Marcelo
Bolshaw Gomes[1]
O presente texto retoma a discussão sobre a cientificidade dos saberes
alternativos, principalmente a astrologia, tentando demonstrar que a ciência
contemporânea pode (e deve) explicar e compreender esses saberes ao invés de
simplesmente refutá-los. Para tanto, discute-se a relação da astrologia com a
modernidade e a sua possível compatibilidade com a sociologia. O texto concluí
que é possível traçar paralelos entre as duas disciplinas e sugere alguns
parâmetros.
1) Introdução
Existem vários textos apaixonados
sobre se a astrologia é ou não é uma ciência. Mas, trata-se de uma diálogo
entre surdos, pois nem os astrólogos escutam os argumentos científicos quanto
os cientistas se recusam a entender o ponto de vista dos que gostam da
astrologia. No entanto, é rara uma abordagem que coloque a questão dentro de
uma quadro de referências mais gerais, por exemplo, sobre a relação entre a
epistemologia contemporânea e a reinvenção atual de saberes meta tradicionais
(como acupuntura ou homeopatia). Tais saberes não-científicos do ponto de vista
da física e da química, no entanto, tem comprovação pessoal e
estatístico-histórica (da mesma forma que a economia e a psicologia, que
atendem apenas a esse tipo de validação para serem consideradas ‘ciência’). Há
vários saberes não-científicos que funcionam objetivamente como formas práticas
de conhecimento.
Karl Popper demonstra, por exemplo,
que o marxismo e a psicanálise não são científicos epistemologicamente. Mas,
sua ‘falta de cientificidade’ em nada diminui a eficácia prática explicativa e
compreensiva desses saberes frente a realidade. Porém, a ciência deve(ria) investigar
'como' e 'em que condições' tal saber é válido - e não simplesmente dizer que
não é científico porque não se enquadra em seus métodos de análise específicos.
A ciência deve(ria) incluir, compreender, todos os saberes tradicionais e
alternativos em sua teoria e não simplesmente excluir os elementos lógicos e as
informações que não consegue explicar.
Há inclusive textos que compilam a
comparação entre astrologia e astronomia (ou em relação à epistemologia e
geral), sistematizando suas discordâncias: a ilusão de que a força
gravitacional ou o eletromagnetismo dos corpos celestes influenciarem os corpos
terrestres e as personalidades humanas; a descoberta científica de uma décima
terceira constelação zodiacal (e de outros elementos astronômicos gigantescos
como buracos negros, nebulosas, supernovas – aparentemente sem nenhum
significado astrológico); e, principalmente, o movimento de precessão da terra[2].
O movimento de precessão é causado
pelas forças exercidas pela translação do Sol e pela da rotação da Terra e da
Lua, fazendo com que o planeta se movimente em relação ao próprio eixo. Esse
movimento muda as estrelas de lugar para o observador terrestre. A cada ano, a
terra sofre uma precessão de cerca de 20 minutos. Em 2160 anos, a mudança é de
30 graus. Na época em que a astrologia foi concebida, o sol nascia às seis
horas da manhã na constelação de Áries; durante muitos séculos, o sol nesse dia
nasceu em Peixes; e nos dias atuais, a constelação que abre o equinócio de
outono no hemisfério sul é a de Aquário.
Ou seja: céu astronômico não coincide
mais com o céu astrológico!
Tal fato é o principal argumento dos
cientificistas – uma vez que não havendo coincidência também não há causalidade
nem observação da realidade. O fato também levou a uma minoria dos astrólogos a
uma pretensão atualização[3].
Mas, a grande maioria passou a entender que não são os astros que determinam os
acontecimentos, mas que são a linguagem dos símbolos que condicionam nossas
vidas. A astrologia, assim, não seria uma ciência do sentido estrito, mas sim
uma linguagem, uma arte de interpretação. Para esses, a astrologia não é uma ciência
e a ideia simplificada de que os corpos celestes determinam a vida das pessoas
é falsa. Mas, isto não significa que ela não faça sentido em determinado nível,
tanto no que diz respeito à relação entre a personalidade e as características
dos signos zodiacais, como em relação aos contextos complexos formados por
símbolos astrológicos que influenciam os acontecimentos.
2) Astrologia e ciência
Antes da escrita e da história, havia
diferentes ‘astrologias’: a chinesa, a indiana, a etno-astronomia dos povos
pré-colombianos e a sumeriana - cujo modelo solar deu origem à astrologia e à
astronomia contemporâneas. Essas astrologias pré-históricas das sociedades
tradicionais tinham em comum a simultaneidade temporal (ou tempo circular lunar-solar),
o geocentrismo (a terra do centro do universo) e a simetria entre o mundo e o
cosmo (o homem como reflexo do universo).
