quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Loucura controlada


“- É possível insistir, insistir realmente, mesmo sabendo que o que se está fazendo é inútil - disse ele, sorrindo. - Mas primeiro temos de saber que nossos atos são inúteis e, no entanto, temos de proceder como se não soubéssemos. É esta a loucura controlada de um feiticeiro.”
Uma Estranha Realidade, pág. 75

“- Será que você me conta mais a respeito de sua loucura controlada?
- O que é que você quer saber a respeito?
- Diga-me, por favor, Dom Juan, o que é exatamente a loucura controlada?
Dom Juan riu à grande e provocou um estalo, dando uma palmada em sua coxa.
- Isto é loucura controlada! - falou, e tornou a dar uma palmada na coxa.
- O que quer dizer?
- Estou contente que você afinal me pergunte acerca de minha loucura controlada, depois de tantos anos, e no entanto não teria a mínima importância para mim, se você nunca perguntasse. E no entanto resolvi ficar feliz, como se me importasse, porque você perguntou, como se importasse que eu ligasse. Isso é loucura controlada!
Nós dois rimos muito. Abracei-o. Achei a explicação dele uma delícia, embora não a entendesse muito bem.”
Uma Estranha Realidade, pág. 77

“- Com quem você pratica a sua loucura controlada, Dom Juan? - perguntei, depois de um longo silêncio. Ele riu.
- Com todo mundo!
- Então, quando é que você resolve praticá-la?
- Cada vez que eu ajo.
Achei necessário recapitular, nesse ponto, e perguntei-lhe se a loucura controlada significava que os atos dele nunca eram sinceros, e apenas os atos de um ator.
- Meus atos são sinceros - disse ele - mas são apenas os atos de um ator.
- Então, tudo o que você faz deve ser loucura controlada! - falei, realmente surpreendido.
- Sim, tudo.
- Mas isso não pode ser verdade - protestei - não acredito que todos seus atos sejam só loucura controlada.
- Por que não? - respondeu ele, com um ar misterioso.
- Isso significaria que nada lhe importa e você não liga realmente para nada ou ninguém. Veja o meu caso, por exemplo. Quer dizer que não se importa se eu me tornar um homem de conhecimento, se eu viver ou morrer, ou fizer qualquer coisa?
- É verdade! Não me importo. Você é como Lúcio, ou qualquer outra pessoa em minha vida, minha loucura controlada.”
Uma Estranha Realidade, pág. 77

“- Estou com a impressão de que não estamos falando sobre a mesma coisa. Eu não devia ter usado o meu caso como exemplo. O que eu queria dizer era que devia haver alguma coisa no mundo com a qual você se importe e que não seja loucura controlada. Não creio que seja possível a gente continuar a viver se nada realmente nos importa.
- Isso se aplica a você - respondeu. - As coisas importam a você. Perguntou-me acerca de minha loucura controlada e eu lhe disse que tudo o que faço com relação a mim e meus semelhante é loucura, pois nada importa.
- O que eu digo, Dom Juan, é que, se nada lhe importa, como é que você pode continuar a viver?
Riu depois de um momento, em que parecia estar resolvendo se devia ou não responder-me; levantou-se e foi para os fundos da casa. Acompanhei-o.
- Espere, espere, Dom Juan - falei. - Quero mesmo saber; você tem de me explicar o que quer dizer.
- Talvez não seja possível explicar - disse ele. - Certas coisas em sua vida lhe importam porque são importantes; seus atos certamente são importantes para você, mas, para mim, não há mais nenhuma coisa importante, nem os meus atos nem os de meus semelhantes. Mas continuo a viver porque tenho minha vontade. Porque temperei minha vontade em toda minha vida, até ela se tornar limpa e sadia, e agora não mais me importa o fato de nada importar. Minha vontade controla a loucura de minha vida.
Agachou-se e passou os dedos por umas ervas que tinha posto a secar ao Sol num pedaço de pano.
Eu estava confuso. Jamais poderia ter antecipado o rumo que minha pergunta tomaria. Depois de algum tempo, pensei num bom argumento. Disse-lhe que, em minha opinião, alguns dos atos de meus semelhantes tinham a maior importância. Observei que a guerra nuclear era positivamente o exemplo mais dramático de um desses atos. Disse que, para mim, a destruição da vida na face da terra era um ato de uma enormidade arrasante.
- Você crê nisso porque está pensando. Está pensando na vida - disse Dom Juan, com um brilho nos olhos. - Não está vendo.
- Eu sentiria outra coisa se estivesse vendo? - perguntei.
- Quando o homem aprender a ver, ele se encontra sozinho no mundo, apenas com a loucura - disse Dom Juan, misteriosamente. Parou um momento e olhou para mim como se quisesse avaliar o efeito de suas palavras. - Seus atos, bem como os atos de seus semelhantes em geral, parecem-lhe importantes porque você aprendeu a pensar que são importantes.
Ele usou a palavra "aprendeu" com uma entonação tão especial que me levou a perguntar o que ele queria dizer com aquilo. Parou de mexer nas plantas e olhou para mim.
- Aprendemos a pensar sobre tudo - disse ele - e depois exercitamos nossos olhos para olharem como pensamos a respeito das coisas que olhamos. Olhamos para nós mesmos já pensando que somos importantes. E, por isso, temos de sentir-nos importantes!
Mas quando o homem aprende a ver, entende que não pode mais pensar a respeito das coisas que ele olha, e se não pode mais pensar sobre as coisas que olha, tudo fica sem importância.”
Uma Estranha Realidade, pág. 78

