Mostrando postagens com marcador estórias sagradas. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador estórias sagradas. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 18 de outubro de 2011

os passatempos de Krsna - Indra

Certa vez, Indra, o rei dos deuses, que comanda os raios e as tempestades, duvidando do caráter divino do menino Krishna, convocou as nuvens da destruição universal em direção à vila de Vrindávana, onde Krishna morava e divertia-se com seus familiares, amigos, vizinhos e vacas – muitas vacas.
Observando o temor e a aflição dos seus devotos, Krishna simplesmente ergueu, com o dedo mínimo de sua mão esquerda, a montanha de Govardhana para proteger toda a vila do terrível aguaceiro que se anunciava.
A tempestade durou dias e noites e Krishna, nem um pouco cansado pelo esforço de levantar a montanha, alegremente brincou com o seu – guarda-chuva -, desprezando, assim, o poder limitado do invejoso Indra, que, tomando consciência de quem era verdadeiramente aquele jovem garoto de tez azul-escura (gana-shyama), dispersou, finalmente, as nuvens e prostrou-se perante Krishna com respeito e devoção.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Luta de Lobos

UMA NOITE, UM VELHO ÍNDIO CONTOU AO NETO DELE SOBRE UMA BATALHA QUE ACONTECE DENTRO DAS PESSOAS.

ELE DISSE:

- MEU QUERIDO, HÁ UMA BATALHA ENTRE DOIS LOBOS DENTRO DE TODOS NÓS:

UM É MAU: É A RAIVA, A INVEJA, O CIÚME, A TRISTEZA, O DESGOSTO, A COBIÇA, A ARROGÂNCIA, A PENA DE SI MESMO, A CULPA, O RESSENTIMENTO, A INFERIORIDADE, AS MENTIRAS, O ORGULHO FALSO, A SUPERIORIDADE E O EGO..

O OUTRO É BOM: É A ALEGRIA, A PAZ, A ESPERANÇA, A SERENIDADE, A HUMILDADE, A BONDADE, A BENEVOLÊNCIA, A EMPATIA, A GENEROSIDADE, A VERDADE, A COMPAIXÃO E A FÉ.

O NETO PENSOU NAQUILO POR ALGUNS MINUTOS E PERGUNTOU:

- QUAL O LOBO QUE VENCE?

E O VELHO ÍNDIO SIMPLESMENTE RESPONDEU:

- O QUE VOCÊ ALIMENTAR MAIS!

sexta-feira, 8 de julho de 2011

um grande vazio



"NADA SAGRADO, APENAS ESPAÇOS ABERTOS"

Quando o monge budista Bodhidharma1 chegou à China, no século VI, foi se apresentar na corte do Imperador Wu (Ryo no Butei).

O Imperador Wu levou o monge então a grande salão onde havia vários guerreiros treinando lentamente Tai-chi Chuan, levitando pesadas bolas de metal entre as mãos.

E disse: “Esses são nossos guerreiros; através do controle da energia eles podem vencer qualquer um que ataque a China”.

Depois, o Imperador foi a outro salão em que vários médicos curavam as pessoas através de técnicas de imposição das mãos nos canais de energias do corpo (Shiatzu e Do-in) e de pequenas agulhas esquentadas no fogo (acumputura e mosha). Outros faziam poções e chás, davam banhos e compressas nos doentes.

E disse: “Esses são nossos curadores; eles recuperam e revigoram a vida do povo”.

E finalmente, o Imperador Wu levou Bodhidharma a um terceiro salão, onde vários sábios estudavam o I Ching – o livro das transmutações – e faziam previsões através das rachaduras de cascos de tartaruga.

E disse: “Esses sãos nossos aprendizes dos mestres do Destino, que estudam o tempo e profetizam nosso futuro”.

Ante a falta de interesse do monge, o Imperador então colocou:

- Este é o taoísmo, o tesouro espiritual da cultura chinesa. E você, indiano, qual é o ensinamento sagrado que trouxe para nos ensinar?

- Nada sagrado, apenas um grande vazio2 – respondeu humildemente Bodhidharma e se retirou do palácio para as montanhas Shaolin.

1 Bodhidharma (em japonês: Daruma ou Bodaidaruma) é o mestre indiano que levou o Budismo à China. É o primeiro patriarca do Budismo Zen e o 28º na linhagem do Budismo Indiano iniciada por Buda Shakyamuni (Sidarta Gotama). É ainda o introdutor do kung-fu nos templos Shaolin e o criador da cerimônia do chá.

2 Em outras traduções: “Nada sagrado: espaços abertos”. Esse texto é uma livre adaptação minha do koan 29 do Denkoroku, Registro da Transmissão da Luz, de Keizan Jokin Zenji, reproduzido pelo site www.dharmanet.com.br.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A HUMILHAÇÃO DE INDRA



Segundo a mitologia Védica, um poderoso Dragão chamado Vrtra, rei dos demônios Asuras, represou dentro de si todas as águas do universo e houve, então, uma grande seca cósmica que durou milhares de anos. O rei dos Devas, Indra, Senhor do Céu e dos relâmpagos, então, atirou um raio no Dragão e explodiu Vrtra, e... a água fluiu novamente sobre a Terra e o universo teve sua sede saciada. A vitalidade havia recomeçado a brotar. As águas se libertaram e correram pela terra, circulando mais uma vez pelo corpo do mundo. E o sangue que corria pelas veias do Dragão morto se transformou na seiva dos campos e florestas. Os deuses voltaram para o topo da montanha central da Terra e passaram a reinar lá do alto.

Como recompensa pelo seu feito, Indra se proclamou rei dos deuses da Terra, responsável por toda vida do planeta, fosse mineral, vegetal ou animal. Decidiu, então, fazer da Terra um majestoso palácio, como nenhum outro no universo e convocou o espírito humano, Vishvakarman, o artífice dos deuses.

- Vamos construir uma civilização inteiramente nova aqui – uma que seja merecedora da minha dignidade – disse Indra.

Então, Vishvakarman começa as obras. Porém, Indra sempre volta com novas ideias, exigências absurdas e detalhes grandiosos. O empreiteiro começa a pensar: Meu Deus, ambos somos imortais, então esse trabalho não vai terminar nunca. O que eu posso fazer? Então, decide procurar Brahma, o criador do Universo e queixar-se a ele sobre o trabalho interminável a que está submetido.

Brahman é onipotente, onipresente, onisciente, infinito, além do espaço e do tempo é o Brahman. Ele não tem atributos como a forma, a magnitude e as qualidades e está além do tempo, do espaço e da imaginação por isso não pode ser descrito com palavras. Brahman é o absoluto, supremo, impessoal, infinito, eterno, a fonte pré-cósmica da divindade, a causa de todas as causas, sem começo e sem fim, do qual todo emana e ao qual todo retorna.

Quando Vishvakarman entrou, Brahma estava sentado em um lótus que cresce a partir do umbigo de Víshnu – o mestre dos sonhos, modelador de todas as formas – dormindo e flutuando no espaço cósmico, montado em uma grande serpente. E ao fundo, Shiva, Senhor do Tempo e da Morte, dançava sua dança de espadas com seus seis braços. Brahma é o Criador do Universo; Vishnu, o preservador da vida; e Shiva, o transformador de todas as formas. Eles criavam e destruíam mundos.

Ao ouvir o pedido de Vishvakarman, Brahma diz: “Tudo bem. Eu darei um jeito nisso”.

Na manhã seguinte, logo cedo, chegaram ao portal do palácio de Indra dois brâmanes: um menino de apenas dez anos, vestido em ricas túnicas azuis e um velho ancião, coberto apenas por alguns panos velhos vermelhos. Ambos caminhavam juntos com elegância, exalando sabedoria e graça, tinha um olhar sereno e extático, como se estivessem com os seus pensamentos perdidos no infinito.

O rei dos deuses recebe-os em seu trono, no salão central do palácio, e depois de os cumprimentar formalmente, perguntou aos visitantes santos:

— Ó veneráveis brâmanes, dize-me o propósito de tua vinda.

A bela criança respondeu:

— Ó Indra, rei dos deuses, ouvi falar do majestoso palácio que estás construindo, e vim te fazer algumas perguntas. Quantos anos levará para que fique pronto? Que outras proezas de engenharia o artesão Vishvakarman será solicitado a realizar? Ó Supremo dentre os Deuses, nenhum Indra antes de ti conseguiu terminar um palácio como será o teu e gostaríamos e saber como pretende fazê-lo.

