(…) A magia em suas formas mais primitivas é normalmente designada como “arte”. Acho que isso é bastante literal. Eu acredito que a magia é arte e que a arte, quer por escrito, música, escultura ou qualquer outro meio é literalmente mágica. A arte é, como mágica, a ciência de manipular símbolos, palavras ou imagens para realizar mudanças na consciência. Conjurar um encantamento é somente encantar, manipular palavras para mudar a consciência das pessoas. Então eu acho que um artista ou escritor é a coisa mais próxima que você vai ter de um xamã no mundo contemporâneo. (...) O fato de que agora esse poder mágico degenerou o nível de entretenimento barato e manipulação é uma tragédia. Atualmente, aqueles que utilizam xamanismo e magia a moldar a nossa cultura são os anunciantes. Ao invés de acordar as pessoas xamanismo é a droga usada para tranquilizar as pessoas, para torná-las mais manejáveis. A sua caixa mágica da televisão, com as palavras mágicas, seus slogans, pode fazer com que todos no país pensam nas mesmas palavras e tenham os mesmos pensamentos banais exatamente ao mesmo tempo. The Alan Moore Mindscape (2003, 23:43 – 32:37).
Sem arrodeio: enuncia-se aqui a seguir quatro princípios da feitiçaria midiática, amplamente utilizados e escondidos pela publicidade contemporânea. Depois, explicamos melhor os fundamentos e as consequências desses princípios.
São eles:
1) Princípio da Singularidade Artesanal. Em oposição à noção de reprodutividade técnica de Walter Benjamim, a dessacralização da arte pela produção em série promovida pela industrialização de todos os objetos da sociedade[2]; enuncia-se aqui o princípio da singularidade técnica, em que o objeto único e original, manualmente produzido sem cópias é uma forma de arte. Em uma sociedade industrial, todo objeto artesanal é culturalmente um talismã da diferença, um oásis cognitivo no deserto da uniformização serial da objetividade. O objeto mágico é aquele que não tem cópia.
2) Princípio da Propagação da Singularidade. O objeto mágico é artesanal e único, mas sua imagem pode ser reproduzida ao infinito pela indústria cultural, aumentando significativamente seu poder. Todos o desejam, mas ele é apenas um. O encantamento do amuleto se propaga. Da união da cobiça das massas com a singularidade do objeto desejado forma-se uma assimetria unilateral daquele conceito com um público não presencial, uma “intimidade não-recíproca a distância” (THOMPSON, 1998). A midiatização da singularidade universaliza a imagem do objeto no espaço e no tempo. O objeto mágico tem uma imagem icônica multiplicada ao infinito.
3) Princípio da Associação Narrativa O objeto artesanal artificialmente propagado precisa ainda ser alimentado por imagens, sentimentos, alimentos e energia. O objeto mágico se nutre de narrativas simbólicas e factuais. E seu poder deriva diretamente de sua presença nessas narrativas. Aliás, o objeto torna-se mágico através de uma narrativa, associando-o a uma ideia indicando a superação simbólica de vários opostos geralmente irreconciliáveis: sujeito/objeto, natureza/sociedade, vida/morte. O objeto mágico é também um índice, uma associação narrativa entre contradições simbólicas e acontecimentos.
4) Princípio da Identificação Absoluta: A ubiquidade: não há mais diferença entre o objeto mágico e sua imagem serializada e propagada ao infinito. É o próprio objeto que está presente (e não sua reprodução ou cópia) em todos os lugares e tempos. É a fusão entre ator e personagem, entre jogador e avatar, entre médium e orixá. O objeto mágico é um deus encarnado em nosso universo. E a identidade de contexto e o universo narrativo através do qual o observador se observa: o paradigma. A imagem invertida do universo dentro de cada um.
Por um lado, como ninguém sabe ao certo os nomes do autor e do texto, os antropólogos procuram, em vão, outras explicações para a etimologia dessas palavras (PIRES, 2009) e suas curiosas interpretações. Por outro, a própria origem das palavras (do latim facticius: “artificial, fictício”) sugere um engodo, em que uma realidade só se sustenta enquanto houver crença em sua veracidade. Há mistério e encantamento nos próprios termos e em sua história.
