O USO RITUAL DAS PLANTAS DE PODER
(resenhado por Bartira Calado )
O Uso Ritual das Plantas de Poder é um livro organizado por Beatriz Caiuby Labate e Sandra Lucia Goulart, composto por 14 artigos de autores diferentes, cada um abordando como tema central alguma planta de poder ou o contexto na qual ela está inserida. Na seqüência do livro temos: primeiro, um artigo falando sobre os acontecimentos dos últimos 150 anos de pesquisas sobre plantas e substâncias psicotivas; depois, um abordando o tema do Pariká; seguido pelo artigo que explana sobre a origem e o uso ritual da Coca na Amazônia; um outro, sobre as plantas psicoativas dos machiguenga do Peru, com ênfase para o Tabaco; temos, então, três artigos dissertando sobre a Jurema; um sobre o Buiti, religião enteogênica africana, que faz uso da Iboga; 4 artigos envolvendo como tema central a Ayahuasca; e por fim, os dois últimos artigos do livro abordam o uso do Cânhamo.
Primeiro Artigo: ‘A Odisséia Psiconáutica’
Falar sobre os últimos 150 anos de pesquisa sobre plantas e substâncias psicoativas, não é tarefa fácil. O primeiro artigo do livro, de Herinque Carneiro, aborda de maneira bastante informativa e simplificada o tema. A intenção principal do autor é apontar algumas obras essenciais dos estudos históricos e antropológicos sobre o papel dos alucinógenos na cultura e historiar brevemente sobre alguns usos dessas substâncias no decorrer do século XX. No meio dessa ‘odisséia psiconáutica’, termo usado pelo autor, nos deparamos com questões bastante interessante como, por exemplo, uma breve história da normatização das drogas; questões que dizem respeito aos usos sagrado de substâncias psicoativas em diferentes culturas; ao seu uso contemporâneo internacional, onde diferentes consumos produziram diversos fenômenos, como o surgimento de novas religiões, círculos científicos de pesquisa e experimentação, influência estética, uso recreacional popular; como e porque iniciou-se uma política de guerra contra as drogas (inquisição farmacrática); as polêmicas que giram em torno dessa questão: será que o Estado pode determinar uma jurisdição química sobre a mente? Será que cada indivíduo não tem o direito da livre disposição do seu corpo e de autonomia sobre si próprio? Quais os limites para a liberdade de autoprogramar-se quimicamente? Enfim, o artigo é uma espécie de ‘abre alas’ para os temas que viram posteriormente no livro. E fugindo um pouco da seqüência, eu vou falar agora sobre os artigos que tem como tema a Jurema.
A Jurema
A Jurema, planta sertaneja, conhecida como a planta de poder tipicamente brasileira é um tema riquíssimo ainda a ser explorado. E isto, porque falar sobre Jurema é mergulhar num campo múltiplo de significados, é seguir por contextos diversos e ainda se deparar com caminhos não abertos. As metamorfoses da jurema, como alguns costumam falar, exprimem o quanto esta planta possui força e poder, fazendo com que brote em torno dela novas representações simbólicas.
No primeiro artigo sobre a Jurema, a ex-presidente da Associação Nação Jurema, de Aracaju, Clarice Novaes, vai abordar as trajetórias simbólicas assumida pelas espécies da planta. Seu objetivo é apreender os significados envolvidos no processo de dispersão da Jurema. De maneira geral podemos identificar três percursos distintos: 1) a jurema das matas (jurema nordestina indígena-rural); 2) a jurema afro-brasileira (presente nos rituais de origem africana, representa o espírito dos cabocos índigenas); 3) a jurema urbana ocidental européia(caracterizada pela busca subjetiva e individual). O primeiro grande campo semântico sob o qual a Jurema está envolvida é o tema do segundo artigo que fala sobre a planta. Nele, Rodrigo Grünewald aprofunda-se sobre aquilo que ele chama de a “Ciência do Índio”, com o enfoque para a palavra jurema utilizada como sinônimo de uma bebida mágica ou mistíca. O terceiro artigo, de Roberto Motta, destaca a Jurema dentro do contexto das religiões afro-brasileiras. Dessa forma, podemos dizer que os artigos se completam fornecendo um grande número de informações sobre o tema. Abaixo segue algumas idéias presente nos três artigos.
