domingo, 21 de abril de 2019

EPÍGRAFE

Manoel Bandeira


Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.

Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida,
Rugia e como um furacão,

Turbou, partiu, abateu,
Queimou sem razão nem dó -
Ah, que dor! Magoado e só,
- Só! - meu coração ardeu:

Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria...
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.

- Esta pouca cinza fria.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Mito do Andrógino


 (Banquete de Platão[1])
No início, a raça dos homens não era como hoje. Era diferente. Não havia dois sexos, mas três: homem, mulher e a união dos dois. E esses seres tinham um nome que expressava bem essa sua natureza e hoje perdeu seu significado: Andrógino. Além disso, essa criatura primordial era redonda: suas costas e seus lados formavam um círculo e ela possuía quatro mãos, quatro pés e uma cabeça com duas faces exatamente iguais, cada uma olhando numa direção, pousada num pescoço redondo. A criatura podia andar ereta, como os seres humanos fazem, para frente e para trás. Mas podia também rolar e rolar sobre seus quatro braços e quatro pernas, cobrindo grandes distâncias, veloz como um raio de luz. Eram redondos porque redondos eram seus pais: o homem era filho do Sol. A mulher, da Terra. E o par, um filhote da Lua.
Sua força era extraordinária e seu poder, imenso. E isso tornou-os ambiciosos. E quiseram desafiar os deuses. Foram eles que ousaram escalar o Olimpo, a montanha onde vivem os imortais. O que deviam fazer os deuses reunidos no conselho celeste? Aniquilar as criaturas? Mas como ficar sem os sacrifícios, as homenagens, a adoração? Por outro lado, tal insolência era perfeitamente intolerável. Então...
O Grande Zeus rugiu: Deixem que vivam. Tenho um plano para deixá-los mais humildes e diminuir seu orgulho. Vou cortá-los ao meio e fazê-los andar sobre duas pernas. Isso com certeza irá diminuir sua força, além de ter a vantagem de aumentar seu número, o que é bom para nós. E mal tinha falado, começou a partir as criaturas em dois, como uma maçã. E, à medida em que os cortava, Apolo ia virando suas cabeças, para que pudessem contemplar eternamente sua parte amputada. Uma lição de humildade. Apolo também curou suas feridas, deu forma ao seu tronco e moldou sua barriga, juntando a pele que sobrava no centro, para que eles lembrassem do que haviam sido um dia.
E foi aí que as criaturas começaram a morrer. Morriam de fome e de desespero. Abraçavam-se e deixavam-se ficar assim. E quando uma das partes morria, a outra ficava à deriva, procurando, procurando...
Zeus ficou com pena das criaturas. E teve outra idéia. Virou as partes reprodutoras dos seres para a sua nova frente. Antes, eles copulavam com a terra. De agora em diante, se reproduziriam um homem numa mulher. Num abraço. Assim a raça não morreria e eles descansariam. Poderiam até mesmo continuar tocando o negócio da vida. Com o tempo eles esqueceriam o ocorrido e apenas perceberiam seu desejo. Um desejo jamais inteiramente saciado no ato de amar, porque mesmo derretendo-se no outro pelo espaço de um instante, a alma saberia, ainda que não conseguisse explicar, que seu anseio jamais seria completamente satisfeito. E a saudade da união perfeita renasceria, nem bem os últimos gemidos do amor se extinguissem.


sábado, 9 de fevereiro de 2019

mensageiros do vento


O livro perdido de Enki


Em inúmeras lendas e mitos, a liberdade aparece como um castigo ou como resultado de uma desobediência da humanidade em relação aos deuses. Em algumas narrativas, a liberdade é dada ao Homem por outros seres, como no mito de Prometeu, em que o fogo dos deuses é roubado para que o homem conquiste a própria liberdade; em outras, é a consciência que, mascarada por diferentes símbolos (o fogo, a bebida sagrada), é engendrada por conflitos entre seres de outra ordem evolutiva, em que alguns são favoráveis e outros contrários à humanidade.

