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quarta-feira, 3 de março de 2010
terça-feira, 2 de março de 2010
Plantas de Poder
O USO RITUAL DAS PLANTAS DE PODER
(resenhado por Bartira Calado )
O Uso Ritual das Plantas de Poder é um livro organizado por Beatriz Caiuby Labate e Sandra Lucia Goulart, composto por 14 artigos de autores diferentes, cada um abordando como tema central alguma planta de poder ou o contexto na qual ela está inserida. Na seqüência do livro temos: primeiro, um artigo falando sobre os acontecimentos dos últimos 150 anos de pesquisas sobre plantas e substâncias psicotivas; depois, um abordando o tema do Pariká; seguido pelo artigo que explana sobre a origem e o uso ritual da Coca na Amazônia; um outro, sobre as plantas psicoativas dos machiguenga do Peru, com ênfase para o Tabaco; temos, então, três artigos dissertando sobre a Jurema; um sobre o Buiti, religião enteogênica africana, que faz uso da Iboga; 4 artigos envolvendo como tema central a Ayahuasca; e por fim, os dois últimos artigos do livro abordam o uso do Cânhamo.
Primeiro Artigo: ‘A Odisséia Psiconáutica’
Falar sobre os últimos 150 anos de pesquisa sobre plantas e substâncias psicoativas, não é tarefa fácil. O primeiro artigo do livro, de Herinque Carneiro, aborda de maneira bastante informativa e simplificada o tema. A intenção principal do autor é apontar algumas obras essenciais dos estudos históricos e antropológicos sobre o papel dos alucinógenos na cultura e historiar brevemente sobre alguns usos dessas substâncias no decorrer do século XX. No meio dessa ‘odisséia psiconáutica’, termo usado pelo autor, nos deparamos com questões bastante interessante como, por exemplo, uma breve história da normatização das drogas; questões que dizem respeito aos usos sagrado de substâncias psicoativas em diferentes culturas; ao seu uso contemporâneo internacional, onde diferentes consumos produziram diversos fenômenos, como o surgimento de novas religiões, círculos científicos de pesquisa e experimentação, influência estética, uso recreacional popular; como e porque iniciou-se uma política de guerra contra as drogas (inquisição farmacrática); as polêmicas que giram em torno dessa questão: será que o Estado pode determinar uma jurisdição química sobre a mente? Será que cada indivíduo não tem o direito da livre disposição do seu corpo e de autonomia sobre si próprio? Quais os limites para a liberdade de autoprogramar-se quimicamente? Enfim, o artigo é uma espécie de ‘abre alas’ para os temas que viram posteriormente no livro. E fugindo um pouco da seqüência, eu vou falar agora sobre os artigos que tem como tema a Jurema.
A Jurema
A Jurema, planta sertaneja, conhecida como a planta de poder tipicamente brasileira é um tema riquíssimo ainda a ser explorado. E isto, porque falar sobre Jurema é mergulhar num campo múltiplo de significados, é seguir por contextos diversos e ainda se deparar com caminhos não abertos. As metamorfoses da jurema, como alguns costumam falar, exprimem o quanto esta planta possui força e poder, fazendo com que brote em torno dela novas representações simbólicas.
No primeiro artigo sobre a Jurema, a ex-presidente da Associação Nação Jurema, de Aracaju, Clarice Novaes, vai abordar as trajetórias simbólicas assumida pelas espécies da planta. Seu objetivo é apreender os significados envolvidos no processo de dispersão da Jurema. De maneira geral podemos identificar três percursos distintos: 1) a jurema das matas (jurema nordestina indígena-rural); 2) a jurema afro-brasileira (presente nos rituais de origem africana, representa o espírito dos cabocos índigenas); 3) a jurema urbana ocidental européia(caracterizada pela busca subjetiva e individual). O primeiro grande campo semântico sob o qual a Jurema está envolvida é o tema do segundo artigo que fala sobre a planta. Nele, Rodrigo Grünewald aprofunda-se sobre aquilo que ele chama de a “Ciência do Índio”, com o enfoque para a palavra jurema utilizada como sinônimo de uma bebida mágica ou mistíca. O terceiro artigo, de Roberto Motta, destaca a Jurema dentro do contexto das religiões afro-brasileiras. Dessa forma, podemos dizer que os artigos se completam fornecendo um grande número de informações sobre o tema. Abaixo segue algumas idéias presente nos três artigos.
