sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Robin Hood


O MITO DO BOM LADRÃO

Marcelo Bolshaw Gomes[1]


Resumo: Este breve texto descreve a narrativa de Robin Hood, sua origem, desenvolvimento, sua suposta historicidade e faz um levantamento de suas principais versões. Ao final, discute o filme Robin Hood – a origem (2018) e sua combinação interpretativa das narrativas anteriores.

1.      História da estória
A história de Robin Hood não é uma narrativa qualquer. Ela é a primeira (e uma das únicas) em que o protagonista é um herói social da luta entre as classes, “alguém que rouba dos ricos para dar para os pobres”. Ela é uma referência para todos as narrativas semelhantes, sejam narrativas ficcionais ou mesmo narrativas biográficas revolucionárias reais, que se encantaram com as estórias do rei dos ladrões. Na Inglaterra, é um herói cívico.
A narrativa de Robin Hood remonta a literatura oral cantada em baladas (um tipo de poema lírico) na Inglaterra do século XIV. Ele era considerado um personagem histórico, um fora da lei. Seu inimigo frequente era o xerife de Nottingham. Sua história era então muito apreciada pelos contadores de histórias lendárias e trovadores, ao lado de outras temas como rei Arthur. As baladas sobre Robin Hood são a expressão poética das aspirações populares durante um período histórico de injustiças e rebeliões. O herói bandido — perseguido pela justiça, caçando livremente na floresta, roubando dos ricos para dar aos pobres e desafiando ao poder — encantava o povo.
Das baladas dos menestréis aos poemas em trovas e destes ao teatro popular, a narrativa do bom ladrão foi sendo recontada como um mito, meio lenda, meio histórico. Ao longo do século XVI, no entanto, a história ganhou duas versões distintas: uma em que Robin Hood torna-se um nobre decadente (Robert Locksley); e outra em que ele é um homem do povo, injustamente acusado de roubo pelo poderosos.
A versão popular foi sistematizada por Howard Pyle (texto, ilustração, seleção de baladas) e introduz os companheiros de Robin (Frei Tuck, Will Scarlet, Allan Dale, Little João) em historietas em que os personagens se conhecem e, após uma disputa, se tornam amigos.
Nessa versão, Robin Hood era um rapaz que, quando se dirigia para um concurso de arco-e-flecha na cidade de Nottingham, meteu-se em uma confusão com guardas, e acabou matando um deles, tornando-se um criminoso. O livro conta em oito partes como Robin Hood reuniu um bando de homens alegres, que só roubavam de nobres arrogantes e clérigos abastados.
Na versão aristocrática, o herói passa a representar uma parte da nobreza que fazia oposição ao rei déspota e não mais um homem do povo.
Nessa versão, Robin Hood é Robert Locksley, nobre que, após servir ao lado do Rei Ricardo Coração de Leão nas cruzadas, retorna para casa e encontra seu feudo devastado pela tirania do regente, João Sem-terra. Aproveitando seu conhecimento de guerreiro, Robert une um grupo de bandidos e inicia um combate à nobreza, roubando dos ricos para dar aos pobres.
Também nessa versão surge a personagem feminina de Lady Marian, dando um caráter mais romântico à narrativa. No fim da história, Robin vence o príncipe João e casa-se com Marian, sobrinha de Rei Ricardo Coração de Leão – que reaparece após sua derrota em terras estrangeiras e nomeia Robin Hood cavaleiro, tornando-o nobre novamente. A estória, no entanto, foi e ainda é bastante misógina, com a mulher reduzida à refém dos vilões e prêmio do herói – apesar de algumas versões mais recentes tentarem inserir uma Marian mais participativa.
Segundo Green (1990, p. 10), apenas no final do século XVIII, depois de as baladas, romances e peças antigas serem coligidas e reimpressas por Joseph Ritson, “que Robin dos Bosques entrou realmente na literatura”. Foi Ritson que forneceu material para Walter Scott escrever Ivanhoé (o primeiro livro do romantismo histórico como movimento literário, em 1820, nele, o Robin Hood da versão popular desempenha um papel secundário); e a Alexandre Dumas escrever seus dois romances sobre o herói social/bandido: Le prince des voleurs (1872) e Robin Hood le proscrit (1873).
Como é um personagem de domínio público com uma reputação estabelecida, Robin Hood se tornou um personagem atraente para o cinema[2], a televisão[3] e as histórias em quadrinhos[4].
2.      Estórias históricas da atualidade
No cinema, assim como na estória oral, as narrativas atuais sempre assimilam e reinterpretam as narrativas anteriores de uma mesma história. A cada nova versão, alguns elementos são excluídos e outros vão sendo colocados em primeiro plano.
Mas, o filme Robin Hood – a origem (2018), de Otto Bathurst (que dirigiu a série Black Mirror), parece mais uma colagem do que uma atualização dos diferentes filmes que o antecederam: Robin Hood, o príncipe dos ladrões (1991), com Kevin Costner; e Robin Hood (2010), dirigido por Ridley Scott e com Russell Crowe. O novo filme mistura elementos narrativos desses filmes recentes com os livros de Alexandre Dumas (Robin Hood, o Príncipe dos Ladrões e Robin Hood, o Proscrito) e com os filmes mais antigos, como As Aventuras de Robin Hood (1938), com Errol Flynn. Little John (Jamie Foxx) se torna um mouro, que lorde Locksley (Taron Egerton) conheceu nas cruzadas; Will Scarlet se torna um nobre e um inimigo; e assim por diante. Essa reinterpretação dos personagens dá uma originalidade ao roteiro, mas os diálogos são cheios de lugares comuns, vazios, apesar dos esforços do elenco para dar-lhes algum sentido.
