domingo, 30 de novembro de 2014

As Relações Elementais



1. Ciência + Tradição
Lévi-Strauss (1976) afirma que o pensamento selvagem classifica as coisas (cores, sons, cheiros, animais, datas, pessoas) segundo critérios subjetivos derivados de experiências sensoriais; em oposição ao pensamento científico domesticado, que classifica o mundo segundo critérios objetivos universais.
Viveiros de Castro (2001) nos alerta que o pensamento selvagem de Strauss não é o pensamento dos selvagens, mas sim o pensamento em estado selvagem, ainda não domesticado. Ele não é incompatível com o pensamento científico. O pensamento selvagem se refere a propriedades sensíveis; o pensamento científico se refere às propriedades abstratas. 
Para o conhecimento científico atual, o Fogo é uma reação química; a Água, um fluído universal; o Ar, um gás raro e rarefeito; e a Terra, um sistema biológico. Com a física relativista, o tempo se tornou uma dimensão do espaço. E com a física quântica, a matéria passou a ser compreendida como uma forma de energia.
Sendo assim, se estivermos em um universo eletromagnético, como acredita a física atual, pode-se pensar que o polo elétrico corresponde ao Fogo e é ativo; enquanto o polo magnético é receptivo e corresponde ao elemento Terra. O Ar e Água, nesse caso, seriam elementos intermediários e condutores de eletricidade e magnetismo. Além disso, grosso modo, o Fogo corresponde ao Nitrogênio; a Água ao Hidrogênio; o Ar ao Oxigênio; e a Terra ao Carbono. A polaridade Fogo-Terra, assim, equivale às trocas químicas entre a vida orgânica (carbono) e a existência inorgânica (nitrogênio). E muitas versões mitológicas e esotéricas subdividem o elemento Terra em reinos (animal, vegetal e mineral) em função do desenvolvimento e da complexidade do carbono – e de sua interação com o hidrogênio e com oxigênio. Portanto, é possível pensar sobre os quatro elementos dentro de um quadro de referências objetivas.
Mais recentemente começou-se a falar em biosfera, hidrosfera, atmosfera e ... ‘noosfera’ (o mundo das ideias) – termo criado por Teilhard de Chardin e popularizado atualmente por Edgar Morin. Mas, as ideias são apenas unidades subjetivas (devaneios cristalizados) de frequências vibratórias acústicas e luminosas, de ondas elétricas do elemento Fogo. O termo ‘ionosfera’, por sua vez, enfocando apenas o aspecto externo do universo elétrico, exclui o homem das trocas ambientais entre os elementos, ignorando seu papel determinante no jogo de construção do mundo material.
 Por outro lado, há vários esoterismos (a Cabala, a Rosacruz, a Teosofia, a Antroposofia), que entendem o universo como um processo de involução (ou criação) progressiva de quatro estágios/mundos: as idades da terra (planeta). Nessas concepções, os quatro elementos representam a presença de três desses estágios anteriores no interior do presente mundo material. Assim, primeiro houve a era do ouro e do fogo celeste, depois a era de prata e da água divina; a era do cobre e do ar cósmico; e agora, o mais denso dos tempos, o kali-yuga, a era do ferro e da matéria formado pelos quatro elementos. Cada estágio/universo de desenvolvimento do planeta corresponde também a um 'corpo'. Assim, temos uma centelha divina no mundo arquetípico das emanações; uma alma que habita o mundo espiritual da criação e dos sonhos; uma mente operando no astral inferior; e um corpo na matéria.
2. Relacionando os elementos