Segundo o Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha, [...]
[...] “depois de ter contribuído, portanto, para a criação da palavra francesa fetiche, o português recorre ao francês para tomar-lhe emprestado o termo fetiche, que tem traços semânticos que a aproximam de feitiço, mas desta se diferencia por necessidade de especialização semântica”. (1986, pág. 623)
O feitiço é, geralmente, um termo acusatório (algo reprovável feito por outros); enquanto o fetiche é uma espécie de obsessão pessoal por alguma coisa, uma situação, pessoa, ou parte da pessoa, uma atração ou fixação incontrolável que dá origem a um prazer intenso (nem sempre sexual). Por extensão também há equivalências e diferenças semelhantes entre os termos ‘fetichismo’ e ‘feitiçaria’. Feitiçaria era, para Inquisição, a religião do Diabo. O fetichismo, por sua vez, era, para os primeiros cientistas sociais, o sistema de crenças mágico, anterior às religiões institucionalizadas. Outras definições pensam a feitiçaria como um conjunto de práticas mágicas utilitárias (a mandinga); e o fetichismo como a crença em objetos-deuses.
Já o feitiçaria ...
Acho importante ter em conta três aspectos do problema do feitiço, todos eles revelando a sua ambiguidade. Primeiro, a ambiguidade entre construção e verdade: o feitiço poder ser falsificação e engano, mas existe a suspeita de que esse artifício, essa ficção, de fato seja verdadeira, que funcione, ou ainda, que tenha um “segredo”, um “fundamento” que o acusador não conhece. Segundo, ambiguidade entre acusador e acusado: o feitiço sempre é antes uma acusação do que uma prática auto definida; mas se reconhecendo como tal, o feiticeiro pode adquirir paradoxalmente poder sobre o acusador, o poder oculto da feitiçaria. Terceiro, e último, a ambiguidade entre sujeito e objeto do feitiço: a feitiçaria é uma arte da sedução e da sujeição, através da qual as pessoas se tornam objetos, ou, pelo contrário, os objetos podem ser vistos como pessoas. A feitiçaria é uma trama, que embrulha acusado e acusador, pessoas e objetos, verdade e ficção. (SANZI, 2009, pág. 128)
A feitiçaria, para os colonizadores portugueses, não era africana, arcaica ou tradicional; mas uma prática ordinária, universal, contemporânea e comum. Enquanto, o fetichismo é uma palavra europeia para designar uma prática religiosa africana.
Hoje as palavras fetiche e fetichismo têm pelo menos quatro significados: a) o sentido psicanalítico (parte do corpo ou objeto que desperta excitação sexual); b) o sentido marxista (o mecanismo ideológico que transforma tudo em mercadoria); c) o sentido xamânico (um objeto enfeitiçado, amuleto ou ídolo; e d) o sentido figurado, o fetiche pode representar uma pessoa admirada por outra, que é seguida e cujas ordens são obedecidas cegamente.
Na verdade, cada sentido da palavra fetiche corresponde a um dos princípios midiáticos apresentados no começo. O fetiche sexual da psicanálise se explica pela áurea da singularidade. O fetiche marxista é baseado na reprodução em série de condições de produção que excluem a maioria. O fetiche xamânico corresponde ao ‘assentamento’ do candomblé. E o sentido figurado (“fulano tem um fetiche por sicrano” – por exemplo) é análogo ao princípio da identidade.
No âmbito da psicanálise, o termo fetichismo é utilizado para definir o desvio do interesse sexual para algumas partes do corpo do parceiro, para alguma função fisiológica, para cenários ou locais inusitados, para fantasias de simulação ou para roupas e adornos.