— Indras anteriores a mim? - disse Indra, confuso - Do que você está falando?

— Sim, Indras anteriores a você — diz o jovem — Pare e pense: o lótus cresce do umbigo de Vishnu, então, desabrocha e nele se senta Brahma. Brahma abre os olhos e nasce um novo universo, governado por um Indra. Ele fecha os olhos. Abre-os novamente – outro universo, um novo Indra. Fecha os olhos... e, durante toda sua vida (311.040.000.000.000 anos terrestres), Brahma faz isso – até que chegue o momento da encerrar a grande expansão e começar a grande retração do universo, quando todas as coisas criadas serão absorvidas à unidade primordial.

— Então o lótus murcha e, após uma eternidade, outro lótus desabrocha, aparece Brahma, abre os olhos, fecha os olhos. . . Indras, Indras e mais Indras — completou o visitante mais velho — cada galáxia do universo um lótus, todas com seu Brahma. Vários homens levariam várias vidas para contar as gotas d'água do oceano e os grãos de areia das praias do mundo; mas quem contaria esses Brahmas, sem falar nos Indras? Quem será capaz de contar os universos que desapareceram, ou as criações que brotaram de novo do abismo amorfo das águas? Quem saberá contar as eras que passam no mundo? E quem irá vasculhar as vastas infinitudes do espaço para contar os universos lado a lado, cada qual com seu Brahma e seu Vishnu? Quem há de contar todos os Indras, ascendendo um a um ao reinado divino, e um após outro desaparecendo?

Enquanto falavam, um formigueiro gigantesco, marchando em milhares de colunas perfeitas, aproximou-se pelo teto, paredes e piso do palácio de Indra. Os visitantes as olham e riem entre si.

— Do que você está rindo?

— Preferimos não te contar — disseram ambos, rindo ainda mais.

— Ó veneráveis visitantes — Ó criança, suplicou Indra, com uma nova e visível humildade — Não sei quem sois. Revela-me esse segredo de todas as eras, essa luz que dissipa a escuridão.

— Cada uma dessas formigas já foi um Indra um dia — disse o menino, completando em seguida — Como você, cada uma matou o dragão Vrtra e ascendeu à categoria de deus planetário. Agora, porém, através de muitos renascimentos e reencarnações, cada um voltou a se transformar em formiga. — concluiu o menino, olhando serenamente para seu anfitrião humilhado.

O rei dos deuses da terra, do mar e do céu, apesar de todo seu esplendor, tornara-se insignificante diante de seus próprios olhos.

— Quem são vocês? Quais os seus nomes? Onde moram? — perguntou Indra.

— Não temos família, nem casa – respondeu o mais velho — A vida é curta. Toda vez que morre um Indra, cai um fio de cabelo. Metade deles já caiu. Logo, logo, todos vão cair. Quando todos caírem, o atual Brahma irá morrer e eu também morrerei – por isso não temos casa ou família, nem trabalho ou divertimento que não seja a tarefa de gerar e destruir universos dentro do breve intervalo de tempo em que vivemos.

Nesse momento, os dois visitantes misteriosos se transformaram nos deuses Vishnu e Shiva, se despediram e foram-se embora. Indra sentiu-se totalmente arrasado e se perguntou se aquilo teria sido um sonho. Mas já não sentiu mais nenhum desejo de ampliar o esplendor celestial de seus domínios. Mandou chamar Vishvakarman, cobriu-o de presentes e mandou o artesão descansar. Porém, seu coração não estava feliz, amargando sua humilhação. Resolveu então renunciar a sua posição de deus planetário, se refugiar na floresta e se tornar um eremita em uma vida de ascetismo e meditação.

Mas sua bela rainha Indrani implorou ao conselheiro espiritual do rei, Brihaspati, senhor da Sabedoria Mágica, que afastasse da mente de seu marido essa decisão radical. O hábil Brihaspati falou com Indra sobre as virtudes da vida espiritual, mas falou também das virtudes da vida secular, e deu a cada uma seu valor.

– Você está no trono do universo e representa a virtude e o dever – o dharma – e encarna o espírito divino em seu papel terreno – disse o sábio, acrescentando – O que acha de representar nesta vida terrena a imanência desse mistério da eternidade?

Indra cedeu e cumpriu o papel que lhe fora destinado no universo transitório do qual era parte, e não mais teve despeito do desfile das formigas - e dos diversos Indras que haviam existido antes, e que tornariam a existir repetidamente por toda a eternidade.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CAMPBELL, Joseph. Mitos de Luz: Metáforas Orientais do eterno. São Paulo: Editora Madras, 2006. pp. 22-25


ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1991. pp 56-72.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Kirtimukha, o exú de Shiva

Shiva, o destruidor de mundos, passeava com sua esposa Parvarti, quando de repente surgiu um monstro e disse:

- Quero que sua esposa seja minha mulher!

Ultrajado com aquele insulto, o deus Shiva criou então um monstro dez vezes maior e mais ameaçador que o primeiro, forçando este a lhe pedir clemência.

Shiva, então, poupou a vida do primeiro monstro, que passou a ser seu devoto discípulo e disse ao segundo monstro:

- "Kirtimukha" ou seja: que o mal consuma a si mesmo!

E o monstro se auto devorou.

Hoje, a máscara do demônio Kirtimukha (imagem em anexo) serve como escudo de proteção nas casas e templos dedicados ao deus Shiva.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

As aventuras do sapo Kambo - segunda parte

O rei Mapinguari


Na floresta africana, o leão é o rei dos animais. Porém, aqui no Brasil na floresta amazônica, o rei é o Mapinguari, uma preguiça gigante que muitos pensam que não existe mais e vive escondido na mata profunda.

O Mapinguari não é o rei porque por ser o mais forte (coisa que ele não é), o mais esperto (também não é o caso) nem mesmo o mais rápido (ele só perde para as tartarugas); mas devido a uma democrática eleição que o escolheu como o mais adequado para o majestoso cargo.

Tudo começou quando o Tamanduá quis ser o rei da floresta e os outros animais não concordaram: “ele nem da mata é”. Os macacos andavam se transformando em humanos e também não podiam assumir a chefia do reino animal. Então, a coruja propôs uma eleição. Todos podiam votar e ser votados, os dois que tivessem mais votos, concorreriam em uma segundo eleição. E quem vencer na segunda vez, será o rei da floresta e todos teriam que aceitar.

Houve, então, um grande alvoroço com vários bichos fazendo campanha, dando presentes e prometendo coisas absurdas. Mapinguari, no entanto, passa o tempo todo dormindo em sua árvore e ninguém sabia em quem ele ia votar. A sua amiga Anta foi visitá-lo e perguntou:

- E aí Mapin, vai votar em quem? – perguntou a Anta curiosa.

- Em ninguém, todos estão mal intencionados, comadre Anta. Eles só querem o poder para tirar vantagem – respondeu o Mapinguari – Eu só votaria em alguém que fosse honesto e não quisesse o poder para se aproveitar como esses oportunistas interesseiros, eu só votaria em alguém que se sacrificasse pelos outros.

- Votar em quem não quer ser eleito?

- Claro, se todo mundo votar em um que não queira, ele vai se sentir forçado a ser candidato no segundo turno, comadre Anta – argumentou a preguiça.

- O senhor está me saindo em belo do estrategista – provocou a Anta.

- Além do que o sol já é nosso rei e a floresta, nossa rainha – continuou Mapinguari, completando já com sono e vontade que Anta fosse embora para poder voltar a dormir - Nós não precisamos de governo, se eu fosse eleito não faria nada e daria tudo certo.

A anta ficou surpresa com a sabedoria da resposta de seu amigo e contou a todos que se Mapinguari fosse eleito, ele “não faria nada e daria tudo certo”. A estória ganhou a mata como se fosse o fogo de incêndio na palha seca e no dia da votação o resultado apresentava o Tamanduá e o Mapinguari praticamente empatados nos primeiros lugares.

Na segunda etapa da eleição, o Tamanduá fez uma campanha de marketing político completa, se esforçando por apresentar uma plataforma política de propostas formada por reivindicações de diferentes segmentos do reino animal (levantadas através de pesquisas de opinião), oferecia apoio e proteção aos bichos mais fracos e reclamava contra os candidatos anarquistas, que “são sempre contra tudo e nunca fazem nada”.

