será.



Toda generalização é ilusória. Os acontecimentos nunca são semelhantes ... Quando damos o outro como exemplo, sempre aquele que o cita emite uma concepção pessoal. Para cada indivíduo, o outro édiferente.

Sendo o outro parte de um todo infinito, é impossível isolá-lo em uma definição; quando o outro é capturado e interpretado por nós, ele recebe os limites que corresponde ao nosso nível de consciência. Esse outro é uma mistura daquilo que ele mostra e daquilo que nós acrescentamos fazendo dele nosso próprio reflexo. As qualidades que enxergamos nele, assim como os defeitos, fazem parte das nossas próprias qualidades e defeitos ... Ao julgá-lo, ao mensurá-lo, ao lhe atribuir rótulos - bom, mau, belo, feio, egoísta, generoso, inteligente, estúpido etc. - estaremos mentindo a nós mesmos. Todo julgamento que exprimirmos é sempre feito em comparação com a imagem limitada, e portanto artificial, que temos de nós mesmos.



O real não é bom, nem mau, nem belo, nem feio em si, ele não possui nenhuma outra qualidade. A unidade divina não pode ter qualidades, nem ser definida por um tarólogo que não a compreende, pois não a pode conter. O Todo é formado por todas as partes, mas todas as partes não formam o Todo.

Em nenhum momento o tarólogo pode se arvorar a ser juiz de seu consulente ou a aceitar como reais, justas, as visões que ele tem dos membros de sua família ou dos seres que ele evoca na leitura.



Em um mundo infinito, não se pode afirmar: "Tudo é assim". A fórmula correta é: "Quase tudo é assim". Se noventa e nove por cento éconsiderado negativo, não se pode excluir a positividade do um por cento. Esse um por cento positivo é mais digno de definir a totalidade que os noventa e nove por centro negativos. Essa pequena positividade redime a grande negatividade.

Eis por que não é útil afirmar que o mundo é violento. Podemos admitir que existe violência no mundo, muita violência, mas não podemos defini-lo por esse erro. O mundo é também perfeito como o cosmos. O ser humano é igualmente assim. Não se pode afirmar que ele é doentio. Enquanto a vida lhe dá alento, o corpo humano é um organismo complexo, misterioso, dotado de saúde. Estar vivo é estar são, física e mentalmente. Podemos ter doenças, atitudes psicóticas, mas por mais que sejam graves, elas não fazem de nós "doentes" ou "loucos", elas não definem nosso ser, mas nosso estado presente ... O espírito humano, infinito, não suporta rótulos ... O tarólogo, mais do que lhe mostrar seus numerosos defeitos, deve tentar captar as qualidades do consulente que, mesmo que não sejam numerosas, lhe ajudarão mais a ser o que ele é verdadeiramente.



Não devemos definir o consulente por suas ações, mas sim definir as ações que o consulente realizou. Ele não é "tolo": ele cometeu tolices; ele não é "ladrão": ele se apropriou de coisas que pertenciam a outra pessoa. Se definirmos o consulente por suas ações, nós o separaremos da realidade.

O valor de uma leitura depende do nível de consciência do tarólogo. Se ele é sábio, ele pode obter mensagens preciosas, por mais absurdos que sejam os Arcanos escolhidos pelo consulente. A consciência elevada do tarólogo outorga sabedoria ou tolice à leitura, mas os Arcanos em si mesmos não são sábios nem tolos: eles não possuem qualidades. Quem possui qualidades é aquele que as enuncia.

As leituras, apesar de sua importância, são sempre interpretações pessoais do tarólogo, e por isso mesmo não devemos lhes dar a qualidade de prova absoluta ... Nenhuma leitura pode constituir prova de umfato.

A exatidão e a precisão, em uma realidade constantemente cambiante, são dois obstáculos à compreensão.

O desejo de perfeição, de exatidão, de precisão, de repetição daquilo que é conhecido e estabelecido são manifestações de um espírito rígido que teme a mudança, a diferença, o erro, a permanente impermanência do cosmos. Essa atitude obstinadamente racional se opõe ao pensamento tarótico, que se assemelha ao pensamento poético. Já ouvimos o poeta Edmond Jabes dizer: "Ser é interrogar o labirinto de uma pergunta que não tem resposta".



Depois que interpretamos um Arcano, podemos, mais tarde, modificar essa interpretação. As interpretações não são parte integrante do Arcano, o Arcano não pode mudar, mas sim o tarólogo, na medida em que ele éum ser que se transforma. Não mudar nunca de interpretação é teimosia. Toda mensagem obtida pela leitura das cartas pode ser contradita por uma segunda leitura das mesmas cartas. As mensagens não são extraídas das próprias cartas, mas de interpretações que damos a essas cartas.