Para Marx, o fetichismo é a lógica da mercadoria, um regime em que os homens tornam-se objetos (mercadorias) e as coisas (os produtos) se comportam como pessoas. O fetichismo é uma relação social entre pessoas mediada por coisas, com a aparência de uma relação direta entre as coisas e não entre as pessoas. Disso resulta que a mercadoria (ou o mercado) parece determinar a vontade do produtor e não o contrário. O ‘fetichismo da mercadoria’ seria então a magia do capitalismo.
Após Marx, outros autores retomaram a noção marxista de fetichismo, como Adorno em relação à música e cinema; e Guy Debord (2000) mostrando que o fetiche de mercadoria e a coisificação do mundo, foi levado a um nível de objetividade muito além do que Marx imaginou.
A história do fetichismo no sentido xamânico foi pesquisada por William Pietz, numa série de artigos titulados The Problem of the Fetish (1985, 1987, 1988 APUD SANZI, 2009). Nesta perspectiva, o objeto mágico é uma associação entre narrativas simbólicas e acontecimentos. Por exemplo: um fato natural (a chuva) em sincronia com acontecimento social (a alegria das plantas e pessoas do deserto) é uma narrativa que associa mudanças meteorológicas à comunidade de supostos sentimentos entre humanos e vegetais – tornando essa correspondência de interpretação universalmente verdadeira. O encantado é sempre uma associação entre o natural e o social, entre o sujeito e o objeto, entre o vivente e o extraordinário. E a associação narrativa é sempre feita de coincidências crescentes e repetidos. A narrativa cria o encantamento, em uma história de origem, mas o encanto pode se multiplicar em outras narrativas.
Para Michael Taussig (1993) e Bruno Latour (2002), antropólogos contemporâneos leitores de Pietz, apesar da feitiçaria e do fetichismo terem sido descritos como parte das tradições pré-modernas em oposição à objetividade científica, na verdade, a objetividade da cultura moderna ocidental também é, em última instância, mágica e fetichista. A modernidade é um encantamento macabro de identidade: a ilusão do observador externo.
Durante a modernidade (esta imagem objetiva e coisificada que fazemos de nós mesmos), fomos prisioneiros da própria ilusão, forçados a sobreviver em mundo violento e sem sentido, jogados em um universo frio e sem alma, não passamos, aos olhos da ciência objetiva, de mamíferos tecno degenerados da crosta orgânica de uma bola de pedra girando em torno de uma bola de fogo.
Por outro lado, também não se pode retroceder, considerar os astros como são deuses e recolocar o observador como sujeito no centro do universo, como se fez antes da modernidade. É preciso perceber que universo é vibracional, constituído de energia e de relações entre diferentes estados de ser. Não há um único universo objetivo, mas vários universos virtuais (microcósmico, astrofísico, subatômico, etc).
E, apesar da ciência contemporânea (a mecânica quântica, por exemplo) não ter mais objetos, ainda vivemos no mundo fetichista das coisas e não no universo reencantado das relações entre energias.
E o que os feiticeiros pensam?
Para Carlos Castaneda/don Juan Mathus, a Feitiçaria pode ser definida como a “arte de acumular e redistribuir energia com o propósito de escapar à segunda morte”. A “antiga arte” seria um sistema mágico-cognitivo meta religioso, cético de todas as crenças, pragmático em relação à experiência empírica na mudança dos estados de percepção e terminantemente avesso a transcendências metafísicas ou representações das divindades. A feitiçaria nessa definição é o oposto complementar do fetichismo, responsável pela organização do mundo ordinário e ilusório das coisas, sob o qual se percebe o reino das energias. Os fetiches (e a ilusão de que o mundo é formado por objetos) seriam formas de aprisionamento da atenção (e da energia) das pessoas para alguns aspectos da realidade em detrimentos de outros.
Para don Miguel Ruiz (2005), há dois sonhos coletivos em desenvolvimento: o sonho que chamamos de realidade – “o tonal, a primeira atenção ou sonho do inferno” – e o sonho dos guerreiros, um sonho alternativo de realidade - “o nagual, o sonho da segunda atenção”[3]. Para Ruiz, o sistema de crenças é uma estrutura parasita de energia. Sonhamos um sonho coletivo que nos aliena da vida e nos mantêm em uma realidade virtual, uma ‘Matrix’ formada por nossas crenças e valores.