Os três autores concordam que a origem do feitio dessa bebida é indígena, e que portanto os índios são considerados os sujeitos fundadores do conhecimento xamânico sobre a planta e sua bebida. Entre eles, a ingestão da bebida é realizada normalmente em festas sagradas, seguidamente acompanhada de dança, dos ‘torés’ – danças sagradas de origem ancestral, nesses festejos os seguidores da jurema recebem instruções sobre suas vidas e da vida coletiva da aldeia. De maneira geral, a jurema é vista como uma espécie de sacramento que une todos os presentes. Segundo Novaes, essas festas constitui verdadeiros selos de identidade étnica, ela observa que através dos rituais em torno da jurema, solidifica-se a identidade grupal e a autoconsciência individual do indígena nordestino. Para os índios, a jurema é vista como uma divindade protetora e misteriosa que deu origem não só a tribo, mas ao mundo dos seres vivos e dos encantados, dos quais é rainha suprema; ela propicia sentido à existência e também a morte.
Outro ponto importante leventado por Grünewald é que são várias as bebidas e beberagens que se fazem com o nome de jurema, seus usos entre os indígenas perpassa o período anterior a colonização portuguesa, onde a partir de então, devido a intolerância religiosa, passa a sofrer fortes repressões policiais, confinado as práticas da jurema ao silêncio. Os juremeiros passam a ser perseguidos e a forma que encontram de conservar suas práticas é mantendo o sigilo e o segredo sobre elas, dessa maneira, muitos conhecimentos são perdidos sobre essa planta. As perseguisões também favorecem uma possível migração do uso da jurema do nordeste para o norte do país; e do contato entre os índios e negros do litoral acaba por emergir posteriormente uma nova prática mágica com a bebida, onde a jurema passa a ser integrada ao panteão das entidades africanas. Sendo, na verdade, considerada a entidade brasileira dentro do culto. No contexto da religiões afro-brasileiras a jurema é caracterizada como a mulher de origem nativa do Brasil, como a Cabocla Jurema, com seu chapéu e saia de pena, seu arco e sua flecha. Suas indumentárias e objetos são de uso masculino e não feminino, ela por exemplo usa calça em vez de saia, seus rituais de incorporação são marcados pela presença do charuto e do vinho. Motta começou suas pesquisas na década de 70, quando ficou impressionado ao constatar que uma porcetagem altíssima de centros de ‘espiritismo popular’ da região do Recife entregavam-se, predominantemente, a prática da jurema. Então no seu artigo ele nos fala sobre as transformações históricas da planta; sobre os elementos que foram se incorporando ao ritual da jurema como, por exemplo, a figura do mestre e técnicas mágicas, as influências kardecistas; sobre as distinções bem marcadas no Catimbó-Jurema entre ‘a mesa branca’ e a ‘jurema de chão’; enfim, mostra-nos como os ritos do Catimbó-Jurema são eminentemente ritos de cura e alívio e que certamente são as formas popular mais simples e acessíveis de terapia para a maioria das pessoas do nordeste. Resaltando também que, ao mesmo tempo, a jurema vai além de sua função terapêutica, transformando-se em brincadeira, dança e festa.
Na terceira dispersão da Jurema, integrada agora ao centros urbanos do Brasil e do mundo, a experiência com a bebida produzida a partir das raízes da planta passa a assumir caráter de agente de cura, tanto psíquica como espiritual. O ritual da jurema passa a ser utilizado, como nos diz Clarice Novaes, como um “tipo de experiência que busca forjar uma nova identidade social para seus usuários (...). Uma identidade extraída da busca por uma versão que acreditam ser ‘mágica da vida’ e também do despertar de uma consciência desenvolvida através de experiências ‘psicotrópicas’; embora com fins declaradamente terapêutico” (pág 233). O fato é que o experimentalismo contemporâneo do ‘vinho da jurema’, se deve em parte as pesquisas científicas que demostram as altíssimas concentrações de N-dimetil-triptamina, o famoso DMT, presente na planta e, também, como nos fala Grünewald, devido aos muitos bons resultados obtidos na área de terapia transpessoal de dependência de drogas e uso ritualístico clínico. Fatos estes que insere cada vez mais a jurema dentro do circuito experimental de plantas psicoativas, passando a ser difundida como poderoso enteógeno transnacional neste início de milênio.
