sábado, 29 de dezembro de 2018

astrosociologia?


UM MODELO PARA ASTRO SOCIOLOGIA
Marcelo Bolshaw Gomes[1]

O presente texto retoma a discussão sobre a cientificidade dos saberes alternativos, principalmente a astrologia, tentando demonstrar que a ciência contemporânea pode (e deve) explicar e compreender esses saberes ao invés de simplesmente refutá-los. Para tanto, discute-se a relação da astrologia com a modernidade e a sua possível compatibilidade com a sociologia. O texto concluí que é possível traçar paralelos entre as duas disciplinas e sugere alguns parâmetros.

1)      Introdução
Existem vários textos apaixonados sobre se a astrologia é ou não é uma ciência. Mas, trata-se de uma diálogo entre surdos, pois nem os astrólogos escutam os argumentos científicos quanto os cientistas se recusam a entender o ponto de vista dos que gostam da astrologia. No entanto, é rara uma abordagem que coloque a questão dentro de uma quadro de referências mais gerais, por exemplo, sobre a relação entre a epistemologia contemporânea e a reinvenção atual de saberes meta tradicionais (como acupuntura ou homeopatia). Tais saberes não-científicos do ponto de vista da física e da química, no entanto, tem comprovação pessoal e estatístico-histórica (da mesma forma que a economia e a psicologia, que atendem apenas a esse tipo de validação para serem consideradas ‘ciência’). Há vários saberes não-científicos que funcionam objetivamente como formas práticas de conhecimento.
Karl Popper demonstra, por exemplo, que o marxismo e a psicanálise não são científicos epistemologicamente. Mas, sua ‘falta de cientificidade’ em nada diminui a eficácia prática explicativa e compreensiva desses saberes frente a realidade. Porém, a ciência deve(ria) investigar 'como' e 'em que condições' tal saber é válido - e não simplesmente dizer que não é científico porque não se enquadra em seus métodos de análise específicos. A ciência deve(ria) incluir, compreender, todos os saberes tradicionais e alternativos em sua teoria e não simplesmente excluir os elementos lógicos e as informações que não consegue explicar.
Há inclusive textos que compilam a comparação entre astrologia e astronomia (ou em relação à epistemologia e geral), sistematizando suas discordâncias: a ilusão de que a força gravitacional ou o eletromagnetismo dos corpos celestes influenciarem os corpos terrestres e as personalidades humanas; a descoberta científica de uma décima terceira constelação zodiacal (e de outros elementos astronômicos gigantescos como buracos negros, nebulosas, supernovas – aparentemente sem nenhum significado astrológico); e, principalmente, o movimento de precessão da terra[2].
O movimento de precessão é causado pelas forças exercidas pela translação do Sol e pela da rotação da Terra e da Lua, fazendo com que o planeta se movimente em relação ao próprio eixo. Esse movimento muda as estrelas de lugar para o observador terrestre. A cada ano, a terra sofre uma precessão de cerca de 20 minutos. Em 2160 anos, a mudança é de 30 graus. Na época em que a astrologia foi concebida, o sol nascia às seis horas da manhã na constelação de Áries; durante muitos séculos, o sol nesse dia nasceu em Peixes; e nos dias atuais, a constelação que abre o equinócio de outono no hemisfério sul é a de Aquário.  
Ou seja: céu astronômico não coincide mais com o céu astrológico!
Tal fato é o principal argumento dos cientificistas – uma vez que não havendo coincidência também não há causalidade nem observação da realidade. O fato também levou a uma minoria dos astrólogos a uma pretensão atualização[3]. Mas, a grande maioria passou a entender que não são os astros que determinam os acontecimentos, mas que são a linguagem dos símbolos que condicionam nossas vidas. A astrologia, assim, não seria uma ciência do sentido estrito, mas sim uma linguagem, uma arte de interpretação. Para esses, a astrologia não é uma ciência e a ideia simplificada de que os corpos celestes determinam a vida das pessoas é falsa. Mas, isto não significa que ela não faça sentido em determinado nível, tanto no que diz respeito à relação entre a personalidade e as características dos signos zodiacais, como em relação aos contextos complexos formados por símbolos astrológicos que influenciam os acontecimentos.
2)      Astrologia e ciência
Antes da escrita e da história, havia diferentes ‘astrologias’: a chinesa, a indiana, a etno-astronomia dos povos pré-colombianos e a sumeriana - cujo modelo solar deu origem à astrologia e à astronomia contemporâneas. Essas astrologias pré-históricas das sociedades tradicionais tinham em comum a simultaneidade temporal (ou tempo circular lunar-solar), o geocentrismo (a terra do centro do universo) e a simetria entre o mundo e o cosmo (o homem como reflexo do universo).
Com o aparecimento das escritas e do tempo contínuo da história, a ciência (ou o projeto de representação objetiva que o universo tem de si próprio) e a modernidade cultural (a imagem pretensamente objetiva que a sociedade faz de si mesma) passou lenta e progressivamente a construir um paradigma do observador onisciente, que o vê o universo de um ponto cego.
Hoje este modelo astrológico não nos serve mais de paradigma de observação científica dos céus mas continua válido como ‘Themata’ ou paradigma simbólico. Assim, no paradigma objetivo da astronomia, sabemos que a Terra gira em torno do Sol; no entanto, continuamos dependendo simbolicamente do paradigma subjetivo da astrologia, que como uma linguagem do inconsciente, condiciona atitudes e comportamentos, através da associação de determinadas características psicológicas aos meses do ano, por exemplo.
A ciência e o pensamento objetivo superaram apenas parcialmente o antigo paradigma de representação e esta ‘superação’ é uma questão muito relativa: ao contrário do que pensam os historiadores da ciência, a ideia de um sistema geocêntrico não significa que Ptolomeu acreditasse que o Sol girasse em torno da Terra, mas sim que ele colocava a questão da representação objetiva do universo em um segundo plano diante da ideia de decifração do destino através da observação especular das estrelas.
Devido ao movimento de precessão do eixo da terra, os céus astrológico e astronômico não coincidem mais. Tal fato, paradigmático da relação geral entre cosmologia científica e cosmogonia simbólica, divide atualmente os astrólogos em dois grandes grupos: os defensores de uma atualização do simbolismo ao céu real e os que dissociam completamente a linguagem astrológica da realidade astronômica (GOMES, 1998, 04).