Enquanto no hinduísmo, os Devas correspondem aos ‘bons’ e os Asuras, aos ‘maus’; na mitologia persa/zoroastrismo ocorre o contrário. Os anjos dos hindus são os demônios dos persas e vice-versa. As razões para essa inversão simétrica são complexas. É possível que se deva à rivalidade entre impérios vizinhos, mas também a interpretações diferentes do ‘complexo de Prometeu’ e da liberdade furtada pelos anjos decaídos e partilhada com a humanidade. Nesse aspecto, os Asuras persas são semelhantes a Lúcifer, aos titãs gregos e aos gigantes do gelo nórdicos do Ragnarök (o crepúsculo dos deuses germânicos), seres primordiais rebeldes em relação à criação, em virtude dos quais a liberdade (ou insubmissão da consciência do bem e do mal) chegou até os homens, tornando-os uma espécie transgressora e destrutiva.

Descobertas arqueológicas recentes apontam para uma convergência mitológica em torno da cultura suméria. Além de antecipar várias passagens da Bíblia (Adão e Eva, Caim e Abel, a torre de Babel, o final dos tempos), as religiões babilônicas também têm temas comuns aos Vedas, às narrativas egípcias (as histórias de Rá, Osiris, Isis, Horus, Set) e ao panteão astrológico da mitologia grega. A cultura suméria é a base da maioria das culturas antigas ocidentais, um sistema de crença complexo que antecipa e compreende outras mitologias posteriores, dela derivadas. 

Segundo o livro perdido de Enki de Zecharia Sitchin, compilação de centenas de tabuletas traduzidas da antiga escrita cuneiforme, os Anunnakis vieram de Nibiru em suas carruagens celestes para terra a procura de ouro para corrigir um desequilíbrio em seu planeta. Para minerar o metal, criaram e escravizaram outra espécie de seres – os Igigi (os gigantes). Eles, no entanto, se rebelaram contra Enlil e os Annunakis. Foi então que Enki sugeriu a criação da humanidade, inseminando o DNA Anunnaki a espécies de símios. Porém, os homens também se rebelaram e os alienígenas decidem acabar com todos, através de um dilúvio. Enki, sempre dissidente, conta aos homens dos planos de Enlil e os ensina a fazer um submarino e um banco de dados genéticos para sobreviver a catástrofe e repovoar a terra. O fato dos deuses serem astronautas não é tão interessante quanto a síntese mitológica que a narrativa engendra, explicando toda mitologia ocidental.

Os mitos sumérios, assírios e babilônicos têm muitas versões e interpretações, em que os deuses trocam de nomes e de papéis, se fundem em um só deus ou se dividem em dois. Enki é o "Senhor da Terra" e um deus de oposição aos céus: genro do usurpador Alalu; pai do rebelde Marduk, líder da revolta Igigi; ele é chamado de "ushumgal", a Grande Serpente.

Por exemplo: Anu proíbe que os Anunnakis ensinem segredos aos homens, que devem ser mantidos ignorantes e trabalhando na lavoura. Os Anunnakis, entretanto, conclui que os homens serão mais úteis se aprenderem os segredos do pão, do vinho, da cerveja e das roupas. Com este conhecimento, os homens passam a produzi-los para si e para os deuses. Inicialmente, os homens não consomem o pão e as bebidas, pois o deus Enlil lhes diz que morreriam se o fizessem, mas Enki lhes explica que não haveria problema. Há também uma versão em que o homem vivia no reino celestial e Anu lhe oferece o alimento que lhe daria vida eterna, mas ele o recusa porque Enki lhe diz que o alimento o mataria. O homem é então expulso do reino.

Outro exemplo interessante (de como os sumérios entendem o papel de Enki e o mito dos jardins do Éden) é o épico Gilgamesh. Enkidu (que personifica a humanidade) vive como um animal, comendo capim e bebendo água do rio. Mas, seduzido por uma prostituta do templo, Enkidu experimenta pão e vinho, passando a usar roupas e vai morar na cidade de Uruk, onde conhece Gilgamesh. Para a cultura sumeriana, a vida urbana era o ideal, a vida rural era selvagem e atrasada. Os deuses moravam em cidades e o Éden era o local onde a humanidade vivia como bicho, incessantemente trabalhando sem perceber para alimentação de seus senhores. Para os antigos sumérios, o atual desejo dos judeus, cristãos e muçulmanos de voltar para o Éden pareceria loucura.