Ayahuasca
O primeiro artigo do livro que aborda o tema da ayahuasca, apresenta-a como principal planta ingerida na planície da amazônia peruana. O artigo escrito por Antônio Bianchi é denominadao como Ayahuasca e Xamanismo Indígena na Selva Peruana: o lento caminho da conquista, nele o autor vai falar um pouco sobre a história da ayahuasca, sobre sua origem, sobre os mitos que foram sendo criados em torno dela, de como eles contribuíram para a vinculação da bebida ao universo da floresta, sobre como os grupos indígenas mais tradicionalistas veêm ela como substância heterogênea em suas práticas xamânicas. O interesse principal de Bianchi é pesquisar sobre o âmbito de uso da ayahuasca; sobre a função da bebida nas práticas xamânicas; onde ela aparece como papel central para os povos daquela região e onde não aparece; quais os aspectos gerais do xamanismo amazônico. Nas suas pesquisas, o autor observou que o uso da ayahuasca abarca uma grande área uniforme da região e que normalmente o seu uso mais corrente coincide com aqueles lugares onde existiu uma forte influência da civilização, principalmente a partir da época da borracha, e onde atualmente existe uma grande estimulo à urbanização. Dentro desse contexto, ele observa como foram se desenvolvendo tipos diferentes de xamanismo, ou enfoques diferentes para a figura do xamã, visto antes mais como um intermediário entre o mundo dos homens e o dos espíritos da natureza e passando a assumir depois mais o caráter de curandeiro – aquele que cura. E isto devido a diversos fatores como, por exemplo, onde foi menor a influência do processo de civilização nas áreas indígenas, o xamanismo perde a uniformidade, predominando mais o sentido ecológico do termo, ou seja, aquelas práticas que possuiam finalidade de favorecer uma relação harmoniosa entre os homens e o ambiente natural. Em contraponto com o xamanismo terapêutico (ou mestiço), mais uniforme, típico da áreas mais urbanizadas. A principal constatação de Bianchi é que “é preciso entender tal xamanismo como um fenômeno cultural que, mesmo se apresentando como portador de uma origem essencialmente indígena, estreitamente vinculado ao mundo da floresta, desenvolve-se na realidade, sobretudo nas cidades e nas áreas de maior modernização da amazônia peruana” (pág. 327).
O segundo artigo do livro sobre o uso da ayahuasca, escrito pelo professor Luis Eduardo Lima, é bem provocador para aqueles pessoas crédulas que escutam as histórias sobre as coisas fantásticas de ‘orelha em pé’ e super estimulante para os indivíduos curiosos interessados nos aspectos mais misteriosos e lados mais recônditos da realidade. Trata-se sobre as narrativas que descrevem as experiências de transformações em animais sob os efeitos da ayahuasca. Nesse artigo podemos encontrar duas descrições maravilhosas de pessoas que viraram animais. A primeira delas é narrada pela antropóloga Françoise Barbina-Freedman, professora da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, na qual se transforma em uma onça; a segunda é extraída da novela autobiográfica Viage de Vuelta, do escritor dinamarquês Ib Michael, na qual narra suas vivências na amazônia equatoriana e sua experiência onde sentiu-se transformado em cobra. A onça, a águia de harpia e a sucuri são os três grandes predadores e os temas mais comuns de animais nas quais as pessoas se transformam. Ao longo do artigo, Lima vai falar sobre a experiência da ayahuasca em contexto intimamente ligados ao mundo indígena amazonense; sobre como essa bebida exerce papel crucial na manutenção da coesão social desses povos; vai fazer reflexões sobre como o sistema nervoso humano pode revelar uma inclinação para experimentar, sob determinadas circunstâncias, estados de consciência animal, ou percebidos como tais, mostrando-nos como a auto-identificação com um animal é freqüente nas experiências com ayahuasca.