Assim, fazemos duas representações do universo, uma consciente e pretensamente objetiva (em que a terra é uma bola de pedra que gira em torno de uma bola de fogo); e outra, inconsciente e subjetiva, povoada por símbolos, imagens e energias invisíveis. O paradigma astrológico perdura no campo morfogênico como uma linguagem simbólica do inconsciente.

Atualmente, vivemos um terceiro momento epistemológico: a pós-escrita[4]. A partir dos anos 60, voltamos a viver na simultaneidade de tempo, acrescida agora da sua irreversibilidade histórica. A internet e as redes digitais em suportes móveis (como o celular, o GPS, o tablete) aprofundaram ainda mais a revolução que a linguagem audiovisual já havia começado.  Esta nova concepção corresponde a noção de ‘múltiplos tempos simultâneos compreendidos dentro de um único tempo irreversível’ proveniente da mecânica quântica e oferece um novo paradigma de representação onde a previsibilidade de um evento depende, ao mesmo tempo, do simbólico e do científico. E, apesar das inúmeras diferenças dos modus operandi entre o conhecimento científico e o saber tradicional, ambos têm um único objetivo: evitar o infortúnio e a adversidade, procurando antecipar os acontecimentos para melhor enfrenta-los.
3)      Sociologia e ciência
E a sociologia? É uma ciência? Sim e não. Depende do que entendemos por sociologia e ciência. A sociologia de Durkheim, que tem por objeto o ‘fato social’ e busca explicar as causas últimas dos fenômenos, se pretende científica. Ele pressupõe um corte epistemológico com o senso comum, uma ruptura com a percepção do imediato.
Já a sociologia de Max Weber, que tem por objeto a ‘ação social’ e busca compreender a realidade social a partir da observação direta engajada, não tem a mesma pretensão de objetividade e de cientificidade que Durkheim e seus seguidores. Weber define uma sociologia interpretativa, mais preocupada em compreender os motivos do que determinar e explicar as causas.
A ciência também pode ser entendida como uma forma de saber racionalista e empirista, superespecializada e sem noção de conjunto (a ciência determinista e mecanicista do paradigma imposto pela escrita); e como uma ciência da complexidade, relativista (multi-subjetiva) e integral, como um saber geral que tenta englobar compreensivamente os outros saberes específicos: o saber universal por consenso[5].
Edgar Morin, no livro O retorno dos astrólogos (1972), foi o pioneiro na possibilidade de aproximação da sociologia interpretativa com a astrologia, entendida como uma linguagem simbólica popular universalizada pela mídia. Há também outras iniciativas interdisciplinares nos estudo do imaginário e da mitologia. Devaneios da Imaginação Simbólica (GOMES, 2017), por exemplo, faz uma aproximação entre os quatro elementos e antropologia.
Porém, falta ainda quem sugira um modelo de equivalência dos elementos astrológicos com os sociológicos, estabelecendo parâmetros operacionais explícitos para comparações e analogias diferentes.
Tabela 1: A equivalência de elementos astrológicos e sociológicos
PLANETA
SIGNIFICADO
EQUIVALENTE
ROTAÇÃO
Planetas transpessoais (Modernidade)

Plutão
A IMPERMANÊNCIA
TRANSFORMAÇÃO
248 anos
Netuno
A TRANSCENDÊNCIA
PSICODELIA
164 anos
Urano
A UNIDADE
TECNOLOGIA
84 anos
Planetas sociais (países, classes sociais, gerações)

Saturno
SEVERIDADE
CICLOS ECONOMICOS
29 anos e 167 dias
Júpiter
BENEVOLÊNCIA
POLÍTICAS PÚBLICAS
11,86 anos
Planetas pessoais (age mais individualmente)