Aliás, o grande mérito do filme é o desempenho do seu elenco. A fotografia é sombria. A direção de arte é desleixada, com um figurino improvável e trechos de sonoplastia incompatíveis com o período retratado. Há até uma passeata com coquetéis molotov na idade média.
A falta de realismo histórico é compensada com muito computação gráfica e com cenas de lutas e perseguições. Mas, não há, nessa versão, aquele Robin todo de verde que não teme nada e vive livre e feliz na floresta, rodeado de amigos que se ajudam a cada nova ameaça. E sim um Robin sinistro, que conspira contra o poder fazendo-se passar de bajulador até ser desmascarado.
Tabela 1 – Estruturas narrativas dos três filmes
Filmes
Forma de expressão
Forma do Substância
Expressão do Conteúdo
Substância de conteúdo
1991
Audiovisual inspirada no texto de Alexandre Dumas
Aventura histórica, magia e romance
A burguesia substitui a nobreza como classe dominante.
Sonho ou simbólico,
Universais do imaginário
2010
Perspectiva histórica
2018
‘Gameficação’ da narrativa
A luta política de classes é eterna.
Fonte: Elaborada pelo autor com base no modelo da semiótica narrativa de Greimas.
Enquanto os filmes de 1991 e 2010 enfatizam mais o contexto histórico e social da narrativa, tentando dar um tom realista à estória; o filme mais recente aposta na estética de ‘game’ e em um elenco de qualidade. Por outro lado, enquanto os filmes mais antigos subscrevem o ideia do herói burguês, assimilado pela coroa e pela nobreza, o mais recente vê em Robin Hood um eterno rebelde, destinado a lutar contra o poder para sempre, há uma naturalização da luta de classes.
De modo que os três filmes, ao nível da substância de conteúdo, abrem mão da origem popular do herói bandido – colocando-o como um nobre conspirador[5].
3.      Estória ou história
Mesmo com a perda dos valores sociais originais e as mudanças nos enredos da estória, a narrativa continuou (e ainda continua) sendo considerada verdadeira do ponto de vista histórico por muitos, embora não exista nenhuma prova de sua existência. Na edição brasileira do texto de Dumas (2014), o tradutor Jorge Bastos afirma que o próprio autor dos romances ficcionais acreditava na existência histórica do personagem. A trama de Robin Hood acontece entre 1160 a 1220, quando a Inglaterra vivia sob o reinado da dinastia Plantageneta, durante as cruzadas.[6]
Os reis Ricardo Coração de Leão e João sem-terra realmente existiram. Foi em decorrência de seus reinados que se criaram a Carta Magna e a Câmara dos Lordes, primeira constituição e primeiro parlamento modernos. Os nobre, assustados com a centralização do estado absolutista, com a constituição de um exército regular da coroa e com os altos imposto cobrados pelo rei João, decidiu estabelecer limites orçamentários e políticos para tomada de decisões compartilhadas. Este período também se caracteriza pela fome e pela miséria dos mais pobres; e por revoltas populares e rebeliões nas principais cidades inglesas. Na Inglaterra não houve uma ‘revolução burguesa’ como na França – em que a burguesia ‘roubava’ dos nobres e do clero atrás de serviços e comércio e ‘dava’ empregos e migalhas para os trabalhadores. O mito de Robin Hood encarna o papel da burguesia ascendente como classe social, a passagem do absolutismo feudal para monarquia parlamentar e assimilação dos novos ricos às classes dominantes.
O condado de Nottingham (e uma cidade com o mesmo nome) e a Floresta de Sherwood também existiram e existem até hoje. Por lá também todo mundo acredita na história de Robin Hood. Existem lugares e eventos turísticos em torno da narrativa. Além das estátuas e ruas batizadas com o seu nome, há o festival anual que lhe é dedicado, com parque temático medieval e encenações de torneios de cavaleiros. Há também na Floresta de Sherwood, uma árvore em redor da qual o bando de Robin se reunia em conselho. Há ainda um memorial no Castelo de Nottingham e até um túmulo no convento de Kirklees, hoje em ruínas, em que se pode ler: "Aqui jaz Robert Hude".
É importante destacar que Robin Hood foi o primeiro herói a ter uma dupla identidade, como os atuais super-heróis. ‘Hood’ significa capuz e ele sempre foi, desde tempos remotos, representado como um arqueiro encapuçado. Houve muitas tentativas de historiadores em provar que Robin Hood de fato existiu, mas as baladas cantadas pelos menestréis são a única evidência disponível da possível existência do personagem. Nenhuma das tentativas de identificar o herói com alguma figura histórica foi bem-sucedida. De acordo com a investigação de Joseph Hunter, em 1852, Robin era Robert Hood e tornou-se fugitivo por ter ajudado o Conde de Lancaster, que se rebelara contra a cobrança abusiva de impostos do Príncipe João. Em 1998, Tony Molyneux-Smith publicou um livro em que sustenta que Sir Robert Foliot, conde de Huntington, que usava o nome de "Robin Hood" para esconder a sua verdadeira identidade e insuflar uma rebelião contra a coroa.
As referências históricas que sustentam as várias teorias da sua existência prendem-se, aliás, na maior parte dos casos, em registos de comparecimento em tribunais. Por Robin ter existido como "Robin Hood", por a lenda ser já contada ou por simples coincidência, parece ter havido antes de 1300, na mesma região, pelo menos cinco homens acusados de atividade criminal conhecidos pela alcunha de "Robin hood"[7].
E assim, personagens históricos encarnando lendas, inspiradas em personagens reais ... e a vida imita a arte que imita a vida.