“- Aquilo que você me disse hoje à tarde sobre a loucura controlada me perturbou muito. Não consigo compreender o que você queria dizer.
- Claro que não consegue compreender - falou. - Você está tentando pensar a respeito, e o que eu disse não se coaduna com seus pensamentos.
- Estou tentando pensar a respeito, porque esse é o único meio pelo qual eu, pessoalmente, consigo entender alguma coisa. Por exemplo, Dom Juan, quer dizer que uma vez que o homem aprenda a ver, tudo no mundo passa a ser sem valor?
- Eu não disse sem valor. Falei sem importância. Tudo é igual, e dessa forma sem importância. Por exemplo, não há meio de eu dizer que meus atos sejam mais importantes do que os seus, ou que uma coisa seja mais essencial do que outra; e, portanto, todas as coisas são iguais, e sendo iguais são sem importância.
Perguntei-lhe se suas declarações eram uma afirmação de que o que ele chamara de "ver" era realmente um "meio melhor" do que apenas "olhar para as coisas". Ele disse que os olhos do homem podiam desempenhar ambas as funções, mas que nenhuma das duas era melhor do que a outra; no entanto, treinar os olhos apenas para olhar, para ele, era um desperdício desnecessário.
- Por exemplo, precisamos olhar com nossos olhos para rir - disse ele - porque só quando olhamos para as coisas é que pegamos o lado engraçado do mundo. Por outro lado, quando os nossos olhos vêem, tudo é tão igual que nada é engraçado.
- Quer dizer, Dom Juan, que o homem que vê nunca pode rir?
Ficou calado por algum tempo.
- Talvez haja homens de conhecimento que nunca riem falou. - Mas não conheço nenhum. Aqueles que eu conheço vêem e olham, de modo que riem.
- Um homem de conhecimento também pode chorar?
- Suponho que sim. Nossos olhos olham, de modo que podemos rir, ou chorar ou regozijar-nos, ou ficar tristes, ou felizes. Pessoalmente não gosto de ficar triste, de modo que sempre que presencio alguma coisa que normalmente me entristeceria, limito-me a mudar meus olhos e vejo a coisa, em vez de simplesmente olhar para ela. Mas quando encontro alguma coisa engraçada, eu olho e rio.”
Uma Estranha Realidade, pág. 80

