O MITO DO BOM LADRÃO
Marcelo Bolshaw Gomes[1]
Resumo: Este
breve texto descreve a narrativa de Robin Hood, sua origem, desenvolvimento,
sua suposta historicidade e faz um levantamento de suas principais versões. Ao
final, discute o filme Robin Hood – a origem (2018) e sua combinação
interpretativa das narrativas anteriores.
1. História da estória
A história de Robin Hood não é uma
narrativa qualquer. Ela é a primeira (e uma das únicas) em que o protagonista é
um herói social da luta entre as classes, “alguém que rouba dos ricos para dar
para os pobres”. Ela é uma referência para todos as narrativas semelhantes,
sejam narrativas ficcionais ou mesmo narrativas biográficas revolucionárias
reais, que se encantaram com as estórias do rei dos ladrões. Na Inglaterra, é
um herói cívico.
A narrativa de Robin Hood remonta a
literatura oral cantada em baladas (um tipo de poema lírico) na Inglaterra do
século XIV. Ele era considerado um personagem histórico, um fora da lei. Seu
inimigo frequente era o xerife de Nottingham. Sua história era então muito
apreciada pelos contadores de histórias lendárias e trovadores, ao lado de
outras temas como rei Arthur. As baladas sobre Robin Hood são a expressão
poética das aspirações populares durante um período histórico de injustiças e rebeliões.
O herói bandido — perseguido pela justiça, caçando livremente na floresta, roubando
dos ricos para dar aos pobres e desafiando ao poder — encantava o povo.
Das baladas dos menestréis aos poemas
em trovas e destes ao teatro popular, a narrativa do bom ladrão foi sendo
recontada como um mito, meio lenda, meio histórico. Ao longo do século XVI, no
entanto, a história ganhou duas versões distintas: uma em que Robin Hood torna-se
um nobre decadente (Robert Locksley); e outra em que ele é um homem do povo,
injustamente acusado de roubo pelo poderosos.
A versão popular foi sistematizada
por Howard Pyle (texto, ilustração, seleção de baladas) e introduz os
companheiros de Robin (Frei Tuck, Will Scarlet, Allan Dale, Little João) em
historietas em que os personagens se conhecem e, após uma disputa, se tornam
amigos.
Nessa versão, Robin Hood era um rapaz
que, quando se dirigia para um concurso de arco-e-flecha na cidade de
Nottingham, meteu-se em uma confusão com guardas, e acabou matando um deles,
tornando-se um criminoso. O livro conta em oito partes como Robin Hood reuniu
um bando de homens alegres, que só roubavam de nobres arrogantes e clérigos
abastados.
Na versão aristocrática, o herói
passa a representar uma parte da nobreza que fazia oposição ao rei déspota e
não mais um homem do povo.
Nessa versão, Robin Hood é Robert
Locksley, nobre que, após servir ao lado do Rei Ricardo Coração de Leão nas cruzadas,
retorna para casa e encontra seu feudo devastado pela tirania do regente, João
Sem-terra. Aproveitando seu conhecimento de guerreiro, Robert une um grupo de
bandidos e inicia um combate à nobreza, roubando dos ricos para dar aos pobres.
Também nessa versão surge a
personagem feminina de Lady Marian, dando um caráter mais romântico à narrativa.
No fim da história, Robin vence o príncipe João e casa-se com Marian, sobrinha
de Rei Ricardo Coração de Leão – que reaparece após sua derrota em terras
estrangeiras e nomeia Robin Hood cavaleiro, tornando-o nobre novamente. A
estória, no entanto, foi e ainda é bastante misógina, com a mulher reduzida à
refém dos vilões e prêmio do herói – apesar de algumas versões mais recentes
tentarem inserir uma Marian mais participativa.
Segundo Green (1990, p. 10), apenas
no final do século XVIII, depois de as baladas, romances e peças antigas serem
coligidas e reimpressas por Joseph Ritson, “que Robin dos Bosques entrou
realmente na literatura”. Foi Ritson que forneceu material para Walter Scott
escrever Ivanhoé (o primeiro livro do romantismo histórico como movimento
literário, em 1820, nele, o Robin Hood da versão popular desempenha um papel
secundário); e a Alexandre Dumas escrever seus dois romances sobre o herói
social/bandido: Le prince des voleurs
(1872) e Robin Hood le proscrit (1873).
Como é um personagem de domínio
público com uma reputação estabelecida, Robin Hood se tornou um personagem
atraente para o cinema[2],
a televisão[3] e
as histórias em quadrinhos[4].
2.
Estórias históricas da atualidade
No cinema, assim como na estória
oral, as narrativas atuais sempre assimilam e reinterpretam as narrativas
anteriores de uma mesma história. A cada nova versão, alguns elementos são
excluídos e outros vão sendo colocados em primeiro plano.
