1. O Vinho do Espírito[1]
Tanto os filósofos quanto os críticos
literários ficam bastante desconcertados com o fato de Bachelard gastar uma
parte significativa de sua investigação sobre os devaneios de repouso no
elemento Terra com o vinho dos alquimistas (1990a).
A transformação da água em vinho tem
uma longa tradição poética e esotérica, inclusive na tradição cristã. A taberna
mística e os vinhos também. Trata-se de uma imagem da tradição da poesia sufi
da Pérsia, presente em vários poemas de Rumi e nos Rubaiyat de Omar Khayyam[2]
Busca a felicidade agora, não sabes de amanhã.
Apanha um grande copo cheio de vinho,
Senta-te ao luar, e pensa:
Talvez amanhã a lua me procure em vão. (estrofe 5)
Hoje os meus anos reflorescem.
Quero o vinho que me dá calor.
Dizes que é amargo? Vinho!
Que seja amargo, como a vida. (Estrofe 10)
A mesma experiência subjetiva dos
versos está presente em outros universos de eventos como, por exemplo, a
preparação da Ayahuasca[3], o vinho
do espírito
(tradução
literal do quíchua: aya, 'espírito' e waska, 'vinho'). A Ayahuasca, no entanto,
não é um vinho, nem uma bebida fermentada, mas uma dupla cocção do cipó Jagube
(Banisteriopsis caapi) e da folha da Rainha (Psycotria viridis). Ela, no
entanto, também avinagra em virtude de calor e necessita dos mesmos cuidados
dos vinhos e das bebidas fermentadas em geral.
O cipó
representa o princípio masculino (a força) e a folha, o princípio feminino (a
luz). Por isso, eles são colhidos e preparados separadamente por homens e
mulheres em regime ritual. Nesse trabalho de preparação do material, há o
desenvolvimento de qualidades intrínsecas a cada gênero. Colher e limpar cada
folha exige das mulheres aplicação, constância, delicadeza e atenção; enquanto
entoam canções.
Enquanto
isso, para tratar e macerar o cipó, os homens exercitam um ritual de força e
resistência, onde o mais importante é aprender a trabalhar com inteligência. No
ritual masculino denominado de ‘batição’, o cipó é macerado com marretas de
madeira, com todos cantando e batendo no mesmo ritmo. Os braços se levantam
juntos, impulsionados pelo retorno do impacto e descem pela força da gravidade,
quase sem exigir esforço dos participantes. Os homens procuram manter o foco da
batida nas extremidades do cipó, aonde ele se abre com facilidade. Caso alguém
tenta exagerar na força, sem resultados serão negativos: ele se cansará rápido,
perderá o ritmo coletivo e não conseguirá macerar o cipó adequadamente. É,
portanto, um ritual que ensina o uso inteligente da força através da
resistência.
Após a
preparação, o cipó e a folha são colocados nas panelas em camadas sobrepostas.
A água é outro fator importante. A água da chuva é a mais alcalina. Na Amazônia
colhe-se a água da superfície dos igarapés mais fundos. Geralmente, há um
responsável pelo fornecimento e qualidade da água, que pode contar com
ajudantes. Ele é quem, pessoalmente, enche as panelas.
Também há um
especialista responsável pelo fogo. Ele deve conhecer os rumos dos ventos, os
tipos de madeira, as manhas das chamas. Também tem ajudantes para cortar a
lenha, retirar as brasas e limpar a fornalha das cinzas e do carvão que possam
obstruir a força das labaredas. Usam pás e espetos longos, alguns usam óculos
escuros para olhar para interior do fogo e melhor poder manobra-lo.