Enquanto isso, o Mapinguari não fazia nada mesmo, “para não agradar nem desagradar ninguém” – segundo contou sua comadre anta, “deixando quieto tudo que já está”. Com o transcorrer da campanha, com os correligionários do Tamanduá começaram a brigar entre si pelas vantagens e o excesso de exposição do candidato fez com que a postura de não-interferência da preguiça se fortalecesse mais e mais.

E foi assim que 90% dos bichos encantados da Floresta elegeram o rei Mapinguari I, soberano dos animais mágicos por um período indeterminado de tempo.

A preguiça, após assumir o trono (que foi levado para sua árvore), nomeou o Tamanduá embaixador da floresta das terras distantes dos pastos, a comadre Anta para primeiro-ministro e a Dona Onça como ministra da guerra (só para o caso de haver algum problema inesperado), decretando ainda que naquele dia em diante nada mais fosse decidido sem houvesse discussões dos animais em plenárias democráticas.

E depois foi dormir por alguns meses.

As aventuras do sapo Kambo - terceira parte

A revolta das formigas


Entretanto, nem tudo era paz e tranqüilidade na Floresta Encantada. A violência covarde dos predadores finais da cadeia alimentar, as injustiças territoriais impostas pela força e, sobretudo, as diferenças raciais entre as espécies criavam conflitos constantes e acabavam com o descanso do rei Mapinguari I. A Anta, primeira-ministra do governo da mata, corria para um lado, corria para o outro; enquanto o rei permanecia sempre acima dos conflitos e das partes envolvidas. E assim os dois juntos iam administrando os conflitos cotidianos da floresta – até o dia da greve geral das formigas.

- Companheiras, é chegada à hora de dar um basta nessa luta de classes, nessa exploração de nosso trabalho pelas cigarras, que passam o verão cantando e, no inverno, querem parte de nosso alimento – discursava uma formiga operária, acrescentando – basta de desigualdade, basta de injusta, basta de mentira!

As cigarras, por sua vez, se defendiam como artistas-celebridades, cantando músicas sobre como a inveja do belo cria o despeito da crítica. Tinha até um rap que cigarras entoavam enquanto as formigas trabalhavam que dizia que cantar a verdade era seu trabalho. Algumas cigarras chegaram até a defender a sindicalização da categoria para proteger sua atividade artística. Mas, a verdadeira causa da revolta não foi a luta de classe com as cigarras. As formigas sabiam que assim como a comida alimenta o corpo, a arte alimenta para o espírito – e que elas precisavam das cigarras para ser felizes.

A verdadeira causa da revolta das formigas foi a invenção da rodinha.

Tudo começou quando se percebeu que as formigas amazônicas são menos produtivas que as formigas de outros países, uma vez que o custo/tempo/esforço do transporte alimentar parecia ser muito maior aqui que no exterior. Após mandar um espião para realizar uma pesquisa sigilosa no estrangeiro, chegou-se a conclusão de que a grande diferença era tecnológica: ao invés de carregar um único pedaço de comida na cabeça, as formigas estrangeiras estavam usando um carrinho de uma roda, capaz de carregar três pedaços de comida de uma vez só. Para usar o carrinho, as formigas brasileiras teriam que pagar um royaltie às estrangeiras em comida, o que criaria uma dívida externa. Em contrapartida, além de diminuir o tempo de transporte, a invenção prometia diminuir também o custo com mão-de-obra, uma vez que se poderia demitir duas formigas e manter apenas uma fazendo o trabalho das três.

Nunca havia tido desemprego entre as formigas. E pior: o fato de duas formigas ficarem sem trabalho diminuía a remuneração dada àquela que trabalhava - que se via obrigada a se esforçar mais (e ganhar menos) para não ser substituída.

- A greve tem que ser geral porque se apenas demitidas trabalharem, morrerão de fome - dizia uma das formigas revoltadas.

- E as outras vão morrer depois de tanto trabalhar – completava outra.

- Abaixo a tecnologia! Abaixo a mudança! Abaixo a roda! – protestavam e em seguida gritavam palavras de ordem ensandecidas: “Formigas, unidas, jamais serão vencidas; formigas, unidas, jamais serão vencidas”.

A situação era realmente muito difícil, pois se as formigas parassem haveria conseqüências ambientais para toda floresta. Consultado, o rei Mapinguari I declarou do alto de sua árvore não entender porque as formigas queriam tanto trabalhar e porque todo mundo temia que elas parassem de trabalhar. “A sabedoria vem da ociosidade” – filosofou lá do seu galho, sugerindo que as duas formigas restantes poderiam cantar como as cigarras. E voltou a dormir, buscando uma solução para o conflito em seus sonhos profundos.

Quando a comadre Anta já estava perto de dar um treco, de tanta preocupação com problema, apareceu Kambô.

- Vamos abrir uma escola: a Escola da Floresta – sugeriu o sapo – nela, não apenas as formigas, mas todos os animais que estiverem livres da obrigação do trabalho poderão se aperfeiçoar e aprenderem novas coisas.

- E poderemos ter nossos próprios inventos sem ter que pagar por isso – acrescentou a Anta.

- A tecnologia e progresso material não são ruins para floresta, mas é preciso saber utilizá-los com sabedoria – explicou Kambô – e isso só se aprende com uma boa escola, comadre Anta.

E assim “para preservar as tradições e desenvolver a criatividade”, o rei Mapinguari I inaugurou a Escola da Floresta, “instituição animal para o aprendizado do novo, do futuro e do antigo, sem finalidade lucrativa outra senão a de promover o desenvolvimento dos bichos, da mata e de toda terra” – como gostava de dizer.

As aventuras do sapo Kambo - quarta parte

O Escorpião e o Sapo

Uma das aulas obrigatória para todos os animais da Escola da Floresta era sobre o grande dilúvio há muitos anos atrás. Era a primeira vez que professora Gambá ia contar essa estória para uma turma de jacarés novatos. Insegura, ela começou:

- O grande dilúvio foi um castigo divino dos seres encantados contra os animais e contra o homem, que continuavam em uma guerra dissimulada de todos contra todos, não apenas destruindo uns aos outros, também à Natureza – disse, acrescentando - Uma das estórias mais conhecidas é a do sapo e do escorpião. Vocês querem que eu conte?

- Sim – disseram quase que em coro os filhotes de jacaré.

- Então, vamos lá – disse a professora sentando se confortavelmente em seu cesto, acima do alcance dos seus alunos – Tudo começou quando as águas subiram acima das árvores e o escorpião ia morrer afogado. Um sapo surgiu e disse: “Escorpião, suba aqui nas minhas costas que eu sei nadar e te salvo a vida até que as águas baixem”. O escorpião, então, respondeu: “Cuidado, sapo, pois sou um escorpião e minha natureza é traiçoeira”. Ao que o sapo retrucou: “Mas se você me atacar durante a enchente, também morrerá será que sua natureza está acima de sua racionalidade”.

Para representar o diálogo, a professora Gambá contracenava com o próprio rabo peludo, fazendo ora o papel do sapo, ora o do escorpião.

- Como não tinha opção, o escorpião aquiesceu e subiu nas costas do sapo. “Ou viveremos os dois, ou então morreremos os dois” pensou. Com o passar do tempo, no entanto, foi dando um desejo irresistível no escorpião de ferrar o sapo, mesmo que isto significasse também seu fim – dissera a professora criando um suspense.

- E quando não conseguiu mais segura seu desejo, o escorpião atacou o sapo e os dois morreram – terminou a Gambá rapidamente.

- Não, não foi assim, não – protestou o jacaré assu, interrompendo a história pela professora gambá – Meus tios estavam lá e viram tudo: o escorpião atacou mas o sapo não morreu.

- Morreu sim – disse a professora.

- Não, morreu não – insistiu o jacaré – só se foi o sapo cururu e essa estória for de outra floresta. Porque o nosso sapo Kambô desta floresta aqui derrotou o escorpião durante o dilúvio.

- Como é que? – perguntaram os outros interessados.

- Foi assim – começou o jacaré, com o charme característico dos contadores de estórias – os dois passaram três dias e três noites na chuva. O escorpião nas costas do sapo.

No final do terceiro dia, o escorpião ameaçou: “Compadre sapo, não agüento mais, vou te atacar”.

Então, Kambô argumentou: “Não faça isto compadre escorpião, será que seu instinto é mais forte que sua consciência?” Não era e o escorpião atacou. Mas como Kambô tem um veneno muito mais potente do que o escorpião, quem ficou envenenado foi ele e o sapo ficou ainda mais forte, adquirindo imunidade também daquela substância.