“- Há muitos homens de conhecimento que fazem isso - falou. - Um dia eles podem simplesmente desaparecer. As pessoas podem pensar que eles caíram numa emboscada e foram mortos por causa de seus atos. Preferem morrer porque não se importam. Por outro lado, prefiro viver e rir, não porque importe, mas porque essa escolha é de minha natureza. O motivo por que digo que prefiro, é que eu vejo, mas não é que prefira viver; minha vontade me faz continuar a viver a despeito de tudo o que eu possa ver. Você não me está entendendo agora por causa de seu hábito de pensar en­quanto pensa.
Essa declaração me intrigou muito. Pedi que ele explicasse o que queria dizer. Repetiu a mesma frase várias vezes, como que se dando tempo para arrumá-la em termos diferentes, e depois expôs seu argumento, afirmando que, por "pensar", ele queria dizer a idéia constante que temos de tudo no mundo. Disse que "ver" eli­minava esse hábito e até eu aprender a "ver" eu não podia realmente compreender o que ele queria dizer.
- Mas se nada tem importância, Dom Juan, por que importa que eu aprenda a ver?
- Já lhe disse uma vez que nosso destino como homem é aprender, para melhor ou pior - afirmou. - Aprendi a ver e lhe digo que nada realmente importa. Agora é sua vez. Talvez algum dia você aprenda a ver e então saberá se as coisas importam ou não. Para mim nada importa, mas talvez para você tudo importará. Você já devia saber que um homem de conhecimento vive pelos atos, não por pensar nos atos, e não por pensar no que vai pensar depois que acabar de agir. Um homem de conhecimento escolhe um caminho de coração e o segue; e depois olha e se regozija e ri; e então ele vê e sabe. Sabe que sua vida terminará muito depressa; sabe que ele, como todos os outros, não vai a parte alguma; sabe, por que vê, que nada é mais importante do que qualquer outra coisa. Em outras palavras, um homem de conhecimento não tem honra, nem dignida­de, nem família, nem nome, nem prática, mas apenas a vida a ser vivida, e, nessas circunstâncias, sua única ligação com seus seme­lhantes é sua loucura controlada. Assim, o homem de conhecimento se esforça, transpira e bufa; e, se se olhar para ele, parece um homem comum, só que tem que a loucura de sua vida está controlada. Como nada é mais importante do que outra coisa qualquer, um homem de conhecimento escolhe qualquer ato e age como se lhe importasse. Sua loucura controlada o leva a dizer que o que ele faz importa e o faz agir como se importasse, e no entanto ele sabe que não é assim; de modo que, quando pratica seus atos, ele se retira em paz, e quer seus atos sejam bons ou maus, dêem certo ou não, isso não o afeta de todo.
"Um homem de conhecimento pode preferir, por outro lado, permanecer totalmente impassível e nunca agir, e comportar-se como se ser impassível realmente lhe importasse; ele também será sincero agindo assim, pois isso também seria sua loucura controlada”.
Uma Estranha Realidade, pág. 82

“- Você pensa em seus atos - falou. - E, portanto, tem de acreditar que seus atos são tão importantes quanto você pensa que são, quando, na realidade, nada do que se faz é importante. Nada! Mas então, se nada importa realmente, conforme você me perguntou, como posso continuar a viver? Seria mais simples morrer; é isso que você diz e acredita, pois está pensando na vida, assim como agora está pensando em como seria ver. Queria que eu o descrevesse para você para poder começar a pensar a respeito, assim como faz com tudo o mais. No caso de ver, contudo, pensar não é a questão, em absoluto, de modo que não lhe posso dizer como é ver. Agora, quer que eu descreva os motivos de minha loucura controlada, e só lhe posso dizer que a loucura controlada é muito parecida com ver: é uma coisa sobre a qual não se pode pensar.
Ele bocejou. Deitou-se de costas e esticou os braços e as pernas. Os ossos de1e estalaram.
- Esteve fora muito tempo - disse ele. - Você pensa demais.
Levantou-se e foi para o chaparral espesso ao lado da casa. Alimentei o fogo, para conservar a panela fervendo. Já ia acender um lampião de querosene, mas a penumbra era muito calmante. O fogo do fogão, que dava luz suficiente para eu escrever, também criava uma luminosidade vermelha em volta de mim. Larguei minhas notas no chão e deitei-me. Estava cansado. De toda essa conversa com Dom Juan, a única coisa pungente em meu espírito era que ele não ligava para mim; aquilo me perturbou muito. Durante vários anos, eu depositara confiança completa nele. Se não tivesse essa confiança, eu teria ficado paralisado de medo com a idéia de aprender o conhecimento dele; a premissa em que eu baseara minha confiança era a idéia de que ele me apreciava pessoalmente; na verdade, eu sempre o temera, mas controlava meu medo porque confiava nele. Quando tirou aquela base, fiquei sem nada para me apoiar e senti-me desamparado.”
Uma Estranha Realidade, pág. 83