“O fogo sobe, a água desce”. Se
olharmos a casa aonde se realiza a preparação da Ayahuasca de lado, veremos as
labaredas do fogo na parte de baixo e a caixa d’água acima da edificação. No
centro, ponto de encontro da pressão da gravidade da água e da pressão aérea de
calor e fumaça ascendentes, está o caldeirão principal e as panelas fumegantes
do primeiro cozimento. Elas são supervisionadas por cozinheiro responsável e por
ajudantes/aprendizes que colocam e retiram as panelas segundo suas ordens. Eles
conhecem os cheiros, os pontos de cozimento, os momentos certos de fogo brando
e de fogo forte.
E quando o trabalho encontra o poder,
a riqueza se manifesta. Todos os
participantes do ritual de preparo – homens, mulheres, trabalhadores da água e
do fogo, cozinheiros e ajudantes – tomam a bebida enquanto a fazem. E cantam.
As canções mesclam imagens religiosas com os ideais de solidariedade universal
e de consciência ecológica. São os ‘hinários’ - coletâneas de canções
religiosas em que as experiências espirituais e biográficas dos poetas-músicos
ayahuasqueiros ficam gravadas, para ser revividas por todos nos rituais. Assim,
as lições vividas e o aprendizado tornam-se arte e memória musical.
Vinho, bálsamo para o meu coração doente,
Vinho da cor das rosas, vinho perfumado
Para calar a minha dor. Vinho, e o teu alaúde
De cordas de seda, minha amada. (Estrofe 66)
No plano
mental: a imaginação formal
interpreta os arquétipos através da linguagem. Os cânticos celebram o Divino
Pai Eterno; a Virgem Maria, chamada de Rainha da Floresta; Jesus Cristo,
sincretizado com o fundador do culto ayahuasqueiro e com a própria bebida
consumida. É o ‘mestre ensinador’ - inteligência cósmica com quem todos se
comunicam telepaticamente através da bebida. Apesar das imagens cristãs, os
cantos são alegres, xamânicos, panteístas; distante da ideologia de culpa e
sofrimento que caracteriza o cristianismo institucionalizado. É uma
reinterpretação popular ameríndia da religião colonizadora, que, apesar de
aparentemente ingênua e inocente, mostra a universalidade de seus símbolos de
forma poética e musical.
Alguns sábios da Grécia sabiam propor enigmas?
É absoluta a minha indiferença por tanta
inteligência.
Dá-me vinho, minha amiga; deixa-me ouvir o alaúde,
Olha como lembra o vento que passa, como nós. (Estrofe
87)
A Ayahuasca
promove uma expansão na consciência (o sonhar)
que, sem perda da ação voluntária, permite que se observe o próprio sentimento
e pensamento com maior clareza (a imaginação
simbólica). E a experiência exterior com os elementos leva experiência
elementar interior (a sensibilidade).
No decorrer do ritual, o estado de consciência intensificada pela bebida
amplifica as situações recorrentes da vida cotidiana, revelando contradições
existenciais e processos interiores que se repetem inconscientemente em
diversos níveis: corporais, mentais, emocionais e espirituais. Esses processos
involuntários são compreendidos pela consciência intensificada dos
participantes, através da corrente formada pelos hinos e pela sincronia entre
as atividades práticas do preparo, sempre sugerindo soluções positivas para os
problemas colocados.
Bebe vinho, ele te devolverá a mocidade,
A divina estação das rosas, da vida eterna,
Dos amigos sinceros. Bebe, e desfruta
O instante fugidio que é a tua vida.
Bebe
o teu vinho. Vais dormir muito tempo
Debaixo
da terra, sem amigos, sem mulheres.
Confio-te
um grande segredo:
As
tulipas murchas não reflorescem mais. (Estrofes 38 e 39)
E é a reunião
do calor humano (a sublimação das
almas) com a luz divina revigora a vida. À noite, todos, homens e mulheres,
se reúnem para cantar em torno do caldeirão principal – símbolo de poder e de
transmutação elemental - e das panelas de cozimento. Uma fumaça branca e doce
evapora de suas bocas borbulhantes. Das nuvens de fumaça esbranquiçada emergem
‘mirações’, imagens simbólicas, as visões psíquicas provocadas pela Ayahuasca e
por seus cantos.