O terceiro artigo do livro, escrito por Sandra Lucia Goulart, fala-nos sobre o universo das religiões ayahuasqueiras, visa descrever e analisar as relações entre grupos religiosos fundados na região amazônica. “O objetivo é captar as continuidades e os contrastes entre estes grupos e simultaneamente, compreender como os seus membros utilizam e reordenam os elementos de seus cultos, mantendo entre si uma relação de contrastes e conflitos, muito embora pertencendo a uma mesma tradição religiosa” (pág. 355). São eles: o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal (UDV). Goulart conta-nos que ambos possuem diferenças no tocante ao conteúdo das narrativas míticas, às formas rituais e ao conjunto de entidades que integram cada panteão, apesar de compatilharem de uma série de categorias em comum como, por exemplo, miração, força, luz, peia etc. Assim como também, existe contrastes e rupturas no interior de cada linha. Outro fato interessante é que os três fundadores das linhas possuem origem nordestina e migraram para a região da amazônia envolvidos no contexto de exploração da borracha. O primeiro grupo fundado foi o do Santo Daime, em 1930, pelo mestre Irineu; seguido pela Barquinha em 1945, fundada pelo mestre Daniel (por ser amigo de Irineu, essas duas linhas possuem uma relação mais íntima e também por ambas se localizarem na mesma região o Acre); e por fim a UDV, fundada em 1961, pelo mestre Gabriel. Na formação dessas linhas religiosas verifica-se a presença de elementos do catolicismo popular, do curandeirismo amazônico e do espiritismo de Alan Kardec. A autora do artigo resalta que embora a utilização da ayahuasca conte uma longa tradição indígena no Brasil e em outros países da América do Sul, é apenas no Brasil que irão surgir religiões não-indígenas e urbanas que fazem uso do chá psicoativo ayahuasca. Enfim é um artigo muito interessante, bastante ordenador e informativo para aqueles que estão entrando agora nesse universo tão vasto das religiões ayahuasqueiras.
O quarto artigo, escrito por Beatriz Caiuby Labate, investiga as relações estabelecidas entre as religiões ayahuasqueiras brasileiras e a sociedade civil. Durante o artigo Labate procura definir o panorama legal do uso de substâncias ilícitas no Brasil, contextualizando a ayahuasca em relação a essas substâncias no cenário nacional e internacional, aborda também aspectos do processo histórico de legalização da bebida e o processo de expansão dos grupos. Dentro desse contexto o artigo vai se desenvolvendo falando sobre a descriminalização do usuário; as polêmicas sobre quais substãncias seriam ou não ilícitas; que proibir a utilização de plantas que contém moléculas de DMT seria inviável; apontando as dificuldades e limitações existente no âmbito dos discursos jurídico e farmacológico; explanando sobre a legalização do uso ritual da ayahuasca; as polêmicas envolvendo a utilização da bebida por menores de idade; falando sobre os orgãos responsáveis pele fiscalização e regulamentação da extração, do transporte e do armazenamento da folha e do cipó; sobre a inserção dos grupos ayahuasqueiros na sociedade; sobre a situação legal atual da bebida; fala sobre os maiores grupos que utilizam a bebida em seus rituais (o Santo Daime e a UDV); sobre a globalização do consumo da ayahuasca. De maneira geral, o enfoque maior de Labate é tenta determinar as raízes históricas, políticas, econômicas e culturais da legalidade do consumo da ayahuasca no Brasil e conseqüentemente esclarecer e garantir a legitimidade dos grupos religiosos existentes.
