sábado, 27 de fevereiro de 2010

Pai Nosso da Transformação

Forma primeira e última,
Que está no início dos tempos e do espaço.


Santificados sejam todos os nomes do Todo;
Vamos nós à Unidade do Universo;
Seja Tua Vontade desejada por cada parte;
Assim na real como no virtual.


Dai-nos agora, a informação de cada segundo.


Verticalizai-nos - assim como nós nos horizontalizamos.


(Mas) Não nos deixeis cair em desordem
E livra-nos das demandas entrópicas do ruído.
Amém!

Budismo

A LIBERDADE É UM DESAFIO
Quando o monge budista Bodhidharma (1) chegou à China, no século VI, foi se apresentar na corte do Imperador Wu (Ryo no Butei). O Imperador Wu levou o monge então a grande salão onde havia vários guerreiros treinando lentamente Tai-chi Chuan, levitando pesadas bolas de metal entre as mãos.

E disse: “Esses são nossos guerreiros; através do controle da energia eles podem vencer qualquer um que ataque a China”.

Depois, o Imperador foi a outro salão em que vários médicos curavam as pessoas através de técnicas de imposição das mãos nos canais de energias do corpo (Shiatzu e Do-in) e de pequenas agulhas esquentadas no fogo (acumputura e mosha). Outros faziam poções e chás, davam banhos e compressas nos doentes.

E disse: “Esses são nossos curadores; eles recuperam e revigoram a vida do povo”.

E finalmente, o Imperador Wu levou Bodhidharma a um terceiro salão, onde vários sábios estudavam o I Ching – o livro das transmutações – e faziam previsões através das rachaduras de cascos de tartaruga.

E disse: “Esses sãos nossos aprendizes dos mestres do Destino, que estudam o tempo e profetizam nosso futuro”.

Ante a falta de interesse do monge, o Imperador então colocou:

- Este é o taoísmo, o tesouro espiritual da cultura chinesa. E você, indiano, qual é o ensinamento sagrado que trouxe para nos ensinar?

- Nada sagrado, apenas um grande vazio (2) – respondeu humildemente Bodhidharma e se retirou do palácio para as montanhas Shaolin.



O Grande Vazio

Sempre me fascinou o fato das religiões se fundarem em belas idéias filosóficas: o Cristianismo se funda nos dois princípios éticos do amor ao Pai (eixo vertical e dialético) e ao próximo (eixo horizontal e dialógico); o Islã se baseia na entrega absoluta ao universal Alá e na submissão incondicional a seu profeta e mensageiro; o Budismo (ou os budismos) se baseia(m) na crença de que tudo é ilusão (maia) e que a iluminação (ou nirvana) consiste da transcendência de todo desejo pela consciência.

O Budismo é um sistema de crença que acredita que está acima dos demais sistemas de crenças. Por isso, se diz que ele não é mais uma religião e sim uma filosofia transcendental. Nas versões mais ortodoxas e antigas, a filosofia budista é um empirismo absoluto formatado pela observação e pela experiência mística. Porém, assim como o Cristianismo ou Islamismo, o Budismo tem também uma idéia/crença central: o ‘grande vazio’.

Na verdade, há vários budismos. Hoje, há três escolas principais com várias ramificações (3). Há mais antiga é a Theravada (do páli thera, "anciãos" e vada, "palavra, doutrina", "Doutrina dos Anciãos"). É predominante em: Sri Lanka, Tailândia, Mianmar, Laos, Camboja, Bangladesh, Vietnã e Malásia. E o maior no Ocidente também. Atualmente o número de budistas desta escola em todo o mundo excede 100 milhões de pessoas.

Em segundo lugar, em antiguidade e em tamanho, é o Zenbudismo. Zen é o nome japonês da tradição Ch'an, surgida na China, por volta do século II. Cultivado sobretudo na China, Japão, Vietnã e Coréia. Alguns estudiosos consideram estas escolas como uma linhagem Mahayana. Outros, no entanto, dizem que, pela ênfase ser diferente, e pelo Zen/Chan ser "descendentes" também do Taoísmo, devem ser considerados uma escola à parte.

E, finalmente, a Vajrayana é a mais recente das principais escolas budistas. O Budismo tibetano, também chamado de lamaísmo, por ser o mais numeroso nessa categoria, tem suas práticas de meditação na forma de elaborados rituais, com leitura de saddhanas (textos litúrgicos), visualizações e instrumentos musicais. Possui uma tradição nas artes, como pinturas e esculturas, e também tradição em ordens monásticas, com ênfase no relacionamento alunos e lamas. Apesar de não se organizar como uma instituição, tem sua representação maior na figura do Dalai Lama. As principais escolas são nyingma, kagyu, gelug e sakya.

Neste sentido, o Budismo tântrico tibetano (Vajrayana) é filosoficamente superior tanto ao Zen-Budismo e quanto a antiga escola Theravada porque tem uma visão fenomenológica de si, admitindo que haja um conjunto de idéias (crenças) - ou 'juízos sintéticos a priori', para usar meu Kant - que formatam a experiência da vida budista.

E quais são os juízos sintéticos a priori do Budismo?

São as Quatro Nobres Verdades (4): tudo que vivemos é sofrimento; a ignorância, o desejo e a aversão são as causas do sofrimento; acabando com a ignorância, com o desejo e com a aversão, o sofrimento também acaba; e, finalmente, para acabar com as causas do sofrimento é necessário seguir o Nobre Caminho Óctuplo (5). Enquanto as Nobres Verdades são um diagnóstico, o Nobre Caminho é o remédio.

E este, por sua vez, é formado por oito preceitos: o entendimento correto (do sofrimento e suas causas); o pensamento correto (que reflita a realidade das coisas, sem distorções subjetivas); a linguagem correta (não mentir, caluniar, distorcer os fatos ou exagerar, não ferir ou ofender, não falar inutilmente); a ação correta (não matar, não roubar, não ter má conduta sexual, comer, beber e consumir apropriadamente); o modo de vida correto (encontrar uma forma honesta de viver, um ambiente que propicie a realização dos demais preceitos); o esforço correto (redirecionar a energia, não alimentando mais desejos e aversões em nossa consciência e, em contrapartida, emanar o amor e a compaixão a todos os seres); a atenção correta (desenvolver a capacidade de focar a atenção e de se observar) e, finalmente, a concentração correta (a capacidade de permanecer profundamente absorto no aqui-e-agora por períodos de tempo cada vez mais longos).

Outra forma tradicional de apresentar a doutrina budista é dividi-la em três: a Moral (sila), a Meditação (samadhi) e a Sabedoria (prajña). Sendo que a moral corresponde aos preceitos 3, 4 e 5; a meditação aos preceitos 6, 7 e 8; e a sabedoria aos preceitos 1 e 2 do Nobre Caminho. Todos os preceitos estão inter-relacionados.

E, de todas as formas, o ponto de partida do Budismo é sempre a percepção de que o desejo causa inevitavelmente o sofrimento. Deve-se eliminar o desejo para se eliminar a dor e, assim, atingir a paz interior ou felicidade. O objetivo é o fim do ciclo de sofrimento, Samsara, despertando no praticante o entendimento da realidade última - o Nirvana. Para tanto, o praticante deve apenas evitar o mal, fazer o bem e cultivar a própria mente.

Como foi dito: para maioria das escolas budistas a doutrina budista é resultado da meditação e da observação dos que se iluminaram. Apenas as escolas mais recentes admitem que as Nobres Verdades e o Nobre Caminho são estruturas metafísicas anteriores à experiência que formatam mentalmente a observação. Há ainda muitos outros conceitos secundários, que as diferentes escolas enfatizam ou omitem.

Mas, há, sobretudo, alguns conceitos que são muito mais importantes do que a doutrina budista declarada, pois realmente caracterizam a singularidade do Budismo em relação a outros sistemas de crença.

- a Impermanência (Anicca). Todas as coisas são impermanentes. Tudo muda o tempo todo sem parar. Este é um ponto em comum entre o Budismo e a filosofia de Heraclito e do Taoísmo. “Nunca um mesmo homem se banha em um mesmo rio.” O que nos faz sofrer não é a impermanência em si, mas o nosso desejo de que as coisas sejam permanentes enquanto elas não o são.

- o Não-eu (Anatta). Nada que existe tem existência em si mesmo, separada e independente. Todos os fenômenos estão inter-relacionados. É a Unicidade. Cada coisa precisa estar ligada com todo o universo para poder existir. Não existe nada que é separado do resto, que possa existir de forma independente e definitiva. O ‘eu’ ou a alma (atma) é apenas uma ilusão.

- o Nirvana. Sidarta Gautama descreveu o Budismo como uma jangada que, após atravessar um rio, permite ao passageiro alcançar o Nirvana. Nirvana é a liberação total do sofrimento, um estado de paz inabalável e de indescritível felicidade. É um estado além de todos os conceitos. Nirvana é o estado de absoluta liberdade e de completo silêncio do coração, além de todos os conceitos. Literalmente nirvana significa “extinção”.

