domingo, 30 de novembro de 2014

As Relações Elementais



1. Ciência + Tradição
Lévi-Strauss (1976) afirma que o pensamento selvagem classifica as coisas (cores, sons, cheiros, animais, datas, pessoas) segundo critérios subjetivos derivados de experiências sensoriais; em oposição ao pensamento científico domesticado, que classifica o mundo segundo critérios objetivos universais.
Viveiros de Castro (2001) nos alerta que o pensamento selvagem de Strauss não é o pensamento dos selvagens, mas sim o pensamento em estado selvagem, ainda não domesticado. Ele não é incompatível com o pensamento científico. O pensamento selvagem se refere a propriedades sensíveis; o pensamento científico se refere às propriedades abstratas. 
Para o conhecimento científico atual, o Fogo é uma reação química; a Água, um fluído universal; o Ar, um gás raro e rarefeito; e a Terra, um sistema biológico. Com a física relativista, o tempo se tornou uma dimensão do espaço. E com a física quântica, a matéria passou a ser compreendida como uma forma de energia.
Sendo assim, se estivermos em um universo eletromagnético, como acredita a física atual, pode-se pensar que o polo elétrico corresponde ao Fogo e é ativo; enquanto o polo magnético é receptivo e corresponde ao elemento Terra. O Ar e Água, nesse caso, seriam elementos intermediários e condutores de eletricidade e magnetismo. Além disso, grosso modo, o Fogo corresponde ao Nitrogênio; a Água ao Hidrogênio; o Ar ao Oxigênio; e a Terra ao Carbono. A polaridade Fogo-Terra, assim, equivale às trocas químicas entre a vida orgânica (carbono) e a existência inorgânica (nitrogênio). E muitas versões mitológicas e esotéricas subdividem o elemento Terra em reinos (animal, vegetal e mineral) em função do desenvolvimento e da complexidade do carbono – e de sua interação com o hidrogênio e com oxigênio. Portanto, é possível pensar sobre os quatro elementos dentro de um quadro de referências objetivas.
Mais recentemente começou-se a falar em biosfera, hidrosfera, atmosfera e ... ‘noosfera’ (o mundo das ideias) – termo criado por Teilhard de Chardin e popularizado atualmente por Edgar Morin. Mas, as ideias são apenas unidades subjetivas (devaneios cristalizados) de frequências vibratórias acústicas e luminosas, de ondas elétricas do elemento Fogo. O termo ‘ionosfera’, por sua vez, enfocando apenas o aspecto externo do universo elétrico, exclui o homem das trocas ambientais entre os elementos, ignorando seu papel determinante no jogo de construção do mundo material.
 Por outro lado, há vários esoterismos (a Cabala, a Rosacruz, a Teosofia, a Antroposofia), que entendem o universo como um processo de involução (ou criação) progressiva de quatro estágios/mundos: as idades da terra (planeta). Nessas concepções, os quatro elementos representam a presença de três desses estágios anteriores no interior do presente mundo material. Assim, primeiro houve a era do ouro e do fogo celeste, depois a era de prata e da água divina; a era do cobre e do ar cósmico; e agora, o mais denso dos tempos, o kali-yuga, a era do ferro e da matéria formado pelos quatro elementos. Cada estágio/universo de desenvolvimento do planeta corresponde também a um 'corpo'. Assim, temos uma centelha divina no mundo arquetípico das emanações; uma alma que habita o mundo espiritual da criação e dos sonhos; uma mente operando no astral inferior; e um corpo na matéria.