Kambô ainda disse: “Eu transformo o veneno que lançam contra mim em vacina para curar as pessoas”. E completou, enquanto o escorpião morria: “Obrigado, amigo escorpião, por ter me atacado porque agora estou mais forte e posso derrotar inimigos ainda maiores”.

- Kambô é o predador dos predadores – arrematou a professora Gambá, feliz por ter aprendido uma versão melhor da estória do sapo – na próxima aula vamos conhecer a história dos três pintores do retrato do rei Mapinguari I.

E encerrou a aula porque já chegava o final da tarde, hora de todos voltarem às suas casas.

As aventuras do sapo Kambo - sexta parte

O sonho do sapo e do príncipe

O lento cair da noite na floresta é um espetáculo difícil de descrever: as cigarras, os sapos e os pássaros da noite cantam como que chamando as sombras e a escuridão. Depois, abre-se um grande silêncio noturno, majestoso, integral, pesado. E com esse silêncio sombrio das matas, surgem também as estrelas no céu e a Lua iluminando a noite, com sua luz com de prata. Em uma noite de lua cheia, o sapo Kambô sonhou que era um príncipe de reino distante, chamado Salomão. E, no sonho de Kambô, o príncipe Salomão sonhava que era um sapo que vivia na floresta. Era um sonho dentro de outro sonho que era real.

- Será que sou um príncipe que sonha que é um sapo ou será que sou um sapo que sonha ser um príncipe? – perguntou Kambô ao seu grande conselheiro espiritual, o monge louva-deus.

No sonho (ou no sonho no sonho), o príncipe Salomão vivia infeliz, pois se sentia prisioneiro de uma vida sem graça, árida, por vezes até violenta, em que os todos agiam apenas para satisfazer seus interesses. Kambô sentia saudades da Floresta, embora nunca tivesse saído dela.

O monge louva-deus ouviu, escutou, pensou e disse a Kambô:

- Apenas um beijo de amor pode responder a esta questão – disse o louva-deus, coçando as patas – você terá que fazer uma viagem às terras distantes, onde vivem os homens decaídos, e procurar por alguém que te dê um beijo apaixonado. Só então descobriremos a sua verdadeira natureza, se você é um príncipe humano que sonha que é um sapo ou se é um sapo que sonha que é um príncipe.

Kambô não gostou daquela estória de beijo, mas compreendeu que devia ir conhecer o príncipe do sonho e decidiu partir da floresta rumo ao sertão onde moravam os homens. Despediu-se então do louva-deus e seguiu o caminho dos rios que desciam das florestas altas até as terras secas dos desertos.

As aventuras do sapo Kambô - sétima e última parte

THE END

Kambô subia os rios rumo aos sertões, por detrás das grandes montanhas, em que os homens moravam. Ele ia obedecendo aos seus sonhos, com a missão de encontrar um determinado homem a quem daria um dom. Também lhe havia sido profetizado que ele encontraria seu grande amor durante a jornada.

Ninguém da Floresta Encantada sabia, mas a dona Cobra, inimiga antiga do sapo mágico, exilada pelo rei Mapinguari I, havia dominado os homens através de um feitiço na Árvore do Bem e do Mal. Ela planeja, com seus homens-serpentes enfeitiçados, construir o Império da Serpente, controlando todo o planeta através do Sistema Capitalista.

Embora não reclamasse, Kambô andava meio chateado com sua vida e com a Floresta Encantada. Ele fazia sua parte: viajava levando dons mágicos e ajudando as criaturas sagradas, dava aulas de esperteza na Escola da Floresta e ainda ajudava a dona Anta no governo do rei Mapinguari I.

- É uma boa vida, mas sem desafios de transformação – pensava o sapo com uma certa aceitação inconformada, enquanto subia rumo às cabeceiras dos rios.

Ao passar por iguarapé, no entanto, Kambô viu o Tamanduá, bicho que havia sido derrotado nas eleições para o trono da floresta e mandado como diplomata para as terras dos pastos distantes, com seu enorme nariz dentro de um buraco em uma encosta de ribanceira.

- O que faz por aqui, compadre Tamanduá – perguntou o sapo.

- Nada, nada, nada – disse assustado o bicho pego de surpresa – vim aqui atrás de umas formigas mas já estava de saída, quando vi algo se movendo aqui no buraco e pensei uma fazer um lanche. Mas era só isso e há estou de saída.

Após o Tamanduá se afastar, Kambô foi até o buraco ver o que o bicho queria com tanta vontade de manter em segredo e viu uma grande aranha prateada.

- Kambô, meu amor! – disse a Aranha – você me salvou! Esse Tamanduá queria me matar a mando da Dona Cobra, que está prestes a destruir a Floresta Encantada para construir um Shopping Center, o templo da Mãe Serpente.

- Temos que impedir isto! – retrucou o sapo animado.

- Pois eu vim aqui para te avisar – continuou a Aranha - apenas o elixir extraído da Árvore da Vida pode derrotar o encantamento da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal – com que a serpente enfeitiçou os homens. Você deve levar a bebida Ayahuasca para o homem de nome Salomão, que veio das terras além do mar e está agora no Império do Sol por trás das montanhas. Só isto salvará a Floresta Encantada da destruição, agora e em um futuro distante.

Kambô, então, chama seu amigo Tucano e com ele vooa direto até Machu Pichu, onde salomão e um grupo de homens já o esperavam. Lá, eles consagram a bebida sagrada firmando um pacto de paz e prosperidade recíproca entre a Floresta Encantada e o mundo dos homens. Kambô deu ao rei Salomão o dom de retonar à vida no ano de 2012 para consolidar a pacificação entre os mundos e dissolução definitiva do encantamento macabro da serpente.

Quando retornou à Floresta Encantada, Kambô foi recebido com festa. Dona Anta tinha preparado uma homenagem, com direito a discurso e banda de música. A Aranha prata foi convidada para entregar um medalha de honra ao mérito a Kambô, os alunos da Escola da Floresta foram liberados mais cedo para poderem ir ao evento cívico e até o rei Mapinguari disse que ia estudar a possibilidade de sair de sua árvore para receber o novo heroi. Porém, na hora da homenagem começar, quem apareceu foi a dona Cobra, acompanhada de seu capanga o Tamanduá, e foi logo dizendo:

- Vim fazer uma denúncia da maior gravidade – disse a serpente - este sapo, que todos pensam ser um heroi, é na verdade um traidor, pois foi ele, juntamente com a Vó Aranha, sua amante e cumplice, que trouxeram os homens, esta praga destrutiva da grande mãe, para o Quarto Mundo. Foram eles que provocaram todo este desequilibrio e agora querem posar de salvadores da catástrofe que eles próprios criaram. - E, sentindo que havia despertado a dúvida em alguns animais presentes no festejo, a serpente continuou:

- Foi Kambô que fez um acordo com a morte, autorizando os homens a viverem aqui, foi Kambô que prometeu levar uma parte deles de volta ao Terceiro Mundo, foi Kambô que os estimulou a destruir o Quarto Mundo ...

- Não, não – protestou Kambô – não foi assim ...

- Sou testemunha do que a cobra fala é verdade – atestou o Tamanduá – aumentando ainda mais desconfiança em vários bichos da Floresta Encantada.

- Vamos fazer um desafio para ver quem está falando a verdade – proclamou o rei Mapinguari I, que subitamente apareceu, saindo de sua reclusão habitual – vocês dois vão passar mil anos (um dia no tempo da Floresta Encantada) morando entre os humanos. No final deste tempo, quem levar os bons homens de volta ao Terceiro Mundo e os maus para serem reciclados como alimento para o Segundo Mundo, será considerado vencedor da prova e poderá voltar à Floresta Encantada. E o outro será banido para sempre.

Assim, o sapo Kambô veio habitar entre nós e aguarda o momento para, junto com a reencarnação de seu amigo o rei Salomão, comandar a mudança dos homens para um outro plano de vida e finalmente poder voltar à Floresta Encantada e aos braços de sua querida rainha Aranha.

terça-feira, 2 de março de 2010

A descida de Inanna

Certa vez a deusa Inanna decidiu fazer uma visita a Enki , o deus da sabedoria, que morava no Abzu , o céu dos deuses sumérios. Enki conhecia as leis do céu e da terra, o coração dos deuses, assim como todas as coisas. Inanna tinha como propósito honrá-lo e lhe proclamou uma oração.