Bibliografia
ACCIOLY LOBATO, Maria Nazareth Correa. As aventuras de Robin Hood: Lenda, Cinema e História. Brathair 10 (2) 2010: 51-66. ISSN 1519-9053 <https://www.academia.edu/34090118/As_Aventuras_de_Robin_Hood_lenda_cinema_e_Hist%C3%B3ria._In_Brathair_v._10_2_p._51-66_2010> 
DUMAS, Alexandre. As Aventuras de Robin Hood - Coleção Clássicos Zahar, 2014.
GREEN, Roger Lancelyn. As Aventuras de Robin dos Bosques. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1990.
PEREIRA, Fernando. Robin Hood – a lenda na cultura medieval. Texto acessível em: <https://www.academia.edu/25722734/Robin_Hood_A_Lenda_na_Cultura_Medieval>


[1] Professor do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN.
[2] Há muitas adaptações cinematográficas. Destacamos: Robin Hood, o Trapalhão da Floresta (1973) comédia brasileira com Renato Aragão e Dedé Santanna; Robin and Marian, de Richard Lester (1976), com Sean Connery e Audrey Hepburn (um Robin Hood já idoso voltando das cruzadas após 20 anos); a comédia Robin Hood: Men in Tights (1993) dirigida por Mel Brooks. Em 1973, a Disney lançou um desenho animado, com personagens representados por animais. Em 2912, a Warner Bros também lançou um longa em desenho: Tom e Jerry: Robin Hood e seu Ratinho Feliz, de Spike Brandt.
[3] Robin Hood foi exibido na rede de televisão inglesa BBC em 2006, sendo cancelada na 3ª temporada, em 2009. Em 1990, o estúdio Tatsunoko lançou um anime de 52 episódios. No Brasil foi lançado em VHS e posteriormente exibido na TV Record, junto com Kaiketsu Zorro. Em 1991, Hanna Barbera lança "O Jovem Robin Hood". O SBT e o Cartoon Network exibiram a animação. Em 2014, é lançada a série animada Robin Hood: Mischief in Sherwood, produzido pela DQ Entertainment em parceria com Method Animation.
[4] As primeiras histórias de Robin Hood foram escritas e desenhadas por Sven Elven publicadas pela DC Comics em New Adventure Comics vol. 1 #23-30 (1938). Em 1935, o Toronto Telegram publicou a tira de jornal "Robin Hood and Company" de Ted McCall e Charles Snelgrove. Em 1941 foi convertido em revista. Além disso, Robin Hood serviu de principal inspiração para a criação do personagem Arqueiro Verde (Green Arrow) da DC Comics. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Robin_Hood
[6] A primeira referência ao personagem é o poema épico Piers Plowman, escrito por William Langand em 1377. A compilação ‘Gesta de Robin Hood’, datada de 1400, sugere que as histórias que compõem a lenda já circulavam desde 1310. PEREIRA, Robin Hood – a lenda na cultura medieval.

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