2. Relacionando os elementos

NOOSFERA
Fogo exterior
HIDROSFERA
Água exterior
ATMOSFERA
Ar exterior
BIOSFERA
Terra exterior
ESPÍRITO
Fogo interior
REI DE PAUS
FOGO PURO
DAMA DE PAUS
Água dentro de fogo
O CALOR
CAVALEIRO DE PAUS
Ar dentro de fogo
A LUZ
SERVO DE PAUS
Terra dentro do fogo
A VIDA
ALMA
Água interior
REI DE COPAS
Fogo dentro de Água
O SONHAR
DAMA DE COPAS
ÁGUA PURA
CAVALEIRO DE COPAS
Ar dentro da Água
IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA
SERVO DE COPAS
Terra dentro da Água
A SENSIBILIDADE
MENTE
Ar interior
REI DE ESPADAS
Fogo dentro de Ar
O ARQUÉTIPO
DAMA DE ESPADAS
A Água dentro de Ar
IMAGINAÇÃO FORMAL
CAVALEIRO DE ESPADAS
AR PURO
SERVO DE ESPADAS
Terra dentro de Ar
A LINGUAGEM
CORPO
Terra interior
REI DE OUROS
Fogo dentro de Terra
O PODER
DAMA DE OURO
Água dentro da Terra
A RIQUEZA
CAVALEIRO DE OUROS
Ar dentro da Terra
O TRABALHO
SERVO DE OUROS:
TERRA PURA
Propomos aqui um exercício teórico-poético, com o objetivo de investigar através da imaginação simbólica as relações dos quatro elementos entre si – tendo como referência as 16 cartas figuradas dos Arcanos Menores do Tarô: os naipes correspondem às esferas elementais (Paus = Noosfera, Copas = hidrosfera, Espadas = Atmosfera e Ouros = Biosfera); enquanto as figuras são associadas ao microcósmico (Rei = Espírito, Dama = Alma, Cavaleiro = Mente e Pajem = Corpo).
Assim, no Naipe de Paus (a noosfera/ionosfera), encontramos quatro manifestações do elemento Fogo: O Rei de Paus, representando o elemento puro; A Dama de Paus (a Água dentro do Fogo) associada à ideia de Calor; O Cavaleiro de Paus (o Ar dentro do Fogo) representação da Luz; e o Servo de Paus (Terra dentro do Fogo) simbolizando a Vida.
O elemento Água no interior do universo ígneo se evapora em ondas de vapor úmido. É um fogo que queima e se alastra. Não é apenas um calor térmico, é também pressão, expansão. A alma sua memória purifica no espírito: a água quando se evapora, se destila, eliminando suas impurezas[1]. Por isso, também corresponde à qualidade psicológica da sublimação. Essa relação corresponde ao fogo dinâmico, contínuo e ao signo astrológico de Áries. Já o elemento Ar dentro da noosfera corresponde ao signo astrológico de Leão, ao Fogo fixo, estático e extático: a luz. Em várias mitologias, há uma oposição nítida entre o fogo que queima e o que ilumina, entre o fogo sexual e o espiritual. Essa oposição, no entanto, é equilibrada pelo Fogo mutável, a Terra dentro do Fogo, a vida, que corresponde ao signo astrológico de Sagitário, representado por Centauro, cuja parte inferior (o cavalo) corresponde ao fogo animal dos desejos e a parte superior (o guerreiro com arco e flecha), ao fogo espiritual.
Também se podem ver as três relações do fogo como diferentes tipos de ‘energia’: a vida orgânica produz a energia Chi (ou ki, japonês); a energia inorgânica (dos diferentes aspectos da natureza) é o Axé; e a energia das estrelas é o prana (ou reiki), a energia quântica. Nessa analogia, a energia das estrelas é a luz (fogo fixo); o axé corresponde ao calor (fogo dinâmico); e a energia orgânica, à vida (fogo mutável).
As águas seguem um ciclo bem conhecido: elas caem dos céus como sonhos (a água dinâmica, o signo de Câncer); escorrem pelos rios como a imaginação (a água mutável, Peixes); e desaguam no mar de emoções (a água fixa, Escorpião) e, após salgadas, novamente evaporarem pela ação do sol. Impossível não lembrar as deusas nagôs Yansã, Oxum e Yemanjá – adotadas pelo candomblé brasileiro.