Enki mandou preparar bolo, água fresca e cerveja. Mas os dois se embebedaram no encontro, perdendo a medida do que estavam fazendo. O deus da sabedoria acabou perdendo sua sabedoria, enfeitiçado com os encantos de Inanna , e foi, cálice a cálice, revelando os mistérios para deusa. Ao final, o deus diz para Inanna conquistar o poder sobre os três domínios, deve descer aos infernos e voltar, e, portanto conhecer a realidade da vida e da morte.

- É o trânsito entre o mundo inferior e superior, entre a vida e a morte, entre o céu e a terra, entre o homem e a mulher que nos leva à grande Verdade.

Inanna era a Rainha do Céu e da Terra, mas não sabia nada do submundo e sua missão agora é desvendar seus segredos. Havia sete portais que Inanna deveria cruzar rumo ao seu objetivo final. Em cada uma destas portas se vê despojada de seus instrumentos de poder, desde sua coroa até suas vestes. No sétimo e último portal, totalmente nua, Inanna encontra-se com Ereshkigal , sua irmã gêmea e rival. Cada elemento abandonado por Inanna em cada portal tem um significado. A coroa, por exemplo, representa o poder intelectual. Suas jóias e adornos simbolizavam seu poder material. As vestes reais seriam as defesas da personalidade, uma das formas de proteção contra tudo e todos. Totalmente nua, seria a única forma com que Inanna poderia se relacionar com sua sombra. Neste estado vulnerável, a deusa enfrenta sua irmã, é presa e crucificada num poste do mundo inferior. Como iniciada, ela se rende corajosamente ao próprio sacrifício, para ganhar nova força e conhecimento. Como a semente que morre para renascer, a deusa se submete. Sozinha e na escuridão, Inanna oferece-se em sacrifício, testemunha a morte das forças férteis e traz a si mesma como semente. Mas a aceitação de sua vulnerabilidade, a descoberta da necessidade do sacrifício e da transformação para que os ciclos da vida se perpetuem, na verdade aumentaram o poder de Inanna , assim como sua compreensão e beleza.

Ao terceiro dia, devido à interferência de seu amigo Enki , a deusa Inanna ressuscita dos mortos e retorna pelos sete portais do inferno, pegando de volta seus pertences. Entretanto, ela retorna à vida reintegrando sua sombra Ereshkigal , com um aspecto demoníaco, os "olhos de morte" para escolher os que devem ser levados aos seus domínios infernais.

Descobre então, que seu marido Damuzzi , em sua ausência usurpara-lhe o lugar no trono do céu. Ficou colérica e permitindo que os demônios lhe prendessem e o levassem. Depois sentiu pena dele e o libertou. No entanto, apenas durante uma parte do ano. Assim, durante o outono e inverno, Damuzzi permanece no inferno e as colheitas não se reproduzem, enquanto que na primavera e verão, ele sai da terra para participar do reino de cima e a colheita é farta.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Kokyang Wuhti

No início dos tempos, uma faísca de consciência se incendiou na grande noite do espaço infinito. Esta luz era Tawa, o espírito do Sol. Tawa então criou o Primeiro Mundo: uma enorme caverna povoada unicamente por insetos e governada pela Avó Aranha ou Kokyang Wuhti – a tecelã dos destinos, velha como o tempo e jovem como a eternidade, mãe de tudo na terra com quem se ela se funde e se confunde. Observando como se moviam os insetos, Tawa achou sua criação pouco inteligente, incapaz de Lhe compreender e dar louvor. Então lhes enviou a Avó Aranha que disse aos insetos:

- Tawa, o espírito do Sol que os criou, está descontente com vocês, porque não compreendeis em absoluto o sentido da vida. Assim, me foi ordenado que os encaminhassem ao Segundo Mundo, que está acima do teto da caverna.

Os insetos então começaram a escalar as paredes da caverna em direção ao Segundo Mundo. A subida era tão alta e tão penosa que, antes de chegarem ao Segundo Mundo, muitos dos insetos já haviam se transformado em animais serpentes, lagartos e dragões.

Tawa os contemplou e disse:

- Esses répteis são tão estúpidos quanto os insetos. Também não são capazes de compreender o sentido da vida.

Novamente pediu a Avó Aranha para que os conduzisse para o Terceiro Mundo – em um nível acima na caverna. E no transcurso desta nova viagem, alguns animais se transformaram em homens. No Terceiro Mundo, a Avó Aranha ensinou aos homens a tecerem e as mulheres a fazerem potes. Ela também instruiu convenientemente e na cabeça dos homens e mulheres começou a despontar uma vaga idéia sobre o sentido da vida. Entretanto, bruxos malvados, extinguiram a luz e cegaram os humanos. As crianças choravam, os homens guerreavam e se lastimavam, haviam perdido o sentido da vida.

A Avó Aranha voltou e lhes disse:

- Tawa, o espírito do Sol, está muito triste com vocês, porque perderam a centelha de luz que havia brotado em suas cabeças. Agora, vão ter que subir ao Quarto Mundo. Mas desta vez, deverão encontrar o caminho sozinhos.

Os homens, perplexos, se perguntavam como poderiam subir sozinhos para o Quarto Mundo. Em fim, um ancião tomou a palavra:

- Vamos enviar nosso amigo Sapo como mensageiro para explorar o Quarto Superior e nos contar o que há por lá.

O Sapo pulou até o alto da caverna e encontrou no centro de um grande deserto, uma linda mulher, toda vestida de preto. Reconheceu então aquele personagem: era a Morte.

- Venho da parte dos homens que habitam o mundo debaixo deste – disse o Sapo. - Eles desejam compartilhar contigo este país. Isso é possível?

A Morte refletiu por alguns momentos.

- Se os homens querem vir, que venham! Mas, como comigo tudo é passageiro, eles só durante algum tempo. Depois, só os que se desenvolverem, vão poder voltar ao Terceiro Mundo, os demais serão dados como alimento aos lagartos do plano debaixo e voltarão a ser insetos.

O Sapo voltou ao Terceiro Mundo e contou aos homens o que ouvido.

- A Morte aceita compartilhar com vocês o Quarto Mundo, comunicou, mas depois de um tempo apenas os que se desenvolverem poderão voltar.
Então os homens escalaram a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, que havia no centro do Terceiro Mundo. Nada levavam consigo, estavam nus, alegres como crianças, tão desprovidos como no seu primeiro dia de vida.

- Sejam prudentes e corajosos para voltarem quando chegar o dia! - recomendou a Avó Aranha - E não se esqueçam de que sou sua Mãe e que Tawa, o espírito do Sol, é seu pai!

Entretanto os homens já não mais a escutavam, pois já tinham alcançado às alturas. Ao chegarem ao Quarto Mundo, construíram povoados, plantaram mandioca, milho, melões, fizeram jardins e hortas. E desta vez, para dar sentido às suas vidas, se lembrarem de quem eles eram, de onde vieram e para onde estão indo – os homens inventaram as lendas e estórias sagradas, em homenagem a grande tecelã dos destinos.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Adão e Eva

Nos primórdios da história da terra, havia um casal de macacos, Adão e Eva, que viviam felizes, brincando inocentes, em uma floresta daqueles tempos: cheia de árvores frutíferas, plantas e seres encantados. A floresta era vizinha de um grande sertão, deserto e misterioso, semelhante a esse que hoje conhecemos.

No meio daquele sertão arcaico, havia um pé de jurema preta, aonde se escondia uma serpente, que se alimentava dos mamíferos comedores de insetos, que se aproximavam da árvore. E quando a seca chega, já viu, fica tudo seco e só a jurema tem água. Tudo gira em torno dela – para beneficio da cobra, que como guardiã da árvore, devorava todos que se aproximavam de sua sombra.

Na mesma jurema preta também morava uma coruja, que, para se proteger dos gaviões, fez seu ninho entre os galhos cheios de espinhos. A coruja se alimentava dos insetos que viviam na árvore e também era guardiã da árvore, mas do seu aspecto espiritual. Juntas, as duas guardiãs da árvore sagrada guardavam o segredo da consciência do bem e do mal – desconhecido então de todos os outros animais.

Certo dia, Adão e Eva saíram da floresta em busca de aventuras e chegaram ao centro do grande sertão, onde ficava a jurema preta e encontraram a serpente e a coruja.

- “Eu sou a guardiã da consciência do mal” – disse então a serpente – “se vocês descerem até aqui, vou lhes ensinar sobre o Tempo e sobre a Morte”.