Com o aparecimento das escritas e do
tempo contínuo da história, a ciência (ou o projeto de representação objetiva
que o universo tem de si próprio) e a modernidade cultural (a imagem
pretensamente objetiva que a sociedade faz de si mesma) passou lenta e
progressivamente a construir um paradigma do observador onisciente, que o vê o
universo de um ponto cego.
Hoje este modelo astrológico não nos serve mais de
paradigma de observação científica dos céus mas continua válido como ‘Themata’
ou paradigma simbólico. Assim, no paradigma objetivo da astronomia, sabemos que
a Terra gira em torno do Sol; no entanto, continuamos dependendo simbolicamente
do paradigma subjetivo da astrologia, que como uma linguagem do inconsciente,
condiciona atitudes e comportamentos, através da associação de determinadas
características psicológicas aos meses do ano, por exemplo.
A ciência e o pensamento objetivo superaram apenas
parcialmente o antigo paradigma de representação e esta ‘superação’ é uma
questão muito relativa: ao contrário do que pensam os historiadores da ciência,
a ideia de um sistema geocêntrico não significa que Ptolomeu acreditasse que o
Sol girasse em torno da Terra, mas sim que ele colocava a questão da
representação objetiva do universo em um segundo plano diante da ideia de
decifração do destino através da observação especular das estrelas.
Devido ao movimento de precessão do eixo da terra, os
céus astrológico e astronômico não coincidem mais. Tal fato, paradigmático da
relação geral entre cosmologia científica e cosmogonia simbólica, divide
atualmente os astrólogos em dois grandes grupos: os defensores de uma
atualização do simbolismo ao céu real e os que dissociam completamente a
linguagem astrológica da realidade astronômica (GOMES, 1998, 04).
Assim, fazemos duas representações do
universo, uma consciente e pretensamente objetiva (em que a terra é uma bola de
pedra que gira em torno de uma bola de fogo); e outra, inconsciente e
subjetiva, povoada por símbolos, imagens e energias invisíveis. O paradigma
astrológico perdura no campo morfogênico como uma linguagem simbólica do
inconsciente.
Atualmente, vivemos um terceiro
momento epistemológico: a pós-escrita[4].
A partir dos anos 60, voltamos a viver na simultaneidade de tempo, acrescida
agora da sua irreversibilidade histórica. A internet e as redes digitais em
suportes móveis (como o celular, o GPS, o tablete) aprofundaram ainda mais a
revolução que a linguagem audiovisual já havia começado. Esta nova concepção corresponde a noção de
‘múltiplos tempos simultâneos compreendidos dentro de um único tempo
irreversível’ proveniente da mecânica quântica e oferece um novo paradigma de
representação onde a previsibilidade de um evento depende, ao mesmo tempo, do
simbólico e do científico. E, apesar das inúmeras diferenças dos modus operandi entre o conhecimento
científico e o saber tradicional, ambos têm um único objetivo: evitar o
infortúnio e a adversidade, procurando antecipar os acontecimentos para melhor
enfrenta-los.
3) Sociologia e ciência
E a sociologia? É uma ciência? Sim e
não. Depende do que entendemos por sociologia e ciência. A sociologia de
Durkheim, que tem por objeto o ‘fato social’ e busca explicar as causas últimas
dos fenômenos, se pretende científica. Ele pressupõe um corte epistemológico
com o senso comum, uma ruptura com a percepção do imediato.
Já a sociologia de Max Weber, que tem
por objeto a ‘ação social’ e busca compreender a realidade social a partir da
observação direta engajada, não tem a mesma pretensão de objetividade e de
cientificidade que Durkheim e seus seguidores. Weber define uma sociologia
interpretativa, mais preocupada em compreender os motivos do que determinar e
explicar as causas.
A ciência também pode ser entendida
como uma forma de saber racionalista e empirista, superespecializada e sem
noção de conjunto (a ciência determinista e mecanicista do paradigma imposto
pela escrita); e como uma ciência da complexidade, relativista
(multi-subjetiva) e integral, como um saber geral que tenta englobar
compreensivamente os outros saberes específicos: o saber universal por consenso[5].
Edgar Morin, no livro O retorno dos astrólogos (1972), foi o
pioneiro na possibilidade de aproximação da sociologia interpretativa com a
astrologia, entendida como uma linguagem simbólica popular universalizada pela
mídia. Há também outras iniciativas interdisciplinares nos estudo do imaginário
e da mitologia. Devaneios da Imaginação Simbólica (GOMES, 2017), por exemplo, faz uma aproximação entre
os quatro elementos e antropologia.
Porém, falta ainda quem sugira um
modelo de equivalência dos elementos astrológicos com os sociológicos,
estabelecendo parâmetros operacionais explícitos para comparações e analogias
diferentes.