Para mim, a grande originalidade do Budismo em relação a outros credos está na concepção de mundo resultante desses três conceitos, que opera uma lógica inclusiva de desconstrução negativa, em que não há transcendência metafísica, comparada por Mircea Eliade ao pensamento neopositivista de Wittgeinstein (1999, 69).

Primeiro porque ele é o único sistema de crenças que acredita na idéia de Liberdade, embora seja uma liberdade completamente subjetiva – como se verá adiante.

Karma e Reencarnação

Em segundo lugar porque (ao contrário do que pensa o leigo em geral) não há, no Budismo, uma alma imortal que se reencarna sucessivamente através das vidas. Para alguns budistas contemporâneos - como Ricardo Sasaki (6) e Luís Dantas (7) - não há reencarnação e sim renascimento.

A noção de Reencarnação, idéia central do Hinduísmo reinventada pelo espiritismo e da religiosidade esotérica contemporânea, é que uma parte do Ser (consciência, espírito ou alma) é capaz de subsistir à morte do corpo e de ligar-se sucessivamente a diversos outros corpos para a consecução de um fim específico, como o auto-aperfeiçoamento moral e/ou a anulação do karma.

Já Karma ou karma (do sânscrito Karmam, e em pali, Kamma, “ação”) é um termo usado para expressar um conjunto de ações dos homens e suas conseqüências. Para o Hinduísmo, karma é a dívida que transportamos de uma vida para outra. O Budismo usa a palavra karma no sentido de “conjunto de deméritos acumulados”, mas não no sentido de transmissão de responsabilidade de almas entre organismos diferentes; preferindo falar de renascimento à reencarnação, pois não aceita a idéia de um ‘eu’ permanente que passe de uma vida a outra (8).

A reencarnação e o karma são crenças fundamentais do espiritismo kardecista e de vários outros tipos esoterismos modernos (teosofia, rosacruz, etc), porém dentro de um quadro de referências culturais bem diferentes: o tempo histórico (e as noções de progresso material e evolução espiritual); o paradigma pseudo-científico, cartesiano e mecanicista, em que os eventos são determinados como “uma lei de causa e efeito”; e, sobretudo, o contexto cultural pós-moderno, ao mesmo tempo, desencantado e supersticioso.

Já no Hinduísmo e em outras tradições, o tempo não é contínuo, progressivo e histórico; e sim simultâneo, complexo e circular, com breves ciclos de duração dentro de ciclos mais longos e até infinitos; e não há ênfase na causalidade na vida individual, mas sim nos acontecimentos coletivos. Os karmas eram grupais e a reencarnação estava inserida em um contexto de retorno dos ancestrais e também das divindades.

Ou seja: há uma grande diferença entre as crenças modernas e antigas de reencarnação e karma diferença entre as concepções de tempo histórico e mítico nas culturas tradicionais e moderna. E para universalizar o valor de suas crenças, os esotéricos atuais tendem a vê-las em todos os lugares e épocas - até aonde eles efetivamente não existem (9).

Há ainda, atualmente, vários cientistas adeptos da idéia da reencarnação como fenômeno objetivo e “não como uma crença religiosa” (10). A ciência, no entanto, também é um sistema de crença empirista (como o Budismo, o espiritismo kardecista e até vários o xamanismos) ‘acredita’ ter sido forjado apenas a partir da experiência pura, ignorando que a experiência é pré-enquadrada em um quadro de referências interpretativas. Então, não adianta tentar convencer o budista, o cientista ou o espírita que as coisas não são como eles pensam, pois eles geralmente sustentam suas opiniões em experiências práticas vividas (e interpretadas pela tradição que sustentam). E embora ‘os fatos’ pareçam ter um valor universal, muitas vezes as diferenças de contexto dão significados bem distintos aos acontecimentos semelhantes.

Não bastasse essa grande diferença cultural entre o passado e o presente (sobretudo a idéia de karma posta de forma mais probabilística que determinística), há também diferentes compreensões do termo entre as religiões tradicionais, que influenciaram a concepção reencarnacionista moderna de forma desigual. O Budismo compreende o karma como uma dívida (como uma contabilidade moral de méritos e deméritos durante a vida) a ser saldada, passivamente, por ações meritórias e pela não-reação à violência; enquanto o Hinduísmo tem no Karma Yoga um sistema voltado para ação. No Bhagavadgita, Krishna instrui Arjuna como guerrear sem adquirir karma – como se verá adiante.

A crença na Liberdade

Trata-se aqui da crença na Liberdade. E não do conceito de Liberdade, tarefa legítima da filosofia analítica (11), ou do mito da Liberdade, como querem os que não acreditam nela (12). Na perspectiva de uma arqueologia dos credos, a crença da liberdade é, universalmente, oposta às outras crenças. Porém, enquanto alguns enfatizam a liberdade como um desemaranhar do karma; outros (como o pensador esotérico brasileiro Trigueirinho, por exemplo) afirmam que o livre-arbítrio é típico de seres espiritualmente atrasados como o homem, ou seja: se fossemos inteiramente crédulos e não duvidássemos, seríamos mais sábios.

Também em inúmeras lendas e mitos, a liberdade aparece como um castigo ou como resultado de uma desobediência da humanidade em relação aos deuses. Em algumas narrativas, a liberdade é dada ao Homem por outros seres, como no mito de Prometeu, em que o fogo dos deuses é roubado para que o homem conquiste a própria liberdade; em outras, é a consciência que, mascarada por diferentes símbolos, é engendrada por conflitos entre deuses, ou seres de outra ordem evolutiva, em que alguns são favoráveis e outros contrários ao desenvolvimento da humanidade.

Entre todos os credos tradicionais, no entanto, apenas o Budismo apresenta a Liberdade como objetivo espiritual a ser alcançado – o que influenciou bastante não apenas a espiritualidade atual, mas também a filosofia contemporânea, que se comporta com se fosse a sua proprietária exclusiva.

Mas, de que liberdade estamos falando?

Como é falastrão e dá opiniões muito subjetivas e contraditórias sobre diferentes temas, há uma imagem muito negativa de Osho (Bhagwan Shree Rajneesh) nos meios acadêmicos. A verdade, no entanto, é que ele em muitos momentos é um pensador sofisticado, inclusive re-pensando o Budismo por dentro. Osho reinventa o Budismo sem negá-lo, procedendo a uma re-interpretação de vários importantes conceitos budistas: a felicidade, a compaixão e a aceitação – como demonstra adiante, a partir da página 67.

Em relação ao tema filosófico da Liberdade, que é o que nos interessa agora, Osho faz uma interessante releitura do Assim falou Zaratrusta de Nietzsche: o camelo (a ‘liberdade para’ fazermos algo), o leão (a ‘liberdade de’ fazer o que quiser) e a criança (a liberdade do silêncio ou intransitiva). Ou ainda: a liberdade política e objetiva, isto é: a ‘liberdade do não’ da autonomia de decidir o que ser e fazer e não o que os outros querem; a liberdade psicológica e subjetiva, ou seja: a ‘liberdade do sim’ da aceitação da vida; e, finalmente, a liberdade espiritual da criatividade. Para Osho, são esses diferentes tipos de liberdade que temos durante a vida, segundo o grau de maturidade e de compreensão espiritual.

1. Em um primeiro estágio da luta pela liberdade, lutamos contra as regras e contra a autoridade. É a liberdade do não. Mas, de nada adianta a ‘liberdade para’ (cantar, por exemplo) senão temos a liberdade de (a capacidade de cantar, a alegria de cantar).

2. Então, o segundo estágio de luta pela liberdade é contra o próprio condicionamento que absorvemos, é o aperfeiçoamento interior para se conseguir usufruir da liberdade exterior. É a liberdade do sim.

3. Em seguida, chega-se ao terceiro estágio da luta pela liberdade, que consiste em libertar os outros através do exercício criativo da própria liberdade (quando, cantando, mudamos sentimentos e situações). É a liberdade do talvez.

Osho observa ainda que apenas recentemente uma pequena parte da humanidade passou a conhecer a liberdade política plena, isto é: viver sem ser escravizado para sobreviver (incluindo aí o trabalho assalariado).

É claro que a crença na Liberdade é uma só, mas a distinção de três dimensões ou profundidades também é muito útil para contextualizar seus diferentes adeptos. Como a liberdade também tem uma dimensão individual e outra coletiva, pode-se utilizar a metodologia dos quadrantes proposta por Ken Wilber (2007) para obter um quadro de referências ainda mais amplo.


 


SUJETIVO


OBJETIVO


INDIVIDUAL


Liberdade Psicológica


Liberdade Política


COLETIVO


Liberdade Cultural


Liberdade Biológica


 
4º quadrante (coletivo/objetivo) - Em uma perspectiva sistêmica, estritamente objetiva, a Liberdade coletiva é a capacidade de autodeterminação da espécie, representando o mínimo de dependência do sistema (ou meio ambiente) e de seus outros elementos (outras espécies). Se uma organização tem um único fornecedor (entrada) ou um único cliente (saída) ficará dependendo dele. E quanto mais diversificar seus insumos e produtos, mais autonomia ela terá em relação às oscilações ambientais e à interferência de outros agentes.