Responder "não" a uma afirmação é um erro. Nada pode ser negado em sua totalidade. Melhor é dizer: "É possível, mas de um outro ponto de vista podemos também dizer o contrário".

A doença é essencialmente separação, isto é, ela surge essencialmente da crença de que estamos separados.

Alguns autores de livros de autoajuda aconselham a não pensarmos como um corpo que tem um espírito, mas como um espírito que tem um corpo ... Ponto de vista que a princípio adotei com fervor; depois, pensando que a solução correta de um problema não produz um ganhador e um perdedor, mas dois ganhadores, aceitei ­ de acordo com a finalidade da alquimia: espiritualização da matéria e materialização do espírito - que eu era ao mesmo tempo um espírito que tinha um corpo e um corpo que tinha um espírito ... Mas, se considerarmos a primeira afirmação, será que eu era realmente um espírito, isto é, uma entidade individual, diferente do todo ...? Sim, eu era um espírito, mas era ao mesmo tempo um planeta, uma galáxia, um universo e, se eu aceitasse um princípio criador, um Deus. Isso me obrigou a dizer: sou um corpo que possui um deus, sou um deus que possui um corpo ... Será que eu podia, então, separar meu corpo dos outros corpos, da Terra, das estrelas, da matéria universal?



A saúde é a Consciência divina. O caminho que leva até ela é a informação, desde que se considere informação não tanto as palavras mas as experiências de um conhecimento que, inscrito no corpo, se apresenta como uma exigência daquilo que nos falta. E isso que nos falta é a experiência da união com o deus interior. O sofrimento é a ignorância. A doença é a ausência de consciência. O consulente, sendo totalmente relacional, para chegar à saúde precisa receber a informação essencial. Para que uma doença possa ser curada, ele deve se colocar em relação a seu deus interior.

Se o mundo é infinito, nenhuma ordem é real. Só pode ser ordenado aquilo que possui limites precisos. Podemos buscar a utilidade momentânea de uma ordem, mas não sua veracidade. O mundo é uma representação subjetiva que pode ser ordenada de infinitas maneiras. Convém buscar a ordem que nos cause menos sofrimento.

A chave mágica que permite ao consulente, assim como ao tarólogo que lhe faz a pergunta, organizar positivamente sua passagem pelo mundo é: "A vida me alegra?" Essas pessoas, esse trabalho, esta cidade, esse país, esta casa, esse móvel, tornam minha vida feliz? Se não tornam minha vida feliz, isso quer dizer que não me convêm enquanto companhia, meio ambiente, território, atividade. Isso me convida a evitar me envolver com eles.



Todo conceito é duplo, composto pela palavra enunciada e uma palavra contrária não pronunciada. Afirmar alguma coisa é também afirmar a existência de seu contrário. O tarólogo deve buscar a relação de um conceito com seu contrário. Por exemplo: feio (em relação a alguma coisa bela); pequeno (em relação a alguma coisa grande); defeito (em relação a alguma qualidade) etc. Fora da relação, o conceito não tem nenhum sentido.

O consulente não chegará a saber quem ele é sem se comparar. A personalidade adquirida, e não a personalidade essencial, se constitui com base em comparações. Desde a infância, exigem de nós que pareçamos, não que sejamos. Se a criança não corresponde àquilo que os pais acreditam que ela deva ser, eles a culpabilizam. As revistas de moda exibem mulheres que obedecem a critérios de beleza muitas vezes afastados da realidade humana. Da mesma maneira, o cinema e a televisão. Quando uma consulente sofre de um complexo de feiúra, é fundamental que o tarólogo descubra com o que ela se compara. O olhar dos pais e dos professores forma o espírito da criança. Se ninguém a olha tal como ela é - submetendo-a a olhares críticos ou comparando-a com os irmãos, irmãs ou amigos "melhores" -, a criança cresce tendo a sensação de não ser ninguém, sem se conceder o direito à realização de suas potencialidades ... As escolas que estabelecem os cânones de inteligência, pensando que só existe uma maneira correta de pensar, provocam desvalorizações dramáticas. O tarólogo deve escavar como um arqueólogo na memória do consulente, buscando os "exemplos perfeitos" com os quais o consulente se compara para libertá-lo da inveja ... Aquele com quem o consulente se compara, seu desejo de ter e de ser o que o outro possui e aquilo que o outro é, persegue o consulente como uma sombra amarga... Alguns pais nocivos, ao mesmo tempo que exigem o sucesso de seus rejeitados, os proíbem de maneira tácita de realizar aquilo que eles mesmos não puderam realizar. A neurose do fracasso faz com que muitos consulentes se desconheçam a si mesmos. O tarólogo deve começar sua leitura aceitando que se dirige a alguém que é aquele que sua família, sua sociedade quiseram que ele fosse, motivo pelo qual ele crê possuir objetivos que não são seus, com obstáculos artificiais e miragens à guisa de soluções. O Tarot poderá indicar sua natureza, seus objetivos, seus obstáculos e as soluções verdadeiras lhe fazendo ver a região muda de sua existência.