O Cânhamo
Pegando carrona com a explanação dos autores anteriores, o penúltimo artigo do livro aborda ainda o tema da ayahuasca, mas como ele também vai falar sobre o uso da ‘Santa Maria’ (vulgamente conhecida como maconha) coloquei-o aqui nessa sessão. O artigo é escrito por Edward MacRae e se chama: Santo Daime e Santa Maria – Usos Religiosos de Substâncias Psicoativas Lícitas e Ilícitas. MacRae vai nos falar sobre o uso controlado de enteógenos, e que dentre o vasto campo de substâncias existentes a ayahuasca é uma das mais conhecidas; sobre como nos últimos anos, ela se tornou o sacramento central de várias religiões sincréticas originadas entre os serigueiros da amazônia e depois difundidas entre a classe média urbana; fala da constituição geral dos rituais: os aspectos sagrados, os elementos que compõem a mesa, os uniformes dos fardados, fala sobre os hinos, os tipos de trabalho (concentração, bailado); e o que mais nos interessa aqui, conta-nos a história da Santa Maria. Aí ele vai nos narrar um pouco sobre quem foi o padrinho Sebastião; sobre o CEFLURIS; sobre o primeiro contato da colônia cinco mil com a cannabis, já que para muitos membros da comunidade o uso do cânhamo era novidade, tendo em vista que viviam em grande isolamento e não ainda não tinham sido contaminados pela grande preocupação com drogas já vigente nos centros metropolitanos; como que foi o processo pelo qual o padrinho Sebastião chegou a conclusão que enquanto a ayahuasca trabalha com a energia espiritual de cristo, a cannabis estava veiculada pela energia da virgem. A partir de então como passaram a ser elaboradas uma série de prescrições sobre as maneiras corretas de plantar, cuidar e colher a Santa Maria. Como afirma MacRae isso desempenhou um “importante papel de reforço à noção de que seu uso deve ser encarado como algo sagrado e sério, e não ser confundido com o simples hedonismo” (pág471).
O último artigo do livro, escrito por Bruno César Cavalcanti, levanta questões sobre onde se deram as antigas vinculações da maconha com o sagrado, quais as dificuldades do esclarecimento desses vinculos; fala sobre de que modo os usos sagrados da maconha aportaram ou foram criados, ou re-elaborados no Brasil; sob que condição as formas de adoção cultural de experiência com a maconha no Brasil puderam encaminhar-se para ritualizações místicas, mágicas ou religiosas. O que se sabe é que através dos tempos a maconha assumiu diferentes nuances, segundo Cavalcanti, foi produto agrícola de manufaturas (principalmente da área textil, onde o consumo da fibra do cânhamo era altíssimo); foi largamente usada como medicamento (principalmente na China, onde encontra-se os registros mais antigos, por volta de 5200 - 6200 a.c); também utilizada como veículo místico (são abundantes as referências explícitas ao valor espiritual e mágico-religioso da maconha na Índia, especialmente na literatura sagrada dos vedas); veículo hedonista; entre os assírios foi usada para fazer incenso; encontra-se referência sobre ela no budismo ‘mahaiana’ (acredita-se que o Buda vivera à base de uma semente de cânhamo por dia, durante os seis anos que antecederam sua iluminação); no budismo tântrico (que admite a consumo ritual da maconha para a elevação da consciência); alguns autores mencionam a presença da planta no zoroastrismo e judaísmo; acredita-se que a grande difusão da planta foi auxiliada por tribos nômades que circulavam pela região do himalaia, e também que a mesma penetrou no Oriente Médio após a ascensão do Islã (onde ela seria particulamente apreciada pelos Sufis). “No contexto religioso cristão, o maconismo experimentaria uma crescente desaprovação, porque seria rapidamente associado com outras expressões culturais alheias a esse universo” (pág. 499). Assim não demorou muito para a inquisição declarar guerra à utilização das ervas e outros preparados denominados ‘de bruxas’. Na modernidade, a partir do século XIX, a medicina volta a recuparar o interesse pela planta como medicamento, principalmente em neurologia (na europa e EUA os cientistas se maravilhavam com as possibilidades terapêuticas da planta, indicando seu uso como antiespasmódico, antiepilético ou narcótico). O primeiro proibicionismo moderno aconteceu com a invação de Napoleão Bonaparte ao Egito (entre os séculos XVIII para o XIX), inaugurando uma política de combate a planta. No Brasil encontra-se registro da planta na era colonial, e inclusive a tese aceita pelo autor é que o maconismo nacional começou via procedência africana, com a chegada dos negros no país. No decorrer do artigo Cavalcanti nos falará sobre o primeiro autor nacional que escreveu um texto unicamente dedicado ao tema do consumo popular do cânhamo, o médico baiano Dr. Rodrigues Dória seguindo com várias informações interessantes sobre o tema.