Marte
AGRESSIVIDADE
POLÍCIA/EDUCAÇÃO
687 dias
Lua
VITALIDADE
SAÚDE/ALIMENTAÇÃO
28 dias
Vênus
SEXUALIDADE/ LINGUAGEM
MEIOS DE COMUNICAÇÃO
224,65 dias
Mercúrio
TROCAS
COMÉRCIO/TRANSPORTE
88 dias
Sol
ESPIRITUALIDADE
GOVERNO/RELIGIÃO
365,24 dias
Fonte: elaborado pelo próprio autor
Para o sociólogo contemporâneo Anthony Giddens (1991), as sociedades tradicionais têm uma reflexibilidade entre o passado e o presente, onde a memória formata o vivido e o agora confirma o passado. A modernidade se caracteriza pelo risco e pela imprevisibilidade, uma reflexibilidade entre o presente e o futuro, entre a simulação do devir e a reconfiguração do atual. Para ele, a modernidade e a tradição convivem lado a lado em nossos dias. As tradições culturais ainda modelam nossa identidade enquanto o risco transforma nossas vidas em aventuras. Estamos em um estágio avançado da modernidade ou pós-modernidade, em que os aspectos significantes da linguagem (a imagem, os sentimentos, os sons, as impressões subjetivas) – festejados nos tempos tradicionais e reprimidos em função dos significados durante toda ditadura do emissor imposta pela escrita – retornam mesclados com feminismo e com a democratização das relações pessoais.
4)      Modelo astro sociológico
No modelo aqui proposto, os planetas transpessoais representam a reflexibilidade moderna e os sete planetas clássicos correspondem a reflexibilidade tradicional. Urano representa a tecnologia e a eletricidade. Plutão, a impermanência, a eterna mudança. E Netuno, a consciência transcendente. Essa discussão (sobre Netuno, Urano e Plutão em relação à modernidade) foi desenvolvida (pasmem) pelo ideólogo ultradireitista Olavo de Carvalho[6], adepto da astrologia tradicional.
Urano, por exemplo, recebe uma interpretação já muito ligada ao próprio espírito moderno. Certas organizações esotéricas agem, ritualmente, no sentido da interpretação que elas próprias atribuíram ao planeta. Os ciclos destes astros começam a trabalhar mais neste sentido, porque são reforçados pela ação humana. Eu não acredito, realmente, que um planeta possa trazer a ideologia da revolução francesa. Agora, quando se quer realizar uma grande mudança no mundo, saber da existência de um novo planeta pode ser maravilhoso, já que possibilita a realização de toda uma reinterpretação da história, com base nos significados que você mesmo quis atribuir a ele. Acontece a mesma coisa com Netuno e Plutão, mas isto não quer dizer que estas interpretações não funcionem, porque parcialmente estes efeitos podem corresponder ao dos planetas, embora sejam apenas uma parte destacada do significado total daquele astro. Até o sétimo planeta, os astrólogos contavam com uma interpretação estável entre várias civilizações e não dá para justificar estas interpretações apenas como produto ideológico de tais civilizações. Mas nestes últimos, você tem interpretações específicas da astrologia ocidental, feita quase que totalmente por sociedades secretas. Essas interpretações não tem universalidade, apesar de poderem ser parcialmente válidas.
Reparem que o argumento de Carvalho é que ‘planetas modernos’ rompem com a reflexibilidade tradicional e não existem em diferentes tradições, se confundindo com a própria ação social que deseja transformar o mundo. A revolução moderna é baseada nas mudanças tecnológicas de Urano, na destruição das velhas estruturas sociais por Plutão e no sonho encantado de Netuno. Para ele, não há sentido nos ciclos astrológicos de longa duração em relação aos movimentos históricos.
Outra distinção relevante do modelo de analogia proposto entre elementos astrológicos e sociológicos é diferenciação entre os planetas Saturno e Júpiter - que devido a sua rotação lenta representam elementos coletivos (estados nacionais, classes sociais, gerações); dos planetas pessoais, que, mais rápidos, correspondem as relações sociais mais individualizadas.
Na antiguidade não havia o que chamamos de ‘adivinhação individual’. Até mesmo os oráculos dos reis não se referiam a eles como pessoas mas como instituições. Nas artes divinatórias primitivas o que importava era a interpretação e a manipulação das forças naturais e não o destino individual dos consulentes. Ao contrário: o destino individual era constantemente ‘sacrificado’ em nome da harmonia cósmica (GOMES, 1998, 03).
E, assim, os ‘deuses planetários’ (personificações de forças naturais, representavam simultaneamente lugares, vocações, dramas arquetípicos que fundam costumes e tradições) foram reduzidos a meros ‘tipos psicológicos’ modernos, os signos zodiacais modernos. A astrologia contemporânea, nesse sentido, é anti-sociológica, porque compreende a sociedade como um conjunto de indivíduos autônomos. Na verdade, não havia ‘indivíduos’ assim como entendemos antes da revolução francesa, mas pessoas e identidades coletivas.
No modelo astro sociológico proposto, o percurso do sol está associado ao ano litúrgico e à agenda do governo. O estado laico é uma tentativa de desvincular as duas agendas, marcadas pela passagens das estações. A atividade econômica, o trabalho, o consumo e a organização do tempo em função do corpo são atributos regidos pela lua em seu ciclo de 28 dias. O sol é a política; a Lua, economia. E Vênus, do ponto de vista sociológico, é representada pelos meios de comunicação, no sentido que essas instituições controlam as imagens que agentes fazem de si e a sua ‘energia sexual’. O planeta Mercúrio, comumente associado à comunicação, figura no modelo como um mediador das trocas sociais, representando as atividades do comércio de bens e serviços, bem como o sistema de transporte da sociedade. Pode parecer arbitrário associar Marte às instituições policiais e educacionais ao mesmo tempo, mas se pensarmos em termos de administração da agressividade social, essa associação fará o maior sentido. Porém, os dois parâmetros mais importantes para uma análise histórica e sociológica baseada em elementos astrológicos está na observação dos planetas Saturno (macro ciclos econômicos) e Júpiter (planejamento de políticas públicas e/ou ação governamental/institucional involuntária).
(CONTINUA)


Bibliografia
ELIADE, M. Tratado Histórico das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. 1ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 1991.
GOMES, Marcelo Bolshaw. O Hermeneuta - Uma introdução ao estudo de Si. Dissertação de mestrado em Ciências Sociais (1997). Livro, v.01. p.164. Natal: Editora Universitária da UFRN (EDUFRN), 2010a. <https://www.academia.edu/34061443/O_HERMENEUTA.pdf>
___ Hermenêutica e os erros de interpretação (Segunda parte de O hermeneuta). Revista Vivência v.12, n.02; p.05-18. Natal: UFRN, 1998. <https://www.academia.edu/1583736/Os_Tr%C3%AAs_Erros_de_Le%C3%B4nidas_Princ%C3%ADpios_de_Interpreta%C3%A7%C3%A3o_Dial%C3%B3gica> último acesso em 16/07/2015.
Devaneio da Imaginação Simbólica. Natal: Editora Universitária da UFRN, 2017, v.1. p.120
MORIN, Edgar. O retorno dos astrólogos. Lisboa: Moraes, 1972.
ZOHAR, D. Através da Barreira do Tempo - um estudo sobre a precognição e a física moderna. São Paulo: Pensamento, 1982.
VON FRANZ, M. L. Adivinhação e sincronicidade. São Paulo: Pensamento, 1990.



[1] Professor de Comunicação Social com doutorado em ciências sociais.
[4] A pós-escrita é uma noção definida por Flusser, mas já existia de forma parcial em muitos outros autores. Mc Luhan é o pioneiro em perceber que a televisão nos levaria a uma aldeia global. Pierre Levy estabelece três modos de interação: o um-um (a oralidade); o um-muitos (um emissor, muitos receptores); e muitos-muitos (redes em que todos os pontos se ligam). Kerckhove fala de contexto, texto e hipertexto. Pross prefere mídia primária (corporal), secundária e elétrica. E assim por diante.
[5] E não o universal imposto pelo etnocentrismo cultural sobre os saberes regionais.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Robin Hood


O MITO DO BOM LADRÃO

Marcelo Bolshaw Gomes[1]


Resumo: Este breve texto descreve a narrativa de Robin Hood, sua origem, desenvolvimento, sua suposta historicidade e faz um levantamento de suas principais versões. Ao final, discute o filme Robin Hood – a origem (2018) e sua combinação interpretativa das narrativas anteriores.