Ninguém desvendará o Mistério. Nunca saberemos
O que se oculta por trás das aparências.
As nossas moradas são provisórias, menos aquela
última.
Não vamos falar, toma o teu vinho. (Estrofe 26)
Há uma grande
diferença entre uma alucinação e a miração, ou as imagens que emergem do
inconsciente durante o uso ritual da Ayahuasca. A alucinação é uma distorção
cognitiva provocada por entorpecente. Enquanto a miração provoca devaneios
simbólicos e sonhos lúcidos.[4]
A miração tem
uma série de características cognitivas bastante específicas. Em primeiro
lugar, percebe-se que os pensamentos não são individuais, mas sim ‘recebidos em
rede’, que a mente funciona como um rádio: a percepção do pensamento se revela
uma cognição coletiva. Também não há distinção entre o interior e o exterior,
entre o sensorial e o sensível. E, em decorrência destas duas percepções (da
mediunidade do pensamento e da indistinção entre o micro e o macro), podem
acontecer experiências radicais des-indentificação pessoal. As pessoas podem se
transformarem em animais, árvores, pedras ou em outras pessoas.
Mas a
característica cognitiva mais importante do efeito da Ayahuasca é a experiência
de tempo não-linear. Sob o efeito da Ayahuasca, se percebe o transcorrer do
tempo de forma desigual, em que alguns segundos demoram séculos e horas se sucedem
rapidamente e em que alguns momentos se experimentam a simultaneidade (ou a
sensação de eternidade) temporal. A Ayahuasca nos recoloca dentro da
sincronicidade.
Utilizando o
esquema dos quatro elementos também se pode pensar um modelo de quatro estados
de consciência diferentes sobrepostos e simultâneos no trabalho espiritual com
a Ayahuasca: Fogo, a luta do bem contra o mal; Água, a compaixão pelo
sofrimento do mundo; Ar, o diálogo/conflito do Eu com o Outro; e Terra, a
Consciência Viva da Divindade. Esses temas e níveis elementais se alternam e
sobrepõem dentro de viagens sucessivas. A alquimia exterior se torna
desenvolvimento interior e a transmutação de água em vinho corresponde também à
transformação de seus feitores. É a Ayahuasca que faz seus feitores.
Logo as
imagens se dissipam na fumaça das panelas e, após grandes viagens, os
participantes voltam onde sempre estiveram: cantando. O efeito da bebida se dá
em ondas, ora sonhamos, ora celebramos, mas sempre estamos cantando. Aos
poucos, no entanto, os intervalos se tornam cada vez maiores, enquanto o fogo
morre e os homens tiram o líquido dourado das últimas panelas, engarrafando-o
com cuidado e reverência. A usina de sonhos e energia desliga seus motores
mágicos: a terra esfria, a água escorre e seca, o fogo dorme e o vento sopra as
últimas nuvens de mirações.
Rosas, taças, lábios vermelhos:
Brinquedos que o Tempo estraga;
Estudo, meditação, renúncia:
Cinzas que o Tempo espalha. (Estrofe 120)
2. A Inveja do Útero
É notável que os psicanalistas pensem
que as mulheres tenham inveja do pênis! Talvez, a verdade, seja justamente o
contrário.
Do ponto de vista do desenvolvimento
pessoal, as mulheres levam uma grande vantagem sobre os homens. Todos os meses,
elas passam por um processo biológico de morte e renascimento; enquanto os
homens não contam com essa vantagem, são mais lineares e precisam se esforçar
para produzir condições semelhantes. O xamanismo tolteca ressalta o papel
espiritual do útero, visto como um órgão sensorial voltado para a atividade de
sonhar. A imaginação desvairada, o delírio e a loucura histérica seriam
disfunções uterinas.