NOOSFERA
Fogo exterior
HIDROSFERA
Água exterior
ATMOSFERA
Ar exterior
BIOSFERA
Terra exterior
ESPÍRITO
Fogo interior
REI DE PAUS
FOGO PURO
DAMA DE PAUS
Água dentro de fogo
O CALOR
CAVALEIRO DE PAUS
Ar dentro de fogo
A LUZ
SERVO DE PAUS
Terra dentro do fogo
A VIDA
ALMA
Água interior
REI DE COPAS
Fogo dentro de Água
O SONHAR
DAMA DE COPAS
ÁGUA PURA
CAVALEIRO DE COPAS
Ar dentro da Água
IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA
SERVO DE COPAS
Terra dentro da Água
A SENSIBILIDADE
MENTE
Ar interior
REI DE ESPADAS
Fogo dentro de Ar
O ARQUÉTIPO
DAMA DE ESPADAS
A Água dentro de Ar
IMAGINAÇÃO FORMAL
CAVALEIRO DE ESPADAS
AR PURO
SERVO DE ESPADAS
Terra dentro de Ar
A LINGUAGEM
CORPO
Terra interior
REI DE OUROS
Fogo dentro de Terra
O PODER
DAMA DE OURO
Água dentro da Terra
A RIQUEZA
CAVALEIRO DE OUROS
Ar dentro da Terra
O TRABALHO
SERVO DE OUROS:
TERRA PURA
Propomos aqui um exercício teórico-poético, com o objetivo de investigar através da imaginação simbólica as relações dos quatro elementos entre si – tendo como referência as 16 cartas figuradas dos Arcanos Menores do Tarô: os naipes correspondem às esferas elementais (Paus = Noosfera, Copas = hidrosfera, Espadas = Atmosfera e Ouros = Biosfera); enquanto as figuras são associadas ao microcósmico (Rei = Espírito, Dama = Alma, Cavaleiro = Mente e Pajem = Corpo).
Assim, no Naipe de Paus (a noosfera/ionosfera), encontramos quatro manifestações do elemento Fogo: O Rei de Paus, representando o elemento puro; A Dama de Paus (a Água dentro do Fogo) associada à ideia de Calor; O Cavaleiro de Paus (o Ar dentro do Fogo) representação da Luz; e o Servo de Paus (Terra dentro do Fogo) simbolizando a Vida.
O elemento Água no interior do universo ígneo se evapora em ondas de vapor úmido. É um fogo que queima e se alastra. Não é apenas um calor térmico, é também pressão, expansão. A alma sua memória purifica no espírito: a água quando se evapora, se destila, eliminando suas impurezas[1]. Por isso, também corresponde à qualidade psicológica da sublimação. Essa relação corresponde ao fogo dinâmico, contínuo e ao signo astrológico de Áries. Já o elemento Ar dentro da noosfera corresponde ao signo astrológico de Leão, ao Fogo fixo, estático e extático: a luz. Em várias mitologias, há uma oposição nítida entre o fogo que queima e o que ilumina, entre o fogo sexual e o espiritual. Essa oposição, no entanto, é equilibrada pelo Fogo mutável, a Terra dentro do Fogo, a vida, que corresponde ao signo astrológico de Sagitário, representado por Centauro, cuja parte inferior (o cavalo) corresponde ao fogo animal dos desejos e a parte superior (o guerreiro com arco e flecha), ao fogo espiritual.
Também se podem ver as três relações do fogo como diferentes tipos de ‘energia’: a vida orgânica produz a energia Chi (ou ki, japonês); a energia inorgânica (dos diferentes aspectos da natureza) é o Axé; e a energia das estrelas é o prana (ou reiki), a energia quântica. Nessa analogia, a energia das estrelas é a luz (fogo fixo); o axé corresponde ao calor (fogo dinâmico); e a energia orgânica, à vida (fogo mutável).
As águas seguem um ciclo bem conhecido: elas caem dos céus como sonhos (a água dinâmica, o signo de Câncer); escorrem pelos rios como a imaginação (a água mutável, Peixes); e desaguam no mar de emoções (a água fixa, Escorpião) e, após salgadas, novamente evaporarem pela ação do sol. Impossível não lembrar as deusas nagôs Yansã, Oxum e Yemanjá – adotadas pelo candomblé brasileiro.
Eliade demonstra (1992, 153-174), a universalidade da relação entre o simbolismo da água com a Lua e com o feminino. No esoterismo em geral, o simbolismo das águas está associado ao universo da emoção e dos sentimentos. O Rei de Copas, representando o elemento Fogo dentro deste mundo emocional, o espírito dentro da alma, nos evoca a noção de Sonhar, de um corpo astral através do qual a consciência navega em outros universos. A Dama de Copas corresponde ao elemento Água puro. O Cavaleiro de Copas, o Ar (a mente) no interior do universo emocional é uma representação da Imaginação Simbólica. O símbolo do espelho (GOMES, 2010, 21-46) também participa deste complexo de imagens. E, finalmente, o Servo de Copas, a terra dentro da água, nos lembra do sal e da Sensibilidade, o aspecto sensorial do universo afetivo.
O naipe de espadas simboliza o universo mental, onde encontramos o ar fixo em relação com o fogo, o signo de Aquário; o ar mutável (Gêmeos), em relação com a água; e o ar dinâmico (Libra), em relação com o elemento terra. O Rei de Espadas, representando a presença do espírito dentro da mente, nos remete à noção de Arquétipo e às imagens de relâmpagos e descargas elétricas no céu. A Dama de Espadas, a alma dentro da mente, nos faz lembrar a imagem de uma gota de orvalho e nos remete à ideia de Imaginação formal, da formalização dos sentimentos. O Cavaleiro de Espadas representa o elemento Ar em seu estado puro. E o Servo de Espadas, a Terra dentro do Ar, é a Linguagem, a materialização do pensamento.
O Rei de Ouros, fogo dentro do mundo material, a terra Dinâmico (Capricórnio) é representado pelas imagens vulcânicas da terra ctônica, pelos metais, pedras preciosas e pela ideia de Poder. Poder não no sentido de dominação do outro, mas sim de capacidade imanente de fazer. A Dama de Ouros, a água dentro da biosfera, corresponde à terra mutável (Virgem), à ideia de Riqueza e às imagens de solos argilosos e férteis. Riqueza não no sentido de acumulação de bens materiais, mas sim de variedade e complexidade de recursos. O Cavaleiro de Ouros, o ar dentro da matéria, a terra fixa (Touro) representa a ideia de Trabalho e das imagens de pedras sólidas e solos arenosos. Trabalho não só no sentido de atividade transformadora do mundo material, mas também no sentido de ser transformada por essa mesma mudança. E o Servo de Ouros simboliza o elemento Terra puro.