Os três autores concordam que a origem do feitio dessa bebida é indígena, e que portanto os índios são considerados os sujeitos fundadores do conhecimento xamânico sobre a planta e sua bebida. Entre eles, a ingestão da bebida é realizada normalmente em festas sagradas, seguidamente acompanhada de dança, dos ‘torés’ – danças sagradas de origem ancestral, nesses festejos os seguidores da jurema recebem instruções sobre suas vidas e da vida coletiva da aldeia. De maneira geral, a jurema é vista como uma espécie de sacramento que une todos os presentes. Segundo Novaes, essas festas constitui verdadeiros selos de identidade étnica, ela observa que através dos rituais em torno da jurema, solidifica-se a identidade grupal e a autoconsciência individual do indígena nordestino. Para os índios, a jurema é vista como uma divindade protetora e misteriosa que deu origem não só a tribo, mas ao mundo dos seres vivos e dos encantados, dos quais é rainha suprema; ela propicia sentido à existência e também a morte.
Outro ponto importante leventado por Grünewald é que são várias as bebidas e beberagens que se fazem com o nome de jurema, seus usos entre os indígenas perpassa o período anterior a colonização portuguesa, onde a partir de então, devido a intolerância religiosa, passa a sofrer fortes repressões policiais, confinado as práticas da jurema ao silêncio. Os juremeiros passam a ser perseguidos e a forma que encontram de conservar suas práticas é mantendo o sigilo e o segredo sobre elas, dessa maneira, muitos conhecimentos são perdidos sobre essa planta. As perseguisões também favorecem uma possível migração do uso da jurema do nordeste para o norte do país; e do contato entre os índios e negros do litoral acaba por emergir posteriormente uma nova prática mágica com a bebida, onde a jurema passa a ser integrada ao panteão das entidades africanas. Sendo, na verdade, considerada a entidade brasileira dentro do culto. No contexto da religiões afro-brasileiras a jurema é caracterizada como a mulher de origem nativa do Brasil, como a Cabocla Jurema, com seu chapéu e saia de pena, seu arco e sua flecha. Suas indumentárias e objetos são de uso masculino e não feminino, ela por exemplo usa calça em vez de saia, seus rituais de incorporação são marcados pela presença do charuto e do vinho. Motta começou suas pesquisas na década de 70, quando ficou impressionado ao constatar que uma porcetagem altíssima de centros de ‘espiritismo popular’ da região do Recife entregavam-se, predominantemente, a prática da jurema. Então no seu artigo ele nos fala sobre as transformações históricas da planta; sobre os elementos que foram se incorporando ao ritual da jurema como, por exemplo, a figura do mestre e técnicas mágicas, as influências kardecistas; sobre as distinções bem marcadas no Catimbó-Jurema entre ‘a mesa branca’ e a ‘jurema de chão’; enfim, mostra-nos como os ritos do Catimbó-Jurema são eminentemente ritos de cura e alívio e que certamente são as formas popular mais simples e acessíveis de terapia para a maioria das pessoas do nordeste. Resaltando também que, ao mesmo tempo, a jurema vai além de sua função terapêutica, transformando-se em brincadeira, dança e festa.