Aquilo que o consulente não sabe faz parte de sua vida, tanto quanto aquilo que ele sabe. Aquilo que o consulente não fez é tão importante quanto aquilo que ele fez. Aquilo que o consulente poderá um dia fazer faz parte daquilo que ele já está fazendo. Aquilo que o consulente foi e o que não foi, aquilo que ele é e aquilo que ele não é, aquilo que ele será e aquilo que ele não será constituem igualmente seu mundo.

Alguns consulentes, por medo de perder aquilo que acreditam ser sua individualidade, não querem ser curados, mas querem que nos ocupemos deles. Mais do que obter soluções, desejam ser ouvidos, que tenhamos pena deles. Diante das revelações da leitura, eles apresentam defesas... Embora sofram, eles afirmam que está tudo bem com a família, que na infância foram amados, que não foram afetados por nenhum tipo de abuso, que levam uma vida confortável. Não consideram nada aquilo que podemos lhe revelar como sendo verdade ... Em face dessa atitude, o tarólogo deve ter uma paciência de santo. Uma coisa é doar, outra coisa é obrigar a receber... Ao aceitarmos as defesas, em vez de atacá-las de maneira direta, é preciso contornar as negações até descobrir uma abertura por onde introduzir uma Ínfima tomada de consciência. Depois, ele deve convidar o consulente a meditar sobre essa revelação durante o tempo que for necessário e, uma vez que ela for bem compreendida, voltar a escavar em sua memória com a ajuda de uma nova leitura. "Para avançar um quilômetro é preciso dar um passo" (Tao Te Ching). No entanto, o terapeuta, por um desejo de poder, não deve tentar criar "clientela"... isto é, consulentes que depositem nele/nela uma dependência infantil, interpretando um papel de pai-mãe-prostituto que lhes serve de aspirina emocional. O Tarot não cura, ele serve para detectar a chamada "doença". Uma vez obtido isso, cabe a um psicanalista, um psiquiatra ou um psicomago continuar o trabalho.



Todos os Arcanos pertencem ao Tarot. É por isso que duas cartas observadas juntas, mesmo que pareçam conter significados absolutamente diferentes, possuem detalhes em comum. Diante de qualquer conjunto de cartas, épreciso sempre buscar o maior número de detalhes que lhes sejam comuns.

Todos os seres humanos pertencem a uma espécie comum e vivem no mesmo território, o planeta Terra. Por esse motivo, duas pessoas reunidas, mesmo que sejam de raças, culturas e situações sociais ou níveis de consciência diferentes, possuem características comuns. O tarólogo, abandonando qualquer veleidade de se sentir superior, deve captar essas semelhanças e concentrar a princípio sua leitura nas experiências que o unem ao consulente. Ninguém melhor que um "ex-doente" para curar um "doente".



O mau tarólogo, que confunde pensar e crer, enuncia interpretações caprichosas para depois buscar nos Arcanos símbolos que possam confirmar essas conclusões. Para ele, a verdade vem a priori, e é seguida a posteriori pela busca da verdade.

Para adotar uma conclusão, é preciso examinar os Arcanos sob o maior número de pontos de vista. Depois, escolher as interpretações que melhor convenham ao nível de consciência do consulente. E, em seguida, tirar as conclusões da comparação das interpretações escolhidas em detrimento das outras. Toda conclusão é provisória e só se aplica a um momento da vida do consulente, pois foi tirada de interpretações que, sendo feitas do ponto de vista do tarólogo, são limitadas.

Os testemunhos, apesar de sua importância, são sempre interpretações pessoais de um fato e, justamente por esse motivo, não lhes devemos conferir estatuto de prova absoluta. Nada do que o tarólogo leu pode constituir prova de um fato.

Dar conselhos a um consulente - "Você deve fazer isso", "Você não deve fazer aquilo" - é um abuso de poder. O tarólogo deve oferecer possibilidades de ação, deixando que o consulente faça sua escolha. O tarólogo não deve nunca ameaçar - "Se você não fizer assim, eis o que vai lhe acontecer" -, pois os atos realizados por obrigação, mesmo que pareçam positivos, agem como maldições.