A Iboga
A iboga é conhecida como o principal alucinógeno da floresta da África Negra (assim como a ayahuasca é conhecida como o principal alucinógeno da floresta amazônica). Ela é um arbusto, da qual se utiliza a casca da raíz, detentora de princípios psicotrópicos elevadíssimos. No Gabão, ela constitui-se como principal elemento da religião enteogênica africana: o Buiti. O artigo de Giorgio Samorini, etnobotânico italiano especialista na utilização de plantas psicoativas, vai nos falar um pouco sobre a história do Buiti, do seu culto religioso baseados nos efeitos visionários e reveladores da iboga; sobre a expansão do Buiti nas últimas décadas, atravessando as fronteiras nacionais e difundindo-se na Guiné Equatorial, na República dos camarões, no Congo e na República Democrática do Congo; vai narrar sobre o sincretismo e mitologia buitista; explanar sobre os templos e parafernálias do culto; sobre os instrumentos musicais específicos que possuem importante papel nos ritos de iniciação. E por falar nisso, a descrição do rito de iniciação é de arrepiar. O indivíduo que decide se iniciar, passa por vários dias de dieta controlada e uma vez começado o ritual, isto é, a ingestão da pasta da iboga, não se pode mais voltar atrás. O consumo da raiz é realizado até que o sujeito perca completamente a consciência. É claro que existem vários procedimentos específicos para acompanhar as reações da iboga no organismo do indivíduo e saber a hora certa de parar a ingestão da raiz, que em níveis elevados pode ser fatal. O artigo é muito rico em informações e algumas descrições sobre o assunto e, isto porque, o próprio autor do artigo, Samorini, trilhou esse processo rigoroso de iniciação buitista, passando a ser considerado também um bandzi, isto é, ‘aquele que já comeu’.
O Tabaco
O artigo de Glenn Shepard não aborda especificamente o tema do tabaco, na verdade, o escrito é sobre o uso de plantas psicoativas pelos Machiguenga no Peru. Então ele começa fazendo uma introdução geral sobre essa cultura, falando-nos que os machiguenga são povos da floresta tropical montanhosa situada na encosta leste dos Andes peruanos. Entre eles são observados práticas xamânicas e a utilização de vários “venenos divinos”, como por exemplo o uso da ayahuasca e do tabaco. Segundo o autor, o tabaco é possivelmente a planta mais antiga domesticada da América e também é a planta mais importante na tradição xamânica dos Machiguenga, sendo considerada a comida dos xamãs e espíritos. Entre eles é comum o consumo do tabaco das mais diversas formas possíveis: fumando em cachimbo, consumido em forma líquida, mastigando em forma de massa concentrada, soprando no nariz em forma de pó fino. Normalmente, o tabaco é consumido durante as sessões de ayahuasca para aumentar a experiência alucinógena e aprofundar o contato espiritual com os espíritos orientadores. A ayahuasca é conhecida entre eles como Kamarampi, é considerada como uma espécie de rádio que permite comunicação telepática entre aldeias distantes, antecipando o conhecimento da chegada de visitas ou inimigos. Shepard também acredita que o consumo comunitário da ayahuasca reforça as relações sociais entre os participantes. De maneira geral, no artigo é possível encontrar uma explanação sobre as plantas da farmacopéia machiguenga, mostrando o quanto as plantas psicoativas tem papal crucial para aquele povo, sendo extremamente útil no processo de manutenção das relações harmoniosas dentro do grupo social, com a natureza e o mundo dos espíritos.