“Falei a Dom Juan que meu conflito era oriundo das dúvidas suscitadas pelas palavras dele a respeito da loucura controlada.
- Se nada importa realmente - disse eu - ao se tornar um homem de conhecimento, a pessoa se encontrará forçosamente tão vazia quanto meu amigo, e numa situação nada melhor.
- Isso não é verdade - replicou Dom Juan, num tom cortante. - Seu amigo está solitário porque há de morrer sem ver. Em sua vida, apenas envelheceu e agora tem de ter mais pena de si ainda do que antes. Sente que jogou fora 40 anos porque andou atrás de vitórias e só encontrou derrotas. Nunca há de saber que ser vitorioso e ser derrotado são a mesma coisa.
"Então, agora tem medo de mim porque eu lhe disse que você é igual a tudo o mais. Está sendo infantil. Nosso destino como homens é aprender e a gente procura o conhecimento como vai para a guerra; já lhe disse uma centena de vezes. Vai-se ao conhecimento ou à guerra com medo, com respeito, sabendo que se vai à guerra, e com uma confiança absoluta em si mesmo. Deposite sua confiança em si, não em mim”.
"E então você teme o vazio da vida de seu amigo. Mas não existe vazio na vida de um homem de conhecimento, posso garantir--lhe. Tudo está cheio até à borda”.
Dom Juan levantou-se e esticou os braços, como se estivesse tocando em coisas no ar.
"Tudo está cheio até à borda - repetiu ele - e tudo é igual.
Não sou como seu amigo que apenas envelheceu. Quando lhe digo que nada importa, não o digo do jeito que ele o faz. Para ele, sua luta não valeu a pena porque ele foi vencido; para mim não há vitória, nem derrota, nem vazio. Tudo está cheio até à borda; tudo é igual, e minha luta valeu a pena”.
"A fim de se tornar um homem de conhecimento, a pessoa tem de ser um guerreiro, não uma criança choramingas. E preciso lutar sem desistir, sem reclamar, sem hesitar, até ver, só para compreender então que nada importa.”
Uma Estranha Realidade, pág. 85

“- Você se preocupa demais em gostar das pessoas ou em pensar se gostam de você - falou. - Um homem de conhecimento gosta e pronto. Gosta daquilo ou da pessoa que quer, mas utiliza sua loucura controlada para não se preocupar com isso. O oposto do que você está fazendo agora. Gostar das pessoas ou ser apreciado por elas não é tudo o que se pode fazer, como homem.
. Ficou olhando fixamente para mim, com a cabeça inclinada para um lado.
- Pense nisso - disse ele.
- Há mais uma coisa que desejo perguntar, Dom Juan. Você falou que temos de olhar com nossos olhos para rir, mas acredito que rimos porque pensamos. Veja um cego, ele também ri.
- Não - respondeu. - Os cegos não riem. Seus corpos estremecem um pouco com o riso. Nunca viram a parte engraçada do mundo, e têm de imaginá-la. O riso deles não é uma gargalhada.
Não conversamos mais. Eu tinha uma sensação de bem-estar, de felicidade. Comemos em silêncio; depois, Dom Juan começou a rir. Eu estava usando um galho seco para pôr os legumes na boca.”
Uma Estranha Realidade, pág. 86