Assim, na biosfera, o poder (fogo imanente de uma terra constante) está em oposição ao trabalho (o ar em movimento em torno da terra fixa, o planeta). O resultado é a riqueza, a fertilidade e a abundância.
Ao estudar as relações elementais, abordaram-se os quatro elementos em séries de três, observando como cada elemento atua dentro de um único elemento de modo dinâmico, fixo e mutável. Pode-se também tomar os elementos por colunas, investigando como um mesmo elemento atua no interior dos outros três.
O elemento Fogo dentro da esfera das emoções se manifesta como Sonho, no interior do plano mental como Arquétipo e dentro da matéria como Poder. A Água no interior da esfera espiritual é Sublimação; dentro da mental, Imaginação; e nas entranhas da matéria, Riqueza. O elemento Ar na esfera espiritual explode em Luz; na esfera emocional se vê em um Espelho Simbólico; e dentro da esfera material, trabalha. A Terra no interior do plano espiritual é Vida, dentro do plano emocional, Sensibilidade; e no interior do plano mental, Linguagem.
3. Arranjos simbólicos conceituais
Bem estabelecido esses conceitos, vários arranjos simbólicos podem ser desenvolvidos em devaneios poéticos. A sequência dos signos das constelações do zodíaco astrológico, por exemplo, nos mostra os conceitos simbólicos embutidos na passagem do ano.
O Calor (o fogo cinético) é necessário para a arrancada dos começos, no equinócio da primavera; que se perpetua através do Trabalho (a terra estática) em abril e maio; estabelece-se então uma Linguagem (o ar mutável) comum no solstício de inverno; que nos permite Sonhar (a água dinâmica) em julho. A simplicidade majestosa da Luz (o fogo fixo) de agosto contrasta com a multiplicidade e com a complexidade da Riqueza (a terra mutável). No outono, a imaginação Formal (o ar cinético) tenta uniformizar as coisas, criando padrões e modelos; mas consegue apenas uma explosão de Sensibilidade (a água fixa) em novembro. Então, no final do ano a Vida (o fogo mutável) é combustível do Poder (a terra cinética) que tenta perpetuá-la, através do Arquétipo (o ar fixo) e da Imaginação Simbólica (a água mutável).
Ou ainda se colocarmos os signos zodiacais em pares opostos (180º): O Calor deseja incendiar os padrões da Imaginação Formal que a aprisiona; o Trabalho forma e é formatado pela Sensibilidade; a Linguagem imita a Vida que também a imita; Sonho e Poder brigam apaixonadamente; a Luz emana o Arquétipo que a protege; e a Riqueza e a Imaginação Simbólica travam uma luta silenciosa na construção dos valores.
Mas os arranjos de símbolos mais significativos são os que combinamos conceitos dos mesmos elementos.
O caráter oposto e complementar entre a Imaginação Simbólica (a mente no plano emocional) e a Imaginação Formal (a alma no plano mental) fica então bem definido. Enquanto a primeira pode ser representada pela bolha da percepção, a última lembra uma gota de orvalho em queda livre. A Imaginação Formal produz sentido dinamizando Arquétipos, enquanto a Imaginação Simbólica produz Sensibilidade a partir dos Sonhos.
A relação do Trabalho (a mente dentro do plano material) com a Linguagem (o corpo no interior do plano mental) também formam contradições de simetria invertida, as duas atividades combinam ar e terra em dinamizações diferentes, sendo que, no Trabalho, o labor corporal está inteligentemente orientado e, na Linguagem, a cognição se esforça dar sentido ao concreto.
O mesmo acontece na relação do Sonhar (o espírito dentro do plano emocional) com o Calor/sublimação (a alma no interior do plano espiritual): no sonho, o espírito navega em um mar de emoções; na sublimação, a alma destila suas dores no inferno/paraíso. E a relação da Sensibilidade (o corpo dentro da esfera emocional) com a Riqueza (o coração no interior do plano material) retrata a simetria invertida entre os elementos Terra e Água, representando a consciência de nossa finitude diante da grandeza do universo; o aprendizado afetivo de aceitação do mundo. As relações do Arquétipo (o espírito dentro do plano mental) com a Luz (a mente no interior do plano espiritual) e da Vida (o corpo dentro do plano espiritual) com o Poder (o espírito no interior do plano material), além de formarem contradições de simetria invertida como as outras quatro acima, também são opostos zodiacais e se constituem como arranjos simbólicos conceituais bastante significativos.
A relação do conceito simbólico ‘Arquétipo’ com a noção de ‘Luz’ representa a simetria invertida dos elementos Fogo e Ar. Os Arquétipos se assemelham às brasas e a fumaça, formas que emergem rapidamente das brasas. São imagens passageiras. Já a Luz é eterna, fixa, estática e apolar. A mente é apenas o ambiente em que ela se perpetua. Tratamos dessa relação mais adiante, no capítulo intitulado Estudos Cabalísticos. E a relação entre os conceitos simbólicos Vida e Poder expressa a simetria invertida mais importante de todas, a dos elementos Terra e Fogo. O Poder tenta controlar a Vida, mas é eternamente derrotado pela morte. Por outro lado, a vontade de poder é afirmação do desejo de realização aceito em sua fragilidade efêmera. Abordamos a relação entre Poder e Vida no final desse trabalho.
A Terra é o elemento que reúne o maior número de imagens arquetípicas. A rigor, todas as imagens são materiais, mesmo as de movimento e força. E da mesma forma que associamos as três relações elementais ao reino mineral (metal, argila e calcário), também se pode associá-las aos reinos vegetal (os vegetais, os fungos e os corais) e animal (os peixes, as aves e os mamíferos).
Há, no entanto, algumas imagens chave do elemento Terra, imagens de repouso que extrapolam as ideias de acolhimento e proteção - como o útero e o vinho – que também escapam aos arranjos dos conceitos simbólicos simétricos e transbordam a imaginação com outras formas de pensar.