Tabela 1: A
equivalência de elementos astrológicos e sociológicos
PLANETA
|
SIGNIFICADO
|
EQUIVALENTE
|
ROTAÇÃO
|
Planetas transpessoais (Modernidade)
|
|
||
Plutão
|
A
IMPERMANÊNCIA
|
TRANSFORMAÇÃO
|
248 anos
|
Netuno
|
A
TRANSCENDÊNCIA
|
PSICODELIA
|
164 anos
|
Urano
|
A
UNIDADE
|
TECNOLOGIA
|
84 anos
|
Planetas sociais (países, classes sociais, gerações)
|
|
||
Saturno
|
SEVERIDADE
|
CICLOS
ECONOMICOS
|
29 anos
e 167 dias
|
Júpiter
|
BENEVOLÊNCIA
|
POLÍTICAS
PÚBLICAS
|
11,86
anos
|
Planetas pessoais (age mais individualmente)
|
|
||
Marte
|
AGRESSIVIDADE
|
POLÍCIA/EDUCAÇÃO
|
687 dias
|
Lua
|
VITALIDADE
|
SAÚDE/ALIMENTAÇÃO
|
28 dias
|
Vênus
|
SEXUALIDADE/
LINGUAGEM
|
MEIOS DE
COMUNICAÇÃO
|
224,65
dias
|
Mercúrio
|
TROCAS
|
COMÉRCIO/TRANSPORTE
|
88 dias
|
Sol
|
ESPIRITUALIDADE
|
GOVERNO/RELIGIÃO
|
365,24
dias
|
Fonte:
elaborado pelo próprio autor
Para o sociólogo contemporâneo Anthony
Giddens (1991), as sociedades tradicionais têm uma reflexibilidade entre o
passado e o presente, onde a memória formata o vivido e o agora confirma o
passado. A modernidade se caracteriza pelo risco e pela imprevisibilidade, uma
reflexibilidade entre o presente e o futuro, entre a simulação do devir e a
reconfiguração do atual. Para ele, a modernidade e a tradição convivem lado a
lado em nossos dias. As tradições culturais ainda modelam nossa identidade
enquanto o risco transforma nossas vidas em aventuras. Estamos em um estágio
avançado da modernidade ou pós-modernidade, em que os aspectos significantes da
linguagem (a imagem, os sentimentos, os sons, as impressões subjetivas) –
festejados nos tempos tradicionais e reprimidos em função dos significados
durante toda ditadura do emissor imposta pela escrita – retornam mesclados com
feminismo e com a democratização das relações pessoais.
4)
Modelo astro sociológico
No modelo aqui proposto, os planetas
transpessoais representam a reflexibilidade moderna e os sete planetas
clássicos correspondem a reflexibilidade tradicional. Urano representa a
tecnologia e a eletricidade. Plutão, a impermanência, a eterna mudança. E
Netuno, a consciência transcendente. Essa discussão (sobre Netuno, Urano e
Plutão em relação à modernidade) foi desenvolvida (pasmem) pelo ideólogo
ultradireitista Olavo de Carvalho[6],
adepto da astrologia tradicional.
Urano, por exemplo, recebe uma interpretação já muito
ligada ao próprio espírito moderno. Certas organizações esotéricas agem,
ritualmente, no sentido da interpretação que elas próprias atribuíram ao
planeta. Os ciclos destes astros começam a trabalhar mais neste sentido, porque
são reforçados pela ação humana. Eu não acredito, realmente, que um planeta
possa trazer a ideologia da revolução francesa. Agora, quando se quer realizar
uma grande mudança no mundo, saber da existência de um novo planeta pode ser
maravilhoso, já que possibilita a realização de toda uma reinterpretação da
história, com base nos significados que você mesmo quis atribuir a ele.
Acontece a mesma coisa com Netuno e Plutão, mas isto não quer dizer que estas
interpretações não funcionem, porque parcialmente estes efeitos podem
corresponder ao dos planetas, embora sejam apenas uma parte destacada do
significado total daquele astro. Até o sétimo planeta, os astrólogos contavam
com uma interpretação estável entre várias civilizações e não dá para
justificar estas interpretações apenas como produto ideológico de tais
civilizações. Mas nestes últimos, você tem interpretações específicas da
astrologia ocidental, feita quase que totalmente por sociedades secretas. Essas
interpretações não tem universalidade, apesar de poderem ser parcialmente
válidas.
Reparem que o argumento de Carvalho é
que ‘planetas modernos’ rompem com a reflexibilidade tradicional e não existem
em diferentes tradições, se confundindo com a própria ação social que deseja
transformar o mundo. A revolução moderna é baseada nas mudanças tecnológicas de
Urano, na destruição das velhas estruturas sociais por Plutão e no sonho
encantado de Netuno. Para ele, não há sentido nos ciclos astrológicos de longa
duração em relação aos movimentos históricos.