A Liberdade é assim, nas palavras da biologia da complexidade (Umberto Maturana), Autopoesis, ou a capacidade de produzir a si próprio, criativamente, e de centralizar trocas com um número extenso de parceiros diversificados.

3º Quadrante (coletivo/subjetivo) - Essa liberdade da espécie frente ao meio ambiente, no entanto, é mais desfrutada por alguns indivíduos do que outros por razões de ordem cultural. E a verdadeira liberdade interpessoal não reside nem no desregramento pela vontade (“fazer tudo que quiser: é a única lei” – Alesteir Crowley) nem em sua limitação ontológica pela alteridade (“sua liberdade termina onde a do outro começa”), mas na sua habilidade de perceber a realidade e de sua capacidade de re-interpretar o mundo.

Teoricamente para que se considere uma cultura democrática é preciso que seus membros desempenhem papéis reversíveis do processo decisório coletivo (isto é: que não apenas mandem ou obedeçam) e que as regras sejam flexíveis frentes às necessidades. Na prática, no entanto, não se trata de regras ou de papéis e sim da capacidade de se colocar no lugar do outro, simulando/antecipando reações e agindo de modo consensual. A liberdade interpessoal é agir sem imposição ou oposição.

Nesse quadrante em especial, a liberdade é uma crença. E ela sempre anda de mãos dadas com as crenças culturais na objetividade (e da perspectiva de um observador onisciente) e na história (e do tempo contínuo que acumula informação). E como já foi dito, a liberdade é uma crença oposta à maioria dos sistemas de crenças religiosas tradicionais e, por isso mesmo, desempenha também um papel especial em relação aos sistemas de idéias filosóficas e de organização política das sociedades ocidentais. O que nos leva ao próximo quadrante.

2º Quadrante (individual/objetivo) – Pode-se entender a objetividade da liberdade individual de duas formas: a filosófica e a jurídica. A primeira nos remete às três idéias da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade) e estruturam a modernidade e seu funcionamento ideológico e institucional. Como princípio filosófico abstrato a liberdade individual (oposta à igualdade e temperada pela fraternidade) passou a ser um dos valores democráticos fundamentais nas sociedades atuais.

Já a liberdade jurídica, concretização deste principio, tem segundo o filósofo político Norberto Bobbio duas versões distintas: a liberdade liberal (ou a não-restritiva) e a liberdade democrática (ou auto-organização). Para concepção liberal, a liberdade “é a faculdade de cumprir ou não certas ações sem impedimentos”; e, para concepção democrática, ela é “o poder de não obedecer a outras normas que não as que se propõem”. Montesquieu será o grande defensor da liberdade liberal: “liberdade é o direito de fazer tudo aquilo que as leis permitem” (Espírito das Leis, Cap. II, livro XII). Rousseau, por sua vez, é o advogado da liberdade democrática: “A obediência à lei que nos mesmos prescrevemos, é liberdade” (Contrato Social, Cap. VIII, livro I).

Tanto a liberdade política filosófica, quanto a que se constitui como direito individual, são conquistas históricas que formalizam e garantem a liberdade existencial de fato.

O que inclui também sua dimensão psicológica.

1º Quadrante (individual/subjetivo) – Quando se fala de liberdade individual subjetiva não trata apenas das escolhas individuais, e sim de como cada individuo enfrentar seu destino, lutando para construir alternativas de vida.

Por exemplo: a feminista que defende o aborto porque crê que a liberdade pessoal da mulher está acima do Direito à vida. Aliás, os chamados ‘crimes contra a vida’ (o aborto, o suicídio, a eutanásia), considerados pela Igreja Católica como pecados imperdoáveis (13) são excelentes exemplos das fronteiras entre a liberdade política e a pessoal: a morte.

A liberdade política vive à sombra das ameaças do Poder, já a liberdade pessoal morre pelo seu desafio, ou melhor, faz da morte uma importante aliada no seu aperfeiçoamento ético. A ‘liberdade para’, objetiva, é uma concessão provisória; a ‘liberdade de’, subjetiva, é uma conquista permanente.

Este talvez seja o verdadeiro sentido dos versos do grande poeta português: “navegar é preciso, viver não é preciso”. Não se trata tão somente de diminuir a importância das necessidades da vida em função da liberdade da viagem, mas sim de aceitar a imprecisão da vida (viver não é preciso, é incerto) diante da precisão exigida pela crença na Liberdade, entendida agora como um exercício de autodisciplina diante do destino ou ‘responsabilidade’.

É a porta de entrada na liberdade espiritual. Mas também pode descambar para o individualismo e tem seus exageros: a libertinagem perversa do Marques de Sade, o existencialismo melancólico e egocêntrico de Jean Paul Sartre e o pensamento neoliberal da Haydke. Nesses casos, a liberdade não se sobrepõe à vida, mas sim ao Outro, visto como uma limitação estrutural.

A liberdade é um paradoxo: dever (obrigação) e direito (permissão), um presente roubado dos deuses e um desafio de desenvolvimento, consciência e sonho.

Moral budista e ética guerreira

O Bhagavadgita, a sublime canção, foi introduzido nos Vedas no século II d.C. (ELIADE, 1999, 178). O nascimento de Sidarta Gautama foi entre 600 e 400 aC. É possível que o Gita seja uma resposta do Hinduísmo à doutrina budista do karma, vista como uma dívida a ser paga através da ‘não-reação’. O Gítã é a conclusão de uma grande epopéia mítica, o Mahabarata ou o combate dos irmãos Pandavas com seus primos, os kauravas, pelo reino de Bharata. Enganados no jogo de dados, os Pandavas são exilados, passando dez anos vagando pelos reinos mágicos da Índia. Quando voltam para casa, são impedidos de entrar pelos primos e anuncia-se uma grande batalha. O Gítã narra o momento que antecede a luta, em que Arjuna se recusa a combater, para não matar seus antigos mestres e amigos e assim aumentar seu karma. Então surge Krisna e diz que se Arjuna não cumprir seu destino e derrotar o inimigo, o mundo estará entregue a maldade.

Krisna instrui a Arjuna nas três modalidades de ioga: Jnana para mente, Bhakti devocional, e a karma ioga, ou a arte da ação guerreira sem adquirir karma. Não é a ação em si que gera o karma, mas o sentimento agregado a ela. Assim, para o Hinduísmo, o karma é a ação e não o resultado de sua reação, como no Budismo. Aliás, essa é a idéia essencial no Hinduísmo: a instrução de Karma Ioga (ioga da ação) que Krisna ensina ao guerreiro Arjuna no Bhagavad-Gítã (14).

Para entender as diferenças entre as concepções religiosas é preciso comparar seus propósitos específicos. O objetivo teleológico coletivo dos judeus e dos cristãos é o retorno do messias e o advento da cidade santa no fim dos tempos. O propósito do espírita é a evolução espiritual através de sucessivas reencarnações. E a meta do budista é a iluminação ou a libertação do desejo e do sofrimento. Os credos antigos tinham objetivos coletivos; os modernos, metas individuais. Porém, sempre é o propósito espiritual que dá sentido a todas as práticas e à filosofia das religiões. E o mínimo que se pode dizer do Budismo é que ele tem um foco mais ‘preciso’ que as outras religiões.

Por outro lado, o fato desse foco estar centrado na vida interior, aliena o praticante de sua vida social. O nirvana substitui a utopia social, isto é, o ideal de construção de uma sociedade justa e a favor do desenvolvimento equilibrado.

Na doutrina budista não há espaço para transcendência, imagens ou idéias permanentes. Não existe nada de valor além deste mundo (arquétipos, espíritos ou dimensões) e a realidade é apenas uma descrição feita pela mente. E essa ênfase na imanência espiritual (um anti-platonismo radical e a ausência de um telos coletivo transcendental) é a principal característica do Budismo, influência com uma longa lista de adeptos, com destaque para os filósofos Spinoza e Schopenhauer, e mais recentemente, para os autores esotéricos contemporâneos, como Krisnahmurti, Gurjieff, Osho, e Castaneda – que enfatizam mais o descondicionamento da consciência cotidiana do que à adesão aos sistemas de crenças tradicionais.

Também em relação à reencarnação (considero que) o Budismo está parcialmente correto. A cada vida somos um conjunto de seres que se dispersam após a morte. Apenas os que conseguem realmente evoluir espiritualmente conquistam alguma unicidade a partir dos seus Eus Superiores. Essa posição é explicitamente defendida por vários autores atuais, que simplesmente se percebem com um conglomerado de eu’s que lutam para se unificar, enfatizam a identificação progressiva com o Eu Superior (e da depuração do karma dos diversos agregados psíquicos). Nessas concepções, o conceito de karma é compreendido de forma semelhante ao conceito budista: o destino já está determinado, mas temos plena liberdade de decidir como vamos realizá-lo.

Por exemplo: estamos predestinados a um casamento ou a um acidente, mas a forma como vamos enfrentar esses eventos é de nossa inteira responsabilidade. Há, nos autores modernos, uma dialética entre karma (ou as causas do destino) e livre-arbítrio (ou o modo de vida), expressa na equação: Porque = karma; como = Liberdade.