Mais do que um conflito entre a terra e o céu (Nibiru), há uma oposição filosófica entre Destino (representado por Enlil) e Sorte (encarnado em Enki). O deus da terra sempre defende a liberdade e que somos nós que fazemos nosso destino; enquanto Enlil e Anu obedecem aos ciclos e suas determinações, repetindo o passado no futuro.


terça-feira, 8 de janeiro de 2019

A escolha


O JULGAMENTO DE PÁRIS[1]
Marcelo Bolshaw Gomes
Zeus, rei dos deuses gregos, deu um banquete em comemoração ao casamento de Peleu e Tétis (pais de Aquiles). Eris, a deusa da discórdia, não foi convidada, mas mesmo assim compareceu. Ela chegou à festa com uma maçã de ouro do Jardim das Hespérides, sobre a qual estava escrito "um presente para a mais importante das deusas".
Três deusas presentes ao banquete reivindicaram a maçã: Hera, Atena e Afrodite. Elas pediram a Zeus para decidir a disputa. Atena, nascida da cabeça de Zeus, é a deusa da sabedoria e do Poder. Deusa das estratégias em tempo de guerra e da cultura em tempo de paz. Hera, esposa de Zeus, deusa do casamento e da maternidade, cuja a potência maior está na coragem afetiva, nos sentimentos verdadeiros. E Afrodite, deusa da beleza e das artes.
Tratava-se de uma disputa entre a justiça, a verdade e a beleza. Quem seria a mais importante? Inicialmente, Zeus tentou decretar diplomaticamente um empate. Mas, nenhuma das participantes aceitou. Então ele decidiu eleger Paris, um mortal, príncipe de Troia, julgaria o caso, em seu lugar. Assim, Hermes, o deus mensageiro do Olimpo, foi encarregado de levar as deusas, individualmente, à presença de Páris – para que ele as conhecesse. E cada uma das deusas ofereceu ao príncipe um presente como suborno caso fosse a eleita. 
Hera lhe ofereceu a Coroa do Mundo e todo o poder por ela emanado. Além disso, concederia ainda o dom da felicidade e da vida longa, ao lado da esposa, da família e dos amigos.  
Atena lhe prometeu o poder sobre os homens, sabedoria e justiça equiparadas a de Zeus. Além disso, ele seria sempre vitorioso em qualquer disputa que travasse.
Por último, veio Afrodite e lhe prometeu Helena, a mais bela entre as mulheres mortais, esposa de rei Menelau de Esparta. 
Páris escolheu Afrodite[2]. Atena e Hera, ressentidas com a escolha, juraram vingança o que, posteriormente, culminou na destruição de Tróia. 




[1] Tal como acontece com muitos contos mitológicos, os detalhes variam de acordo com a fonte. A breve alusão ao Julgamento na Ilíada (24,25-30) mostrando que o episódio que iria iniciar a ação posterior já era familiar pelo público; uma versão mais completa foi contada na Cypria, uma obra perdida do ciclo épico, dos quais apenas fragmentos (e um resumo confiável) permanecem. Os escritores posteriores Ovídio (Heroides 16.71ff, 149-152 e 5.35f), Lucian (Diálogos dos Deuses 20), a Bibliotheca (Epitome E.3.2) e Higino (Fabulae 92), recontam a história com um olhar cético ou irônico. O mito apareceu no século VII a.C. em Cypselus em Olímpia, que foi descrito por Pausânias.
[2] Analisando a história “O julgamento de Páris”, McLean (1992, p. 91) afirma que Homero esquartejou “a antiga triplicidade lunar, subdividindo a deusa em Virgem (Atena), Mãe (Hera) e Amante (Afrodite)”. A ideia subjacente à narrativa é que cada mulher faz, em um momento, a escolha por um único arquétipo feminino, relegando os dois outros à sombra do inconsciente. Além da escolha masculina ser “naturalizada”: os homens preferem mesmo a beleza sexual do que a companhia das donas de casas ou das mulheres profissionalmente bem sucedidas.

sábado, 29 de dezembro de 2018

astrosociologia?


UM MODELO PARA ASTRO SOCIOLOGIA
Marcelo Bolshaw Gomes[1]

O presente texto retoma a discussão sobre a cientificidade dos saberes alternativos, principalmente a astrologia, tentando demonstrar que a ciência contemporânea pode (e deve) explicar e compreender esses saberes ao invés de simplesmente refutá-los. Para tanto, discute-se a relação da astrologia com a modernidade e a sua possível compatibilidade com a sociologia. O texto concluí que é possível traçar paralelos entre as duas disciplinas e sugere alguns parâmetros.