A Coca Amazônica
Este artigo, escrito por Juan Echeverri e Edmundo Pereira, versa sobre a origem e o uso ritual da coca na Amazônia, tendo em vista que já existe uma grande literatura sobre o uso andino da coca, sobretudo no Peru e na Bolívia e, no entanto, uma escassez de escritos referente a coca na Amazônia. Neste trabalho, os autores partem de dados primários provenientes dos grupos Uitoto e Muiname, onde se propõem explorar o sentido ritual e político da expressão contida no título do trabalho: “mambear coca não é pintar a boca de verde”. Mamber tem haver com disciplina do corpo e da mente, isto é, está intimamente ligado a educação corporal e moral, sendo portanto um veículo da vida social e política. Durante o texto podemos verificar que o mambeio de coca amazônica constitui-se em uma verdadeira cultura, ponto principal tratado pelos autores do artigo; temos acesso a aspectos botânicos e históricos da coca; a aspectos simbólicos e rituais dentro do uso amazônico. Existe várias espécies de coca, “uma das principais diferenças da coca amazônica é seu baixo conteúdo do alcalóide cocaína em comparação com outras variedades (...) Apesar disso, o alcalóde é mais fácil de extrair e cristalizar” (pág.125). Durante o texto podemos ver que a coca é uma substância cujo consumo está perfeitamente estabelecido entre os grupos estudados, tanto na vida cotidiana, como na identidade de gênero, no universo simbólico, na mitologia e no que mais interessa aos pesquisadores, nas concepções de manejo corporal, ético e social. O ‘fazer coca’ possue um sentido material, mas também está ligado ao campo semântico de processar, consertar, purificar. Entender o processo de fazer coca (como expressão de um conjunto de disciplinas corporais e morais) é a base para compreender o significado de ‘mambear coca’. Segundo Echeverri e Perreira, essa tradição da coca amazônica inaugura um método de processamento muito mais complexo do que aqueles existente nas tradições andinas da planta. Eles também observam que o mambeio de coca não é uma atividade especializada ou reservada a especialistas, ao contrário, a maioria dos homens em idade adulta tem seu cocal próprio e fazem e mambeiam coca com seus próprios implementos ou de seus familiares próximos. Explicam o que é mambeadero (lugar onde se prepara a coca), sua especificações, seu significado.
De maneira geral, os autores resaltam que o mambeio de coca amazônica é uma instituição histórica; que apesar de enfocarem o uso e manejo da coca, o tabaco também possui lugar de destaque na hierarquia ritual, sendo considerado o companheiro da coca; que para a maioria da população mestiça do Amazonas, o mambeio da coca é visto como um vício repugnante e é equiparado à cocaína e seus derivados. Dizem os autores nas suas considerações finais: “Tudo isso advém da ignorância sobre a coca e seu universo ritual, das formas de racismo que ainda marcam as relações entre índios e não-índios na região. Em contraste, os indígenas de cultura de coca e tabaco, em suas reivindicações, escritos e ‘planes de vida’, salientam crescentemente essa forma disciplinar de cultivar, processar, consumir e compartilhar coca e tabaco, como parte integrante de sua educação e de sua vida social e cerimonial.” (pág. 178).
O Paricá
O pariká é um tipo de rapé (do francês râper, “raspar”), isto é, um tipo de fumo em pó para cheirar considerado sagrado, muito utilizado pelos xamãs do Noroeste da Amazônia em sua curas de doentes e outras atividades. O artigo de Robin Wright, coordenador do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena e Livre Docente da Unicamp, pretende discutir os significados simbólicos, culturais e históricos do pariká dentro da cultura dos Baniwa (povos que vivem na fronteira do Brasil com a Colômbia e Venezuela) com quem tem trabalhado desde 1976 e de outro psicoativo que normalmente acompanha seu consumo, o caapi (Banisteriopsis sp.).