- “Eu sou a guardiã da consciência do bem” – disse depois a coruja – “se vocês comerem desta árvore, lhes darei um mistério chamado Liberdade”.

Adão teve medo da morte e quis desistir, mas Eva, que era mais inteligente, ficou curiosa sobre a liberdade. Então, o desejo de saber venceu o medo de mudar e eles acabaram comendo da árvore, e se transformando em homem e mulher . Assim, eles não puderam voltar à floresta encantada e tiveram que viver no sertão para sempre, Adão com vergonha e Eva com culpa, lembrando do paraíso perdido.

A Arca de Noé

No sertão, os homens, filhos de Adão, apesar das terríveis doenças invocadas pelos animais, não se arrependeram de seus atos e seguiram em sua história de destruição da terra e de maldade consigo mesmo. Um dia, um homem, de nome Noé, dormiu e sonhou com a árvore do bem e do mal, a jurema preta no centro do grande sertão. No sonho, havia uma escada por dentro da árvore que subia para o céu e descia até o inferno, com dez andares diferentes em que viviam diferentes criaturas. Noé foi subindo, subindo pela árvore como se ela fosse uma escada. Os andares eram como se fossem galhos da árvore e salões de um grande palácio ao mesmo tempo. Primeiro, Noé encontrou os demônios dos quatro elementos: Belzebu da terra, Asmodeu do ar, Satã da água e Satanás do fogo. Depois encontrou os arcanjos cardeais: Ariel do norte, Rafael do oeste, Gabriel do sul e Miguel do leste. Até que no nono galho da árvore sagrada, na ante-sala do salão principal do palácio, Noé encontrou Enoch, sentado no trono que um dia foi do príncipe Lúcifer.

- Olá, Noé! – disse o Guardião do Limiar.

- Você me conhece?

- Sim, eu sou Enoch, seu primo, que subi aos céus interiores e estou sentado Nono Trono do Universo, à direita da Luz Eterna, a porta para o Nada Infinito. Quando cheguei aqui, o lugar estava vago e eu acabei ficando com medo de cruzar a última porta e desaparecer para sempre.

- E eu, o que estou fazendo aqui?

- Você está aqui porque vai haver um grande dilúvio e toda terra ficará inundada. E para que haja sobreviventes, você vai ter que construir uma grande arca de madeira com as juremas-pretas daqui, com dez compartimentos grandes, com essa árvore do sonho e coloque um casal de animais mágicos em cada um – disse Enoch, acrescentando - Mas, não deixe, em hipótese alguma, que os animais confinados se alimentem da madeira da arca porque ela se transformará em uma nave espacial e vocês poderão viajar sem retorno por muitos universos paralelos. Enoch, então, enumerou os animais mágicos que eram necessários e como fazer para chamá-los. E quando Noé acordou do sonho no meio do juremal, começou a providenciar a Arca e os animais para enfrentar o dilúvio.

Moises

Durante o grande dilúvio, a arca de Nóe navegou a deriva durante 40 dias e 40 noites. Nela, os dez casais de animais mágicos eram alimentados por Noé e seus filhos. Todos os dias, ele lembrava da recomendação a todos de que ninguém poderia comer da madeira da arca, sob pena de não voltarem ao mundo após o dilúvio. E como tudo que é proibido, tem um sabor especial; alguém as alimentou da madeira e desencadeou uma viagem transdimencional da arca por vários mundos durante 40 anos. Alguns homens conseguiram se salvar. Algum tempo depois das águas baixarem, um garoto chamado Moises foi brincar perto do juremal do sertão habitado pelos seres humanos e encontrou uma pequena arca de madeira talhada. “Um navio de brinquedo” pensou. Noé finalmente tinha conseguido chegar, mas todos os viajantes da Arca haviam encolhido.

Moises resolveu levar a Arca consigo, “mas antes preciso limpa-la”. E como ela estivesse bem acabada, ele acabou com uma farta no dedo, fazendo com o espírito da Árvore do Bem e do Mal penetrasse em sua alma e ele entrasse em transe profundo. Moises fez então uma viagem semelhante ao sonho de Noé, subindo pelos dez estágios da árvore e conhecendo seus habitantes, os animais aprisionados na Arca. E, quando chegou à décima porta, Moises viu a Luz, sentiu seu silêncio e perguntou:

- Quem é você?

- Eu sou aquele que é – respondeu Jeovah - Eu sou eu e sou um grande vazio. Sou a Luz Eterna, única e universal, por isso, não tenha outros deuses senão Eu. Sou a Força sem Forma, por isso não faças imagens de mim, nem invoque meu nome em vão.

- Sou a Bondade e a Disciplina, santifica o sétimo dia e honra teu pai e tua mãe. Eu sou o Amor e por mim não matarás. Eu sou a Beleza e por mim não trairás. Eu sou o Saber que não pode ser furtado. Eu sou a Vida, pela qual não darás falso testemunho contra o teu próximo. Eu sou o Poder para o qual não há cobiça - concluiu.

Moises ouviu tudo aquilo e entendeu que a arca era a morada daquele espírito, que cada um de seus dez compartimentos representa uma lei para os que desejam subir através da Arvore do Conhecimento do Bem e do Mal. E quando acordou no sonho fantástico induzido pela jurema, Moises correu para mostrar aos outros, sua arca e suas dez leis.

Davi e Salomão

Certo dia, príncipe Salomão pediu ao seu pai, o rei Davi, um exemplo simples da inter-relação de todas as coisas. O rei sábio esperou o anoitecer e levou o príncipe a um salão térreo do grande Templo, cujas paredes, o teto e o chão estavam inteiramente cobertos por espelhos. Davi, então, acendeu uma vela no centro do aposento e a luz da chama se refletiu até o infinito. Depois mostrou a Salomão um diamante e perguntou o que ele via refletido em uma de suas faces.

- Cada mínima parcela da diversidade do universo é um reflexo particular da unidade que engloba todas as coisas - explicou o rei sábio.

- O Um no Todo, o Todo no Um: Um no um, Todo em todos - recitou o jovem, feliz por afinal ter entendido o significado da frase.

- Tenha calma, príncipe! Hoje você entendeu o que é o infinito. Para compreender a eternidade é necessário subir os nove pisos do Templo até onde está guardada a arca de nossos ancestrais - disse Davi, acrescentando - porque os reflexos fixos da luz da vela são incapazes de representar o movimento perpétuo e multidimensional do universo.

- E o diamante? Qual seu significado? – perguntou Salomão.

- Da mesma forma que, em cima há o céu, embaixo há a terra. Há o Templo e a Arca. Os mundos estão uns dentro dos outros, como as cascas de uma cebola – explicou o rei pastor, continuando - O homem se reencontra no universo olhando para dentro de si.

- Não entendi nada – reclamou Salomão – Não somos apenas um bicho mais inteligente entre outros bichos?

- Não, Salomão, nós somos as testemunhas através dos quais a Árvore da Vida adquire consciência de si – continuou o rei Davi - através de nossos olhos o universo se percebe a si mesmo. Somos seres percebedores. Ou fomos ...

- Não somos mais? – indagou o príncipe curioso.

- Na Arca está o livro com a história de nossos antepassados. Você conhece as estórias: como Adão e Eva perderam o acesso à Árvore da Vida por provar da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, como Noé se perdeu nos tempos e como Moisés redescobriu o caminho de retorno ao sagrado ...

- Mas, como iremos voltar à Árvore da Vida e à Floresta Encantada se ainda estamos prisioneiros da maldição da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal? – questionou Salomão, indignado - Porque veneramos a Arca da Aliança se estamos presos para sempre dentro dela?

- “Para sempre” não – corrigiu o rei Davi – até o fim dos tempos, quando a Arca se transformar em uma cidade celestial e quando o espírito da verdade que habita no Sol retornar ao trono de nossos corações.

- O “retorno do Messias” – zombou Salomão.

- Neste dia – concluiu o rei - o nosso corpo será nosso templo, puro como esse diamante. E poderemos voltar a viver na floresta a céu aberto.


A estória da Imperatriz

Era uma vez, em um dos reinos interiores distantes do qual não há mais memória, um grande Mago (01). Quando abria mão esquerda para cima e sua mão direita para baixo, ele canalizava um grande poder e unia o céu à terra e, a partir desta unidade, governava os quatro elementos: a terra, a água, o ar e o fogo que repousam sobre uma mesa. Também havia nesse reino distante uma Sacerdotisa (02) da Lua, filha da Grande Deusa, reflexo e espelho do universo, serva e senhora das águas e da vida, dos Encantos do Amor e dos Encantamentos do Desejo. Ela lê o livro da Gnose e é coroada por uma lua crescente de prata.