Para simular um útero e as mesmas
condições propiciadas pelo incentivo biológico feminino, os homens necessitam
viver segundo a lua e as marés, seguindo seus ciclos de regulação da água.
Através da observação e sincronia com a lua, segundo vários tipos de xamanismo
e de saber ancestral, os homens conseguem se equiparar às mulheres na arte do
sonhar. No xamanismo tolteca, ‘sonhar’ significa entrar em sintonia com a
terra, com o sagrado feminino. A terra, como organismo vivo se comunica através
dos sonhos com outros viventes. Mas, os homens se afastaram da natureza e
apenas algumas mulheres de útero aguçado conseguem escutá-la.
Será que o útero está na raiz de todas
as imagens de recolhimento e repouso, símbolo universal de intimidade e de
retorno ao universo primordial?
O símbolo do útero extrapola bastante o arquétipo de
acolhimento e proteção (o complexo de Jonas, de Bachelard). No mito da caverna
de Platão, por exemplo, o útero, como um véu lunar da realidade sensível,
impede que se veja a realidade inteligível e solar. Ele significa acolhimento e
proteção, mas também aprisiona seus protegidos em um tipo de confinamento
cognitivo.
Freud cometeu o erro de pensar que os
‘símbolos axiais’ eram 'símbolos fálicos'. Mas, as espadas, torres pontiagudas,
cruzes, cetros e até o ‘ligam’ indiano, que realmente é representado por um
pênis – são na verdade símbolos do eixo do universo (Axis Mundi), como
demonstrou Rene Guenon (1989,277-293). Os totens, por exemplo, com várias
cabeças sobrepostas representam os diferentes mundos e em torno do qual se
dança, canta e se ascende a níveis superiores.
Também para o historiador
das religiões Mircea Eliade (1992, 295-312), a noção de 'Centro do Mundo' faz
parte do universo de praticamente todas as sociedades arcaicas. O universo foi
criado a partir desse centro e é uma passagem tanto para os infernos
subterrâneos como para regiões celestiais. Tal é o sistema simbólico das sociedades
tradicionais, do qual derivam as imagens cosmológicas, os mitos e concepções
religiosas nas mais diversas culturas: os pilares, as montanhas sagradas, as
árvores da vida, as escadas cósmicas são representações do Axis Mundi,
em torno do qual o universo se organiza. Para os judeus, o monte Tabor é o
Centro do Mundo; enquanto, para os gregos, é o Olimpo. O monte Meru dos hindus,
o Himinghjor dos germânicos, o Haraberezaiti dos iranianos, a Kaaba dos
islamitas, Jerusalém para os cristãos – todos são passagens verticais para
outras dimensões e se situam no Centro do Mundo dessas cosmovisões. Eliade
acredita ainda que nas sociedades mais antigas a “imagem visível deste pilar
cósmico é, no céu, a Via Láctea”, que se expande a partir da constelação da
Ursa Maior (polo norte estelar, possivel local do 'Big Bang') e se direciona
para um buraco negro abaixo da constelação do Cruzeiro do Sul (polo sul
estelar).
Então, não estaríamos cometendo uma versão feminina do mesmo
erro de Freud, pensando que o útero é um símbolo demiurgo do elemento terra?
Que ele está na base das representações da intimidade e dos devaneios de
repouso?
Para Eliade (1992, 313), o lar é uma 'Imago
Mundi', um micro universo que reflete o macro universo, um local de
intimidade cósmica. Nas sociedades arcaicas e tradicionais, o templo ocupava
essa função. Com a desacralização promovida pela modernidade, o sagrado
refugiou-se no aconchego do lar e a casa/família se tornou o Centro do Mundo do
homem moderno. Houve uma pulverização do sagrado em pequenos núcleos. E,
acrescentamos: o útero se tornou o maior patrimônio desses novos centros.