1)      Introdução
Existem vários textos apaixonados sobre se a astrologia é ou não é uma ciência. Mas, trata-se de uma diálogo entre surdos, pois nem os astrólogos escutam os argumentos científicos quanto os cientistas se recusam a entender o ponto de vista dos que gostam da astrologia. No entanto, é rara uma abordagem que coloque a questão dentro de uma quadro de referências mais gerais, por exemplo, sobre a relação entre a epistemologia contemporânea e a reinvenção atual de saberes meta tradicionais (como acupuntura ou homeopatia). Tais saberes não-científicos do ponto de vista da física e da química, no entanto, tem comprovação pessoal e estatístico-histórica (da mesma forma que a economia e a psicologia, que atendem apenas a esse tipo de validação para serem consideradas ‘ciência’). Há vários saberes não-científicos que funcionam objetivamente como formas práticas de conhecimento.
Karl Popper demonstra, por exemplo, que o marxismo e a psicanálise não são científicos epistemologicamente. Mas, sua ‘falta de cientificidade’ em nada diminui a eficácia prática explicativa e compreensiva desses saberes frente a realidade. Porém, a ciência deve(ria) investigar 'como' e 'em que condições' tal saber é válido - e não simplesmente dizer que não é científico porque não se enquadra em seus métodos de análise específicos. A ciência deve(ria) incluir, compreender, todos os saberes tradicionais e alternativos em sua teoria e não simplesmente excluir os elementos lógicos e as informações que não consegue explicar.
Há inclusive textos que compilam a comparação entre astrologia e astronomia (ou em relação à epistemologia e geral), sistematizando suas discordâncias: a ilusão de que a força gravitacional ou o eletromagnetismo dos corpos celestes influenciarem os corpos terrestres e as personalidades humanas; a descoberta científica de uma décima terceira constelação zodiacal (e de outros elementos astronômicos gigantescos como buracos negros, nebulosas, supernovas – aparentemente sem nenhum significado astrológico); e, principalmente, o movimento de precessão da terra[2].
O movimento de precessão é causado pelas forças exercidas pela translação do Sol e pela da rotação da Terra e da Lua, fazendo com que o planeta se movimente em relação ao próprio eixo. Esse movimento muda as estrelas de lugar para o observador terrestre. A cada ano, a terra sofre uma precessão de cerca de 20 minutos. Em 2160 anos, a mudança é de 30 graus. Na época em que a astrologia foi concebida, o sol nascia às seis horas da manhã na constelação de Áries; durante muitos séculos, o sol nesse dia nasceu em Peixes; e nos dias atuais, a constelação que abre o equinócio de outono no hemisfério sul é a de Aquário.  
Ou seja: céu astronômico não coincide mais com o céu astrológico!
Tal fato é o principal argumento dos cientificistas – uma vez que não havendo coincidência também não há causalidade nem observação da realidade. O fato também levou a uma minoria dos astrólogos a uma pretensão atualização[3]. Mas, a grande maioria passou a entender que não são os astros que determinam os acontecimentos, mas que são a linguagem dos símbolos que condicionam nossas vidas. A astrologia, assim, não seria uma ciência do sentido estrito, mas sim uma linguagem, uma arte de interpretação. Para esses, a astrologia não é uma ciência e a ideia simplificada de que os corpos celestes determinam a vida das pessoas é falsa. Mas, isto não significa que ela não faça sentido em determinado nível, tanto no que diz respeito à relação entre a personalidade e as características dos signos zodiacais, como em relação aos contextos complexos formados por símbolos astrológicos que influenciam os acontecimentos.
2)      Astrologia e ciência
Antes da escrita e da história, havia diferentes ‘astrologias’: a chinesa, a indiana, a etno-astronomia dos povos pré-colombianos e a sumeriana - cujo modelo solar deu origem à astrologia e à astronomia contemporâneas. Essas astrologias pré-históricas das sociedades tradicionais tinham em comum a simultaneidade temporal (ou tempo circular lunar-solar), o geocentrismo (a terra do centro do universo) e a simetria entre o mundo e o cosmo (o homem como reflexo do universo).
Com o aparecimento das escritas e do tempo contínuo da história, a ciência (ou o projeto de representação objetiva que o universo tem de si próprio) e a modernidade cultural (a imagem pretensamente objetiva que a sociedade faz de si mesma) passou lenta e progressivamente a construir um paradigma do observador onisciente, que o vê o universo de um ponto cego.
Hoje este modelo astrológico não nos serve mais de paradigma de observação científica dos céus mas continua válido como ‘Themata’ ou paradigma simbólico. Assim, no paradigma objetivo da astronomia, sabemos que a Terra gira em torno do Sol; no entanto, continuamos dependendo simbolicamente do paradigma subjetivo da astrologia, que como uma linguagem do inconsciente, condiciona atitudes e comportamentos, através da associação de determinadas características psicológicas aos meses do ano, por exemplo.
A ciência e o pensamento objetivo superaram apenas parcialmente o antigo paradigma de representação e esta ‘superação’ é uma questão muito relativa: ao contrário do que pensam os historiadores da ciência, a ideia de um sistema geocêntrico não significa que Ptolomeu acreditasse que o Sol girasse em torno da Terra, mas sim que ele colocava a questão da representação objetiva do universo em um segundo plano diante da ideia de decifração do destino através da observação especular das estrelas.
Devido ao movimento de precessão do eixo da terra, os céus astrológico e astronômico não coincidem mais. Tal fato, paradigmático da relação geral entre cosmologia científica e cosmogonia simbólica, divide atualmente os astrólogos em dois grandes grupos: os defensores de uma atualização do simbolismo ao céu real e os que dissociam completamente a linguagem astrológica da realidade astronômica (GOMES, 1998, 04).