O karma, assim visto, é uma espécie de inércia, uma tendência do vivente repetir as atitudes do passado diante de situações análogas às que já viveu. Esse processo de repetição aprisiona o homem, moldando um padrão e um destino provável, pois suas ações têm sempre a mesma inflexão e resultados semelhantes. É uma tendência recorrente, uma repetição constante de situações e tipos de pessoas, um mesmo padrão de ocorrência reincidente. Assim, “não há coincidências” e “o acaso não existe”. Assim, o destino é condicionado pelo passado/presente (ou determinado pelo conjunto de condições inerciais) e segue a lógica resultante de suas ações anteriores: “colhemos o que plantamos”.

Bem vistas esses aspectos marcantes positivos (a perspectiva e o foco imanente no auto desenvolvimento, a concepção não determinista de karma e de reencarnação, etc); então, quais os aspectos negativos do Budismo?

Bom, disse no começo que o Budismo é um sistema de crença que acredita que está acima dos demais sistemas de crenças. Ou seja: ele é uma concepção de mundo elitista, que se considera superior às outras concepções de mundo.

Por isso, ele é particularmente adotado pelas elites que não se identificam com suas tradições culturais. E isto não é vale só para as elites atuais de países periféricos em um mundo globalizado (como aqui no Brasil), mas também historicamente para China, o Japão e o sul da Ásia. O Budismo só não cresceu na Índia.

Um breve estudo da história do Budismo mostrará que ele floresce primeiro nas elites (embora, em um segundo momento, desenvolva ‘versões populares’ (15) como também mimetiza formas híbridas com outras religiosidades) através de um distanciamento das culturas locais, com um forte apelo para o individualismo. É como alguém disse: “um credo de ex-intelectuais irracionalistas”.

Sendo um sistema de crenças que não se reconhece enquanto tal, o Budismo apresenta várias incoerências e ambigüidades – em suas diferentes versões. Por exemplo, enquanto as versões mais refinadas afirmam ‘nada existe a ser feito ou realizado’, a ausência de objetivos é o que permite viver o momento e ser felizes aqui e agora; para outras (para maioria), o nirvana é o principal objetivo individual.

Some-se a isso que, no Budismo, a verdade é sempre subjetiva e relativa. Tradicionalmente é dito que o Buda, “em sua infinita compaixão”, ensinou 84.000 ensinamentos, adaptados a cada tipo de seres existentes. O que dá margem a englobar tudo e esconder bem as próprias contradições. Por exemplo: o Budismo não acredita na existência de Deus (ou de deuses), mas muitas versões populares transformam o(s) Buda(s) em uma entidade(s) semelhante(s). Os rituais tibetanos da Tara Vermelha e dos Cinco Budas – bastante conhecidos hoje no ocidente - utilizam-se de expedientes mágicos, associando visualizações, mantras, incensos, oferendas – da forma semelhante a outros cultos mágicos e devocionais - como o candomblé ou a cabala.

O elitismo cultural e a incoerência inclusiva, no entanto, não são o que há de mais nocivo. O mais grave é a conhecida confusão que se faz em torno da noção de Paz. O Budismo não consegue diferenciar aceitação da vida de conformismo social. A idéia budista de paz associa um estado de consciência de transe profundo a uma atitude política de não-reação à violência. E isto tem um apelo especial para a juventude ocidental, pois dá um sentido político à meditação e um sentido espiritual à vida política.

Talvez por isso, que no Kashimir, no Tibet e na Birmânia, o Budismo não consiga de defender contra as agressões de que é vítima, enquanto outras formas de espiritualidade encaram a violência colonial como desafio de desenvolvimento. Falta ao Budismo o sentido de aventura da vida. Mais que isso: mudar a si mesmo não modifica imediatamente o mundo em que se vive e o projeto coletivo de extinção do mal através da renúncia aos sentidos é uma estratégia autista. E é preciso se comportar de um modo diferente do que o Budismo em relação às tiranias do mundo.

Diante de filosofias guerreiras, afirmativas da vida, como a de Nietzsche, o Budismo é “uma religão que aspira ao Nada” (2002, 54). Mais realista que o Cristianismo, é verdade, mas igualmente decadente e submissa às injustiças, à mentira estrutural da representação social, e à ‘crueldade do mundo’.

A capacidade de superar-se a si mesmo (e de transformar o mundo) - a vontade de potência, para usar as palavras do filósofo alemão - só se desenvolve através de desafios e de seus riscos. Espreitar a violência do mundo e a própria morte de modo a aprender com elas e se desenvolver ao máximo – eis em que a espiritualidade guerreira se distingue radicalmente do Budismo em suas diferentes e contraditórias versões.

NOTAS

(1) Bodhidharma (em japonês: Daruma ou Bodaidaruma) é o mestre indiano que levou o Budismo à China. É o primeiro patriarca do Budismo Zen e o 28º na linhagem do Budismo Indiano iniciada por Buda Shakyamuni (Sidarta Gotama). É ainda o introdutor do kung-fu nos templos Shaolin e o criador da cerimônia do chá.


(2) Em outras traduções: “Nada sagrado: espaços abertos”. Esse texto é uma livre adaptação minha do koan 29 do Denkoroku, Registro da Transmissão da Luz, de Keizan Jokin Zenji, reproduzido pelo site http://www.dharmanet.com.br/.

(3) Para uma visão panorâmica das escolas budistas, v.: A que escola pertenço? - um guia para quem está se interessando pelo Buddhismo de Ricardo Sasaki. < http://nalanda.org.br/pdf/aqep.pdf  >

(4) Dhammacakkapavattana Sutta (Samyutta Nikaya LVI.11)

(5) Magga-vibhanga Sutta (Samyutta Nikaya XLV.8)

(6) Segundo Sasaki, no ensinamento budista, há um ciclo de mortes e renascimentos para os seres vivos, mas não de reencarnações. O renascimento descrito pelo Budismo é em vez disso uma herança de agregados impermanentes, não de uma verdadeira identidade permanente. “Note-se que o conceito do não-eu (anatta) não significa que o indivíduo seja inexistente e sim que se deve renunciar ao apego, àquilo que psicologicamente se considera como “eu” e “meu”. Segundo o texto Anatta-lakkhana Sutta (SN 44.10), devemos nos desapegar dos agregados com os quais nos identificamos porque, sendo esses impermanentes, o apego nos leva à insatisfação (Dukkha).” < http://www.nalanda.org.br/sala/reenvibu.php >

(7) Já Dantas : (...) “na reencarnação ocorre sempre com a rigorosa transferência de méritos de um indivíduo específico para outro único indivíduo exclusivamente. Essa crença não pode ser considerada budista.” < http://www.dantas.com/budismo/reencarnacao.htm >

(8) Além disso, o Budismo incorpora a possibilidade de involução e de ‘voltar como’ plantas e/ou animais da metempsicose grega’.

(9) Diversos estudiosos defendem que a reencarnação era admitida pelo cristianismo, tendo sido proscrita pelo Segundo Concílio de Constantinopla, em 553 d.C.. É preciso dizer que essa informação é absolutamente falsa, nunca houve nenhuma menção à reencarnação no referido concílio e não há nenhuma prova da adesão do cristianismo primitivo às teses espíritas.

(10) Destaca-se o trabalho do Dr. Ian Stevenson, da Universidade de Virgínia, EUA, que recolheu dados sobre mais de 2.000 casos em todo o mundo que evidenciam a reencarnação.

(11) COSTA, C. F. Livre-arbítrio para compatibilistas < http://www.filosofia.cchla.ufrn.br/claudio/ >.

(12) SKINNER, B. F. O mito da liberdade. São Paulo: Summus, 1972.

(13) Interpretação atual para passagem evangélica em que Jesus afirma que não há perdão para os pecados cometidos contra o Espírito Santo. Mateus, 12, ver. 31,32; Marcos, 3, 28ss; Lucas 12, 10)

(14) O que levou a alguns comentadores ocidentais do texto a interpretar este diálogo como a relação pedagógica entre o Eu Superior e o Ego (Huberto Rohden, por exemplo). A tradição hinduísta, que considera Arjuna e Krisna como personagens históricos reais, desautoriza esta leitura de Nova Era.

(15) Como as escolas devocionais da Terra Pura (Jodo Shu) e Verdadeira Terra Pura (Jodo Shinshu), trazida para o Brasil pelos imigrantes japoneses.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ELIADE, M.; COULIANO, I. P. O Dicionário das Religiões. Tradução; Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

OSHO Liberdade – a coragem de ser você mesmo. Tradução Denise de C. Rocha Delela. Dicas para uma nova maneira de viver. São Paulo: Cultrix, 2006d.

Adão e Eva

Nos primórdios da história da terra, havia um casal de macacos, Adão e Eva, que viviam felizes, brincando inocentes, em uma floresta daqueles tempos: cheia de árvores frutíferas, plantas e seres encantados. A floresta era vizinha de um grande sertão, deserto e misterioso, semelhante a esse que hoje conhecemos.

No meio daquele sertão arcaico, havia um pé de jurema preta, aonde se escondia uma serpente, que se alimentava dos mamíferos comedores de insetos, que se aproximavam da árvore. E quando a seca chega, já viu, fica tudo seco e só a jurema tem água. Tudo gira em torno dela – para beneficio da cobra, que como guardiã da árvore, devorava todos que se aproximavam de sua sombra.