Vilém Flusser (APUD
BAITELLO, 2010, 29) diz os
homens são convexos e as mulheres, côncavas. A concavidade exerce uma atração
irresistível sobre o convexo, que deseja preenche-la, completa-la. Para o
filósofo, essa concavidade feminina vai muito além da questão de gênero ou do
consumismo. Segundo Flusser, o feminino é a morte e a natureza, a terra
é a grande devoradora do mundo material, o retorno ao vazio sem tempo. A terra, tanto do sentido de planeta
como no de elemento material, é a devoradora de tudo e de todos. Ela dá e ela
tira. Cria a vida e se alimenta de sua criação. A terra é a concavidade, o
princípio feminino que provoca o movimento. O útero é uma de suas imagens mais
profundas, viva nas estranhas da terra; mas é apenas uma representação (a Imago
Mundi primária) de sua concavidade arquetípica.
A verdadeira solidão é um sentimento de
intimidade com a terra. Não é uma solidão mórbida ou depressiva. Não se trata
de estar sozinho, mas de estar em contato com a concavidade que nos chama à
ação. A intimidade é essa conexão afetiva constante, esse solitário cuidado
íntimo como a própria natureza.
Ande como se estivesse beijando a Terra com seus pés, como
se estivesse massageando a Terra. As suas pegadas serão como marcas de um selo
imperial chamando o agora de volta ao aqui; para que a vida esteja presente;
para que o sangue traga a cor do amor ao seu rosto; para que as maravilhas da
vida se manifestem, e todas as aflições sejam transformadas em paz e alegria. (TOCANDO A TERRA - Thich Nhat Hanh)[5]
3. Matriarcado Arcaico
Digamos então sem arrodeio: não há
provas arqueológicas consistentes nem evidências científicas de que houve um
período matriarcal no desenvolvimento do homo sapiens. Trata-se de uma fantasia
anti-patriarcal imaginar que nem sempre houve o domínio masculino nas
sociedades humanas.
O único registro relativamente
confiável é o de Platão sobre a cultura minoica em Creta antes do período
helênico. E mesmo esse relato pode derivar de um mito e do desejo do filósofo.
Platão sonhava com uma república utópica. E, não por acaso, a grande maioria
dos crentes do matriarcado arcaico são defensores de um mundo mais justo no
futuro.
Santo Agostinho, adequando este simbolismo
à ideologia cristã, transformou a utopia platônica em objetivo histórico da
humanidade, colocando-a no final da História como retorno ao ético paraíso
perdido. Para o criador da doutrina do pecado original, a Cidade de Deus existe
paralela à Cidade dos Homens (como as realidades sensível e inteligível de
Platão). Ao ser expulso do paraíso, o homem dissociou os dois mundos e o
retorno à Nova Jerusalém será a reunificação das cidades.
Durante séculos de cristianismo, o
matriarcado arcaico sobreviveu como um símbolo selvagem do pluralismo não
permitido. Na ótica patriarcal, baseada
na família monogâmica e no credo monoteísta, os povos primitivos são sempre
politeístas e poligâmicos. Os homens primitivos seriam nômades,
caçadores/coletores que viviam em bandos de acordo com as fases da lua, em um
tempo cíclico, sem história. O
patriarcalismo começou com a vida em sociedade propriamente dita: a agricultura
extensiva, a escrita de codificação gráfica fonética, os calendários solares
anuais e a vida urbana e sedentária das primeiras grandes cidades. Os
partidários do matriarcado arcaico imaginam que essas mudanças e o controle dos
homens sobre o feminino, tiveram como fator principal as religiões dos deuses
solares.