[1] Há também poetas e mitologias que consideram o ‘imaginário do frio’ como sendo uma referência ao mal absoluto e/ou a morte eterna.

Símbolos do repouso da Terra úmida



1. O Vinho do Espírito[1]
Tanto os filósofos quanto os críticos literários ficam bastante desconcertados com o fato de Bachelard gastar uma parte significativa de sua investigação sobre os devaneios de repouso no elemento Terra com o vinho dos alquimistas (1990a).
A transformação da água em vinho tem uma longa tradição poética e esotérica, inclusive na tradição cristã. A taberna mística e os vinhos também. Trata-se de uma imagem da tradição da poesia sufi da Pérsia, presente em vários poemas de Rumi e nos Rubaiyat de Omar Khayyam[2]
Busca a felicidade agora, não sabes de amanhã.
Apanha um grande copo cheio de vinho,
Senta-te ao luar, e pensa:
Talvez amanhã a lua me procure em vão.  (estrofe 5)

Hoje os meus anos reflorescem.
Quero o vinho que me dá calor.
Dizes que é amargo? Vinho!
Que seja amargo, como a vida. (Estrofe 10)

A mesma experiência subjetiva dos versos está presente em outros universos de eventos como, por exemplo, a preparação da Ayahuasca[3], o vinho do espírito (tradução literal do quíchua: aya, 'espírito' e waska, 'vinho'). A Ayahuasca, no entanto, não é um vinho, nem uma bebida fermentada, mas uma dupla cocção do cipó Jagube (Banisteriopsis caapi) e da folha da Rainha (Psycotria viridis). Ela, no entanto, também avinagra em virtude de calor e necessita dos mesmos cuidados dos vinhos e das bebidas fermentadas em geral.
O cipó representa o princípio masculino (a força) e a folha, o princípio feminino (a luz). Por isso, eles são colhidos e preparados separadamente por homens e mulheres em regime ritual. Nesse trabalho de preparação do material, há o desenvolvimento de qualidades intrínsecas a cada gênero. Colher e limpar cada folha exige das mulheres aplicação, constância, delicadeza e atenção; enquanto entoam canções.
Enquanto isso, para tratar e macerar o cipó, os homens exercitam um ritual de força e resistência, onde o mais importante é aprender a trabalhar com inteligência. No ritual masculino denominado de ‘batição’, o cipó é macerado com marretas de madeira, com todos cantando e batendo no mesmo ritmo. Os braços se levantam juntos, impulsionados pelo retorno do impacto e descem pela força da gravidade, quase sem exigir esforço dos participantes. Os homens procuram manter o foco da batida nas extremidades do cipó, aonde ele se abre com facilidade. Caso alguém tenta exagerar na força, sem resultados serão negativos: ele se cansará rápido, perderá o ritmo coletivo e não conseguirá macerar o cipó adequadamente. É, portanto, um ritual que ensina o uso inteligente da força através da resistência.
Após a preparação, o cipó e a folha são colocados nas panelas em camadas sobrepostas. A água é outro fator importante. A água da chuva é a mais alcalina. Na Amazônia colhe-se a água da superfície dos igarapés mais fundos. Geralmente, há um responsável pelo fornecimento e qualidade da água, que pode contar com ajudantes. Ele é quem, pessoalmente, enche as panelas.
Também há um especialista responsável pelo fogo. Ele deve conhecer os rumos dos ventos, os tipos de madeira, as manhas das chamas. Também tem ajudantes para cortar a lenha, retirar as brasas e limpar a fornalha das cinzas e do carvão que possam obstruir a força das labaredas. Usam pás e espetos longos, alguns usam óculos escuros para olhar para interior do fogo e melhor poder manobra-lo.
“O fogo sobe, a água desce”. Se olharmos a casa aonde se realiza a preparação da Ayahuasca de lado, veremos as labaredas do fogo na parte de baixo e a caixa d’água acima da edificação. No centro, ponto de encontro da pressão da gravidade da água e da pressão aérea de calor e fumaça ascendentes, está o caldeirão principal e as panelas fumegantes do primeiro cozimento. Elas são supervisionadas por cozinheiro responsável e por ajudantes/aprendizes que colocam e retiram as panelas segundo suas ordens. Eles conhecem os cheiros, os pontos de cozimento, os momentos certos de fogo brando e de fogo forte.
E quando o trabalho encontra o poder, a riqueza se manifesta. Todos os participantes do ritual de preparo – homens, mulheres, trabalhadores da água e do fogo, cozinheiros e ajudantes – tomam a bebida enquanto a fazem. E cantam. As canções mesclam imagens religiosas com os ideais de solidariedade universal e de consciência ecológica. São os ‘hinários’ - coletâneas de canções religiosas em que as experiências espirituais e biográficas dos poetas-músicos ayahuasqueiros ficam gravadas, para ser revividas por todos nos rituais. Assim, as lições vividas e o aprendizado tornam-se arte e memória musical.