Na mesma jurema preta também morava uma coruja, que, para se proteger dos gaviões, fez seu ninho entre os galhos cheios de espinhos. A coruja se alimentava dos insetos que viviam na árvore e também era guardiã da árvore, mas do seu aspecto espiritual. Juntas, as duas guardiãs da árvore sagrada guardavam o segredo da consciência do bem e do mal – desconhecido então de todos os outros animais.

Certo dia, Adão e Eva saíram da floresta em busca de aventuras e chegaram ao centro do grande sertão, onde ficava a jurema preta e encontraram a serpente e a coruja.

- “Eu sou a guardiã da consciência do mal” – disse então a serpente – “se vocês descerem até aqui, vou lhes ensinar sobre o Tempo e sobre a Morte”.

- “Eu sou a guardiã da consciência do bem” – disse depois a coruja – “se vocês comerem desta árvore, lhes darei um mistério chamado Liberdade”.

Adão teve medo da morte e quis desistir, mas Eva, que era mais inteligente, ficou curiosa sobre a liberdade. Então, o desejo de saber venceu o medo de mudar e eles acabaram comendo da árvore, e se transformando em homem e mulher . Assim, eles não puderam voltar à floresta encantada e tiveram que viver no sertão para sempre, Adão com vergonha e Eva com culpa, lembrando do paraíso perdido.

A Arca de Noé

No sertão, os homens, filhos de Adão, apesar das terríveis doenças invocadas pelos animais, não se arrependeram de seus atos e seguiram em sua história de destruição da terra e de maldade consigo mesmo. Um dia, um homem, de nome Noé, dormiu e sonhou com a árvore do bem e do mal, a jurema preta no centro do grande sertão. No sonho, havia uma escada por dentro da árvore que subia para o céu e descia até o inferno, com dez andares diferentes em que viviam diferentes criaturas. Noé foi subindo, subindo pela árvore como se ela fosse uma escada. Os andares eram como se fossem galhos da árvore e salões de um grande palácio ao mesmo tempo. Primeiro, Noé encontrou os demônios dos quatro elementos: Belzebu da terra, Asmodeu do ar, Satã da água e Satanás do fogo. Depois encontrou os arcanjos cardeais: Ariel do norte, Rafael do oeste, Gabriel do sul e Miguel do leste. Até que no nono galho da árvore sagrada, na ante-sala do salão principal do palácio, Noé encontrou Enoch, sentado no trono que um dia foi do príncipe Lúcifer.

- Olá, Noé! – disse o Guardião do Limiar.

- Você me conhece?

- Sim, eu sou Enoch, seu primo, que subi aos céus interiores e estou sentado Nono Trono do Universo, à direita da Luz Eterna, a porta para o Nada Infinito. Quando cheguei aqui, o lugar estava vago e eu acabei ficando com medo de cruzar a última porta e desaparecer para sempre.

- E eu, o que estou fazendo aqui?

- Você está aqui porque vai haver um grande dilúvio e toda terra ficará inundada. E para que haja sobreviventes, você vai ter que construir uma grande arca de madeira com as juremas-pretas daqui, com dez compartimentos grandes, com essa árvore do sonho e coloque um casal de animais mágicos em cada um – disse Enoch, acrescentando - Mas, não deixe, em hipótese alguma, que os animais confinados se alimentem da madeira da arca porque ela se transformará em uma nave espacial e vocês poderão viajar sem retorno por muitos universos paralelos. Enoch, então, enumerou os animais mágicos que eram necessários e como fazer para chamá-los. E quando Noé acordou do sonho no meio do juremal, começou a providenciar a Arca e os animais para enfrentar o dilúvio.

Moises

Durante o grande dilúvio, a arca de Nóe navegou a deriva durante 40 dias e 40 noites. Nela, os dez casais de animais mágicos eram alimentados por Noé e seus filhos. Todos os dias, ele lembrava da recomendação a todos de que ninguém poderia comer da madeira da arca, sob pena de não voltarem ao mundo após o dilúvio. E como tudo que é proibido, tem um sabor especial; alguém as alimentou da madeira e desencadeou uma viagem transdimencional da arca por vários mundos durante 40 anos. Alguns homens conseguiram se salvar. Algum tempo depois das águas baixarem, um garoto chamado Moises foi brincar perto do juremal do sertão habitado pelos seres humanos e encontrou uma pequena arca de madeira talhada. “Um navio de brinquedo” pensou. Noé finalmente tinha conseguido chegar, mas todos os viajantes da Arca haviam encolhido.

Moises resolveu levar a Arca consigo, “mas antes preciso limpa-la”. E como ela estivesse bem acabada, ele acabou com uma farta no dedo, fazendo com o espírito da Árvore do Bem e do Mal penetrasse em sua alma e ele entrasse em transe profundo. Moises fez então uma viagem semelhante ao sonho de Noé, subindo pelos dez estágios da árvore e conhecendo seus habitantes, os animais aprisionados na Arca. E, quando chegou à décima porta, Moises viu a Luz, sentiu seu silêncio e perguntou:

- Quem é você?

- Eu sou aquele que é – respondeu Jeovah - Eu sou eu e sou um grande vazio. Sou a Luz Eterna, única e universal, por isso, não tenha outros deuses senão Eu. Sou a Força sem Forma, por isso não faças imagens de mim, nem invoque meu nome em vão.

- Sou a Bondade e a Disciplina, santifica o sétimo dia e honra teu pai e tua mãe. Eu sou o Amor e por mim não matarás. Eu sou a Beleza e por mim não trairás. Eu sou o Saber que não pode ser furtado. Eu sou a Vida, pela qual não darás falso testemunho contra o teu próximo. Eu sou o Poder para o qual não há cobiça - concluiu.

Moises ouviu tudo aquilo e entendeu que a arca era a morada daquele espírito, que cada um de seus dez compartimentos representa uma lei para os que desejam subir através da Arvore do Conhecimento do Bem e do Mal. E quando acordou no sonho fantástico induzido pela jurema, Moises correu para mostrar aos outros, sua arca e suas dez leis.

Davi e Salomão

Certo dia, príncipe Salomão pediu ao seu pai, o rei Davi, um exemplo simples da inter-relação de todas as coisas. O rei sábio esperou o anoitecer e levou o príncipe a um salão térreo do grande Templo, cujas paredes, o teto e o chão estavam inteiramente cobertos por espelhos. Davi, então, acendeu uma vela no centro do aposento e a luz da chama se refletiu até o infinito. Depois mostrou a Salomão um diamante e perguntou o que ele via refletido em uma de suas faces.

- Cada mínima parcela da diversidade do universo é um reflexo particular da unidade que engloba todas as coisas - explicou o rei sábio.

- O Um no Todo, o Todo no Um: Um no um, Todo em todos - recitou o jovem, feliz por afinal ter entendido o significado da frase.

- Tenha calma, príncipe! Hoje você entendeu o que é o infinito. Para compreender a eternidade é necessário subir os nove pisos do Templo até onde está guardada a arca de nossos ancestrais - disse Davi, acrescentando - porque os reflexos fixos da luz da vela são incapazes de representar o movimento perpétuo e multidimensional do universo.

- E o diamante? Qual seu significado? – perguntou Salomão.

- Da mesma forma que, em cima há o céu, embaixo há a terra. Há o Templo e a Arca. Os mundos estão uns dentro dos outros, como as cascas de uma cebola – explicou o rei pastor, continuando - O homem se reencontra no universo olhando para dentro de si.

- Não entendi nada – reclamou Salomão – Não somos apenas um bicho mais inteligente entre outros bichos?

- Não, Salomão, nós somos as testemunhas através dos quais a Árvore da Vida adquire consciência de si – continuou o rei Davi - através de nossos olhos o universo se percebe a si mesmo. Somos seres percebedores. Ou fomos ...

- Não somos mais? – indagou o príncipe curioso.

- Na Arca está o livro com a história de nossos antepassados. Você conhece as estórias: como Adão e Eva perderam o acesso à Árvore da Vida por provar da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, como Noé se perdeu nos tempos e como Moisés redescobriu o caminho de retorno ao sagrado ...

- Mas, como iremos voltar à Árvore da Vida e à Floresta Encantada se ainda estamos prisioneiros da maldição da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal? – questionou Salomão, indignado - Porque veneramos a Arca da Aliança se estamos presos para sempre dentro dela?

- “Para sempre” não – corrigiu o rei Davi – até o fim dos tempos, quando a Arca se transformar em uma cidade celestial e quando o espírito da verdade que habita no Sol retornar ao trono de nossos corações.

- O “retorno do Messias” – zombou Salomão.

- Neste dia – concluiu o rei - o nosso corpo será nosso templo, puro como esse diamante. E poderemos voltar a viver na floresta a céu aberto.