Na terceira dispersão da Jurema, integrada agora ao centros urbanos do Brasil e do mundo, a experiência com a bebida produzida a partir das raízes da planta passa a assumir caráter de agente de cura, tanto psíquica como espiritual. O ritual da jurema passa a ser utilizado, como nos diz Clarice Novaes, como um “tipo de experiência que busca forjar uma nova identidade social para seus usuários (...). Uma identidade extraída da busca por uma versão que acreditam ser ‘mágica da vida’ e também do despertar de uma consciência desenvolvida através de experiências ‘psicotrópicas’; embora com fins declaradamente terapêutico” (pág 233). O fato é que o experimentalismo contemporâneo do ‘vinho da jurema’, se deve em parte as pesquisas científicas que demostram as altíssimas concentrações de N-dimetil-triptamina, o famoso DMT, presente na planta e, também, como nos fala Grünewald, devido aos muitos bons resultados obtidos na área de terapia transpessoal de dependência de drogas e uso ritualístico clínico. Fatos estes que insere cada vez mais a jurema dentro do circuito experimental de plantas psicoativas, passando a ser difundida como poderoso enteógeno transnacional neste início de milênio.
Ayahuasca
O primeiro artigo do livro que aborda o tema da ayahuasca, apresenta-a como principal planta ingerida na planície da amazônia peruana. O artigo escrito por Antônio Bianchi é denominadao como Ayahuasca e Xamanismo Indígena na Selva Peruana: o lento caminho da conquista, nele o autor vai falar um pouco sobre a história da ayahuasca, sobre sua origem, sobre os mitos que foram sendo criados em torno dela, de como eles contribuíram para a vinculação da bebida ao universo da floresta, sobre como os grupos indígenas mais tradicionalistas veêm ela como substância heterogênea em suas práticas xamânicas. O interesse principal de Bianchi é pesquisar sobre o âmbito de uso da ayahuasca; sobre a função da bebida nas práticas xamânicas; onde ela aparece como papel central para os povos daquela região e onde não aparece; quais os aspectos gerais do xamanismo amazônico. Nas suas pesquisas, o autor observou que o uso da ayahuasca abarca uma grande área uniforme da região e que normalmente o seu uso mais corrente coincide com aqueles lugares onde existiu uma forte influência da civilização, principalmente a partir da época da borracha, e onde atualmente existe uma grande estimulo à urbanização. Dentro desse contexto, ele observa como foram se desenvolvendo tipos diferentes de xamanismo, ou enfoques diferentes para a figura do xamã, visto antes mais como um intermediário entre o mundo dos homens e o dos espíritos da natureza e passando a assumir depois mais o caráter de curandeiro – aquele que cura. E isto devido a diversos fatores como, por exemplo, onde foi menor a influência do processo de civilização nas áreas indígenas, o xamanismo perde a uniformidade, predominando mais o sentido ecológico do termo, ou seja, aquelas práticas que possuiam finalidade de favorecer uma relação harmoniosa entre os homens e o ambiente natural. Em contraponto com o xamanismo terapêutico (ou mestiço), mais uniforme, típico da áreas mais urbanizadas. A principal constatação de Bianchi é que “é preciso entender tal xamanismo como um fenômeno cultural que, mesmo se apresentando como portador de uma origem essencialmente indígena, estreitamente vinculado ao mundo da floresta, desenvolve-se na realidade, sobretudo nas cidades e nas áreas de maior modernização da amazônia peruana” (pág. 327).