“- Como é que um homem de conhecimento pratica a loucura controlada, quando se trata da morte de uma pessoa que ele ama?
Dom Juan foi colhido de surpresa por minha pergunta e olhou para mim de modo estranho.
- Veja seu neto, Lucio, por exemplo - disse eu. – Seus atos seriam loucura controlada, no momento da morte dele?
- Veja meu filho Eulálio, é um exemplo melhor - respondeu Dom Juan, calmamente. - Foi esmagado pelas pedras quando trabalhava na construção da Estrada de Rodagem Pan-Americana. Meus atos para com ele no momento de sua morte foram loucura controlada. Quando cheguei à área das explosões, ele estava quase morto, mas o corpo dele era tão forte que continuava a se mexer e dar pontapés. Fiquei diante dele e disse aos rapazes da turma da estrada para não mexerem mais nele; obedeceram-me e ficaram ali em volta de meu filho, olhando para o corpo estraçalhado. Também fiquei ali, mas não olhei. Desviei os olhos para poder ver sua vida pessoal se desintegrando, expandindo-se incontrolavelmente além de seus limites, como uma neblina de cristais, pois é assim que a vida e a morte se misturam e expandem. Foi o que fiz no momento da morte de meu filho. E só isso que se poderia fazer, e isso é loucura controlada. Se eu tivesse olhado para ele, teria visto que ele ficava imóvel e teria sentido um grito dentro de mim, pois nunca mais havia eu de ver sua bela figura andando pela terra. Em vez disso, eu vi a morte dele, e não houve tristeza, nem sentimento algum. Sua morte foi igual a tudo o mais.
Dom Juan foi calado por algum tempo. Parecia triste, mas depois sorriu e bateu na minha cabeça.
- Por isso você pode dizer que, quando se trata da morte de uma pessoa que eu amo, minha loucura controlada consiste em desviar o olhar.
Pensei nas pessoas que eu mesmo amo e uma onda de autocomiseração terrivelmente opressiva me envolveu.
- Sorte a sua Dom Juan - falei. - Pode desviar o olhar, mas eu só posso olhar.
Ele achou graça naquilo e riu.
- Sorte, uma bosta! É trabalho duro.”
Uma Estranha Realidade, pág. 87

“- Se entendi corretamente, Dom Juan, os únicos atos na vida de um homem de conhecimento que não são loucura controlada são aqueles que ele pratica com seu aliado ou com Mescalito. Certo?
- Certo - respondeu, rindo. - Meu aliado e Mescalito não estão num plano de igualdade conosco, os seres humanos. Minha loucura controlada só se aplica a mim e aos atos que pratico quando em companhia de meus semelhantes.
- No entanto, é uma possibilidade lógica - falei - pensar que um homem de conhecimento também considera seus atos com seu aliado ou com Mescalito como loucura controlada, não é verdade?
Olhou-me por um momento.
- Você está pensando outra vez - disse ele. - Um homem de conhecimento não pensa e, portanto, não pode encontrar essa possibilidade. Veja meu caso, por exemplo. Digo que minha loucura controlada aplica-se aos atos que pratiquei em companhia de meus semelhantes; digo isso porque eu posso ver meus semelhantes. No entanto, não posso ver através de meu aliado e isso torna a coisa incompreensível para mim; dessa forma, como poderia eu controlar minha loucura se não vejo através dele? Com meu aliado ou com Mescalito sou apenas um homem que sabe ver e que fica confuso com o que vê; um homem que sabe que nunca há de compreender tudo o que o cerca.
"Veja seu caso, por exemplo. A mim não importa que você se torne um homem de conhecimento ou não; no entanto, isso importa a Mescalito. Obviamente, importa a ele, senão não faria tanta coisa para mostrar seu interesse por você. Observo o interesse dele e ajo nesse sentido, no entanto seus motivos me são incompreensíveis."
Uma Estranha Realidade, pág. 88

“- Seja bem-vindo à minha humilde cabana - disse ele, em tom de desculpas, em espanhol.
As palavras dele eram uma expressão cortês que eu já ouvira em várias regiões rurais do México. No entanto, ao pronunciá-las, ele sorriu alegremente, por nenhum motivo aparente, e eu sabia que ele estava pondo em prática a sua loucura controlada. Não se im­portava a mínima que sua casa fosse uma cabana. Gostei muito de Dom Genaro.”
Uma Estranha Realidade, pág. 90