Mas, o filme Robin Hood – a origem (2018), de Otto Bathurst (que dirigiu a
série Black Mirror), parece mais uma colagem do que uma atualização dos
diferentes filmes que o antecederam: Robin Hood, o príncipe dos ladrões (1991), com Kevin Costner; e Robin Hood (2010), dirigido por Ridley Scott e com
Russell Crowe. O novo filme mistura elementos narrativos desses filmes recentes
com os livros de Alexandre Dumas (Robin
Hood, o Príncipe dos Ladrões e Robin
Hood, o Proscrito) e com os filmes mais antigos, como As Aventuras de Robin Hood (1938), com Errol Flynn. Little John (Jamie
Foxx) se torna um mouro, que lorde Locksley (Taron Egerton) conheceu nas cruzadas;
Will Scarlet se torna um nobre e um inimigo; e assim por diante. Essa
reinterpretação dos personagens dá uma originalidade ao roteiro, mas os
diálogos são cheios de lugares comuns, vazios, apesar dos esforços do elenco
para dar-lhes algum sentido.
Aliás, o grande mérito do filme é o
desempenho do seu elenco. A fotografia é sombria. A direção de arte é
desleixada, com um figurino improvável e trechos de sonoplastia incompatíveis
com o período retratado. Há até uma passeata com coquetéis molotov na idade
média.
A falta de realismo histórico é
compensada com muito computação gráfica e com cenas de lutas e perseguições.
Mas, não há, nessa versão, aquele Robin todo de verde que não teme nada e vive
livre e feliz na floresta, rodeado de amigos que se ajudam a cada nova ameaça.
E sim um Robin sinistro, que conspira contra o poder fazendo-se passar de
bajulador até ser desmascarado.
Tabela 1 – Estruturas narrativas dos três filmes
Filmes
|
Forma de expressão
|
Forma do Substância
|
Expressão do Conteúdo
|
Substância de
conteúdo
|
1991
|
Audiovisual inspirada no texto de Alexandre Dumas
|
Aventura histórica, magia e romance
|
A burguesia substitui a nobreza como classe
dominante.
|
Sonho ou simbólico,
Universais do imaginário
|
2010
|
Perspectiva histórica
|
|||
2018
|
‘Gameficação’ da narrativa
|
A luta política de classes é eterna.
|
Fonte:
Elaborada pelo autor com base no modelo da semiótica narrativa de Greimas.
Enquanto os filmes de 1991 e 2010
enfatizam mais o contexto histórico e social da narrativa, tentando dar um tom
realista à estória; o filme mais recente aposta na estética de ‘game’ e em um
elenco de qualidade. Por outro lado, enquanto os filmes mais antigos subscrevem
o ideia do herói burguês, assimilado pela coroa e pela nobreza, o mais recente
vê em Robin Hood um eterno rebelde, destinado a lutar contra o poder para
sempre, há uma naturalização da luta de classes.
De modo que os três filmes, ao nível
da substância de conteúdo, abrem mão da origem popular do herói bandido –
colocando-o como um nobre conspirador[5].
3.
Estória ou história
Mesmo com a perda dos valores sociais
originais e as mudanças nos enredos da estória, a narrativa continuou (e ainda
continua) sendo considerada verdadeira do ponto de vista histórico por muitos,
embora não exista nenhuma prova de sua existência. Na edição brasileira do
texto de Dumas (2014), o tradutor Jorge Bastos afirma que o próprio autor dos
romances ficcionais acreditava na existência histórica do personagem. A trama
de Robin Hood acontece entre 1160 a 1220, quando a Inglaterra vivia sob o
reinado da dinastia Plantageneta, durante as cruzadas.[6]
Os reis Ricardo Coração de Leão e
João sem-terra realmente existiram. Foi em decorrência de seus reinados que se
criaram a Carta Magna e a Câmara dos Lordes, primeira constituição e primeiro
parlamento modernos. Os nobre, assustados com a centralização do estado
absolutista, com a constituição de um exército regular da coroa e com os altos
imposto cobrados pelo rei João, decidiu estabelecer limites orçamentários e
políticos para tomada de decisões compartilhadas. Este período também se
caracteriza pela fome e pela miséria dos mais pobres; e por revoltas populares
e rebeliões nas principais cidades inglesas. Na Inglaterra não houve uma
‘revolução burguesa’ como na França – em que a burguesia ‘roubava’ dos nobres e
do clero atrás de serviços e comércio e ‘dava’ empregos e migalhas para os
trabalhadores. O mito de Robin Hood encarna o papel da burguesia ascendente
como classe social, a passagem do absolutismo feudal para monarquia parlamentar
e assimilação dos novos ricos às classes dominantes.
O condado de Nottingham (e uma cidade
com o mesmo nome) e a Floresta de Sherwood também existiram e existem até hoje.
Por lá também todo mundo acredita na história de Robin Hood. Existem lugares e
eventos turísticos em torno da narrativa. Além das estátuas e ruas batizadas
com o seu nome, há o festival anual que lhe é dedicado, com parque temático
medieval e encenações de torneios de cavaleiros. Há também na Floresta de
Sherwood, uma árvore em redor da qual o bando de Robin se reunia em conselho. Há
ainda um memorial no Castelo de Nottingham e até um túmulo no convento de
Kirklees, hoje em ruínas, em que se pode ler: "Aqui jaz Robert Hude".