O segundo artigo do livro sobre o uso da ayahuasca, escrito pelo professor Luis Eduardo Lima, é bem provocador para aqueles pessoas crédulas que escutam as histórias sobre as coisas fantásticas de ‘orelha em pé’ e super estimulante para os indivíduos curiosos interessados nos aspectos mais misteriosos e lados mais recônditos da realidade. Trata-se sobre as narrativas que descrevem as experiências de transformações em animais sob os efeitos da ayahuasca. Nesse artigo podemos encontrar duas descrições maravilhosas de pessoas que viraram animais. A primeira delas é narrada pela antropóloga Françoise Barbina-Freedman, professora da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, na qual se transforma em uma onça; a segunda é extraída da novela autobiográfica Viage de Vuelta, do escritor dinamarquês Ib Michael, na qual narra suas vivências na amazônia equatoriana e sua experiência onde sentiu-se transformado em cobra. A onça, a águia de harpia e a sucuri são os três grandes predadores e os temas mais comuns de animais nas quais as pessoas se transformam. Ao longo do artigo, Lima vai falar sobre a experiência da ayahuasca em contexto intimamente ligados ao mundo indígena amazonense; sobre como essa bebida exerce papel crucial na manutenção da coesão social desses povos; vai fazer reflexões sobre como o sistema nervoso humano pode revelar uma inclinação para experimentar, sob determinadas circunstâncias, estados de consciência animal, ou percebidos como tais, mostrando-nos como a auto-identificação com um animal é freqüente nas experiências com ayahuasca.
O terceiro artigo do livro, escrito por Sandra Lucia Goulart, fala-nos sobre o universo das religiões ayahuasqueiras, visa descrever e analisar as relações entre grupos religiosos fundados na região amazônica. “O objetivo é captar as continuidades e os contrastes entre estes grupos e simultaneamente, compreender como os seus membros utilizam e reordenam os elementos de seus cultos, mantendo entre si uma relação de contrastes e conflitos, muito embora pertencendo a uma mesma tradição religiosa” (pág. 355). São eles: o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal (UDV). Goulart conta-nos que ambos possuem diferenças no tocante ao conteúdo das narrativas míticas, às formas rituais e ao conjunto de entidades que integram cada panteão, apesar de compatilharem de uma série de categorias em comum como, por exemplo, miração, força, luz, peia etc. Assim como também, existe contrastes e rupturas no interior de cada linha. Outro fato interessante é que os três fundadores das linhas possuem origem nordestina e migraram para a região da amazônia envolvidos no contexto de exploração da borracha. O primeiro grupo fundado foi o do Santo Daime, em 1930, pelo mestre Irineu; seguido pela Barquinha em 1945, fundada pelo mestre Daniel (por ser amigo de Irineu, essas duas linhas possuem uma relação mais íntima e também por ambas se localizarem na mesma região o Acre); e por fim a UDV, fundada em 1961, pelo mestre Gabriel. Na formação dessas linhas religiosas verifica-se a presença de elementos do catolicismo popular, do curandeirismo amazônico e do espiritismo de Alan Kardec. A autora do artigo resalta que embora a utilização da ayahuasca conte uma longa tradição indígena no Brasil e em outros países da América do Sul, é apenas no Brasil que irão surgir religiões não-indígenas e urbanas que fazem uso do chá psicoativo ayahuasca. Enfim é um artigo muito interessante, bastante ordenador e informativo para aqueles que estão entrando agora nesse universo tão vasto das religiões ayahuasqueiras.
O quarto artigo, escrito por Beatriz Caiuby Labate, investiga as relações estabelecidas entre as religiões ayahuasqueiras brasileiras e a sociedade civil. Durante o artigo Labate procura definir o panorama legal do uso de substâncias ilícitas no Brasil, contextualizando a ayahuasca em relação a essas substâncias no cenário nacional e internacional, aborda também aspectos do processo histórico de legalização da bebida e o processo de expansão dos grupos. Dentro desse contexto o artigo vai se desenvolvendo falando sobre a descriminalização do usuário; as polêmicas sobre quais substãncias seriam ou não ilícitas; que proibir a utilização de plantas que contém moléculas de DMT seria inviável; apontando as dificuldades e limitações existente no âmbito dos discursos jurídico e farmacológico; explanando sobre a legalização do uso ritual da ayahuasca; as polêmicas envolvendo a utilização da bebida por menores de idade; falando sobre os orgãos responsáveis pele fiscalização e regulamentação da extração, do transporte e do armazenamento da folha e do cipó; sobre a inserção dos grupos ayahuasqueiros na sociedade; sobre a situação legal atual da bebida; fala sobre os maiores grupos que utilizam a bebida em seus rituais (o Santo Daime e a UDV); sobre a globalização do consumo da ayahuasca. De maneira geral, o enfoque maior de Labate é tenta determinar as raízes históricas, políticas, econômicas e culturais da legalidade do consumo da ayahuasca no Brasil e conseqüentemente esclarecer e garantir a legitimidade dos grupos religiosos existentes.