Outra distinção relevante do modelo
de analogia proposto entre elementos astrológicos e sociológicos é
diferenciação entre os planetas Saturno e Júpiter - que devido a sua rotação
lenta representam elementos coletivos (estados nacionais, classes sociais,
gerações); dos planetas pessoais, que, mais rápidos, correspondem as relações
sociais mais individualizadas.
Na antiguidade não havia o que chamamos de
‘adivinhação individual’. Até mesmo os oráculos dos reis não se referiam a eles
como pessoas mas como instituições. Nas artes divinatórias primitivas o que
importava era a interpretação e a manipulação das forças naturais e não o
destino individual dos consulentes. Ao contrário: o destino individual era
constantemente ‘sacrificado’ em nome da harmonia cósmica (GOMES, 1998, 03).
E, assim, os ‘deuses planetários’ (personificações
de forças naturais, representavam simultaneamente lugares, vocações, dramas
arquetípicos que fundam costumes e tradições) foram reduzidos a meros ‘tipos
psicológicos’ modernos, os signos zodiacais modernos. A astrologia contemporânea,
nesse sentido, é anti-sociológica, porque compreende a sociedade como um
conjunto de indivíduos autônomos. Na verdade, não havia ‘indivíduos’ assim como
entendemos antes da revolução francesa, mas pessoas e identidades coletivas.
No modelo astro sociológico proposto,
o percurso do sol está associado ao ano litúrgico e à agenda do governo. O
estado laico é uma tentativa de desvincular as duas agendas, marcadas pela
passagens das estações. A atividade econômica, o trabalho, o consumo e a
organização do tempo em função do corpo são atributos regidos pela lua em seu
ciclo de 28 dias. O sol é a política; a Lua, economia. E Vênus, do ponto de
vista sociológico, é representada pelos meios de comunicação, no sentido que
essas instituições controlam as imagens que agentes fazem de si e a sua
‘energia sexual’. O planeta Mercúrio, comumente associado à comunicação, figura
no modelo como um mediador das trocas sociais, representando as atividades do
comércio de bens e serviços, bem como o sistema de transporte da sociedade.
Pode parecer arbitrário associar Marte às instituições policiais e educacionais
ao mesmo tempo, mas se pensarmos em termos de administração da agressividade
social, essa associação fará o maior sentido. Porém, os dois parâmetros mais
importantes para uma análise histórica e sociológica baseada em elementos
astrológicos está na observação dos planetas Saturno (macro ciclos econômicos)
e Júpiter (planejamento de políticas públicas e/ou ação
governamental/institucional involuntária).
(CONTINUA)
Bibliografia
ELIADE, M. Tratado
Histórico das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
GIDDENS, Anthony. As
consequências da modernidade. 1ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 1991.
GOMES, Marcelo Bolshaw. O
Hermeneuta - Uma introdução ao estudo de Si. Dissertação de mestrado em
Ciências Sociais (1997). Livro, v.01. p.164. Natal: Editora Universitária
da UFRN (EDUFRN),
2010a. <https://www.academia.edu/34061443/O_HERMENEUTA.pdf>
___ Hermenêutica e os erros
de interpretação (Segunda parte de O hermeneuta). Revista Vivência v.12,
n.02; p.05-18. Natal: UFRN, 1998. <https://www.academia.edu/1583736/Os_Tr%C3%AAs_Erros_de_Le%C3%B4nidas_Princ%C3%ADpios_de_Interpreta%C3%A7%C3%A3o_Dial%C3%B3gica> último acesso em 16/07/2015.
Devaneio da Imaginação Simbólica. Natal: Editora Universitária da UFRN, 2017, v.1.
p.120
MORIN,
Edgar. O retorno dos astrólogos. Lisboa: Moraes, 1972.
ZOHAR, D. Através
da Barreira do Tempo - um estudo sobre a precognição e a física moderna.
São Paulo: Pensamento, 1982.
VON FRANZ,
M. L. Adivinhação e sincronicidade. São Paulo: Pensamento, 1990.
[1]
Professor de Comunicação Social com doutorado em ciências sociais.
[4]
A pós-escrita é uma noção definida por Flusser, mas já existia de forma parcial
em muitos outros autores. Mc Luhan é o pioneiro em perceber que a televisão nos
levaria a uma aldeia global. Pierre Levy estabelece três modos de interação: o
um-um (a oralidade); o um-muitos (um emissor, muitos receptores); e
muitos-muitos (redes em que todos os pontos se ligam). Kerckhove fala de
contexto, texto e hipertexto. Pross prefere mídia primária (corporal),
secundária e elétrica. E assim por diante.
[5] E
não o universal imposto pelo etnocentrismo cultural sobre os saberes regionais.