Recapitulando Castaneda

Apresentar o pensamento de Castaneda de forma analítica é, de certa forma, traí-lo, uma vez que sempre enfatiza o caráter prático e irracional do ensinamento tolteca. E uma enorme dificuldade inicial é caracterizar as idéias de Castaneda, uma vez que seu pensamento não é nem esotérico nem acadêmico, mas reúne elementos de ambos em conceitos sofisticados - como 'ponto de encaixe da percepção' ou 'seres inorgânicos' - sem apresentá-los de forma sistemática. Porém, em alguns raros momentos, é possível vislumbrar suas referências teóricas. Nos cadernos Lectores del Infinito - Un diario de Hermenéutica aplicada, por exemplo, Castaneda confessa sua admiração pela fenomenologia:

“Trató que la Fenomenología fuera un método de acercamiento a la experiencia de la vida tal como ocurre en el espacio y en el tiempo. Es una tentativa de describir directamente nuestra experiencia tal y como ocurre, sin detenerse a considerar sus orígenes o sus explicaciones causales.“

Também não se pode classificar o texto de Castaneda de literário ou de sub-literário (no sentido de um gênero comercial ou modismo), no entanto, é evidente que ele se utiliza artifícios literários autobiográficos para passar seus conceitos chaves de modo subliminar. Por exemplo, Castaneda passe imagem que é tolo e demasiadamente racional, levando seus leitores a subestimá-lo e a se imaginarem que seriam mais espertos como aprendizes de Don Juan. Por detrás desta manobra de desvalorização de sua intelectualidade atrapalhada, Castaneda, na verdade, coloca sorrateiramente sofisticados conceitos na boca de Don Juan. Ele oculta seu esforço teórico enfatizando o caráter pragmático, relativo e misterioso mundo da feitiçaria, mas, na verdade, cunha modos de vê-la e de entendê-la de modo bastante abstrato e preciso.

Outro artifício interessante é que Castaneda em praticamente todos os livros conta a mesma história, a história de seu aprendizado com Don Juan, mas a cada vez narra os mesmos acontecimentos com enquadramentos e sintaxes completamente diferentes. Dentro de seu propósito, tal fato se dá devido à lembrança posterior dos acontecimentos vividos em outro estado de consciência. Este também é um efeito literário interessante, uma vez que para entender a história, é preciso conhecer suas diferentes versões; e, ao mesmo tempo, um método de pesquisa da própria experiência de vida, em que há uma ampliação da sintaxe de sua memória e do seu modelo de interpretação da realidade.

Embora poucos cientistas reconheçam, Castaneda é um marco na antropologia. Aliás, esta poderia ser subdividida em três grandes estágios: o período evolucionista e etnocêntrico, em que os antropólogos consideravam os outros povos primitivos; o período funcionalista-estruturalista, em que Franz Boas e Levi-Strauss, entre outros, se descobriram iguais aos selvagens que estudavam; e o período etnoantropológico, em que, invertendo a perspectiva inicial, o antropólogo se conhece cultural e psicologicamente através de tradição que estuda. E neste sentido, o esforço teórico de Castaneda ainda é muito mal compreendido. Mas, além de ser um cientista social do novo paradigma de conhecimento, Castaneda também é "o novo nagual" (ou nagual das três pontas), iniciando uma nova linhagem de feiticeiros sem fetiches. E mais: sua interpretação teórica do xamanismo mexicano se deu em um ambiente globalizado, fazendo com que este saber se desterritorializasse, se espalhando pelo planeta em milhões de grupos sem nenhuma relação cultural ou física com as linhagens tradicionais. Entre as diferentes contradições geradas por esta situação destaca-se o fato de Castaneda ter se tornado uma ‘celebridade invisível’, isto é, um personagem público que apagou sua história pessoal (1). Armando Torres observa que devido a esta estratégia de se tornar invisível, Castaneda teve que reformular sua relação com as ‘plantas de poder’ (parte essencial do xamanismo mexicano), pois ela ameaçava sua imagem pública e colocava como secundário, o ensinamento que considerava essencial.

Dito isto, resta ainda explicar que aqui, mais do que uma exposição sistemática ou crítica do pensamento de Carlos Castaneda, nosso objetivo aqui é utilizar suas idéias para reler outros pensadores e formular algo bastante diferente do que ele pensou e escreveu. Minha intenção não é confirmar ou criticar, mas sim avançar criativamente no desenvolvimento de um novo saber, em que ciência e tradição dialoguem.

Há uma grande diferença de enfoque entre o esoterismo da nova era (ou nova gnose) e o ensinamento de Castaneda e D. Juan: para esses últimos não existe transcendência, platonismo ou imagens-idéias permanentes – de modo semelhante aos autores pós-modernos. Não existe nada além deste mundo (arquétipos, espíritos ou dimensões) e a realidade é apenas uma descrição (na verdade, um inventário) feita pela mente.

Castaneda nega a reencarnação e a lei do karma? Não. Ele as considera irrelevantes para seus objetivos espirituais estratégicos. Ele também não nega a criação de uma alma imortal, simplesmente se percebe com um conglomerado de eu’s que lutam para se unificar. Alias, acho que essa espiritualidade ‘sem telos’ existe em vários autores contemporâneos (incorretamente apontados como tendo sido influenciados pelo budismo e pelo pensamento oriental) (2). Pode-se até dizer que esses autores desconsideram a dimensão transpessoal da psique, que, para eles, ela é apenas ilusão ou ideologia das religiões institucionalizadas.

Por outro lado, nos livros de Armando Torres (discípulo de Castaneda) e de Merlyn Tunnshende (do grupo do D. Juan), os personagens de Genaro e Soledad são bem diferentes. Um trabalha com cura e a outra é cartomante - algo inconcebível para ética do guerreiro de Castaneda. A ênfase da luta contra a autopiedade e a importância pessoal levou a uma concepção pouco generosa. E muitos acusam Castaneda de ter reinterpretado a tradição tolteca de uma forma muito ... ‘pós-moderna’ (3).

O livro mais chocante é o de Amy Wallace, filha do famoso escritor Irving Wallace. O livro, ao contrário dos outros, não trata de feitiçaria, mas sim do desenvolvimento de sua relação amorosa com Castaneda, apresentado-o como uma pessoa indisciplinada e imatura afetivamente, mulherengo, um líder dominador e cruel. Além de desmascarar várias mentiras (4), o livro traz uma cópia de atestado de óbito de Castaneda, para provar que ele morreu de câncer no fígado (uma morte vergonhosa para um guerreiro) e não se transformou em uma bola de fogo, dando um salto para o infinito, como alguns de seus seguidores passaram a propagar. Amy acha também que as três bruxas que seguiam o nagual – Carol Tiggs, Taisha Abelar e Florinda Donner – se suicidaram. Alguns dos leitores dos livros de Castaneda e de suas ajudantes (5) não acreditam na narrativa de Amy Wallace. Aliás, consideram inclusive que ela pode estar deliberadamente mentindo para esconder o verdadeiro destino de Castaneda e das bruxas – o que certamente combina com suas idéias e sua estratégia de guerreiro.

Para nós, no entanto, nada disso importa. Relevantes são as idéias abstratas que pretendemos analisar e não as fofocas de ex-namoradas ou as crenças de seus admiradores. Porém, não há como negar o papel que a contra-informação desempenha em relação a tudo que envolve Castaneda. É como se ele trabalhasse seus conceitos de forma tão discreta, como se sugerisse suas noções de forma tão delicada, que no final ficasse a dúvida: “Bom talvez esse cara não exista mesmo, seja apenas um truque do mercado editorial americano, mas quem será que pensou tudo isso?”

Os conceitos de Tonal e Nagual, por exemplo, representam por tanto princípios e campos perceptivos opostos e complementares, em que o primeiro é a ordem, o racional, o conhecido; e o último, o caos, o irracional e o desconhecido. O tonal é nossa percepção ordinária (sensorial-mental) do mundo como algo formado por objetos concretos, pessoas e coisas sólidas. O nagual é quando percebemos que estamos em um universo de relações, que tudo é feito de energia em diferentes níveis de organização e de adaptação.

Na verdade, há três posições perceptivas: o conhecido (tonal ou primeira atenção), o desconhecido (nagual ou segunda atenção) e o incognoscível ou terceira atenção, ou Intento. Atenção aqui entendida como a capacidade de enfocar o que desejamos perceber.

Três mil anos atrás havia um ser humano, que vivia perto de uma cidade cercada de montanhas. (...) Um dia, enquanto dormia numa caverna, sonhou que viu o próprio corpo dormindo. Saiu da caverna numa noite de lua nova. O céu estava claro e ele enxergou milhares de estrelas. (...) Olhou para suas mãos, sentiu seu corpo e escutou sua própria voz dizendo: “Sou feito de luz; sou feito de estrelas.” Olhou novamente para o alto e percebeu que não eram as estrelas que criavam a luz, mas sim a luz que criava as estrelas. “Tudo é feito de luz”, acrescentou ele, “e o espaço no meio não é vazio.” (...)  Então, ele compreendeu que, embora fosse feito de estrelas, ele não era essas estrelas. “Sou o que existe entre elas”, pensou. Assim, chamou as estrelas de tonal e o espaço entre os dois nagual, e percebeu que a harmonia e o espaço entre os dois eram criados pela Vida ou Intento. RUIZ, Miguel; 2005: p. 13 e 14.