Assim, fazemos duas representações do universo, uma consciente e pretensamente objetiva (em que a terra é uma bola de pedra que gira em torno de uma bola de fogo); e outra, inconsciente e subjetiva, povoada por símbolos, imagens e energias invisíveis. O paradigma astrológico perdura no campo morfogênico como uma linguagem simbólica do inconsciente.

Atualmente, vivemos um terceiro momento epistemológico: a pós-escrita[4]. A partir dos anos 60, voltamos a viver na simultaneidade de tempo, acrescida agora da sua irreversibilidade histórica. A internet e as redes digitais em suportes móveis (como o celular, o GPS, o tablete) aprofundaram ainda mais a revolução que a linguagem audiovisual já havia começado.  Esta nova concepção corresponde a noção de ‘múltiplos tempos simultâneos compreendidos dentro de um único tempo irreversível’ proveniente da mecânica quântica e oferece um novo paradigma de representação onde a previsibilidade de um evento depende, ao mesmo tempo, do simbólico e do científico. E, apesar das inúmeras diferenças dos modus operandi entre o conhecimento científico e o saber tradicional, ambos têm um único objetivo: evitar o infortúnio e a adversidade, procurando antecipar os acontecimentos para melhor enfrenta-los.
3)      Sociologia e ciência
E a sociologia? É uma ciência? Sim e não. Depende do que entendemos por sociologia e ciência. A sociologia de Durkheim, que tem por objeto o ‘fato social’ e busca explicar as causas últimas dos fenômenos, se pretende científica. Ele pressupõe um corte epistemológico com o senso comum, uma ruptura com a percepção do imediato.
Já a sociologia de Max Weber, que tem por objeto a ‘ação social’ e busca compreender a realidade social a partir da observação direta engajada, não tem a mesma pretensão de objetividade e de cientificidade que Durkheim e seus seguidores. Weber define uma sociologia interpretativa, mais preocupada em compreender os motivos do que determinar e explicar as causas.
A ciência também pode ser entendida como uma forma de saber racionalista e empirista, superespecializada e sem noção de conjunto (a ciência determinista e mecanicista do paradigma imposto pela escrita); e como uma ciência da complexidade, relativista (multi-subjetiva) e integral, como um saber geral que tenta englobar compreensivamente os outros saberes específicos: o saber universal por consenso[5].
Edgar Morin, no livro O retorno dos astrólogos (1972), foi o pioneiro na possibilidade de aproximação da sociologia interpretativa com a astrologia, entendida como uma linguagem simbólica popular universalizada pela mídia. Há também outras iniciativas interdisciplinares nos estudo do imaginário e da mitologia. Devaneios da Imaginação Simbólica (GOMES, 2017), por exemplo, faz uma aproximação entre os quatro elementos e antropologia.
Porém, falta ainda quem sugira um modelo de equivalência dos elementos astrológicos com os sociológicos, estabelecendo parâmetros operacionais explícitos para comparações e analogias diferentes.
Tabela 1: A equivalência de elementos astrológicos e sociológicos
PLANETA
SIGNIFICADO
EQUIVALENTE
ROTAÇÃO
Planetas transpessoais (Modernidade)