Vinho, bálsamo para o meu coração doente,
Vinho da cor das rosas, vinho perfumado
Para calar a minha dor. Vinho, e o teu alaúde
De cordas de seda, minha amada. (Estrofe 66)

No plano mental: a imaginação formal interpreta os arquétipos através da linguagem. Os cânticos celebram o Divino Pai Eterno; a Virgem Maria, chamada de Rainha da Floresta; Jesus Cristo, sincretizado com o fundador do culto ayahuasqueiro e com a própria bebida consumida. É o ‘mestre ensinador’ - inteligência cósmica com quem todos se comunicam telepaticamente através da bebida. Apesar das imagens cristãs, os cantos são alegres, xamânicos, panteístas; distante da ideologia de culpa e sofrimento que caracteriza o cristianismo institucionalizado. É uma reinterpretação popular ameríndia da religião colonizadora, que, apesar de aparentemente ingênua e inocente, mostra a universalidade de seus símbolos de forma poética e musical.

Alguns sábios da Grécia sabiam propor enigmas?
É absoluta a minha indiferença por tanta inteligência.
Dá-me vinho, minha amiga; deixa-me ouvir o alaúde,
Olha como lembra o vento que passa, como nós. (Estrofe 87)

A Ayahuasca promove uma expansão na consciência (o sonhar) que, sem perda da ação voluntária, permite que se observe o próprio sentimento e pensamento com maior clareza (a imaginação simbólica). E a experiência exterior com os elementos leva experiência elementar interior (a sensibilidade). No decorrer do ritual, o estado de consciência intensificada pela bebida amplifica as situações recorrentes da vida cotidiana, revelando contradições existenciais e processos interiores que se repetem inconscientemente em diversos níveis: corporais, mentais, emocionais e espirituais. Esses processos involuntários são compreendidos pela consciência intensificada dos participantes, através da corrente formada pelos hinos e pela sincronia entre as atividades práticas do preparo, sempre sugerindo soluções positivas para os problemas colocados.
Bebe vinho, ele te devolverá a mocidade,
A divina estação das rosas, da vida eterna,
Dos amigos sinceros. Bebe, e desfruta
O instante fugidio que é a tua vida.
Bebe o teu vinho. Vais dormir muito tempo
Debaixo da terra, sem amigos, sem mulheres.
Confio-te um grande segredo:
As tulipas murchas não reflorescem mais. (Estrofes 38 e 39)

E é a reunião do calor humano (a sublimação das almas) com a luz divina revigora a vida. À noite, todos, homens e mulheres, se reúnem para cantar em torno do caldeirão principal – símbolo de poder e de transmutação elemental - e das panelas de cozimento. Uma fumaça branca e doce evapora de suas bocas borbulhantes. Das nuvens de fumaça esbranquiçada emergem ‘mirações’, imagens simbólicas, as visões psíquicas provocadas pela Ayahuasca e por seus cantos.

Ninguém desvendará o Mistério. Nunca saberemos
O que se oculta por trás das aparências.
As nossas moradas são provisórias, menos aquela última.
Não vamos falar, toma o teu vinho. (Estrofe 26)

Há uma grande diferença entre uma alucinação e a miração, ou as imagens que emergem do inconsciente durante o uso ritual da Ayahuasca. A alucinação é uma distorção cognitiva provocada por entorpecente. Enquanto a miração provoca devaneios simbólicos e sonhos lúcidos.[4]
A miração tem uma série de características cognitivas bastante específicas. Em primeiro lugar, percebe-se que os pensamentos não são individuais, mas sim ‘recebidos em rede’, que a mente funciona como um rádio: a percepção do pensamento se revela uma cognição coletiva. Também não há distinção entre o interior e o exterior, entre o sensorial e o sensível. E, em decorrência destas duas percepções (da mediunidade do pensamento e da indistinção entre o micro e o macro), podem acontecer experiências radicais des-indentificação pessoal. As pessoas podem se transformarem em animais, árvores, pedras ou em outras pessoas.
Mas a característica cognitiva mais importante do efeito da Ayahuasca é a experiência de tempo não-linear. Sob o efeito da Ayahuasca, se percebe o transcorrer do tempo de forma desigual, em que alguns segundos demoram séculos e horas se sucedem rapidamente e em que alguns momentos se experimentam a simultaneidade (ou a sensação de eternidade) temporal. A Ayahuasca nos recoloca dentro da sincronicidade.
Utilizando o esquema dos quatro elementos também se pode pensar um modelo de quatro estados de consciência diferentes sobrepostos e simultâneos no trabalho espiritual com a Ayahuasca: Fogo, a luta do bem contra o mal; Água, a compaixão pelo sofrimento do mundo; Ar, o diálogo/conflito do Eu com o Outro; e Terra, a Consciência Viva da Divindade. Esses temas e níveis elementais se alternam e sobrepõem dentro de viagens sucessivas. A alquimia exterior se torna desenvolvimento interior e a transmutação de água em vinho corresponde também à transformação de seus feitores. É a Ayahuasca que faz seus feitores.
Logo as imagens se dissipam na fumaça das panelas e, após grandes viagens, os participantes voltam onde sempre estiveram: cantando. O efeito da bebida se dá em ondas, ora sonhamos, ora celebramos, mas sempre estamos cantando. Aos poucos, no entanto, os intervalos se tornam cada vez maiores, enquanto o fogo morre e os homens tiram o líquido dourado das últimas panelas, engarrafando-o com cuidado e reverência. A usina de sonhos e energia desliga seus motores mágicos: a terra esfria, a água escorre e seca, o fogo dorme e o vento sopra as últimas nuvens de mirações.