Se o leitor é antes de mais nada um "eu", sendo incapaz de se tornar o espelho que reflete o outro, na realidade ele utiliza o consulente para curar a si mesmo. Em vez de ver, ele se vê. Em vez de compreender, ele impõe sua visão do mundo. Em vez de despertar os valores do consulente, ele o mergulha em um fascínio em que o tarólogo é o adulto e o outro a criança. O tarólogo não é a porta, mas a campainha, ele não é o caminho, mas o tapete que limpa o barro dos sapatos, ele não é a luz, mas o botão do interruptor.



O tarólogo não deve fazer promessas líricas ou elogios: "Você é uma alma nobre, você é uma pessoa boa, vai dar tudo certo, Deus te recompensará etc.", palavras inúteis que impedem a tomada de consciência. Para curar, o consulente não deve fugir do sofrimento, mas encarar o sofrimento, assumi-lo para em seguida dele se libertar. Um sofrimento conhecído é mais útil que cem louvores.

Quando, aos vinte e quatro anos, em um brutal acidente, meu filho Teo morreu, uma dor indescritível desintegrou meu espírito. Como um leproso, assisti sua cremação. Quando eu não achava que encontraria consolo possível, vi meu filho Brontis se aproximar do corpo e colocar um Tarot de Marselha na mão dele. Acompanhado do Tarot, ele foi cremado. Recebi uma urna com as cinzas desses dois seres sagrados ... Desde então, e para sempre, até o fim da minha existência, os Arcanos, mesclados ao meu filho, ocupariam um trono em minha memória. Aquilo em que acreditamos verdadeiramente e aquilo que amamos verdadeiramente são uma única e mesma coisa... A imensa dor da perda de um ser amado destrói a imagem que temos de nós mesmos. Se tivermos a coragem de nos reconstruir, nós nos tornaremos mais fortes, ao mesmo tempo em que compreenderemos melhor a dor dos outros.


1Final do livro O CAMINHO DO TARÔ, de Jodorowsky e Marianne Costa. tradutor: Alexandre Barbosa de Souza. Editora Chave, 2016. pág. 569-584.

2 De maneira filosófico-poética, sem dizer que me referia ao Tarot, já fiz isso em A escada dos anjos: uma arte de pensar (L'Échelle des anges: un art de penser, Le Relié. 2001). 

terça-feira, 11 de maio de 2021

terça-feira, 30 de março de 2021

domingo, 21 de março de 2021

Jurupari

Ceuci era uma índia virgem que engravidou misteriosamente. Como não sabia o nome do pai de seu filho, foi forçada a tê-lo muito longe da aldeia, em terras estranhas. A índia deu ao menino o nome de Jurupari, mandado pelo sol para reformar os costumes da terra e também encontrar nela uma mulher perfeita com quem o sol pudesse casar. Já ao sair do ventre de sua mãe, falou-lhe: "Não tenha receio mãe: eu venho de Tupã, que é meu pai, com a missão de reformar os costumes dos homens. Venho trazer a lei e o segredo, que ainda não existe nas tabas: por isso foi adequado o nome que me deste, Jurupari, o Boca fechada!". 

Quando o Jurupari chegou a terra, as mulheres é que mandavam. De imediato, retirou-lhes o poder, transferindo-os para os homens, sob o argumento que o poder feminino contrariava as leis do Sol, a divindade máxima que era masculina. Jurupari também estabeleceu uma nova e rigorosa distribuição de trabalho: os homens deveriam ir à guerra, à caça e pesca e às derrubadas da mata. As mulheres deveriam dedica-se à cerâmica, tecelagem, transporte de carga, trato dos filhos e agricultura. Além disso, Jurupari obrigou as jovens da tribo a manterem a virgindade até a primeira menstruação; condenou o homossexualismo; o incesto e o adultério que eram punidos com a morte. E para que os homens aprendessem a viver sem mulheres, Jurupari instituiu grandes festas que só eles podiam tomar parte. 

Inconformada com as leis e saudosa do filho, Ceuci resolveu, certa noite, dar uma espiada no cerimonial dos homens. 

Furtivamente, então, entrou na "Casa dos Homens", mas logo foi descoberta e morta pelos guerreiros do próprio filho. 

Jurupari foi chamado às pressas para ver a mãe, mas não pode fazer mais nada, porque não podia abrir precedentes em suas leis. 

“Minha mãe morreu porque desobedeceu à lei de Tupã. A lei que eu vivo a ensinar. Não posso ressuscitá-la, mas posso recomendá-la a meu pai que vai recebê-la de braços abertos lá no céu”. E Ceuci subiu aos céus, em um arco-íris, transformou-se na estrela mais resplandecente da constelação das Sete Estrelas. 