1.      História da estória
A história de Robin Hood não é uma narrativa qualquer. Ela é a primeira (e uma das únicas) em que o protagonista é um herói social da luta entre as classes, “alguém que rouba dos ricos para dar para os pobres”. Ela é uma referência para todos as narrativas semelhantes, sejam narrativas ficcionais ou mesmo narrativas biográficas revolucionárias reais, que se encantaram com as estórias do rei dos ladrões. Na Inglaterra, é um herói cívico.
A narrativa de Robin Hood remonta a literatura oral cantada em baladas (um tipo de poema lírico) na Inglaterra do século XIV. Ele era considerado um personagem histórico, um fora da lei. Seu inimigo frequente era o xerife de Nottingham. Sua história era então muito apreciada pelos contadores de histórias lendárias e trovadores, ao lado de outras temas como rei Arthur. As baladas sobre Robin Hood são a expressão poética das aspirações populares durante um período histórico de injustiças e rebeliões. O herói bandido — perseguido pela justiça, caçando livremente na floresta, roubando dos ricos para dar aos pobres e desafiando ao poder — encantava o povo.
Das baladas dos menestréis aos poemas em trovas e destes ao teatro popular, a narrativa do bom ladrão foi sendo recontada como um mito, meio lenda, meio histórico. Ao longo do século XVI, no entanto, a história ganhou duas versões distintas: uma em que Robin Hood torna-se um nobre decadente (Robert Locksley); e outra em que ele é um homem do povo, injustamente acusado de roubo pelo poderosos.
A versão popular foi sistematizada por Howard Pyle (texto, ilustração, seleção de baladas) e introduz os companheiros de Robin (Frei Tuck, Will Scarlet, Allan Dale, Little João) em historietas em que os personagens se conhecem e, após uma disputa, se tornam amigos.
Nessa versão, Robin Hood era um rapaz que, quando se dirigia para um concurso de arco-e-flecha na cidade de Nottingham, meteu-se em uma confusão com guardas, e acabou matando um deles, tornando-se um criminoso. O livro conta em oito partes como Robin Hood reuniu um bando de homens alegres, que só roubavam de nobres arrogantes e clérigos abastados.
Na versão aristocrática, o herói passa a representar uma parte da nobreza que fazia oposição ao rei déspota e não mais um homem do povo.
Nessa versão, Robin Hood é Robert Locksley, nobre que, após servir ao lado do Rei Ricardo Coração de Leão nas cruzadas, retorna para casa e encontra seu feudo devastado pela tirania do regente, João Sem-terra. Aproveitando seu conhecimento de guerreiro, Robert une um grupo de bandidos e inicia um combate à nobreza, roubando dos ricos para dar aos pobres.
Também nessa versão surge a personagem feminina de Lady Marian, dando um caráter mais romântico à narrativa. No fim da história, Robin vence o príncipe João e casa-se com Marian, sobrinha de Rei Ricardo Coração de Leão – que reaparece após sua derrota em terras estrangeiras e nomeia Robin Hood cavaleiro, tornando-o nobre novamente. A estória, no entanto, foi e ainda é bastante misógina, com a mulher reduzida à refém dos vilões e prêmio do herói – apesar de algumas versões mais recentes tentarem inserir uma Marian mais participativa.
Segundo Green (1990, p. 10), apenas no final do século XVIII, depois de as baladas, romances e peças antigas serem coligidas e reimpressas por Joseph Ritson, “que Robin dos Bosques entrou realmente na literatura”. Foi Ritson que forneceu material para Walter Scott escrever Ivanhoé (o primeiro livro do romantismo histórico como movimento literário, em 1820, nele, o Robin Hood da versão popular desempenha um papel secundário); e a Alexandre Dumas escrever seus dois romances sobre o herói social/bandido: Le prince des voleurs (1872) e Robin Hood le proscrit (1873).
Como é um personagem de domínio público com uma reputação estabelecida, Robin Hood se tornou um personagem atraente para o cinema[2], a televisão[3] e as histórias em quadrinhos[4].
2.      Estórias históricas da atualidade
No cinema, assim como na estória oral, as narrativas atuais sempre assimilam e reinterpretam as narrativas anteriores de uma mesma história. A cada nova versão, alguns elementos são excluídos e outros vão sendo colocados em primeiro plano.
Mas, o filme Robin Hood – a origem (2018), de Otto Bathurst (que dirigiu a série Black Mirror), parece mais uma colagem do que uma atualização dos diferentes filmes que o antecederam: Robin Hood, o príncipe dos ladrões (1991), com Kevin Costner; e Robin Hood (2010), dirigido por Ridley Scott e com Russell Crowe. O novo filme mistura elementos narrativos desses filmes recentes com os livros de Alexandre Dumas (Robin Hood, o Príncipe dos Ladrões e Robin Hood, o Proscrito) e com os filmes mais antigos, como As Aventuras de Robin Hood (1938), com Errol Flynn. Little John (Jamie Foxx) se torna um mouro, que lorde Locksley (Taron Egerton) conheceu nas cruzadas; Will Scarlet se torna um nobre e um inimigo; e assim por diante. Essa reinterpretação dos personagens dá uma originalidade ao roteiro, mas os diálogos são cheios de lugares comuns, vazios, apesar dos esforços do elenco para dar-lhes algum sentido.
Aliás, o grande mérito do filme é o desempenho do seu elenco. A fotografia é sombria. A direção de arte é desleixada, com um figurino improvável e trechos de sonoplastia incompatíveis com o período retratado. Há até uma passeata com coquetéis molotov na idade média.
A falta de realismo histórico é compensada com muito computação gráfica e com cenas de lutas e perseguições. Mas, não há, nessa versão, aquele Robin todo de verde que não teme nada e vive livre e feliz na floresta, rodeado de amigos que se ajudam a cada nova ameaça. E sim um Robin sinistro, que conspira contra o poder fazendo-se passar de bajulador até ser desmascarado.
Tabela 1 – Estruturas narrativas dos três filmes
Filmes
Forma de expressão
Forma do Substância
Expressão do Conteúdo
Substância de conteúdo
1991
Audiovisual inspirada no texto de Alexandre Dumas
Aventura histórica, magia e romance
A burguesia substitui a nobreza como classe dominante.
Sonho ou simbólico,
Universais do imaginário
2010
Perspectiva histórica
2018
‘Gameficação’ da narrativa
A luta política de classes é eterna.
Fonte: Elaborada pelo autor com base no modelo da semiótica narrativa de Greimas.
Enquanto os filmes de 1991 e 2010 enfatizam mais o contexto histórico e social da narrativa, tentando dar um tom realista à estória; o filme mais recente aposta na estética de ‘game’ e em um elenco de qualidade. Por outro lado, enquanto os filmes mais antigos subscrevem o ideia do herói burguês, assimilado pela coroa e pela nobreza, o mais recente vê em Robin Hood um eterno rebelde, destinado a lutar contra o poder para sempre, há uma naturalização da luta de classes.
De modo que os três filmes, ao nível da substância de conteúdo, abrem mão da origem popular do herói bandido – colocando-o como um nobre conspirador[5].
3.      Estória ou história
Mesmo com a perda dos valores sociais originais e as mudanças nos enredos da estória, a narrativa continuou (e ainda continua) sendo considerada verdadeira do ponto de vista histórico por muitos, embora não exista nenhuma prova de sua existência. Na edição brasileira do texto de Dumas (2014), o tradutor Jorge Bastos afirma que o próprio autor dos romances ficcionais acreditava na existência histórica do personagem. A trama de Robin Hood acontece entre 1160 a 1220, quando a Inglaterra vivia sob o reinado da dinastia Plantageneta, durante as cruzadas.[6]
Os reis Ricardo Coração de Leão e João sem-terra realmente existiram. Foi em decorrência de seus reinados que se criaram a Carta Magna e a Câmara dos Lordes, primeira constituição e primeiro parlamento modernos. Os nobre, assustados com a centralização do estado absolutista, com a constituição de um exército regular da coroa e com os altos imposto cobrados pelo rei João, decidiu estabelecer limites orçamentários e políticos para tomada de decisões compartilhadas. Este período também se caracteriza pela fome e pela miséria dos mais pobres; e por revoltas populares e rebeliões nas principais cidades inglesas. Na Inglaterra não houve uma ‘revolução burguesa’ como na França – em que a burguesia ‘roubava’ dos nobres e do clero atrás de serviços e comércio e ‘dava’ empregos e migalhas para os trabalhadores. O mito de Robin Hood encarna o papel da burguesia ascendente como classe social, a passagem do absolutismo feudal para monarquia parlamentar e assimilação dos novos ricos às classes dominantes.
O condado de Nottingham (e uma cidade com o mesmo nome) e a Floresta de Sherwood também existiram e existem até hoje. Por lá também todo mundo acredita na história de Robin Hood. Existem lugares e eventos turísticos em torno da narrativa. Além das estátuas e ruas batizadas com o seu nome, há o festival anual que lhe é dedicado, com parque temático medieval e encenações de torneios de cavaleiros. Há também na Floresta de Sherwood, uma árvore em redor da qual o bando de Robin se reunia em conselho. Há ainda um memorial no Castelo de Nottingham e até um túmulo no convento de Kirklees, hoje em ruínas, em que se pode ler: "Aqui jaz Robert Hude".
É importante destacar que Robin Hood foi o primeiro herói a ter uma dupla identidade, como os atuais super-heróis. ‘Hood’ significa capuz e ele sempre foi, desde tempos remotos, representado como um arqueiro encapuçado. Houve muitas tentativas de historiadores em provar que Robin Hood de fato existiu, mas as baladas cantadas pelos menestréis são a única evidência disponível da possível existência do personagem. Nenhuma das tentativas de identificar o herói com alguma figura histórica foi bem-sucedida. De acordo com a investigação de Joseph Hunter, em 1852, Robin era Robert Hood e tornou-se fugitivo por ter ajudado o Conde de Lancaster, que se rebelara contra a cobrança abusiva de impostos do Príncipe João. Em 1998, Tony Molyneux-Smith publicou um livro em que sustenta que Sir Robert Foliot, conde de Huntington, que usava o nome de "Robin Hood" para esconder a sua verdadeira identidade e insuflar uma rebelião contra a coroa.
As referências históricas que sustentam as várias teorias da sua existência prendem-se, aliás, na maior parte dos casos, em registos de comparecimento em tribunais. Por Robin ter existido como "Robin Hood", por a lenda ser já contada ou por simples coincidência, parece ter havido antes de 1300, na mesma região, pelo menos cinco homens acusados de atividade criminal conhecidos pela alcunha de "Robin hood"[7].
E assim, personagens históricos encarnando lendas, inspiradas em personagens reais ... e a vida imita a arte que imita a vida.