Rosas, taças, lábios vermelhos:
Brinquedos que o Tempo estraga;
Estudo, meditação, renúncia:
Cinzas que o Tempo espalha. (Estrofe 120)

2. A Inveja do Útero
É notável que os psicanalistas pensem que as mulheres tenham inveja do pênis! Talvez, a verdade, seja justamente o contrário.
Do ponto de vista do desenvolvimento pessoal, as mulheres levam uma grande vantagem sobre os homens. Todos os meses, elas passam por um processo biológico de morte e renascimento; enquanto os homens não contam com essa vantagem, são mais lineares e precisam se esforçar para produzir condições semelhantes. O xamanismo tolteca ressalta o papel espiritual do útero, visto como um órgão sensorial voltado para a atividade de sonhar. A imaginação desvairada, o delírio e a loucura histérica seriam disfunções uterinas.
Para simular um útero e as mesmas condições propiciadas pelo incentivo biológico feminino, os homens necessitam viver segundo a lua e as marés, seguindo seus ciclos de regulação da água. Através da observação e sincronia com a lua, segundo vários tipos de xamanismo e de saber ancestral, os homens conseguem se equiparar às mulheres na arte do sonhar. No xamanismo tolteca, ‘sonhar’ significa entrar em sintonia com a terra, com o sagrado feminino. A terra, como organismo vivo se comunica através dos sonhos com outros viventes. Mas, os homens se afastaram da natureza e apenas algumas mulheres de útero aguçado conseguem escutá-la.
Será que o útero está na raiz de todas as imagens de recolhimento e repouso, símbolo universal de intimidade e de retorno ao universo primordial?
O símbolo do útero extrapola bastante o arquétipo de acolhimento e proteção (o complexo de Jonas, de Bachelard). No mito da caverna de Platão, por exemplo, o útero, como um véu lunar da realidade sensível, impede que se veja a realidade inteligível e solar. Ele significa acolhimento e proteção, mas também aprisiona seus protegidos em um tipo de confinamento cognitivo.
Freud cometeu o erro de pensar que os ‘símbolos axiais’ eram 'símbolos fálicos'. Mas, as espadas, torres pontiagudas, cruzes, cetros e até o ‘ligam’ indiano, que realmente é representado por um pênis – são na verdade símbolos do eixo do universo (Axis Mundi), como demonstrou Rene Guenon (1989,277-293). Os totens, por exemplo, com várias cabeças sobrepostas representam os diferentes mundos e em torno do qual se dança, canta e se ascende a níveis superiores.
Também para o historiador das religiões Mircea Eliade (1992, 295-312), a noção de 'Centro do Mundo' faz parte do universo de praticamente todas as sociedades arcaicas. O universo foi criado a partir desse centro e é uma passagem tanto para os infernos subterrâneos como para regiões celestiais. Tal é o sistema simbólico das sociedades tradicionais, do qual derivam as imagens cosmológicas, os mitos e concepções religiosas nas mais diversas culturas: os pilares, as montanhas sagradas, as árvores da vida, as escadas cósmicas são representações do Axis Mundi, em torno do qual o universo se organiza. Para os judeus, o monte Tabor é o Centro do Mundo; enquanto, para os gregos, é o Olimpo. O monte Meru dos hindus, o Himinghjor dos germânicos, o Haraberezaiti dos iranianos, a Kaaba dos islamitas, Jerusalém para os cristãos – todos são passagens verticais para outras dimensões e se situam no Centro do Mundo dessas cosmovisões. Eliade acredita ainda que nas sociedades mais antigas a “imagem visível deste pilar cósmico é, no céu, a Via Láctea”, que se expande a partir da constelação da Ursa Maior (polo norte estelar, possivel local do 'Big Bang') e se direciona para um buraco negro abaixo da constelação do Cruzeiro do Sul (polo sul estelar).
Então, não estaríamos cometendo uma versão feminina do mesmo erro de Freud, pensando que o útero é um símbolo demiurgo do elemento terra? Que ele está na base das representações da intimidade e dos devaneios de repouso?
Para Eliade (1992, 313), o lar é uma 'Imago Mundi', um micro universo que reflete o macro universo, um local de intimidade cósmica. Nas sociedades arcaicas e tradicionais, o templo ocupava essa função. Com a desacralização promovida pela modernidade, o sagrado refugiou-se no aconchego do lar e a casa/família se tornou o Centro do Mundo do homem moderno. Houve uma pulverização do sagrado em pequenos núcleos. E, acrescentamos: o útero se tornou o maior patrimônio desses novos centros.
Vilém Flusser (APUD BAITELLO, 2010, 29) diz os homens são convexos e as mulheres, côncavas. A concavidade exerce uma atração irresistível sobre o convexo, que deseja preenche-la, completa-la. Para o filósofo, essa concavidade feminina vai muito além da questão de gênero ou do consumismo. Segundo Flusser, o feminino é a morte e a natureza, a terra é a grande devoradora do mundo material, o retorno ao vazio sem tempo. A terra, tanto do sentido de planeta como no de elemento material, é a devoradora de tudo e de todos. Ela dá e ela tira. Cria a vida e se alimenta de sua criação. A terra é a concavidade, o princípio feminino que provoca o movimento. O útero é uma de suas imagens mais profundas, viva nas estranhas da terra; mas é apenas uma representação (a Imago Mundi primária) de sua concavidade arquetípica.
A verdadeira solidão é um sentimento de intimidade com a terra. Não é uma solidão mórbida ou depressiva. Não se trata de estar sozinho, mas de estar em contato com a concavidade que nos chama à ação. A intimidade é essa conexão afetiva constante, esse solitário cuidado íntimo como a própria natureza.
Ande como se estivesse beijando a Terra com seus pés, como se estivesse massageando a Terra. As suas pegadas serão como marcas de um selo imperial chamando o agora de volta ao aqui; para que a vida esteja presente; para que o sangue traga a cor do amor ao seu rosto; para que as maravilhas da vida se manifestem, e todas as aflições sejam transformadas em paz e alegria.  (TOCANDO A TERRA - Thich Nhat Hanh)[5]
3. Matriarcado Arcaico
Digamos então sem arrodeio: não há provas arqueológicas consistentes nem evidências científicas de que houve um período matriarcal no desenvolvimento do homo sapiens. Trata-se de uma fantasia anti-patriarcal imaginar que nem sempre houve o domínio masculino nas sociedades humanas.