“Um assunto secundário que surgiu no curso de nossa interação com os guerreiros de Dom Juan foi o da loucura controlada. Dom Juan me deu uma explicação sucinta uma vez quando discutia as duas categorias nas quais todas as mulheres guerreiras eram necessariamente divididas, as sonhadoras e as espreitadoras. Disse que todos os membros do seu grupo sonhavam e espreitavam como ações habituais de suas vidas diárias, mas que as mulheres que formavam o planeta das sonhadoras e o planeta das espreitadoras eram as grandes autoridades nas suas respectivas atividades.
As espreitadoras eram as que recebiam o impacto do mundo diário; as gerentes de negócios, as que lidavam com as pessoas. Tudo que se relacionava ao mundo de assuntos comuns passava por elas. As espreitadoras eram praticantes da loucura controlada, assim como as sonhadoras eram praticantes do sonho. Em outras palavras, a loucura controlada é a base da espreita, e os sonhos são a base do sonhar. Dom Juan disse que, de um modo geral, a maior realização de um guerreiro na segunda atenção era sonhar, e na primeira atenção, espreitar.
Eu tinha compreendido mal o que os guerreiros de Dom Juan tinham feito comigo em nossos primeiros encontros. Tomei as atitudes deles como atos de trapaça - e essa ainda seria minha impressão hoje se não fosse a idéia da loucura controlada. Dom Juan falou que as suas atitudes comigo tinham sido lições de mestre em espreita. Disse-me que a arte da espreita era o que seu benfeitor tinha lhe ensinado antes de qualquer outra coisa. A fim de sobreviver entre os guerreiros do seu benfeitor ele tivera de aprender aquela arte rapidamente. No meu caso, disse, já que eu não tive de me bater por mim mesmo com os seus guerreiros, tive de aprender a sonhar primeiro. Quando chegava o momento adequado, Florinda saía para me guiar nas complexidades de espreitar. Ninguém mais podia falar deliberada- mente comigo sobre isso; podiam apenas me dar demonstrações diretas, como fizeram em nossos primeiros encontros.
Dom Juan explicou longamente que Florinda era uma das melhores praticantes da espreita por ter sido treinada em toda a sua complexidade pelo seu benfeitor e suas quatro guerreiras espreitadoras. Florinda foi a primeira guerreira a chegar ao mundo de Dom Juan, e por isso ela era minha guia pessoal- não só na arte da espreita, mas também no mistério da terceira atenção, se eu algum dia chegasse lá. Dom Juan não fez declarações sobre isso. Disse que eu teria de esperar até estar pronto, primeiro para aprender a espreitar e depois para entrar na terceira atenção.
Falou que seu benfeitor tinha concedido tempo e cuidado especiais para ele e seus guerreiros em relação a tudo que pertencia ao aperfeiçoamento da arte de espreitar. Usava técnicas complexas para criar um contexto apropriado para uma contrapartida entre os ditames do regulamento e o comportamento dos guerreiros no seu mundo diário, quando eles interagiam com as pessoas. Acreditava ser essa a forma de convencê-los de que, na ausência da auto-importância, o único modo de um guerreiro lidar com o meio social era em termos de loucura controlada.
Ao longo do desenvolvimento de suas técnicas, o benfeitor de Dom Juan lançava as ações das pessoas e as ações dos guerreiros contra as exigências do regulamento, e então se retirava e deixava o drama natural se desenrolar por si próprio. A loucura das pessoas tomava a frente por algum tempo e arrastava os guerreiros consigo, como parece ser o curso natural das coisas, e só se recompunha no final, com os desígnios mais abrangentes do regulamento.
Dom Juan nos disse que a princípio ele se ressentira do controle do seu benfeitor sobre os participantes. Chegou a dizer isso na cara dele, mas ele não se perturbou. Argumentou que o controle era meramente uma ilusão criada pela Águia. Ele era apenas um guerreiro impecável, e suas ações eram uma humilde tentativa de refletir a Águia.
Dom Juan disse que a força com a qual o seu benfeitor desempenhava seus desígnios originava-se de seu conhecimento de que a Águia é real e final, e que o que as pessoas fazem é de extrema loucura. Os dois juntos deram origem à loucura controlada, que o benfeitor de Dom Juan descrevia como a única ponte entre a loucura das pessoas e a finalidade dos ditames da Águia.”
O Presente da Águia, pág. 169

“Florinda foi a primeira guerreira. Foi seguida de Zoila, Delia e depois Hermelinda. Dom Juan disse que seu benfeitor tinha insistido sem cessar para que eles lidassem com o mundo exclusivamente em termos de loucura controlada. O resultado final foi um grupo estupendo de praticantes, que pensavam e executavam os esquemas mais complexos.
Quando todos tinham adquirido um grau de eficiência na arte de espreita, seu benfeitor achou que era hora de encontrar a mulher nagual para eles. Fiel a seu método de ajudar a todos a ajudarem a si próprios, esperou para trazê-la ao mundo deles quando todos fossem peritos na espreita e quando Dom Juan aprendesse a ver. Embora Dom Juan se queixasse enormemente do tempo desperdiçado na espera, reconheceu que o esforço reunido deles em garanti-la criara um laço mais forte entre todos, revitalizando o compromisso da busca de liberdade.”
O Presente da Águia, pág. 170