Fruto do encontro sagrado deste casal, nasceu uma bela Imperatriz (03), exuberante como a própria natureza em festa durante a primavera. Mas, como neste reino distante, não era permitido crianças, a princesa foi levada aos mundos exteriores, onde foi adotada por um poderoso Imperador (04). Ele era um homem bondoso e gostava da princesinha, mas vivia voltado para o trabalho de administração das terras do seu reino. E quando suas ordens e determinações não eram obedecidas, ele ficava bastante chateado.

Ao completar quinze anos, a bela princesa, no entanto, quis saber quem realmente era ela e decidiu ir buscar suas origens. Tentou primeiro ter com o Papa (05) e dedicar-se à religião. Porém, diante de tantos dogmas, rituais, exigências devocionais e percebendo que com tantos detalhes e regras o essencial era deixado de lado, a princesa desistiu.

Na família real, a princesa tinha dois irmãos, filhos legítimos do rei: o primeiro príncipe era poeta, músico e boêmio. Um verdadeiro Enamorado (06) pela vida. Mas, como tinha muitas amantes (nas cartas do baralho de Marselha é representado por um homem dividido entre dois amores, uma mulher mais velha e outra mais jovem), ele vivia indeciso sobre o que realmente queria e levava sua vida irresponsavelmente. Era prisioneiro da própria liberdade e não soube dizer à princesa quem ela era.

O segundo principe era um guerreiro, que dividia sem tempo entre vários esportes e as corridas de Carro (07). Firme, decidido e corajoso – ele possuía todas as qualidades que faltava ao primeiro príncipe. Mas, em compensação, tudo que o primeiro tinha de positivo – a amabilidade, o bom gosto, a compreensão – também lhe faltava, pois era rude e insensível. Sempre dedicado a combates, desafios e competições, também não soube dizer à princesa quem ela era e onde estavam seus pais verdadeiros.

Vendo que seus irmãos não poderiam ajudá-la, a princesa continuou sua busca. Resolveu, então, procurar a Justiça (08), pois achava que tinha direito de saber sua origem. A advogada da Verdade, que não era cega nem usava venda nos olhos, mas tinha sua espada na mão direita e a balança na esquerda, examinou o passado da Imperatriz, pesando suas culpas e méritos. Então, encaminhou a princesa ao um velho sábio, que vivia isolado, morando em cavernas nas montanhas altas e distantes, que existia desde inícios dos tempos e sabia de todas as coisas.

A princesa, então, foi em busca do Eremita (09). O velho sábio ouviu a pobre princesa, consultou o oráculo da luz interior e disse: “Antes de descobrir que você é e quem são seus pais, deve enfrentar sete provas místicas, sete mistérios que se não forem descifrados implicarão em grandes desgraças.” A princesa, mesmo temerosa dos castigos decorrentes de um possível fracasso, concordou em passar pelas sete provas.

Então, o eremita disse: “Que gire a Roda da Fortuna (10)! Que as sete forças formadoras primordiais despertem a Imperatriz de seu sonho encantado no universo material! Que as sete formas de potência se manifestem sua luz eterna sob o véu dos mundos passageiros, ligando novamente, mais uma vez, o céu à terra nesse momento.” E nesse instante, todas as coisas começaram a girar em torno da princesa, que caiu em transe profundo e sereno, adormecendo imediatamente.

Quando a princesa acordou, estava deitada sobre uma gigantesca fera, um leão adormecido. Percebeu que, não apenas qualquer tentativa de fuga, mas que qualquer movimento mais brusco, seria fatal, pois o animal assustado a atacaria imediatamente. Começou, então, a afagar a juba da fera, lenta e carinhosamente. O animal selvagem mas sensível aquele toque gentil, foi acordando aos poucos, mas, ao invés, de reagir de forma agressiva e violenta, retribuiu as carícias da princesa, lambendo-lhes aos mãos. E assim, a princesa venceu a prova da Força (11).

Imediatamente, a princesa foi transportada para uma outra situação e se encontrou de cabeça para baixo, com as mãos amarradas e o pé direito preso por uma corda de caída do céu infinito. Não havia mais ninguém na cena. Ao contrário, a princesa se sentiu abandonada a própria sorte, consciente de sua finitude diante do mundo cruel e foi abatida por um forte sentimento de constrangimento e de autopiedade. A princesa, no entanto, estava a poucos centímetros do solo, com suas mãos quase tocando o chão e as moedas que caíram de seus bolsos (que significa perdas). A princesa chorou, chorou, chorou. Porém, após algum tempo, a princesa decidiu adaptar-se à situação e às suas restrições, ao invés de se entregar ao sofrimento e a autocomiseração, se entregou de boa vontade em sacrifico e renunciando a qualquer esperança: ficaria ali contrita e consciente. E assim, a princesa descobriu o significado da humildade e venceu a prova do Enforcado (12).

Em seguida, a princesa foi transportada para outro lugar, onde havia montanhas de corpos mortos, esquartejados e decapitados. Montada em um cavalo branco, com um longo manto negro e uma grande foice, uma grande caveira andava por sobre os corpos dizendo: “Chegou a hora”. Primeiro, a princesa tentou fugir. Mas, em todo canto em que se encondia, em todo lugar para onde corria, o esqueleto com seu cavalo e sua foice surgia e falava: “Chegou sua hora, vem te buscar”. Por um momento, a princesa pensou em negociar: “Deixe-me terminar as sete provas antes, depois irei com você”. Mas, após um momento de tristeza, ela aceitou que tudo era passageiro e que não devia se apegar a nada. Então, a morte parou a perseguição e disse: “Aos que me aceitam e não me temem, sempre concedo a dádiva da mudança e da transformação”. E assim, a princesa venceu a prova da Morte (13) e seguiu adiante.

E em seguida, a princesa foi transportada para outra prova. Agora ela se encontrava diante de um anjo gigante, meio vermelho, meio azul. O anjo manejava dois cálices enormes – um de prata e outro de ouro – vertendo um líquido luminoso de um recipiente para o outro, de forma cadenciada e ritmada. Olhando aquele movimento, a princesa entendeu que o anjo trabalhava a reversibilidade de todos os processos, compensando e invertendo o fluxo de energia vital de cada acontecimento; e ficou maravilhada com aquele movimento lento e hipnótico. Aos poucos, aquela alternância de aspectos opostos tornou-se automática e um grande sono começou a se apossar da princesa. Ela se lembrou, que, as vezes, o equilíbrio e a moderação são desculpas para inércia e para imobilidade, permanecendo desperta. E assim, a princesa venceu a prova da Temperança (14).

O anjo gigantesco se transformou em Diabo, com uma espada na mão esquerda e, na direita, homens e mulheres acorrentados. Sua imagem despertava paixão e violência. Assustada, a princesa sentiu medo e o poder diabólico tornou-se ainda maior. E quanto mais a princesa temia o mal que sentia dentro e próximo a si, maior era realmente o perigo e a ameaça. Em um minuto mágico, em que o tempo se suspende, a princesa teve coragem. E percebeu que a falta de medo atingiu o mal, diminuindo-o. Então, respirou fundo e decidiu enfrentar todos os seus medos, inclusive o medo de se reconhecer instinto, como um animal com seus desejos e necessidades. O mal começou a diminuir até desaparecer de vez. E assim, a princesa venceu a prova do Diabo (15).

Então, a princesa começou a cair em um abismo vertiginoso, cujo fundo parecia muito distante. Caindo (de uma altíssima torre atingida por raios em meio a uma tempestade) em um espaço sem fim. Ela já havia se entregue ao destino em sacrifício na prova do enforcado, já havia aceito a impermanência na prova da morte, já não tinha mais medo pois havia enfrentado e vencido o mal na prova do diabo, mas a entrega, a aceitação e a coragem não eram suficientes para que ela conseguisse superar o desespero daquela queda livre no vazio. Pensou em focar a atenção nas mãos. Ao se concentrar para sentir as próprias mãos, a princesa ascendeu mais um nível de consciência, a auto-percepção de si. E, assim, venceu a prova da Torre (16).