Enquanto Ruiz gnóstico sonha em salvar a terra e a humanidade, Castaneda intenta antes salvar-se do destino da humanidade de ser absorvido pela terra.
Ruiz entende a tarefa do xamã em uma dimensão social: o sonho coletivo do medo só poderá ser transformado com grande número de sonhadores que desejem a liberdade pessoal. Ruiz acredita poder romper com o sonho social de medo tecendo um novo sonho. Segundo ele, é libertar nosso sonho pessoal do sonho coletivo do medo de exclusão, do sonho de domesticação social engendrado pela sociedade; e, em conjunto com outros sonhadores conscientes, transformar esse sonho social de destruição planetária, induzindo toda humanidade a um salto quântico evolutivo.
Para Castaneda, o tonal é uma ilha (ou bolha da percepção) e o nagual a um oceano-universo que o engloba: o mar escuro da consciência. A vida orgânica (o tonal) é uma gota em um universo inorgânico. A tarefa do feiticeiro é sair individualmente do seu ovo tonal e viver em um universo nagual.
Antes a palavra fetiche resgatava a dignidade dos cultos africanos diante das acusações da Inquisição de feitiços. Hoje, a feitiçaria tornou-se libertária e deseja desencantar a modernidade fetichista. Confirma-se assim o dito que os feitiços se voltam contra os feiticeiros.
Referências Bibliográficas
BENJAMIM, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutividade técnica. Obras Escolhidas (trad. S.P. Rouanet). São Paulo: Brasiliense, 1985.
DEBORD, G. Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.
FETICHE. In: FERREIRA, A.B. H. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 623.
LATOUR, Bruno. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Florianópolis: Editora Edusc, 2002.
MOORE, Alan. The Mindscape of Alan Moore. Directed by DeZ Vylenz, Starring Alan Moore. Music by Drew Richards; RZA Distributed by Shadowsnake Films Release dates October 24, 2003 (San Francisco World Film Festival). Language English.
PEREZ, Clotilde. Mascotes Semiótica da vida Imaginária. São Paulo: Cengage Learning. 2010: 144.
PIRES, Rogério Brittes Wanderley. O Conceito Antropológico de Fetiche: Objetos Africanos, Olhares Europeus. Dissertação (mestrado) – Orientador: Márcio Goldman. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu Nacional, 2009- Rio de Janeiro, PPGAS-MN/UFRJ, 2009.
SANSI, Roger. Feitiço e fetiche no Atlântico moderno. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 51, n. 1, p. 123-153, jan. 2008. ISSN 1678-9857. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/27303>. Acesso em: 15 dec. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-77012008000100005.
TAUSSIG, Michael - Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem - Um Estudo Sobre o Terror e a Cera. Paz e Terra, 1993.
THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.
RUIZ, Miguel. Os Quatro compromissos. Rio de Janeiro: Best Seller, 2005.
[1] Professor-pesquisador do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN.
[2] A Obra de Arte na era de sua reprodutividade técnica (1983, 5-28) Benjamin ressalta o impacto que a produção em série de objetos pela indústria teve sobre a percepção. A obra de arte era única no tempo e no espaço e isso lhe conferia uma áurea, uma presença sagrada. Hoje praticamente tudo é reproduzido de modo idêntico. A arte, então, deixou de ser sagrada, 'objeto de culto' para se tornar expressiva dos sentimentos e crítica da injustiça social.
[3] Os conceitos de Tonal e Nagual representam campos perceptivos opostos e complementares, em que o primeiro é nossa percepção ordinária (sensorial-mental) do mundo como algo formado por objetos concretos e coisas sólidas; e o último é a percepção de que estamos em um universo de relações, em que tudo é feito de energia em diferentes níveis de organização e de adaptação.
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