É importante destacar que Robin Hood
foi o primeiro herói a ter uma dupla identidade, como os atuais super-heróis. ‘Hood’
significa capuz e ele sempre foi, desde tempos remotos, representado como um
arqueiro encapuçado. Houve muitas tentativas de historiadores em provar que
Robin Hood de fato existiu, mas as baladas cantadas pelos menestréis são a
única evidência disponível da possível existência do personagem. Nenhuma das
tentativas de identificar o herói com alguma figura histórica foi bem-sucedida. De acordo com a investigação de Joseph Hunter, em 1852, Robin
era Robert Hood e tornou-se fugitivo por ter ajudado o Conde de Lancaster, que
se rebelara contra a cobrança abusiva de impostos do Príncipe João. Em 1998,
Tony Molyneux-Smith publicou um livro em que sustenta que Sir Robert Foliot,
conde de Huntington, que usava o nome de "Robin Hood" para esconder a
sua verdadeira identidade e insuflar uma rebelião contra a coroa.
As referências históricas que sustentam as várias
teorias da sua existência prendem-se, aliás, na maior parte dos casos, em
registos de comparecimento em tribunais. Por Robin ter existido como
"Robin Hood", por a lenda ser já contada ou por simples coincidência,
parece ter havido antes de 1300, na mesma região, pelo menos cinco homens
acusados de atividade criminal conhecidos pela alcunha de "Robin
hood"[7].
E assim, personagens históricos
encarnando lendas, inspiradas em personagens reais ... e a vida imita a arte
que imita a vida.
Bibliografia
ACCIOLY
LOBATO, Maria Nazareth Correa. As
aventuras de Robin Hood: Lenda, Cinema e História. Brathair 10 (2) 2010: 51-66.
ISSN 1519-9053 <https://www.academia.edu/34090118/As_Aventuras_de_Robin_Hood_lenda_cinema_e_Hist%C3%B3ria._In_Brathair_v._10_2_p._51-66_2010>
DUMAS,
Alexandre. As Aventuras de Robin Hood
- Coleção Clássicos Zahar, 2014.
GREEN, Roger
Lancelyn. As Aventuras de Robin dos Bosques. Publicações Dom Quixote,
Lisboa, 1990.
PEREIRA,
Fernando. Robin Hood – a lenda na cultura medieval. Texto acessível em: <https://www.academia.edu/25722734/Robin_Hood_A_Lenda_na_Cultura_Medieval>
[1] Professor
do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN.
[2]
Há muitas adaptações cinematográficas. Destacamos: Robin Hood, o Trapalhão da Floresta (1973) comédia brasileira com
Renato Aragão e Dedé Santanna; Robin and
Marian, de Richard Lester (1976), com Sean Connery e Audrey Hepburn (um
Robin Hood já idoso voltando das cruzadas após 20 anos); a comédia Robin Hood: Men in Tights (1993)
dirigida por Mel Brooks. Em 1973, a Disney lançou um desenho animado, com
personagens representados por animais. Em 2912, a Warner Bros também lançou um
longa em desenho: Tom e Jerry: Robin Hood
e seu Ratinho Feliz, de Spike Brandt.
[3]
Robin Hood foi exibido na rede de
televisão inglesa BBC em 2006, sendo cancelada na 3ª temporada, em 2009. Em
1990, o estúdio Tatsunoko lançou um anime de 52 episódios. No Brasil foi
lançado em VHS e posteriormente exibido na TV Record, junto com Kaiketsu Zorro.
Em 1991, Hanna Barbera lança "O
Jovem Robin Hood". O SBT e o Cartoon Network exibiram a animação. Em
2014, é lançada a série animada Robin
Hood: Mischief in Sherwood, produzido pela DQ Entertainment em parceria com
Method Animation.
[4]
As primeiras histórias de Robin Hood foram escritas e desenhadas por Sven Elven
publicadas pela DC Comics em New Adventure Comics vol. 1 #23-30 (1938). Em
1935, o Toronto Telegram publicou a tira de jornal "Robin Hood and Company" de Ted McCall e Charles Snelgrove. Em
1941 foi convertido em revista. Além disso, Robin Hood serviu de principal
inspiração para a criação do personagem Arqueiro Verde (Green Arrow) da DC
Comics. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Robin_Hood
[5] V.
ACCIOLY LOBATO, 2010: 51-66. As
aventuras de Robin Hood: Lenda, Cinema e História.
[6]
A primeira referência ao personagem é o poema épico Piers Plowman, escrito por
William Langand em 1377. A compilação ‘Gesta de Robin Hood’, datada de 1400,
sugere que as histórias que compõem a lenda já circulavam desde 1310. PEREIRA, Robin
Hood – a lenda na cultura medieval.
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