Acordou agora em uma linda ilha paradisíaca. Sob o céu azul estrelado, a mata virgem, cor de verde cintilante, era embalada pelo vento calmo, vindo do mar. A princesa sentou-se nua a beira das águas de um riacho doce, banhando seus pés cansados pela jornada e suspirou: “Que beleza! Poderia passar o resto dos meus dias nesse paraíso!” Mas, a verdadeira felicidade não é feita de ilusão e a princesa se lembrou de que aquele conforto e aquela beleza a estavam desviando de sua meta de se conhecer e encontrar sua origem. E assim, a princesa venceu seu sétimo e último desafio: a prova da Estrela (17).

Emergindo da noite escura da alma, surgiu um caminho estreito por entre desfiladeiros e duas torres gêmeas ao fundo, guardado por um escaravelho dourado. Choviam lágrimas de sangue e um cachorro e um lobo uivavam para lua. As sete provas foram vencidas, os sete mistérios foram decifrados, os sete desafios foram vividos. Então, a princesa escutou uma voz rompendo os céus: “Sua mãe é a Lua (18) e seu pai é o Sol (19)”. O centro luminoso do ser, o Self, foi alcançado e vivido como uma festa de luz e calor.

Os anjos soaram suas trombetas e os mortos saíram de seus túmulos, o Dia do Juízo Final é a separação do joio do trigo, a ressurreição e o Julgamento (20). A princesa chega ao seu lar, a sua terra natal, o reino mágico em que nasceu e reencontra seus pais verdadeiros, toda sua família, além de outras princesas e príncipes renascidos de diferentes mundos e dimensões. Todos cantam louvando ao Deus Imanifesto e à Nova Jerusalém, a cidade celeste, a comunhão dos renascidos.

A estória da Imperatriz termina com ela dançando, entre os quatro animais sagrados que existem nos cantos do Mundo (21): o touro, o leão, a águia e o anjo. Ela decifrou o enigma da Esfinge, revelou e relevou o mistério do Apocalipse. Mergulhou na escuridão da matéria, no sonho obscuro dos tempos; e renasceu novamente para vida eterna, após vencer as sete provas dos mundos passageiros.

E, só para registrar: foi O Louco (00) quem me contou essa estória.

Devas x Asuras

Tudo era impermanente e passageiro no Cosmo, apenas Visnhu e Shiva criavam e destruindo universos, reencarnado em sucessivas vidas nos mundos provisórios como uma linha em um colar de contas. A rainha Lakshmi, consorte de Visnhu, deu ao deus Indra, líder dos Devas, habitantes de um desses mundos efêmeros, o sangue do conhecimento do seu próprio corpo: a Ayahuasca ou Soma , a bebida sagrada que concedia a vida eterna.

Agradecido pela imortalidade, Indra levou a bebida sagrada para outros seus irmãos, pensando em assim expandir e perpetuar a Criação da eternidade diante do tempo e tornou-se então se tornou o rei dos Devas, uma raça de deuses voltados para o governo dos mundos criados, destruídos e contemplados pela tríade primordial.

Havia também, nessa época imemorial, uma raça de largatos-demônios, os Asuras, que também receberam o Soma, o néctar da imortalidade, da grande deusa Lakshmi. Só que os Asuras não puderam se beneficiar do líquido já que este só tem efeito quando é oferecido para outro ser. Quando é ingerido pela própria pessoa ele perde seu poder de vencer a morte. Portanto, os demônios, que eram incapazes de um gesto de compaixão, não se beneficiaram da bebida. Já os Devas, por sua vez, pela gentileza e generosidade que possuíam em seus corações, serviram a bebida uns aos outros e se tornaram anjos.

Desencadeou-se então uma grande guerra entre os Devas e os Asuras, guerra essa que se estende até os nossos dias.

Segundo alguns houve uma traição, a chamada ‘rebelião luciférica’, de um grupo de Devas que trocou de lado e levou a bebida sagrada aos homens dos mundos inferiores, que até então serviam de alimento aos demônios Asura, devoradores de almas. Outras versões, no entanto, dizem que se tratava de uma estratégia dos Devas, que acreditavam que os homens seriam capazes de se eternizar e de, indiretamente, dominar seus dominadores.

A lenda da cocaína


Quando o Imperador Inca Huayna Capac pressentiu que chegava a hora de sua morte, chamou seus filhos, Atahualpa e Huascar, para se despedir, dividir seu reino entre eles e pedir que apoiassem um ao outro. Atahualpa ficaria com as terras do norte (hoje a cidade de Quito, no Equador); Huascar, com as ao sul e a capital Inca, Cuzco. Ambos deveriam reinar como os deuses gêmeos Inti (o Sol) e Kilya (a Lua). Na ocasião, Huayna Capac, para selar essa aliança, serviu aos seus filhos um cálice da bebida sagrada Ayahuasca e pediu que eles aguardassem as revelações que o grande espírito traria através dela.

Ao tomar a bebida, Atahualpa viu a serpente emplumada, Viracocha , saindo de dentro do Sol e do Mar. Para ele, era o retorno do deus criador no final dos tempos, o Pachacúti, o Apocalipse Inca. Huascar teve a visão de um navio estranho chegando ao poente, com um homem sanguinário vestindo uma armadura prateada com um pluma em seu capacete. Ao final do transe, cada um contou sua visão ao pai, que disse: “Vocês tiveram a mesma visão, mas cada um interpretou-a de um modo”.

Depois da morte de Huayna Capac, no entanto, os dois meio-irmãos se desentenderam e entraram em guerra. Huascar recorreu novamente à Ayahuasca e teve a mesma visão, acrescida de mais detalhes: o homem barbudo de roupa prateada e pena na cabeça chegava comandando um grande massacre e destruindo o Império Inca. Ainda em transe, Huascar perguntou à divindade a causa daquela desgraça. “O povo Inca ao invés de amar o Sol e a Lua, amava o ouro e prata.” Inconformado, o príncipe Inca clamou por misericórdia: “Nem todos amam a matéria”. Ao que o espírito da Ayahuasca respondeu: “Esconda o tesouro dos Incas no lago Titicaca e suba com a classe sacerdotal e todos que amam o espírito para Machu Picchu, no alto das montanhas, que se passarão várias gerações sem que os homens barbudos descubram os sobreviventes incas”.

Huascar agradeceu e prometeu seguir fielmente as instruções do grande Espírito da bebida sagrada, no entanto, em seu coração ele não aceitou o fim do seu mundo e antes de voltar ao estado de consciência normal ele pediu, ainda em transe, uma reparação contra aquela injustiça.

Porém, logo após esconder o tesouro inca e despachar os sacerdotes para as montanhas, Huascar foi preso pelas tropas de seu meio-irmão.

Voltando para Cuzco, para tomar posse do trono que conquistara, Atahualpa parou na cidade andina de Cajamarca, conduzindo um exército de cerca de 80.000 guerreiros, quando viu a chegada do conquistador espanhol Francisco Pizarro, lembrando-se na visão de que havia tido com a bebida sagrada.

Atahualpa recebeu Pizarro como um deus, sendo traído e aprisionado pelo espanhol, no dia 16 de novembro de 1532. E o poderoso Império Inca foi derrubado por menos de duzentos homens e vinte e sete cavalos.

Naquela mesma noite, em grande agonia, Huascar teve um sonho em sua cela na prisão, em que se encontra com o próprio Inti, o deus Sol.

- Oh, meu Pai, conceda-nos a vitória de meu povo e a expulsão dos invasores – suplicou o príncipe Inca.

- O que você me pede é impossível. O destino de Atahualpa e dos adoradores de metal está selado. Porém, gostaria de conceder-lhe uma graça.

Huascar pediu um conforto que os ajudasse a suportar a escravidão e a vida dura que os esperava. O deus Sol lhe mostrou a planta de coca e disse:

- Diga a seu povo para cultivar essa planta com carinho e colher suas folhas. Após secas, as folhas devem ser mascadas para que seu suco alivie seu sofrimento. Quando se sentirem exaustos de seu destino essa planta lhes dará nova vitalidade. Em suas jornadas através de terras altas, a coca irá aliviar sua fome e frio, tornando a viagem mais tolerável. Nas minas onde serão forçados a trabalhar, o terror e a escuridão dos túneis serão insuportáveis sem a ajuda desta planta.

- Porém, enquanto essa planta significará força, saúde e vida para seu povo, ela será maldição para os estrangeiros. Quando eles tentarem explorar suas virtudes, a coca irá destruí-los. O que para seu povo servirá de ‘alimento’, para os invasores será um perigo veneno. A coca é uma das defesas da Grande Floresta, que destroem todos aqueles que tentarem devastá-la.