O Cânhamo
Pegando carrona com a explanação dos autores anteriores, o penúltimo artigo do livro aborda ainda o tema da ayahuasca, mas como ele também vai falar sobre o uso da ‘Santa Maria’ (vulgamente conhecida como maconha) coloquei-o aqui nessa sessão. O artigo é escrito por Edward MacRae e se chama: Santo Daime e Santa Maria – Usos Religiosos de Substâncias Psicoativas Lícitas e Ilícitas. MacRae vai nos falar sobre o uso controlado de enteógenos, e que dentre o vasto campo de substâncias existentes a ayahuasca é uma das mais conhecidas; sobre como nos últimos anos, ela se tornou o sacramento central de várias religiões sincréticas originadas entre os serigueiros da amazônia e depois difundidas entre a classe média urbana; fala da constituição geral dos rituais: os aspectos sagrados, os elementos que compõem a mesa, os uniformes dos fardados, fala sobre os hinos, os tipos de trabalho (concentração, bailado); e o que mais nos interessa aqui, conta-nos a história da Santa Maria. Aí ele vai nos narrar um pouco sobre quem foi o padrinho Sebastião; sobre o CEFLURIS; sobre o primeiro contato da colônia cinco mil com a cannabis, já que para muitos membros da comunidade o uso do cânhamo era novidade, tendo em vista que viviam em grande isolamento e não ainda não tinham sido contaminados pela grande preocupação com drogas já vigente nos centros metropolitanos; como que foi o processo pelo qual o padrinho Sebastião chegou a conclusão que enquanto a ayahuasca trabalha com a energia espiritual de cristo, a cannabis estava veiculada pela energia da virgem. A partir de então como passaram a ser elaboradas uma série de prescrições sobre as maneiras corretas de plantar, cuidar e colher a Santa Maria. Como afirma MacRae isso desempenhou um “importante papel de reforço à noção de que seu uso deve ser encarado como algo sagrado e sério, e não ser confundido com o simples hedonismo” (pág471).
O último artigo do livro, escrito por Bruno César Cavalcanti, levanta questões sobre onde se deram as antigas vinculações da maconha com o sagrado, quais as dificuldades do esclarecimento desses vinculos; fala sobre de que modo os usos sagrados da maconha aportaram ou foram criados, ou re-elaborados no Brasil; sob que condição as formas de adoção cultural de experiência com a maconha no Brasil puderam encaminhar-se para ritualizações místicas, mágicas ou religiosas. O que se sabe é que através dos tempos a maconha assumiu diferentes nuances, segundo Cavalcanti, foi produto agrícola de manufaturas (principalmente da área textil, onde o consumo da fibra do cânhamo era altíssimo); foi largamente usada como medicamento (principalmente na China, onde encontra-se os registros mais antigos, por volta de 5200 - 6200 a.c); também utilizada como veículo místico (são abundantes as referências explícitas ao valor espiritual e mágico-religioso da maconha na Índia, especialmente na literatura sagrada dos vedas); veículo hedonista; entre os assírios foi usada para fazer incenso; encontra-se referência sobre ela no budismo ‘mahaiana’ (acredita-se que o Buda vivera à base de uma semente de cânhamo por dia, durante os seis anos que antecederam sua iluminação); no budismo tântrico (que admite a consumo ritual da maconha para a elevação da consciência); alguns autores mencionam a presença da