Jurupari veio a mando do Sol para reformar os costumes dos homens e também encontrar a mulher perfeita com quem o Sol pudesse casar. Não a encontrou e jamais encontrará. 

Talvez porque nenhuma mulher aceitará plenamente suas leis, talvez por ter renegado a própria mãe em nome delas, o herói solar é prisioneiro de sua missão. Ou maldição, pois Jurupari só regressará ao céu no dia em que tiver encontrado seu amor novamente

quinta-feira, 11 de março de 2021

dê o que deseja receber

 A LEI UNIVERSAL

A ética da reciprocidade, também chamada de regra de ouro ou regra áurea, é um princípio moral que pode ser expressa como uma injunção positiva ou negativa:

Cada um deve tratar os outros como gostaria que ele próprio fosse tratado (forma positiva ou diretiva).

Cada um não deve tratar os outros da forma que não gostaria que ele próprio fosse tratado. (forma negativa ou proibitiva, ou ainda regra de prata)

Em ambas as formas, serve como uma diretiva para tratar os outros como a si próprio. A Regra de Ouro difere da máxima da reciprocidade expressa como do ut des - "Dou para que tu dês" − sendo, por isso, um compromisso moral unilateral com vista ao bem-estar dos outros, sem expectativas de nada em troca.

No entanto, muitos autores cristãos vinculam a forma negativa da regra de ouro como uma consequência da visão contractualista de uma sociedade hobbesiana,  na qual cada pessoa se considera primeira e majoritariamente como um indivíduo que transborda direitos/desejos, mas que não tem nenhuma responsabilidade fundamental para com ninguém. Segundo este ponto de vista, em sua forma invertida, há um esvaziamento moral em seu sentido, uma vez que a finalidade da regra de ouro passa ser apenas a proteção  direitos/desejos individuais e simultaneamente reduzir o conflito com os outros indivíduos. A regra, portanto, em sua versão invertida, abandona o seu compromisso moral com o bem-estar dos outros focando apenas na busca do bem próprio.

O conceito ocorre, sob alguma forma, em quase todas as religiões e tradições éticas. Também pode ser explicada sob a perspectiva da psicologia, da filosofia, da sociologia e da economia. Psicologicamente, envolve o desenvolvimento de empatia com os demais. Filosoficamente, envolve uma pessoa perceber seu próximo também como um "eu". Sociologicamente, "ama o próximo como a ti mesmo" é aplicável entre indivíduos, entre grupos e também entre indivíduos e grupos. Em economia, Richard Swift, em referência a ideias de David Graeber, sugere que "sem algum tipo de reciprocidade, a sociedade não poderia mais existir".

Exemplos de referência à Regra Áurea nas religiões mais antigas

No zoroastrismo (cerca de 660 - 583 a.C.)

Um caráter só é bom quando não faz a outros aquilo que não é bom para ele mesmo. − Dadistan-i-Dinik 94:5

No budismo (cerca de 563 - 483 a.C.)

Não atormentes o próximo com aquilo que te aflige. − Udana-Varga 5:18

No confucionismo (cerca de 551 - 479 a.C.)

Não façais aos outros aquilo que não quereis que vos façam. − Analectos de Confúcio, 12.2 e 15.24

No hinduísmo (cerca de 300 a.C.)

Esta é a suma do dever: não faças aos demais aquilo que, se a ti for feito, te causará dor. − Mahabharata (5:15:17)

No judaísmo (cerca de 200 d.C.)

O que é odioso para ti, não o faças ao próximo. Esta é a lei toda, o resto é comentário. − Talmude, Shabbat 31ª

No islamismo (cerca de 570 - 632 d.C.)

Nenhum de nós é crente até que deseje para seu irmão aquilo que deseja para si mesmo. − Suna

No cristianismo (cerca de 30 d.C.)

Portanto, tudo que quereis que os homens vos façam, fazei-o também a eles. − Jesus, no Sermão da Montanha, Mateus 7:12

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

EMA

 

Para diversos indígenas brasileiros, uma das figuras principais que podemos observar no céu noturno é a grande Constelação da Ema, que fica entre a constelação de Escorpião e o Cruzeiro do Sul.

Segundo o mito, a Ema tenta devorar dois ovos de pássaro próximos ao seu bico, representados pelas estrelas alfa Muscae e beta Muscae. E o Cruzeiro do Sul está segurando o bico da ave que, de outra forma, acabaria bebendo toda água da terra e devorando toda a humanidade. 

Conheça AQUI a lenda EMA.


domingo, 10 de janeiro de 2021