“Ela declarou que essas eram as preliminares essenciais da espreita
que todos os membros do seu grupo tinham passado como introdução a exercícios mais apurados da arte. Sem fazer os exercícios preliminares para recuperar os filamentos deixados no mundo, e particularmente para desprezar os que os outros deixaram neles, não há possibilidade de manipular a loucura controlada, pois esses filamentos estranhos são a base da capacidade ilimitada de auto-importância de uma pessoa. Para exercitar a loucura controlada, já que ela não visa a enganar ou punir as pessoas ou se sentir superior a elas, tem-se de ser capaz de rir de si próprio. Florinda disse que um dos resultados de uma recapitulação detalhada é a graça de se ver face a face com a repetição monótona da auto-estima de alguém, que está no cerne de toda a interação humana.
Ela enfatizou que o regulamento definia a espreita e o sonho como artes, portanto, a serem representadas. Disse que a natureza produtora de vida da respiração é também o que dá sua capacidade de limpeza. É essa capacidade que faz da recapitulação uma questão prática.”
O Presente da Águia, pág. 228

“Florinda se impressionava muito com o último princípio. Para ela ele resumia tudo o que ela queria dizer a mim nas suas instruções de última hora.
- Meu benfeitor era o chefe - disse Florinda. - Assim mesmo, olhando para ele ninguém acreditaria. Sempre usava uma de suas guerreiras como fachada, misturando-se livremente entre os doentes, fingindo ser um deles, ou fazendo-se passar por um velho idiota varrendo as folhas secas com uma vassoura improvisada.
Florinda explicou que para aplicar o sétimo princípio da arte de espreitar, tem-se de aplicar os outros seis. Assim, seu benfeitor ficava sempre por trás dos bastidores. Graças a isso ele era capaz de evitar ou aparar conflitos. Se houvesse discórdia, nunca era com ele e sim com a guerreira que estivesse servindo de fachada.
- Espero que você tenha percebido a essa altura - continuou ela - que só um mestre em espreita pode ser um mestre em loucura controlada. A loucura controlada não significa o estudo das pessoas. Significa, como meu benfeitor explicou, que os guerreiros aplicam os sete princípios básicos da arte de espreitar a tudo o que fazem, desde os atos mais simples até situações sérias de vida e de morte. A aplicação desses princípios redunda em três resultados. O primeiro é que os espreitadores aprendem a nunca se levarem a sério; aprendem a rir de si próprios. Se não se importam de parecer bobos, podem enganar a qualquer um. O segundo é que aprendem a ter uma paciência sem fim. Nunca estão com pressa, nunca se desesperam. E o terceiro é que aprendem a desenvolver uma capacidade infinita de improvisação.”
O Presente da Águia, pág. 231

“Disse que, para os feiticeiros, a espreita era o alicerce sobre o qual tudo o mais que faziam era construído.
- Alguns feiticeiros têm objeção ao termo espreita - continuou -, mas o nome surgiu porque implica comportamento sub-reptício.
"É chamado também a arte da furtividade, mas esse termo é igualmente desafortunado. Nós mesmos, por causa do nosso temperamento não-militante, o chamamos arte da loucura controlada. Você pode chamá-lo como quiser. Entretanto, iremos continuar com o termo espreita uma vez que é tão fácil dizer espreitador e, como meu benfeitor costumava dizer, tão estranho dizer fazedor de loucura controlada.
Eles riram como crianças à menção de seu benfeitor.”
O Poder do Silêncio, pág. 93