Bibliografia
ACCIOLY LOBATO, Maria Nazareth Correa. As aventuras de Robin Hood: Lenda, Cinema e História. Brathair 10 (2) 2010: 51-66. ISSN 1519-9053 <https://www.academia.edu/34090118/As_Aventuras_de_Robin_Hood_lenda_cinema_e_Hist%C3%B3ria._In_Brathair_v._10_2_p._51-66_2010> 
DUMAS, Alexandre. As Aventuras de Robin Hood - Coleção Clássicos Zahar, 2014.
GREEN, Roger Lancelyn. As Aventuras de Robin dos Bosques. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1990.
PEREIRA, Fernando. Robin Hood – a lenda na cultura medieval. Texto acessível em: <https://www.academia.edu/25722734/Robin_Hood_A_Lenda_na_Cultura_Medieval>


[1] Professor do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN.
[2] Há muitas adaptações cinematográficas. Destacamos: Robin Hood, o Trapalhão da Floresta (1973) comédia brasileira com Renato Aragão e Dedé Santanna; Robin and Marian, de Richard Lester (1976), com Sean Connery e Audrey Hepburn (um Robin Hood já idoso voltando das cruzadas após 20 anos); a comédia Robin Hood: Men in Tights (1993) dirigida por Mel Brooks. Em 1973, a Disney lançou um desenho animado, com personagens representados por animais. Em 2912, a Warner Bros também lançou um longa em desenho: Tom e Jerry: Robin Hood e seu Ratinho Feliz, de Spike Brandt.
[3] Robin Hood foi exibido na rede de televisão inglesa BBC em 2006, sendo cancelada na 3ª temporada, em 2009. Em 1990, o estúdio Tatsunoko lançou um anime de 52 episódios. No Brasil foi lançado em VHS e posteriormente exibido na TV Record, junto com Kaiketsu Zorro. Em 1991, Hanna Barbera lança "O Jovem Robin Hood". O SBT e o Cartoon Network exibiram a animação. Em 2014, é lançada a série animada Robin Hood: Mischief in Sherwood, produzido pela DQ Entertainment em parceria com Method Animation.
[4] As primeiras histórias de Robin Hood foram escritas e desenhadas por Sven Elven publicadas pela DC Comics em New Adventure Comics vol. 1 #23-30 (1938). Em 1935, o Toronto Telegram publicou a tira de jornal "Robin Hood and Company" de Ted McCall e Charles Snelgrove. Em 1941 foi convertido em revista. Além disso, Robin Hood serviu de principal inspiração para a criação do personagem Arqueiro Verde (Green Arrow) da DC Comics. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Robin_Hood
[6] A primeira referência ao personagem é o poema épico Piers Plowman, escrito por William Langand em 1377. A compilação ‘Gesta de Robin Hood’, datada de 1400, sugere que as histórias que compõem a lenda já circulavam desde 1310. PEREIRA, Robin Hood – a lenda na cultura medieval.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

todas as manhãs ...