Plutão
A IMPERMANÊNCIA
TRANSFORMAÇÃO
248 anos
Netuno
A TRANSCENDÊNCIA
PSICODELIA
164 anos
Urano
A UNIDADE
TECNOLOGIA
84 anos
Planetas sociais (países, classes sociais, gerações)

Saturno
SEVERIDADE
CICLOS ECONOMICOS
29 anos e 167 dias
Júpiter
BENEVOLÊNCIA
POLÍTICAS PÚBLICAS
11,86 anos
Planetas pessoais (age mais individualmente)

Marte
AGRESSIVIDADE
POLÍCIA/EDUCAÇÃO
687 dias
Lua
VITALIDADE
SAÚDE/ALIMENTAÇÃO
28 dias
Vênus
SEXUALIDADE/ LINGUAGEM
MEIOS DE COMUNICAÇÃO
224,65 dias
Mercúrio
TROCAS
COMÉRCIO/TRANSPORTE
88 dias
Sol
ESPIRITUALIDADE
GOVERNO/RELIGIÃO
365,24 dias
Fonte: elaborado pelo próprio autor
Para o sociólogo contemporâneo Anthony Giddens (1991), as sociedades tradicionais têm uma reflexibilidade entre o passado e o presente, onde a memória formata o vivido e o agora confirma o passado. A modernidade se caracteriza pelo risco e pela imprevisibilidade, uma reflexibilidade entre o presente e o futuro, entre a simulação do devir e a reconfiguração do atual. Para ele, a modernidade e a tradição convivem lado a lado em nossos dias. As tradições culturais ainda modelam nossa identidade enquanto o risco transforma nossas vidas em aventuras. Estamos em um estágio avançado da modernidade ou pós-modernidade, em que os aspectos significantes da linguagem (a imagem, os sentimentos, os sons, as impressões subjetivas) – festejados nos tempos tradicionais e reprimidos em função dos significados durante toda ditadura do emissor imposta pela escrita – retornam mesclados com feminismo e com a democratização das relações pessoais.
4)      Modelo astro sociológico
No modelo aqui proposto, os planetas transpessoais representam a reflexibilidade moderna e os sete planetas clássicos correspondem a reflexibilidade tradicional. Urano representa a tecnologia e a eletricidade. Plutão, a impermanência, a eterna mudança. E Netuno, a consciência transcendente. Essa discussão (sobre Netuno, Urano e Plutão em relação à modernidade) foi desenvolvida (pasmem) pelo ideólogo ultradireitista Olavo de Carvalho[6], adepto da astrologia tradicional.
Urano, por exemplo, recebe uma interpretação já muito ligada ao próprio espírito moderno. Certas organizações esotéricas agem, ritualmente, no sentido da interpretação que elas próprias atribuíram ao planeta. Os ciclos destes astros começam a trabalhar mais neste sentido, porque são reforçados pela ação humana. Eu não acredito, realmente, que um planeta possa trazer a ideologia da revolução francesa. Agora, quando se quer realizar uma grande mudança no mundo, saber da existência de um novo planeta pode ser maravilhoso, já que possibilita a realização de toda uma reinterpretação da história, com base nos significados que você mesmo quis atribuir a ele. Acontece a mesma coisa com Netuno e Plutão, mas isto não quer dizer que estas interpretações não funcionem, porque parcialmente estes efeitos podem corresponder ao dos planetas, embora sejam apenas uma parte destacada do significado total daquele astro. Até o sétimo planeta, os astrólogos contavam com uma interpretação estável entre várias civilizações e não dá para justificar estas interpretações apenas como produto ideológico de tais civilizações. Mas nestes últimos, você tem interpretações específicas da astrologia ocidental, feita quase que totalmente por sociedades secretas. Essas interpretações não tem universalidade, apesar de poderem ser parcialmente válidas.
Reparem que o argumento de Carvalho é que ‘planetas modernos’ rompem com a reflexibilidade tradicional e não existem em diferentes tradições, se confundindo com a própria ação social que deseja transformar o mundo. A revolução moderna é baseada nas mudanças tecnológicas de Urano, na destruição das velhas estruturas sociais por Plutão e no sonho encantado de Netuno. Para ele, não há sentido nos ciclos astrológicos de longa duração em relação aos movimentos históricos.
Outra distinção relevante do modelo de analogia proposto entre elementos astrológicos e sociológicos é diferenciação entre os planetas Saturno e Júpiter - que devido a sua rotação lenta representam elementos coletivos (estados nacionais, classes sociais, gerações); dos planetas pessoais, que, mais rápidos, correspondem as relações sociais mais individualizadas.
Na antiguidade não havia o que chamamos de ‘adivinhação individual’. Até mesmo os oráculos dos reis não se referiam a eles como pessoas mas como instituições. Nas artes divinatórias primitivas o que importava era a interpretação e a manipulação das forças naturais e não o destino individual dos consulentes. Ao contrário: o destino individual era constantemente ‘sacrificado’ em nome da harmonia cósmica (GOMES, 1998, 03).
E, assim, os ‘deuses planetários’ (personificações de forças naturais, representavam simultaneamente lugares, vocações, dramas arquetípicos que fundam costumes e tradições) foram reduzidos a meros ‘tipos psicológicos’ modernos, os signos zodiacais modernos. A astrologia contemporânea, nesse sentido, é anti-sociológica, porque compreende a sociedade como um conjunto de indivíduos autônomos. Na verdade, não havia ‘indivíduos’ assim como entendemos antes da revolução francesa, mas pessoas e identidades coletivas.
No modelo astro sociológico proposto, o percurso do sol está associado ao ano litúrgico e à agenda do governo. O estado laico é uma tentativa de desvincular as duas agendas, marcadas pela passagens das estações. A atividade econômica, o trabalho, o consumo e a organização do tempo em função do corpo são atributos regidos pela lua em seu ciclo de 28 dias. O sol é a política; a Lua, economia. E Vênus, do ponto de vista sociológico, é representada pelos meios de comunicação, no sentido que essas instituições controlam as imagens que agentes fazem de si e a sua ‘energia sexual’. O planeta Mercúrio, comumente associado à comunicação, figura no modelo como um mediador das trocas sociais, representando as atividades do comércio de bens e serviços, bem como o sistema de transporte da sociedade. Pode parecer arbitrário associar Marte às instituições policiais e educacionais ao mesmo tempo, mas se pensarmos em termos de administração da agressividade social, essa associação fará o maior sentido. Porém, os dois parâmetros mais importantes para uma análise histórica e sociológica baseada em elementos astrológicos está na observação dos planetas Saturno (macro ciclos econômicos) e Júpiter (planejamento de políticas públicas e/ou ação governamental/institucional involuntária).
(CONTINUA)