E essa premissa ideológica foi compartilhada
pela antropologia evolucionista do
século XIX. Para J.J. Banhofen (Mito,
Religião e Direito Materno, 1861), devido à promiscuidade sexual das
comunidades primitivas, onde imperava um acasalamento circunstancial, imediato,
sem regras ou compromissos estabelecidos, as mulheres com inúmeros parceiros
eram o centro da vida social e religiosa. Segundo
Banhofen, a evolução da promiscuidade para a família monogâmica ocorreu graças
à supremacia dos deuses solares que, progressivamente, substituíram os mitos das
deusas-mães. Banhofen influenciou muitos pensadores importantes, entre eles
Joseph Campbell.
Lewis Morgan (A Sociedade Antiga, 1877), estudando as
relações de parentesco das tribos dos iroqueses (que são matrilineares),
acreditou confirmar a teoria do Direito Materno de Banhofen, como sendo o
direito-matriz das sociedades humanas. Banhofen havia se apoiado em lendas e em
tragédias gregas.
Eliade (1993,
39-102) após estudar diversas mitologias tidas como ‘politeístas’, como a
Grega, a Hindu e a Ioruba, observou que deuses celestes como Urano, Olorum e
Brahma[6]
não tinham altar ou culto e eram ‘pais’ dos outros deuses, a quem entregou a
administração do mundo. Elaborou as
categorias de ‘deus oticius’ e de ‘monoteísmo primitivo’. Possivelmente, o
politeísmo é uma invenção judaico-cristã.
As diferentes religiões agrárias
indo-europeias da antiguidade - que deram origem às culturas 'pagãs' celta,
nórdica e eslava – não eram matriarcais, como acredita o feminismo esotérico
atual. No caso das religiões da antiga
eurásia, Tangri, o 'deus-céu' reinava sobre um panteão de divindades. Há
realmente evidências de predomínio das deusas e dos cultos lunares, mas, a
presença de mulheres nos tronos ou em postos de mando foram quase sempre fatos
isolados e circunstanciais, pois elas na sua totalidade nunca conduziram
inteiramente uma sociedade. Nunca houve uma sociedade matriarcal. Isso não
significa negar que em várias tribos ou civilizações as mulheres fossem
altamente consideradas, que o sagrado feminino fosse mais cultuado que o
masculino, nem mesmo que houvesse uma relativa liberdade de gênero antes do
patriarcalismo. Nada, no entanto, indica que nesse cenário arcaico
houvesse um predomínio social das mulheres sobre os homens ou que os valores
femininos fossem dominantes. O mais provável, dentro da lógica evolucionista da
ciência, é que o patriarcalismo seja resultando da exacerbação social do
comportamento biológico do rebanho humano, presente em outros mamíferos,
principalmente entre os símios.
Drauzio Varella (2000) elenca as
principais semelhanças de comportamento entre homens e macacos: a dependência
por anos dos filhos, disputas violentas dos machos pelas fêmeas, defesa
territorial, a mesma importância dada à diferença do tamanho entre os dois
sexos da espécie[7] e
as mesmas estratégias reprodutivas de cada gênero: a principal tática masculina
é a de procurar o acasalamento com diversas fêmeas, fazendo o possível para
impedir que outros machos façam o mesmo; e a principal estratégia feminina é a
de seduzir o macho que tenha as maiores chances de gerar filhos saudáveis e
protegê-los – por isso o interesse pelo macho vencedor, que ascende na
hierarquia social (2000, 80-82). A infidelidade feminina, mecanismo de
fortalecimento genético da espécie, nesse contexto, era (ou é) pouco frequente
e secundária. Mas, a ideia de uma organização grupal centrada em uma ‘rainha
matriarcal’ só existe mesmo nos insetos gregários: formigas, abelhas, etc. Tais
semelhanças sugerem que a 'poligamia matriarcal' também nunca existiu e que o (que
chamamos de) patriarcalismo é uma exacerbação de características biológicas
mamíferas, uma institucionalização (pelo uso repetido da força bruta) das
estratégias reprodutivas masculinas e femininas do rebanho humano.