planta no zoroastrismo e judaísmo; acredita-se que a grande difusão da planta foi auxiliada por tribos nômades que circulavam pela região do himalaia, e também que a mesma penetrou no Oriente Médio após a ascensão do Islã (onde ela seria particulamente apreciada pelos Sufis). “No contexto religioso cristão, o maconismo experimentaria uma crescente desaprovação, porque seria rapidamente associado com outras expressões culturais alheias a esse universo” (pág. 499). Assim não demorou muito para a inquisição declarar guerra à utilização das ervas e outros preparados denominados ‘de bruxas’. Na modernidade, a partir do século XIX, a medicina volta a recuparar o interesse pela planta como medicamento, principalmente em neurologia (na europa e EUA os cientistas se maravilhavam com as possibilidades terapêuticas da planta, indicando seu uso como antiespasmódico, antiepilético ou narcótico). O primeiro proibicionismo moderno aconteceu com a invação de Napoleão Bonaparte ao Egito (entre os séculos XVIII para o XIX), inaugurando uma política de combate a planta. No Brasil encontra-se registro da planta na era colonial, e inclusive a tese aceita pelo autor é que o maconismo nacional começou via procedência africana, com a chegada dos negros no país. No decorrer do artigo Cavalcanti nos falará sobre o primeiro autor nacional que escreveu um texto unicamente dedicado ao tema do consumo popular do cânhamo, o médico baiano Dr. Rodrigues Dória seguindo com várias informações interessantes sobre o tema.
A Iboga
A iboga é conhecida como o principal alucinógeno da floresta da África Negra (assim como a ayahuasca é conhecida como o principal alucinógeno da floresta amazônica). Ela é um arbusto, da qual se utiliza a casca da raíz, detentora de princípios psicotrópicos elevadíssimos. No Gabão, ela constitui-se como principal elemento da religião enteogênica africana: o Buiti. O artigo de Giorgio Samorini, etnobotânico italiano especialista na utilização de plantas psicoativas, vai nos falar um pouco sobre a história do Buiti, do seu culto religioso baseados nos efeitos visionários e reveladores da iboga; sobre a expansão do Buiti nas últimas décadas, atravessando as fronteiras nacionais e difundindo-se na Guiné Equatorial, na República dos camarões, no Congo e na República Democrática do Congo; vai narrar sobre o sincretismo e mitologia buitista; explanar sobre os templos e parafernálias do culto; sobre os instrumentos musicais específicos que possuem importante papel nos ritos de iniciação. E por falar nisso, a descrição do rito de iniciação é de arrepiar. O indivíduo que decide se iniciar, passa por vários dias de dieta controlada e uma vez começado o ritual, isto é, a ingestão da pasta da iboga, não se pode mais voltar atrás. O consumo da raiz é realizado até que o sujeito perca completamente a consciência. É claro que existem vários procedimentos específicos para acompanhar as reações da iboga no organismo do indivíduo e saber a hora certa de parar a ingestão da raiz, que em níveis elevados pode ser fatal. O artigo é muito rico em informações e algumas descrições sobre o assunto e, isto porque, o próprio autor do artigo, Samorini, trilhou esse processo rigoroso de iniciação buitista, passando a ser considerado também um bandzi, isto é, ‘aquele que já comeu’.