Toda manhã na África, a gazela acorda. Ela sabe que precisa correr mais rápido que o mais rápido dos leões para sobreviver. 

Toda manhã um leão acorda. Ele sabe que precisa correr mais rápido que a mais lenta das gazelas senão morrerá de fome.

Não importa se você e um leão ou uma gazela. Quando o sol nascer, comece a correr.

Provérbio africano

domingo, 11 de novembro de 2018

A origem do Tai Chi Chuan



Para dinamizar o treinamento de seus filhos, na arte marcial do Kung Fu, no estilo espiritual da família Tang, o velho mandarim admitiu o filho de um de seus servos nas aulas que ministrava para seus dois filhos. Com passar do tempo, o filho do servo se desenvolveu mais do que os alunos principais, sendo excluído dos treinos.
O jovem servo começou então a treinar sozinho, observando as aulas escondido nas matas, e acabou se desenvolvendo ainda mais.
Após perceber seu erro e reintegrá-lo às aulas, o velho mandarim decidiu entregar ao servo sua espada no leito de morte (entregando na verdade seu Kung Fu, patrimônio espiritual da dinastia Tang).
Foi então que seus dois melhores amigos, os filhos legítimos do mandarim falecido, tornaram-se seus piores inimigos. Após derrota-los em combates mortais, o jovem servo fugiu, sendo caçado e desafio por todos os jovens nobres da antiga China, uma vez que ele era o único servo que lutava Kun Fu. As artes marciais eram um privilégio dos nobres.
Buscou abrigo em um templo taoísta, na encosta das montanhas Wudang. Lá, meditando com os monges, aprofundou o contato com a espiritualidade e passou a se chamar Chang San Feng. Certo dia, em um passeio casual, observou a luta entre uma cobra e um grou, elaborando um novo estilo de movimentos alternados yin e Yang. Decidiu, então, voltar às cidades apesar dos incontáveis inimigos que o desafiavam, inclusive a justiça pela morte dos herdeiros Tang. Porém, para evitar mais mortes, o servo passou a desenvolver um estilo defensivo e a treinar e dar aulas em praças públicas, logo formando um grande público entre os que não tinham acesso às artes marciais. E, assim, o Tai chi chuan representa uma democratização de um saber exclusivo das elites chineses, reelaborado para defesa pessoal. [1]


[1] A história é lendária, como todas as muitas histórias envolvendo o mítico mestre Chang San Feng (ou Zhang Sanfeng) e os muitos textos taoístas a ele atribuídos - que muitos acreditam ter conquistado a imortalidade.  Historicamente comprovado, o criador do tai chi chuan como prática foi Chen Wangting.

Encantaria Moderna

Princípios da Feitiçaria Midiática

(…) A magia em suas formas mais primitivas é normal­mente designada como “arte”. Acho que isso é bastante literal. Eu acredito que a magia é arte e que a arte, quer por escrito, música, escultura ou qualquer outro meio é literalmente mágica. A arte é, como mágica, a ciência de manipular símbolos, palavras ou imagens para realizar mudanças na consciência. Conjurar um encantamento é somente encantar, manipular palavras para mudar a consciência das pessoas. Então eu acho que um artista ou escritor é a coisa mais próxima que você vai ter de um xamã no mundo contemporâneo. (...) O fato de que agora esse poder mágico degenerou o nível de entretenimento barato e manipulação é uma tragédia. Atualmente, aqueles que utilizam xamanismo e magia a moldar a nossa cultura são os anunciantes. Ao invés de acordar as pessoas xamanismo é a droga usada para tranquilizar as pessoas, para torná-las mais mane­jáveis. A sua caixa mágica da televisão, com as palavras mágicas, seus slogans, pode fazer com que todos no país pensam nas mesmas palavras e tenham os mesmos pen­samentos banais exatamente ao mesmo tempo. The Alan Moore Mindscape (2003, 23:43 – 32:37).


Sem arrodeio: enuncia-se aqui a seguir quatro princípios da feitiçaria midiática, amplamente utilizados e escondidos pela publicidade contemporânea. Depois, explicamos melhor os fundamentos e as consequências desses princípios.

São eles:

1)      Princípio da Singularidade Artesanal. Em oposição à noção de reprodutividade técnica de Walter Benjamim, a dessacralização da arte pela produção em série promovida pela industrialização de todos os objetos da sociedade[2]; enuncia-se aqui o princípio da singularidade técnica, em que o objeto único e original, manualmente produzido sem cópias é uma forma de arte. Em uma sociedade industrial, todo objeto artesanal é culturalmente um talismã da diferença, um oásis cognitivo no deserto da uniformização serial da objetividade. O objeto mágico é aquele que não tem cópia.

2)      Princípio da Propagação da Singularidade. O objeto mágico é artesanal e único, mas sua imagem pode ser reproduzida ao infinito pela indústria cultural, aumentando significativamente seu poder. Todos o desejam, mas ele é apenas um. O encantamento do amuleto se propaga. Da união da cobiça das massas com a singularidade do objeto desejado forma-se uma assimetria unilateral daquele conceito com um público não presencial, uma “intimidade não-recíproca a distância” (THOMPSON, 1998). A midiatização da singularidade universaliza a imagem do objeto no espaço e no tempo. O objeto mágico tem uma imagem icônica multiplicada ao infinito.

3)      Princípio da Associação Narrativa O objeto artesanal artificialmente propagado precisa ainda ser alimentado por imagens, sentimentos, alimentos e energia. O objeto mágico se nutre de narrativas simbólicas e factuais. E seu poder deriva diretamente de sua presença nessas narrativas. Aliás, o objeto torna-se mágico através de uma narrativa, associando-o a uma ideia indicando a superação simbólica de vários opostos geralmente irreconciliáveis: sujeito/objeto, natureza/sociedade, vida/morte. O objeto mágico é também um índice, uma associação narrativa entre contradições simbólicas e acontecimentos.