Em muitos textos o tonal é comparado a uma ilha (ou bolha da percepção) e o nagual a um oceano-universo que o engloba: o mar escuro da consciência. Neste contexto, o sonhar é a base de toda experiência cognitiva: estamos sonhando o tempo todo, seja dormindo ou quando estamos acordados. A diferença é o enquadramento mental-sensorial no estado de vigília (ou tonal) da percepção da energia sem realidade sensorial dos estados alterados de consciência (ou nagual). Aliás, enquanto campos perceptivos podem-se inclusive comparar a relação entre Tonal e Nagual às de consciência algorítmica e consciência quântica, em voga entre os neurocientistas.

Também se chama de Nagual ao líder de um grupo de guerreiros na tradição xamânica mexicana. Nos grupos, os guerreiros se subdividem em sonhadores e espreitadores; e o nagual é o único que tem a mestria nas duas artes. Ele é o líder porque tem seu segundo eu enraizado no campo nagual e tem energia suficiente para desferir o "golpe do nagual", isto é, uma descarga de energia no meio das omoplatas dos guerreiros, onde fica o ponto de aglutinação dos guerreiros, deslocando sua percepção para o nagual e tornando irreversível seu desenvolvimento posterior. O ‘golpe’ também pode ser um acontecimento (a morte de um parente próximo ou um acidente fatal com a própria pessoa) que faça o desconhecido emergir na vida do golpeado, deslocando a sua percepção de tempo e de seu propósito de vida.

Há ainda a ‘regra do Nagual’, mais que um conjunto de normas da tradição oral, uma determinada configuração energética das linhagens xamânicas que regula as relações entre o líder e o grupo de dezesseis guerreiros, com dois espreitadores e dois sonhadores para cada ponto cardeal. Alguns praticantes chamam de Nagualismo ao conjunto de práticas e idéias associadas a esta tradição.

Aliás, os termos 'xamanismo tolteca' - nome mais associado às práticas anteriores a Castaneda e a outros grupos paralelos ao de D. Juan, como os de Miguel Ruiz - e 'tensegridade' (este termo mais associado às suas sucessoras, Florinda Donner, Carol Tiggs e Taisha Abelar) nunca pareceram nos seus livros. O ensinamento professado pelo Sr. Carlos Castaneda é a Arte da Feitiçaria, redefinida como a arte de acumular e redistribuir energia com o propósito de escapar à segunda morte - independente dos sistemas de crenças, das tradições ou das práticas mágicas. E a feitiçaria se subdivide em duas grandes partes: a Espreita e o Ensonhar.

A arte da espreita é a capacidade de fixar conscientemente o ponto de aglutinação da percepção através do campo da cognição ordinária, também chamada de primeira atenção ou tonal. Esta arte apresenta diferentes técnicas e estágios (o não-fazer, o pequeno tirano, a arte da loucura controlada através de disfarces, a recapitulação) e torna o praticante liberto de sua auto-importância pessoal (ou do uso inadequado de seu ego) através de mudanças de comportamento que diminuam o desperdício de energia psíquica. A espreita implica em tomar tudo como presa, inclusive às próprias fraquezas, implica em agir de modo estratégico em relação ao próprio comportamento e à sua transformação permanente. “A arte da espreita está ligada ao coração, assim como a mestria da consciência está ligada à mente, e a mestria do intento ao espírito”. É uma batalha silenciosa para “conseguir os objetivos” da melhor forma em cada situação. A espreita pode ser aplicada a tudo, mas espreitar a si mesmo é a sua maior expressão.

Para espreitar é preciso ter um propósito, ser impecável, sair da auto-importância, banir hábitos e praticar a loucura controlada (fingir-se imerso na ação, mas sem se identificar, nem ser notado). A recapitulação é o ponto forte dos espreitadores, pois é uma forma especializada de espreitar as rotinas internas. É regida por sete princípios (6) e tem quatro passos de aprendizado (implacabilidade, esperteza, paciência e doçura).

A arte do ensonhar consiste na capacidade de deslocar deliberadamente o ponto de aglutinação da percepção através do campo da cognição extraordinária, também chamada de segunda atenção ou nagual. Através desta arte, o praticante deve construir um 'segundo eu' ou Duplo, que poderá tomar outras formas e subsistir ao seu desaparecimento físico. A esta experiência - de se reconhecer como um conglomerado de campos de energia - chama-se "perder a forma humana" e é considerado um passo irreversível no desenvolvimento dos sonhadores que passam então, a ver o universo como energia viva e perdem todos seus condicionamentos sociais.

Para Castaneda, percebemos apenas uma descrição consensual da realidade, a ilha tonal. Para ultrapassar os limites perceptivos desta ilha temos que aprender a nos ver como um campo energético, como um outro eu ou corpo sonhador, construído através do desenvolvimento da consciência e de diferentes estados de percepção.

Esta é a manobra dos feiticeiros, isto é, preparar o corpo sonhador para sobreviver à morte física e continuar existindo (de modo semelhante à alma penada do suicida, que fica presa no astral até o dia em que deveria realmente morrer, mas por tempo indeterminado e com poderes de materialização entre outros) até o momento de mergulhar do infinito e trocar a consciência pela liberdade.

Esta idéia é que certamente o que há de diferente e de mais polêmico neste ensinamento. Ao contrário do corpo astral, o duplo etéreo e os outros corpos percebidos (ou imaginados) no esoterismo tradicional, o corpo sonhador do nagualismo é uma entidade a ser construída. E a melhor forma de construir um corpo sonhador no sentido proposto com Castaneda e D. Juan é buscar se conhecer obsessivamente a si mesmo.

Na verdade, é preciso reconhecer que existe aí um ‘telos’, um universal, uma transcendência no sonhar. A verdade é que o judeu reza pela vinda do messias; o cristão deseja ser bom para antecipar a utopia social; o budista medita porque crê no nivarna e o tolteca intenta um corpo que sobreviva à morte e a formação de um grupo.

Todo mundo tem uma transcendência que dá sentido a sua vida, mesmo que não goste de admitir. Embora o budismo e o nagualismo tolteca acreditem que empíricos, a finalidade que dá sentido a vida das pessoas que seguem esses sistemas não é melhor do daqueles que acreditam na volta do messias ou na Jerusalém celeste.

Para sonhar ou espreitar, ou seja, deslocar o foco da consciência para diferentes pontos de fixação da percepção, o praticante viaja através de um horizonte vertical pelos diferentes aspectos de uma única realidade. Segundo Taisha Abelar (7) existem “nove formas de mover o ponto de aglutinação” que podem ser praticadas separadas ou em combinação umas com as outras: Tensegridade; Recapitulação; Não-Fazeres (‘Não fazer’ significa, essencialmente, não usar itens de nosso velho inventário); Pequenos Tiranos; Técnicas de observação; o Silêncio interior; Disciplina e ações impecáveis; Sonhar; e Espreita. As nove formas estão listadas em ordem ascendente, em relação à energia necessária para se conseguir praticar adequadamente. Assim, começa-se pelos passes, pela recapitulação e pelo inventário; em seguida, consegue-se enfrentar os desafios do poder; e, finalmente, chega-se ao patamar energético que permite atual o par espreita-sonhar. Na prática, para deslocar o ponto de encaixe da percepção é preciso reunir a energia necessária através de duas práticas simultâneas e constantes: a recapitulação e os passes mágicos.

Os passes mágicos são seqüências de gestos, movimentos e respirações para intensificar a consciência, como também dinamizar e redistribuir a energia do corpo físico e ajudar a construir o segundo eu. Os passes mágicos também são conhecidos por Tensegridade - outro conceito sofisticado de Castaneda importado da arquitetura e da biomecânica, onde é sinônimo de integridade tensional, uma propriedade presente em objetos cujos componentes usam a tração e a compressão de forma combinada, de forma a proporcionar-lhes estabilidade e resistência.

A Recapitulação é um tipo especial de passe mágico que consiste em revisar a própria vida com ajuda da respiração visando resgatar a energia presa no passado. Recapitular é resgatar e desembaraçar a energia gasta com as feridas emocionais do passado, permitindo reestruturar a memória, para que possamos nos servir energia excedente para sonhar. Este processo também é chamado, principalmente nos primeiros livros do nagual, de "apagando a história pessoal".

A recapitulação enquanto prática de re-organização da memória e expansão gradativa da consciência é mais detalhada nos livros de Taisha Abelar e Victor Sanches do que nos de Castaneda. O objetivo destas práticas (de ganho e redistribuição energética) e do desenvolvimento do Duplo e da mestria no deslocamento do ponto de aglutinação da percepção (na espreita e no ensonhar) é se capacitar para saltar para o infinito e entrar na terceira atenção, sobreviver à morte física.

Ao contrário do reencarnacionismo, Castaneda afirma que a morte pode ser o fim definitivo e que a grande maioria da humanidade, após ter sido sugada por toda vida através de Predadores de Energia, está fadada a servir de alimento aos Seres Inorgânicos - demônios ou espíritos da terra e da lua que se alimentam da vida orgânica em uma escala evolutiva paralela.