O único registro relativamente confiável é o de Platão sobre a cultura minoica em Creta antes do período helênico. E mesmo esse relato pode derivar de um mito e do desejo do filósofo. Platão sonhava com uma república utópica. E, não por acaso, a grande maioria dos crentes do matriarcado arcaico são defensores de um mundo mais justo no futuro.
Santo Agostinho, adequando este simbolismo à ideologia cristã, transformou a utopia platônica em objetivo histórico da humanidade, colocando-a no final da História como retorno ao ético paraíso perdido. Para o criador da doutrina do pecado original, a Cidade de Deus existe paralela à Cidade dos Homens (como as realidades sensível e inteligível de Platão). Ao ser expulso do paraíso, o homem dissociou os dois mundos e o retorno à Nova Jerusalém será a reunificação das cidades.
Durante séculos de cristianismo, o matriarcado arcaico sobreviveu como um símbolo selvagem do pluralismo não permitido. Na ótica patriarcal, baseada na família monogâmica e no credo monoteísta, os povos primitivos são sempre politeístas e poligâmicos. Os homens primitivos seriam nômades, caçadores/coletores que viviam em bandos de acordo com as fases da lua, em um tempo cíclico, sem história. O patriarcalismo começou com a vida em sociedade propriamente dita: a agricultura extensiva, a escrita de codificação gráfica fonética, os calendários solares anuais e a vida urbana e sedentária das primeiras grandes cidades. Os partidários do matriarcado arcaico imaginam que essas mudanças e o controle dos homens sobre o feminino, tiveram como fator principal as religiões dos deuses solares.
E essa premissa ideológica foi compartilhada pela antropologia evolucionista do século XIX. Para J.J. Banhofen (Mito, Religião e Direito Materno, 1861), devido à promiscuidade sexual das comunidades primitivas, onde imperava um acasalamento circunstancial, imediato, sem regras ou compromissos estabelecidos, as mulheres com inúmeros parceiros eram o centro da vida social e religiosa. Segundo Banhofen, a evolução da promiscuidade para a família monogâmica ocorreu graças à supremacia dos deuses solares que, progressivamente, substituíram os mitos das deusas-mães. Banhofen influenciou muitos pensadores importantes, entre eles Joseph Campbell.
Lewis Morgan (A Sociedade Antiga, 1877), estudando as relações de parentesco das tribos dos iroqueses (que são matrilineares), acreditou confirmar a teoria do Direito Materno de Banhofen, como sendo o direito-matriz das sociedades humanas. Banhofen havia se apoiado em lendas e em tragédias gregas.
Eliade (1993, 39-102) após estudar diversas mitologias tidas como ‘politeístas’, como a Grega, a Hindu e a Ioruba, observou que deuses celestes como Urano, Olorum e Brahma[6] não tinham altar ou culto e eram ‘pais’ dos outros deuses, a quem entregou a administração do mundo.  Elaborou as categorias de ‘deus oticius’ e de ‘monoteísmo primitivo’. Possivelmente, o politeísmo é uma invenção judaico-cristã.
As diferentes religiões agrárias indo-europeias da antiguidade - que deram origem às culturas 'pagãs' celta, nórdica e eslava – não eram matriarcais, como acredita o feminismo esotérico atual. No caso das religiões da antiga eurásia, Tangri, o 'deus-céu' reinava sobre um panteão de divindades. Há realmente evidências de predomínio das deusas e dos cultos lunares, mas, a presença de mulheres nos tronos ou em postos de mando foram quase sempre fatos isolados e circunstanciais, pois elas na sua totalidade nunca conduziram inteiramente uma sociedade. Nunca houve uma sociedade matriarcal. Isso não significa negar que em várias tribos ou civilizações as mulheres fossem altamente consideradas, que o sagrado feminino fosse mais cultuado que o masculino, nem mesmo que houvesse uma relativa liberdade de gênero antes do patriarcalismo. Nada, no entanto, indica que nesse cenário arcaico houvesse um predomínio social das mulheres sobre os homens ou que os valores femininos fossem dominantes. O mais provável, dentro da lógica evolucionista da ciência, é que o patriarcalismo seja resultando da exacerbação social do comportamento biológico do rebanho humano, presente em outros mamíferos, principalmente entre os símios.
Drauzio Varella (2000) elenca as principais semelhanças de comportamento entre homens e macacos: a dependência por anos dos filhos, disputas violentas dos machos pelas fêmeas, defesa territorial, a mesma importância dada à diferença do tamanho entre os dois sexos da espécie[7] e as mesmas estratégias reprodutivas de cada gênero: a principal tática masculina é a de procurar o acasalamento com diversas fêmeas, fazendo o possível para impedir que outros machos façam o mesmo; e a principal estratégia feminina é a de seduzir o macho que tenha as maiores chances de gerar filhos saudáveis e protegê-los – por isso o interesse pelo macho vencedor, que ascende na hierarquia social (2000, 80-82). A infidelidade feminina, mecanismo de fortalecimento genético da espécie, nesse contexto, era (ou é) pouco frequente e secundária. Mas, a ideia de uma organização grupal centrada em uma ‘rainha matriarcal’ só existe mesmo nos insetos gregários: formigas, abelhas, etc. Tais semelhanças sugerem que a 'poligamia matriarcal' também nunca existiu e que o (que chamamos de) patriarcalismo é uma exacerbação de características biológicas mamíferas, uma institucionalização (pelo uso repetido da força bruta) das estratégias reprodutivas masculinas e femininas do rebanho humano.
Nesse cenário, é fácil entender porque os elementos Terra e Água, associados à alimentação e aos cuidados pessoais, são femininos; e os elementos Ar e Fogo, representando o conhecimento abstrato e a guerra/tecnologia, masculinos. Os homens eram exploradores do universo e as mulheres, as guardiãs de sua intimidade. A institucionalização social desta divisão de domínios separou subjetivamente o masculino do corpo e de suas emoções (da Terra e da Água), como também apartou a mente feminina do saber e do sagrado (o Ar e o Fogo). E, do ponto de vista externo, o crescimento exagerado do Ar e do Fogo, destroem a Água e a Terra.
Dissolver o desequilíbrio ecológico externo implica em harmonizar os elementos dentro de si. Que os homens liquidifiquem seus corações e aterrissem em seus corpos; e que as mulheres se incendeiem e se lacem no espaço sem fim.