4)      Princípio da Identificação Absoluta: A ubiquidade: não há mais diferença entre o objeto mágico e sua imagem serializada e propagada ao infinito. É o próprio objeto que está presente (e não sua reprodução ou cópia) em todos os lugares e tempos. É a fusão entre ator e personagem, entre jogador e avatar, entre médium e orixá. O objeto mágico é um deus encarnado em nosso universo. E a identidade de contexto e o universo narrativo através do qual o observador se observa: o paradigma. A imagem invertida do universo dentro de cada um.
Por um lado, como ninguém sabe ao certo os nomes do autor e do texto, os antropólogos procuram, em vão, outras explicações para a etimologia dessas palavras (PIRES, 2009) e suas curiosas interpretações. Por outro, a própria origem das palavras (do latim facticius: “artificial, fictício”) sugere um engodo, em que uma realidade só se sustenta enquanto houver crença em sua veracidade. Há mistério e encantamento nos próprios termos e em sua história.
Segundo o Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha, [...]
[...] “depois de ter contribuído, portanto, para a criação da palavra francesa fetiche, o português recorre ao francês para tomar-lhe emprestado o termo fetiche, que tem traços semânticos que a aproximam de feitiço, mas desta se diferencia por necessidade de especialização semântica”. (1986, pág. 623)
O feitiço é, geralmente, um termo acusatório (algo reprovável feito por outros); enquanto o fetiche é uma espécie de obsessão pessoal por alguma coisa, uma situação, pessoa, ou parte da pessoa, uma atração ou fixação incontrolável que dá origem a um prazer intenso (nem sempre sexual). Por extensão também há equivalências e diferenças semelhantes entre os termos ‘fetichismo’ e ‘feitiçaria’. Feitiçaria era, para Inquisição, a religião do Diabo. O fetichismo, por sua vez, era, para os primeiros cientistas sociais, o sistema de crenças mágico, anterior às religiões institucionalizadas. Outras definições pensam a feitiçaria como um conjunto de práticas mágicas utilitárias (a mandinga); e o fetichismo como a crença em objetos-deuses.  
Já o feitiçaria ...
Acho importante ter em conta três aspectos do problema do feitiço, todos eles revelando a sua ambiguidade. Primeiro, a ambiguidade entre construção e verdade: o feitiço poder ser falsificação e engano, mas existe a suspeita de que esse artifício, essa ficção, de fato seja verdadeira, que funcione, ou ainda, que tenha um “segredo”, um “fundamento” que o acusador não conhece. Segundo, ambiguidade entre acusador e acusado: o feitiço sempre é antes uma acusação do que uma prática auto definida; mas se reconhecendo como tal, o feiticeiro pode adquirir paradoxalmente poder sobre o acusador, o poder oculto da feitiçaria. Terceiro, e último, a ambiguidade entre sujeito e objeto do feitiço: a feitiçaria é uma arte da sedução e da sujeição, através da qual as pessoas se tornam objetos, ou, pelo contrário, os objetos podem ser vistos como pessoas. A feitiçaria é uma trama, que embrulha acusado e acusador, pessoas e objetos, verdade e ficção. (SANZI, 2009, pág. 128)
A feitiçaria, para os colonizadores portugueses, não era africana, arcaica ou tradicional; mas uma prática ordinária, universal, contemporânea e comum. Enquanto, o fetichismo é uma palavra europeia para designar uma prática religiosa africana.
Hoje as palavras fetiche e fetichismo têm pelo menos quatro significados: a) o sentido psicanalítico (parte do corpo ou objeto que desperta excitação sexual); b) o sentido marxista (o mecanismo ideológico que transforma tudo em mercadoria); c) o sentido xamânico (um objeto enfeitiçado, amuleto ou ídolo; e d) o sentido figurado, o fetiche pode representar uma pessoa admirada por outra, que é seguida e cujas ordens são obedecidas cegamente.
Na verdade, cada sentido da palavra fetiche corresponde a um dos princípios midiáticos apresentados no começo. O fetiche sexual da psicanálise se explica pela áurea da singularidade. O fetiche marxista é baseado na reprodução em série de condições de produção que excluem a maioria. O fetiche xamânico corresponde ao ‘assentamento’ do candomblé. E o sentido figurado (“fulano tem um fetiche por sicrano” – por exemplo) é análogo ao princípio da identidade.
No âmbito da psicanálise, o termo fetichismo é utilizado para definir o desvio do interesse sexual para algumas partes do corpo do parceiro, para alguma função fisiológica, para cenários ou locais inusitados, para fantasias de simulação ou para roupas e adornos.
Para Marx, o fetichismo é a lógica da mercadoria, um regime em que os homens tornam-se objetos (mercadorias) e as coisas (os produtos) se comportam como pessoas. O fetichismo é uma relação social entre pessoas mediada por coisas, com a aparência de uma relação direta entre as coisas e não entre as pessoas. Disso resulta que a mercadoria (ou o mercado) parece determinar a vontade do produtor e não o contrário. O ‘fetichismo da mercadoria’ seria então a magia do capitalismo.
Após Marx, outros autores retomaram a noção marxista de fetichismo, como Adorno em relação à música e cinema; e Guy Debord (2000) mostrando que o fetiche de mercadoria e a coisificação do mundo, foi levado a um nível de objetividade muito além do que Marx imaginou.
A história do fetichismo no sentido xamânico foi pesquisada por William Pietz, numa série de artigos titulados The Problem of the Fetish (1985, 1987, 1988 APUD SANZI, 2009). Nesta perspectiva, o objeto mágico é uma associação entre narrativas simbólicas e acontecimentos. Por exemplo: um fato natural (a chuva) em sincronia com acontecimento social (a alegria das plantas e pessoas do deserto) é uma narrativa que associa mudanças meteorológicas à comunidade de supostos sentimentos entre humanos e vegetais – tornando essa correspondência de interpretação universalmente verdadeira. O encantado é sempre uma associação entre o natural e o social, entre o sujeito e o objeto, entre o vivente e o extraordinário. E a associação narrativa é sempre feita de coincidências crescentes e repetidos. A narrativa cria o encantamento, em uma história de origem, mas o encanto pode se multiplicar em outras narrativas.
Para Michael Taussig (1993) e Bruno Latour (2002), antropólogos contemporâneos leitores de Pietz, apesar da feitiçaria e do fetichismo terem sido descritos como parte das tradições pré-modernas em oposição à objetividade científica, na verdade, a objetividade da cultura moderna ocidental também é, em última instância, mágica e fetichista. A modernidade é um encantamento macabro de identidade: a ilusão do observador externo.
Durante a modernidade (esta imagem objetiva e coisificada que fazemos de nós mesmos), fomos prisioneiros da própria ilusão, forçados a sobreviver em mundo violento e sem sentido, jogados em um universo frio e sem alma, não passamos, aos olhos da ciência objetiva, de mamíferos tecno degenerados da crosta orgânica de uma bola de pedra girando em torno de uma bola de fogo.
Por outro lado, também não se pode retroceder, considerar os astros como são deuses e recolocar o observador como sujeito no centro do universo, como se fez antes da modernidade. É preciso perceber que universo é vibracional, constituído de energia e de relações entre diferentes estados de ser. Não há um único universo objetivo, mas vários universos virtuais (microcósmico, astrofísico, subatômico, etc).
E, apesar da ciência contemporânea (a mecânica quântica, por exemplo) não ter mais objetos, ainda vivemos no mundo fetichista das coisas e não no universo reencantado das relações entre energias.
E o que os feiticeiros pensam?
Para Carlos Castaneda/don Juan Mathus, a Feitiçaria pode ser definida como a “arte de acumular e redistribuir energia com o propósito de escapar à segunda morte”. A “antiga arte” seria um sistema mágico-cognitivo meta religioso, cético de todas as crenças, pragmático em relação à experiência empírica na mudança dos estados de percepção e terminantemente avesso a transcendências metafísicas ou representações das divindades. A feitiçaria nessa definição é o oposto complementar do fetichismo, responsável pela organização do mundo ordinário e ilusório das coisas, sob o qual se percebe o reino das energias. Os fetiches (e a ilusão de que o mundo é formado por objetos) seriam formas de aprisionamento da atenção (e da energia) das pessoas para alguns aspectos da realidade em detrimentos de outros.
Para don Miguel Ruiz (2005), há dois sonhos coletivos em desenvolvimento: o sonho que chamamos de realidade – “o tonal, a primeira atenção ou sonho do inferno” – e o sonho dos guerreiros, um sonho alternativo de realidade - “o nagual, o sonho da segunda atenção”[3]. Para Ruiz, o sistema de crenças é uma estrutura parasita de energia. Sonhamos um sonho coletivo que nos aliena da vida e nos mantêm em uma realidade virtual, uma ‘Matrix’ formada por nossas crenças e valores.
Enquanto Ruiz gnóstico sonha em salvar a terra e a humanidade, Castaneda intenta antes salvar-se do destino da humanidade de ser absorvido pela terra.
Ruiz entende a tarefa do xamã em uma dimensão social: o sonho coletivo do medo só poderá ser transformado com grande número de sonhadores que desejem a liberdade pessoal. Ruiz acredita poder romper com o sonho social de medo tecendo um novo sonho. Segundo ele, é libertar nosso sonho pessoal do sonho coletivo do medo de exclusão, do sonho de domesticação social engendrado pela sociedade; e, em conjunto com outros sonhadores conscientes, transformar esse sonho social de destruição planetária, induzindo toda humanidade a um salto quântico evolutivo.
Para Castaneda, o tonal é uma ilha (ou bolha da percepção) e o nagual a um oceano-universo que o engloba: o mar escuro da consciência. A vida orgânica (o tonal) é uma gota em um universo inorgânico. A tarefa do feiticeiro é sair individualmente do seu ovo tonal e viver em um universo nagual.
Antes a palavra fetiche resgatava a dignidade dos cultos africanos diante das acusações da Inquisição de feitiços. Hoje, a feitiçaria tornou-se libertária e deseja desencantar a modernidade fetichista. Confirma-se assim o dito que os feitiços se voltam contra os feiticeiros.