Assim, pode-se dizer que o pensamento de Castaneda é duplamente contrário à visão humanista e antropocêntrica do esoterismo, que sempre viu o Ser Humano com um pequeno deus, no ápice da evolução do universo, pois postula que além, da existência de outras criaturas que não são moralmente nem superiores nem inferiores ao homem, o objetivo de deixar de ser humano para não ser alimento destes seres. Alguns indivíduos, no entanto, após perderem a forma humana e forjarem corpos sonhadores ou Duplos, sobrevivem e recebem o Presente da Águia, a possibilidade de continuar se desenvolvendo e habitar em reinos inorgânicos em outra ordem evolutiva.

Uma das conseqüências diretas desta consciência permanente com a Morte (eterna, como fim da existência) é o Caminho do Guerreiro e sua luta pela impecabilidade. Mais do que um simples código de conduta comportamental, a ética do guerreiro é uma determinada configuração energética em que o praticante, através de seu propósito inflexível alinha-se ao Intento, uma energia inteligente que pode treiná-lo e guia-lo até seu salto para o infinito.

O Guerreiro deve aprender a agir por agir, sem esperança nem desespero, a dar o melhor de si sem esperar retribuição, a crer sem crer, a viver deliberadamente através de desafios constantes, a sempre escolher o caminho de seu coração, entre outros preceitos.

Há ainda muitas várias outras práticas (o inventario de crenças, parando o diálogo interno ou o mundo) e outros conceitos (Silêncio Interior, O Brilho da Consciência, as Emanações da Águia). Não vamos detalhar todos aqui todos esses termos e etapas de desenvolvimento. Para nós, o importante é perceber que se, por um lado, há uma metafísica oculta no pragmatismo dos que se acreditam empiristas e amantes do concreto (a Iluminação é a escatologia do budismo e do Osho, a ‘regra do nagual’ é a teleologia da tradição tolteca); por outro lado, é preciso também reconhecer que há também, nos ensinamentos professados por Castaneda, uma nova sintaxe para percepção (8), ou pelo menos, uma nova forma de colocar as velhas questões.

Por exemplo, a diferença entre a projeção astral e o sonhar. Há uma única atividade cognitiva ou um estado de consciência que é interpretado por sistemas de pensamento diferentes. E do ponto de vista prático também surgem diferenças a partir dai. A primeira é que se pode sonhar acordado e a projeção geralmente acontece durante o sono. Na verdade, sonhamos o tempo todo, sendo que, na vigília, com um enquadramento sensorial. Sonhar juntos não é apenas se encontrar durante o sono, mas, sobretudo ter objetivos comuns de vida. O sonhar e a projeção astral são apenas formas diferentes de sonhar o sonho, diferentes interpretações sobre a abrangência do sonhar.

Outra diferença é que no sonhar de Castaneda há um outro eu com várias possibilidades (animais xamânicos, sonhar ser outra pessoa, se reconhecer como uma bola de energia); na projeção, há um outro corpo (o corpo astral) com o mesmo eu. Nas experiências ligadas à projeção astral há uma continuidade entre o eu da realidade ordinária e o eu projetado. O próprio termo projeção astral sugere uma continuidade, uma extensão. Já nas experiências do sonhar, há uma interrupção do eu ordinário e um tipo de consciência diferente da vida cotidiana.

Outro aspecto bastante relevante em relação aos ensinamentos de Castaneda, pelo menos em minha opinião, é o desafio de dosar autonomia radical (espreita individual) e sonhar junto. Quando várias pessoas têm um propósito comum - a transformação - a energia total é mais do que a energia individual de cada um. Esse ganho de energia propicia que cada um tenha mais energia para cumprir sua mudança do que se a tivesse intentado sozinho. A isso Castaneda chama 'massa crítica'. Por outro lado, se as pessoas se organizam em grupos e/ou em instituições, o ganho energético inicial acaba se tornando um capital coletivo e as pessoas passam a depender uma das outras, perdendo a autonomia e entrando na neurose.

Há uma passagem conhecida em que Castaneda se torna um corvo. Depois pergunta a Don Juan: “Realmente me tornei um corvo ou imaginei ter me tornado um?”. Ao que índio respondeu: “Qual a diferença?”. Como sabemos, toda objetividade é uma leitura subjetiva. Inconformado, Castaneda ainda perguntou: “E se houvesse comigo alguém do meu lado, ele me veria como corvo ou como um homem que imagina ser corvo?” E Don Juan explicou que o ponto de encaixe da percepção funciona por indução e que se alguém estivesse a seu lado provavelmente também teria seu ponto de encaixe deslocado para o mesmo ponto, e não só veria Castaneda como corvo mas também se veria como outro corvo.

Se você acredita que é um ovo luminoso, ou se o grupo de pessoas com que partilha uma forma alternativa de ver o mundo pensa isso, é possível que se vejam realmente como tal. Se partilharmos de imagens de animais xamânicos ou de outros arquétipos, é com elas que vamos nos reconhecer. Existe um pacto cognitivo que diz que somos homens. Pode-se propor um pacto alternativo dizendo que somos ovos ou bichos, mas sozinho, não tenho capacidade de dizer que sou nada. Depende-se sempre de uma energia de massa crítica para se definir como algo. Eis porque continuamos sempre e sempre acreditando apesar de não acreditarmos realmente em nada. Eis porque não conseguimos superar o sistema de crenças e sonhar um novo sonho, uma nova sintaxe.

Tentar sistematizar pensadores irracionalistas se parece com dar voltas em círculos, escrever sempre a mesma coisa sem conseguir concluir. Mas, se há alguma mensagem no ensinamento de Castaneda é que precisamos modificar nosso ponto de encaixe de percepção coletivo, temos mudar nosso sonho do planeta. Aliás, o período de ‘celebridade invisível’ e o súbito desaparecimento do nagual e do seu grupo fazem parte desta estratégia de aumentar a massa crítica em torno de suas idéias e, ao mesmo tempo, apagar sua história pessoal.

NOTAS

(1) Biografia e principais entrevistase em português: < http://www.consciencia.org/castaneda/castext.html >


(2) Na verdade, a ênfase na imanência espiritual no Ocidente (ou no anti-transcendentalismo platönico) tem uma longa lista de adeptos, com destaque para Spinoza e Nietzsche.

(3) Domigues Delgado, por exemplo, distingue a ‘toltequidade’ do penseamento casteniano < http://www.perceptica.com.mx/ >

(4) Uma das "mentiras" de Castaneda, e justamente a que mais polêmica causou, foi a história da Mulher Nagual (Carol Tiggs, na verdade era Muni Alexander, ou melhor Elizabeth Austin ou ainda Kathleen A. Pohlman), que teria desaparecido na "Segunda Atenção" durante 12 anos, de 1973 a 1985, quando ela ressurgiu. Mas, na verdade, ela estava matriculada em uma escola de acupuntura, era casada e se divorcia exatamente na mesma época. Para um balanço das contradições da cronologia biográfica de Castenda, veja: < http://jol28.vilabol.uol.com.br/cronolog.htm >

(5) Todos os livros podem ser adquiridos no link: < http://www.cleargreen.com/mirrors/portuguese/index.html >

(6) Eleger o campo de batalha, entrar em batalha apenas quando se saiba tudo o que se possa sobre o campo de luta. Eliminar todo o desnecessário. Estar disposto e pronto para entrar na última batalha, em qualquer hora e lugar. Não se apegar a si mesmo. Não temer a nada. Não se deixar levar pela corrente. Comprimir o tempo, tudo conta, cada segundo. Não desperdiçar nenhum instante. Jamais deixar ver o jogo, não se exponha.

(7) Palestra em seminário de Tensegridade, Maio de 1995. Instituto Omega. Transcrito das anotações de Rich Jennings.

(8) Sintaxe é a estrutura das palavras na frase e das frases no discurso. Nos dois casos, o termo sintaxe se refere à organização espacial da linguagem em padrões. Na lingüística contemporânea, sintaxe é o eixo analógico oposta ao repertório (ou ao léxico) na organização da linguagem. Foi daí que Castaneda tirou o termo sintaxe, dando um sentido mais abrangente ao termo: as regras do jogo da percepção. E trocando a palavra 'repertório' pela de 'inventário'.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABELAR, Taisha A Travessia das Feiticeiras. Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1995.
CASTANEDA, Carlos. Readers of Infinity: A Journal of Applied Hermeneutics - 1996 - Diários do trabalho de Castaneda com suas discípulas ainda não traduzido.
____ O Lado Ativo do Infinito (The Active Side of Infinity - 1999). Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 2000a.
_____ Roda do Tempo (The Wheel Of Time: The Shamans Of Mexico - 2000) - uma antologia de citações comentadas. Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 2000b.
DONNER, Florinda Donner: Sonhos Lúcidos. Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1993.
_______ Shabono. Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1994.
_______ A bruxa e a arte do sonhar. Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1998.
SANCHES, Victor. Os ensinamentos de Don Carlos – as aplicações práticas dos trabalhos de Carlos Castaneda. Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1997.
TORRES, Armando. Encontro com o Nagual. Tradução coletiva através da lista Ventania, 2003.
WALLACE, Amy. Aprendiz de Feiticeira – minha vida com Carlos Castaneda. São Paulo: Nova Era, 2007.