[1] Etnografia poética do feitio-escola de Santo Daime, em outubro de 2014, em Guanassés (CE), sob o comando de Alfredo Gregório de Melo.
[2]             Os Rubaiyat de Omar Khayyam - versão em português de Alfredo Braga.
[3] Os registros mais antigos que conhecemos vêm dos Incas. O uso da Ayahuasca como bebida sacramental era restrito a família imperial inca, descendente de Inti, o rei Sol. Conforme relatos históricos, o príncipe Atahualpa se rendeu aos invasores espanhóis e acabou assassinado. Segundo a lenda, o príncipe seu irmão, Huascar, se refugiou na floresta amazônica. Lá divulgou a bebida, que recebeu o seu nome e se difundiu entre várias tribos indígenas, perto da fronteira com o Peru e a Bolívia. O uso da Ayahuasca foi, durante séculos, utilizado por várias tribos indígenas da região. No início do século XX, com o intercâmbio cultural entre índios e seringueiros, a Ayahuasca passou a ser conhecida e usada pelos nordestinos que colonizaram a Amazônia ocidental. Destes contatos surgiram vários grupos sincretizaram o seu uso com o catolicismo popular, normatizando doutrinas de grande penetração urbana. O Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) publicou, no dia 25 de janeiro de 2010, resolução regulamentando o uso religioso da Ayahuasca no Brasil. A resolução estabeleceu regras para que a bebida não seja comercializada ou utilizada fora do contexto religioso. Atualmente, várias pesquisas investigam a utilização de medicamentos para tratamento químico de depressão, neuroses, fobias, síndromes neurológicas, bem como seu uso em processos terapêuticos.
[4]             A experiência de ‘mirar’ ou ter ‘sonhos lúcidos’ se aproxima muito mais de uma supercognição (envolvendo os dois hemisférios cerebrais simultaneamente) do que de uma alucinação ou de apenas ilusões visuais. Supercognição que permite à consciência enraizada no presente ativar as memórias do passado com objetividade visual e prever (ou até mesmo influenciar) acontecimentos futuros, “resolver problemas”, conseguir reverter relações de conflito, submissão ou enaltecimento que se apresentem na própria 'miração'. A Ayahuasca é uma tecnologia de transcendência do tempo/espaço. Segundo Calávia Saez (in LABATE & GUIMARÃES, 2008), quando os Yaminawa tentam explicar o que a Ayahuasca é para eles, usam comparações como o ‘televisão do índio’, o ‘telefone’ e até ‘o avião do índio’.
[5] http://fteixeira-dialogos.blogspot.com.br/p/oracoes-interreligiosas.html
[6] O caso de Brahma é um pouco diferente, mais ainda pode ser incluído na categoria.
[7] Quanto maior o dimorfismo sexual, mais dominadores são os machos e mais desunidas as fêmeas. Quanto menor esta variação, mais as fêmeas são capazes de alianças e menos poder tem masculino.