Bibliografia
ELIADE, M. Tratado Histórico das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. 1ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 1991.
GOMES, Marcelo Bolshaw. O Hermeneuta - Uma introdução ao estudo de Si. Dissertação de mestrado em Ciências Sociais (1997). Livro, v.01. p.164. Natal: Editora Universitária da UFRN (EDUFRN), 2010a. <https://www.academia.edu/34061443/O_HERMENEUTA.pdf>
___ Hermenêutica e os erros de interpretação (Segunda parte de O hermeneuta). Revista Vivência v.12, n.02; p.05-18. Natal: UFRN, 1998. <https://www.academia.edu/1583736/Os_Tr%C3%AAs_Erros_de_Le%C3%B4nidas_Princ%C3%ADpios_de_Interpreta%C3%A7%C3%A3o_Dial%C3%B3gica> último acesso em 16/07/2015.
Devaneio da Imaginação Simbólica. Natal: Editora Universitária da UFRN, 2017, v.1. p.120
MORIN, Edgar. O retorno dos astrólogos. Lisboa: Moraes, 1972.
ZOHAR, D. Através da Barreira do Tempo - um estudo sobre a precognição e a física moderna. São Paulo: Pensamento, 1982.
VON FRANZ, M. L. Adivinhação e sincronicidade. São Paulo: Pensamento, 1990.



[1] Professor de Comunicação Social com doutorado em ciências sociais.
[4] A pós-escrita é uma noção definida por Flusser, mas já existia de forma parcial em muitos outros autores. Mc Luhan é o pioneiro em perceber que a televisão nos levaria a uma aldeia global. Pierre Levy estabelece três modos de interação: o um-um (a oralidade); o um-muitos (um emissor, muitos receptores); e muitos-muitos (redes em que todos os pontos se ligam). Kerckhove fala de contexto, texto e hipertexto. Pross prefere mídia primária (corporal), secundária e elétrica. E assim por diante.
[5] E não o universal imposto pelo etnocentrismo cultural sobre os saberes regionais.