Referências Bibliográficas
BENJAMIM, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutividade técnica. Obras Escolhidas (trad. S.P. Rouanet). São Paulo: Brasiliense, 1985.
DEBORD, G. Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.
FETICHE. In: FERREIRA, A.B. H. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 623.
LATOUR, Bruno. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Florianópolis: Editora Edusc, 2002.
MOORE, Alan. The Mindscape of Alan Moore. Directed by DeZ Vylenz, Starring Alan Moore. Music by Drew Richards; RZA Distributed by Shadowsnake Films Release dates October 24, 2003 (San Francisco World Film Festival). Language English.
PEREZ, Clotilde. Mascotes Semiótica da vida Imaginária. São Paulo: Cengage Learning. 2010: 144.
PIRES, Rogério Brittes Wanderley. O Conceito Antropológico de Fetiche: Objetos Africanos, Olhares Europeus. Dissertação (mestrado) – Orientador: Márcio Goldman. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu Nacional, 2009- Rio de Janeiro, PPGAS-MN/UFRJ, 2009.
SANSI, Roger. Feitiço e fetiche no Atlântico moderno. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 51, n. 1, p. 123-153, jan. 2008. ISSN 1678-9857. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/27303>. Acesso em: 15 dec. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-77012008000100005.
TAUSSIG, Michael - Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem - Um Estudo Sobre o Terror e a Cera. Paz e Terra, 1993.
THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.
RUIZ, Miguel. Os Quatro compromissos. Rio de Janeiro: Best Seller, 2005.



[1] Professor-pesquisador do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN.
[2] A Obra de Arte na era de sua reprodutividade técnica (1983, 5-28) Benjamin ressalta o impacto que a produção em série de objetos pela indústria teve sobre a percepção. A obra de arte era única no tempo e no espaço e isso lhe conferia uma áurea, uma presença sagrada. Hoje praticamente tudo é reproduzido de modo idêntico.  A arte, então, deixou de ser sagrada, 'objeto de culto' para se tornar expressiva dos sentimentos e crítica da injustiça social.
[3] Os conceitos de Tonal Nagual representam campos perceptivos opostos e complementares, em que o primeiro é nossa percepção ordinária (sensorial-mental) do mundo como algo formado por objetos concretos e coisas sólidas; e o último é a percepção de que estamos em um universo de relações, em que tudo é feito de energia em diferentes níveis de organização e de adaptação.