Ele começa o artigo introduzindo o leitor sobre o estudo etnológico mais completo publicado até hoje sobre o pariká, a tese de doutorado de Wolfgang Kasfhammer (1997), que versa sobre a base mitológica do consumo ritual do pariká; o uso do rapé e seus diversos metódos de aplicação; sobre suas relações com os ciclos sazonais. E posteriormente vai dividir seu artigo em três partes: a primeira delas vai falar dos mitos Baniwa sobre o pariká – de como nos tempos primordiais essa substância foi adquirida pela humanidade, sobre seus significados e poderes; uma segunda parte é dedicada aos discursos xamânicos sobre o pariká, onde podemos encontrar relatos de pajés sobre suas experiências com a substância; e por último, Wright procura analisar através de histórias orais, o papel central do pariká e do caapi para as experiências de profetas na história de Baniwa. Durante o seu artigo, o autor também ressalta a pouca atenção que foi dada para o papel e a importância de substâncias sagradas (o pariká, o tabaco e o caapi) utilizadas por esses povos, tanto para a formação e experiência xamãnica, quanto profética, já que essas substâncias produziram mudanças históricas significativas na sociedade Baniwa. Por isso cabe a analise dos significados culturais atribuídos a elas para em seguida compreender o seu campo de influência. Entre os Baniwa, o pariká é tomado apenas pelos pajés e principalmente para fins de cura, normalmente utilizam ossos em forma de ‘Y’, colocando uma das extremidades do osso na narina e outra na boca, soprando fortemente; ou as extremidades da forquilha são introduzidas nas narinas e o cabo no rapé, inalando com força. Fala-se também sobre a situação atual do xamanismo Baniwa.
De maneira geral, usando as próprias palavras do autor “este artigo procurou apresentar o pariká em sua múltiplas facetas e potencial, apreciando a centralidade que teve na história do povo Baniwa (...). Destacou-se, também, o poder do pariká de transcender o tempo, ou melhor, de permitir ‘voltar’ ao mundo anterior e primordial, que é a eterna fonte de poder criativo (...). O pariká, podemos concluir, foi (e para muitos Baniwa ainda é) o remédio contra a ruindade e maldade que infestam esse mundo, e nisso consiste seu grande poder” (pág. 112).
Considerações Finais
O livro Uso Ritual das Plantas de Poder é uma coletânea que, como nos diz os autores da introdução do livro, destaca e retoma a relevância do tema dos psicoativos e dos estados alterados da consciência, sobretudo no campo das ciências sociais. Lembrando sempre que a reflexão sobre essa questão, longe de ser recente, esta presente de forma significativa na própria história da ciência moderna ocidental. A obra é riquíssima de informações. A maioria dos autores privilegia a atitude experimental diante da consciência, forma esta que inaugura uma ciência cujo objetivo é o próprio sujeito observador e, dentro desse contexto, as plantas de poder atuam como instrumentos valiossísimos, na medida que ampliam e aprofundam a visão e percepção humana ordinária. Os artigos também “focalizam, cada um a seu modo, o problema do proibicionismo e da legalidade do consumo de substâncias psicoativas no mundo moderno”, eles também “expressam uma visão segundo a qual o universo religioso encontra-se em constante comunicação e intercâmbio com as várias esferas – econômicas, política, cultural – da vida social” (pág.39).
Para finalizar, eu gostaria de ressaltar um fato marcante que observei: nos rituais com a utilização de plantas de poder, não existe uma figura, como por exemplo, o sacerdote ou o padre, que intercâmbia a relação do sujeito com a divindade. Adaptando as palavra de Isidore Ndjoung, líder buitista: com essas substâncias não se escuta falar de Deus, mas se vive Deus. A divindade fala com cada um, de maneira única e particular. E isto para mim, constitui um dos aspectos mais significativos que faz com que cresça, a cada dia mais, minha admiração por essas substâncias maravilhosas, que infelizmente sofrem de um preconceito e uma ignorância tamanha. Acredito que o mundo seria um lugar bem melhor se as pessaos pudessem sentir o sentimento de integração e amor que essas plantas proporcionam, um sentimento profundo de gratidão pela vida, que transborda e se faz verde.
Bibliografia:
O Uso Ritual das Plantas de Poder. Beatriz Caiuby Labate, Sandra Lucia Goulart (orgs.) – Campinas, SP: Mercado de Letras, 2005.
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