Eliade demonstra (1992, 153-174), a universalidade da relação entre o simbolismo da água com a Lua e com o feminino. No esoterismo em geral, o simbolismo das águas está associado ao universo da emoção e dos sentimentos. O Rei de Copas, representando o elemento Fogo dentro deste mundo emocional, o espírito dentro da alma, nos evoca a noção de Sonhar, de um corpo astral através do qual a consciência navega em outros universos. A Dama de Copas corresponde ao elemento Água puro. O Cavaleiro de Copas, o Ar (a mente) no interior do universo emocional é uma representação da Imaginação Simbólica. O símbolo do espelho (GOMES, 2010, 21-46) também participa deste complexo de imagens. E, finalmente, o Servo de Copas, a terra dentro da água, nos lembra do sal e da Sensibilidade, o aspecto sensorial do universo afetivo.
O naipe de espadas simboliza o universo mental, onde encontramos o ar fixo em relação com o fogo, o signo de Aquário; o ar mutável (Gêmeos), em relação com a água; e o ar dinâmico (Libra), em relação com o elemento terra. O Rei de Espadas, representando a presença do espírito dentro da mente, nos remete à noção de Arquétipo e às imagens de relâmpagos e descargas elétricas no céu. A Dama de Espadas, a alma dentro da mente, nos faz lembrar a imagem de uma gota de orvalho e nos remete à ideia de Imaginação formal, da formalização dos sentimentos. O Cavaleiro de Espadas representa o elemento Ar em seu estado puro. E o Servo de Espadas, a Terra dentro do Ar, é a Linguagem, a materialização do pensamento.
O Rei de Ouros, fogo dentro do mundo material, a terra Dinâmico (Capricórnio) é representado pelas imagens vulcânicas da terra ctônica, pelos metais, pedras preciosas e pela ideia de Poder. Poder não no sentido de dominação do outro, mas sim de capacidade imanente de fazer. A Dama de Ouros, a água dentro da biosfera, corresponde à terra mutável (Virgem), à ideia de Riqueza e às imagens de solos argilosos e férteis. Riqueza não no sentido de acumulação de bens materiais, mas sim de variedade e complexidade de recursos. O Cavaleiro de Ouros, o ar dentro da matéria, a terra fixa (Touro) representa a ideia de Trabalho e das imagens de pedras sólidas e solos arenosos. Trabalho não só no sentido de atividade transformadora do mundo material, mas também no sentido de ser transformada por essa mesma mudança. E o Servo de Ouros simboliza o elemento Terra puro.
Assim, na biosfera, o poder (fogo imanente de uma terra constante) está em oposição ao trabalho (o ar em movimento em torno da terra fixa, o planeta). O resultado é a riqueza, a fertilidade e a abundância.
Ao estudar as relações elementais, abordaram-se os quatro elementos em séries de três, observando como cada elemento atua dentro de um único elemento de modo dinâmico, fixo e mutável. Pode-se também tomar os elementos por colunas, investigando como um mesmo elemento atua no interior dos outros três.
O elemento Fogo dentro da esfera das emoções se manifesta como Sonho, no interior do plano mental como Arquétipo e dentro da matéria como Poder. A Água no interior da esfera espiritual é Sublimação; dentro da mental, Imaginação; e nas entranhas da matéria, Riqueza. O elemento Ar na esfera espiritual explode em Luz; na esfera emocional se vê em um Espelho Simbólico; e dentro da esfera material, trabalha. A Terra no interior do plano espiritual é Vida, dentro do plano emocional, Sensibilidade; e no interior do plano mental, Linguagem.
3. Arranjos simbólicos conceituais
Bem estabelecido esses conceitos, vários arranjos simbólicos podem ser desenvolvidos em devaneios poéticos. A sequência dos signos das constelações do zodíaco astrológico, por exemplo, nos mostra os conceitos simbólicos embutidos na passagem do ano.
O Calor (o fogo cinético) é necessário para a arrancada dos começos, no equinócio da primavera; que se perpetua através do Trabalho (a terra estática) em abril e maio; estabelece-se então uma Linguagem (o ar mutável) comum no solstício de inverno; que nos permite Sonhar (a água dinâmica) em julho. A simplicidade majestosa da Luz (o fogo fixo) de agosto contrasta com a multiplicidade e com a complexidade da Riqueza (a terra mutável). No outono, a imaginação Formal (o ar cinético) tenta uniformizar as coisas, criando padrões e modelos; mas consegue apenas uma explosão de Sensibilidade (a água fixa) em novembro. Então, no final do ano a Vida (o fogo mutável) é combustível do Poder (a terra cinética) que tenta perpetuá-la, através do Arquétipo (o ar fixo) e da Imaginação Simbólica (a água mutável).