Nesse cenário, é fácil entender porque
os elementos Terra e Água, associados à alimentação e aos cuidados pessoais,
são femininos; e os elementos Ar e Fogo, representando o conhecimento abstrato
e a guerra/tecnologia, masculinos. Os homens eram exploradores do universo e as
mulheres, as guardiãs de sua intimidade. A institucionalização social desta
divisão de domínios separou subjetivamente o masculino do corpo e de suas
emoções (da Terra e da Água), como também apartou a mente feminina do saber e
do sagrado (o Ar e o Fogo). E, do ponto de vista externo, o crescimento
exagerado do Ar e do Fogo, destroem a Água e a Terra.
Dissolver o desequilíbrio ecológico
externo implica em harmonizar os elementos dentro de si. Que os homens
liquidifiquem seus corações e aterrissem em seus corpos; e que as mulheres se
incendeiem e se lacem no espaço sem fim.
[1]
Etnografia poética do feitio-escola de Santo Daime, em outubro de 2014, em
Guanassés (CE), sob o comando de Alfredo Gregório de Melo.
[2] Os Rubaiyat de Omar Khayyam - versão em português de
Alfredo Braga.
[3]
Os registros mais antigos que
conhecemos vêm dos Incas. O uso da Ayahuasca como bebida sacramental era
restrito a família imperial inca, descendente de Inti, o rei Sol. Conforme
relatos históricos, o príncipe Atahualpa se rendeu aos invasores espanhóis e
acabou assassinado. Segundo a lenda, o príncipe seu irmão, Huascar, se refugiou
na floresta amazônica. Lá divulgou a bebida, que recebeu o seu nome e se
difundiu entre várias tribos indígenas, perto da fronteira com o Peru e a
Bolívia. O uso da Ayahuasca foi, durante séculos, utilizado por várias tribos
indígenas da região. No início do século XX, com o intercâmbio cultural entre
índios e seringueiros, a Ayahuasca passou a ser conhecida e usada pelos
nordestinos que colonizaram a Amazônia ocidental. Destes contatos surgiram
vários grupos sincretizaram o seu uso com o catolicismo popular, normatizando
doutrinas de grande penetração urbana. O Conselho Nacional de Políticas sobre
Drogas (CONAD) publicou, no dia 25 de janeiro de 2010, resolução regulamentando
o uso religioso da Ayahuasca no Brasil. A resolução estabeleceu regras para que
a bebida não seja comercializada ou utilizada fora do contexto religioso.
Atualmente, várias pesquisas investigam a utilização de medicamentos para
tratamento químico de depressão, neuroses, fobias, síndromes neurológicas, bem
como seu uso em processos terapêuticos.
[4] A experiência de ‘mirar’ ou ter ‘sonhos lúcidos’ se aproxima muito mais
de uma supercognição (envolvendo os dois hemisférios cerebrais simultaneamente)
do que de uma alucinação ou de apenas ilusões visuais. Supercognição que permite
à consciência enraizada no presente ativar as memórias do passado com
objetividade visual e prever (ou até mesmo influenciar) acontecimentos futuros,
“resolver problemas”, conseguir reverter relações de conflito, submissão ou
enaltecimento que se apresentem na própria 'miração'. A Ayahuasca é uma
tecnologia de transcendência do tempo/espaço. Segundo Calávia Saez (in LABATE
& GUIMARÃES, 2008), quando os Yaminawa tentam explicar o que a Ayahuasca é
para eles, usam comparações como o ‘televisão do índio’, o ‘telefone’ e até ‘o
avião do índio’.
[5]
http://fteixeira-dialogos.blogspot.com.br/p/oracoes-interreligiosas.html
[6]
O caso de Brahma é um pouco diferente, mais ainda pode ser incluído na
categoria.
[7]
Quanto maior o dimorfismo sexual, mais dominadores são os machos e mais
desunidas as fêmeas. Quanto menor esta variação, mais as fêmeas são capazes de
alianças e menos poder tem masculino.
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