“- Na arte de espreitar - continuou Don Juan - há uma técnica que os feiticeiros usam muito: loucura controlada. Segundo eles, a loucura controlada é a única maneira que têm de lidar consigo mesmos, em seu estado de consciência e percepção expandidas, e com todos e tudo no mundo dos afazeres diários.
Don Juan explicou a loucura controlada como a arte do engano controlado ou a arte de fingir estar profundamente imerso na ação - fingindo tão bem que ninguém pudesse distingui-lo da coisa real. A loucura controlada não é um engano direto, mas um modo sofisticado, artístico, de estar separado de tudo permanecendo ao mesmo tempo uma parte de tudo.
- A loucura controlada é uma arte - continuou Don Juan. - Uma arte que causa muitas preocupações, e muito difícil para se aprender. Muitos feiticeiros não suportam isso, não porque haja alguma coisa inerentemente errada com a arte, mas porque é preciso muita energia para exercê-la.
Don Juan admitiu que a praticava conscienciosamente, embora não gostasse particularmente de fazê-lo, talvez porque seu benfeitor fosse tão adepto a ela. Ou talvez fosse porque sua personalidade - que ele disse ser basicamente tortuosa e mesquinha - simplesmente não tinha agilidade necessária para praticar a loucura controlada.
Olhei para ele com surpresa. Parou de falar e fixou-me com seus olhos maliciosos.
- Na época em que chegamos à feitiçaria, nossa personalidade já está formada - disse, e encolheu os ombros em sinal de resignação -, e tudo que podemos fazer é praticar a loucura controlada e rir de nós mesmos.
Senti uma onda de empatia e assegurei-lhe que para mim ele não era de modo algum mesquinho ou tortuoso.
- Mas esta é minha personalidade básica - insistiu. E eu retruquei que não era.
- Os espreitadores que praticam a loucura controlada acreditam que, em questão de personalidade, a raça humana inteira entra em três categorias - disse ele, e sorriu da maneira que sempre fazia quando estava me preparando algo.”
O Poder do Silêncio, pág. 233

“Don Juan perguntou a Tuliúno sobre a aparência de Túlio. Ele respondeu que o nagual Elias sustentava que a aparência era a essência da loucura controlada, e os espreitadores criavam aparência intentando-a, antes que a produzindo com a ajuda de disfarces. Os disfarces criavam aparências artificiais e pareciam falsos aos olhos. Intentar aparências era exclusivamente um exercício para espreitadores.
Tulítre falou em seguida. Disse que as aparências eram solicitadas do espírito. Elas eram pedidas e forçosamente chamadas; nunca eram inventadas de modo racional. A aparência de Túlio precisara ser chamada do espírito. E para facilitar isso, o nagual Elias colocou todos os quatro juntos num pequeno quarto isolado, e ali o espírito falou-lhes. O espírito disse-lhes que primeiro tinham de intentar sua homogeneidade. Após quatro semanas de isolamento total, eles conseguiram a homogeneidade.
O nagual Elias disse que o intento os havia fundido um ao outro e que haviam adquirido a certeza de que sua individualidade passaria despercebida. Agora tinham de chamar a aparência que seria percebida pelo observador. E ocuparam-se, chamando o intento para a aparência dos Túlios que Don Juan vira. Tiveram de trabalhar com muito empenho para aperfeiçoá-la. Focalizaram-se, sob a direção de seu professor, em todos os detalhes que iriam torná-la perfeita.”
O Poder do Silêncio, pág. 247

“Um guerreiro não tem honra, nem dignidade, nem família, nem nome, nem país; ele tem apenas a vida para ser vivida e, nessas circunstâncias, sua única ligação com seus semelhantes é sua loucura controlada.”
A Roda do Tempo, pág. 55

“Como nada é importante do que qualquer outra coisa, um guerreiro escolhe qualquer ato e age como se lhe importasse. Sua loucura controlada o faz dizer que o que ele faz importa e o faz agir como se importasse, e contudo ele sabe que não é assim; de modo que, quando completa seus atos, ele se re­tira em paz e quer seus atos tenham sido bons ou maus, dado certo ou não, isso absolutamente não o preocupa mais.”
A Roda do Tempo, pág. 56

“Um guerreiro pode escolher permanecer totalmente impassível e nunca agir, e comportar-se como se ser impassível realmente lhe importasse; ele também estará certo agindo assim porque isso também seria a sua loucura controlada.”
A Roda do Tempo, pág. 57

Um comentário:

  1. FAZ TEMPO QUE LI ESTE LIVRO E HAVIA ME ESQUECIDO DESTAS LIÇÕES DO MESTRE CASTANHEDA E DON JUAN!!!

    ResponderExcluir