Ou ainda se colocarmos os signos zodiacais em pares opostos (180º): O Calor deseja incendiar os padrões da Imaginação Formal que a aprisiona; o Trabalho forma e é formatado pela Sensibilidade; a Linguagem imita a Vida que também a imita; Sonho e Poder brigam apaixonadamente; a Luz emana o Arquétipo que a protege; e a Riqueza e a Imaginação Simbólica travam uma luta silenciosa na construção dos valores.
Mas os arranjos de símbolos mais significativos são os que combinamos conceitos dos mesmos elementos.
O caráter oposto e complementar entre a Imaginação Simbólica (a mente no plano emocional) e a Imaginação Formal (a alma no plano mental) fica então bem definido. Enquanto a primeira pode ser representada pela bolha da percepção, a última lembra uma gota de orvalho em queda livre. A Imaginação Formal produz sentido dinamizando Arquétipos, enquanto a Imaginação Simbólica produz Sensibilidade a partir dos Sonhos.
A relação do Trabalho (a mente dentro do plano material) com a Linguagem (o corpo no interior do plano mental) também formam contradições de simetria invertida, as duas atividades combinam ar e terra em dinamizações diferentes, sendo que, no Trabalho, o labor corporal está inteligentemente orientado e, na Linguagem, a cognição se esforça dar sentido ao concreto.
O mesmo acontece na relação do Sonhar (o espírito dentro do plano emocional) com o Calor/sublimação (a alma no interior do plano espiritual): no sonho, o espírito navega em um mar de emoções; na sublimação, a alma destila suas dores no inferno/paraíso. E a relação da Sensibilidade (o corpo dentro da esfera emocional) com a Riqueza (o coração no interior do plano material) retrata a simetria invertida entre os elementos Terra e Água, representando a consciência de nossa finitude diante da grandeza do universo; o aprendizado afetivo de aceitação do mundo. As relações do Arquétipo (o espírito dentro do plano mental) com a Luz (a mente no interior do plano espiritual) e da Vida (o corpo dentro do plano espiritual) com o Poder (o espírito no interior do plano material), além de formarem contradições de simetria invertida como as outras quatro acima, também são opostos zodiacais e se constituem como arranjos simbólicos conceituais bastante significativos.
A relação do conceito simbólico ‘Arquétipo’ com a noção de ‘Luz’ representa a simetria invertida dos elementos Fogo e Ar. Os Arquétipos se assemelham às brasas e a fumaça, formas que emergem rapidamente das brasas. São imagens passageiras. Já a Luz é eterna, fixa, estática e apolar. A mente é apenas o ambiente em que ela se perpetua. Tratamos dessa relação mais adiante, no capítulo intitulado Estudos Cabalísticos. E a relação entre os conceitos simbólicos Vida e Poder expressa a simetria invertida mais importante de todas, a dos elementos Terra e Fogo. O Poder tenta controlar a Vida, mas é eternamente derrotado pela morte. Por outro lado, a vontade de poder é afirmação do desejo de realização aceito em sua fragilidade efêmera. Abordamos a relação entre Poder e Vida no final desse trabalho.
A Terra é o elemento que reúne o maior número de imagens arquetípicas. A rigor, todas as imagens são materiais, mesmo as de movimento e força. E da mesma forma que associamos as três relações elementais ao reino mineral (metal, argila e calcário), também se pode associá-las aos reinos vegetal (os vegetais, os fungos e os corais) e animal (os peixes, as aves e os mamíferos).
Há, no entanto, algumas imagens chave do elemento Terra, imagens de repouso que extrapolam as ideias de acolhimento e proteção - como o útero e o vinho – que também escapam aos arranjos dos conceitos simbólicos simétricos e transbordam a imaginação com outras formas de pensar.


[1] Há também poetas e mitologias que consideram o ‘imaginário do frio’ como sendo uma referência ao mal absoluto e/ou a morte eterna.

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