O Tabaco
O artigo de Glenn Shepard não aborda especificamente o tema do tabaco, na verdade, o escrito é sobre o uso de plantas psicoativas pelos Machiguenga no Peru. Então ele começa fazendo uma introdução geral sobre essa cultura, falando-nos que os machiguenga são povos da floresta tropical montanhosa situada na encosta leste dos Andes peruanos. Entre eles são observados práticas xamânicas e a utilização de vários “venenos divinos”, como por exemplo o uso da ayahuasca e do tabaco. Segundo o autor, o tabaco é possivelmente a planta mais antiga domesticada da América e também é a planta mais importante na tradição xamânica dos Machiguenga, sendo considerada a comida dos xamãs e espíritos. Entre eles é comum o consumo do tabaco das mais diversas formas possíveis: fumando em cachimbo, consumido em forma líquida, mastigando em forma de massa concentrada, soprando no nariz em forma de pó fino. Normalmente, o tabaco é consumido durante as sessões de ayahuasca para aumentar a experiência alucinógena e aprofundar o contato espiritual com os espíritos orientadores. A ayahuasca é conhecida entre eles como Kamarampi, é considerada como uma espécie de rádio que permite comunicação telepática entre aldeias distantes, antecipando o conhecimento da chegada de visitas ou inimigos. Shepard também acredita que o consumo comunitário da ayahuasca reforça as relações sociais entre os participantes. De maneira geral, no artigo é possível encontrar uma explanação sobre as plantas da farmacopéia machiguenga, mostrando o quanto as plantas psicoativas tem papal crucial para aquele povo, sendo extremamente útil no processo de manutenção das relações harmoniosas dentro do grupo social, com a natureza e o mundo dos espíritos.
A Coca Amazônica
Este artigo, escrito por Juan Echeverri e Edmundo Pereira, versa sobre a origem e o uso ritual da coca na Amazônia, tendo em vista que já existe uma grande literatura sobre o uso andino da coca, sobretudo no Peru e na Bolívia e, no entanto, uma escassez de escritos referente a coca na Amazônia. Neste trabalho, os autores partem de dados primários provenientes dos grupos Uitoto e Muiname, onde se propõem explorar o sentido ritual e político da expressão contida no título do trabalho: “mambear coca não é pintar a boca de verde”. Mamber tem haver com disciplina do corpo e da mente, isto é, está intimamente ligado a educação corporal e moral, sendo portanto um veículo da vida social e política. Durante o texto podemos verificar que o mambeio de coca amazônica constitui-se em uma verdadeira cultura, ponto principal tratado pelos autores do artigo; temos acesso a aspectos botânicos e históricos da coca; a aspectos simbólicos e rituais dentro do uso amazônico. Existe várias espécies de coca, “uma das principais diferenças da coca amazônica é seu baixo conteúdo do alcalóide cocaína em comparação com outras variedades (...) Apesar disso, o alcalóde é mais fácil de extrair e cristalizar” (pág.125). Durante o texto podemos ver que a coca é uma substância cujo consumo está perfeitamente estabelecido entre os grupos estudados, tanto na vida cotidiana, como na identidade de gênero, no universo simbólico, na mitologia e no que mais interessa aos pesquisadores, nas concepções de manejo corporal, ético e social. O ‘fazer coca’ possue um sentido material, mas também está ligado ao campo semântico de processar, consertar, purificar. Entender o processo de fazer coca (como expressão de um conjunto de disciplinas corporais e morais) é a base para compreender o significado de ‘mambear coca’. Segundo Echeverri e Perreira, essa tradição da coca amazônica inaugura um método de processamento muito mais complexo do que aqueles existente nas tradições andinas da planta. Eles também observam que o mambeio de coca não é uma atividade especializada ou reservada a especialistas, ao contrário, a maioria dos homens em idade adulta tem seu cocal próprio e fazem e mambeiam coca com seus próprios implementos ou de seus familiares próximos. Explicam o que é mambeadero (lugar onde se prepara a coca), sua especificações, seu significado.
De maneira geral, os autores resaltam que o mambeio de coca amazônica é uma instituição histórica; que apesar de enfocarem o uso e manejo da coca, o tabaco também possui lugar de destaque na hierarquia ritual, sendo considerado o companheiro da coca; que para a maioria da população mestiça do Amazonas, o mambeio da coca é visto como um vício repugnante e é equiparado à cocaína e seus derivados. Dizem os autores nas suas considerações finais: “Tudo isso advém da ignorância sobre a coca e seu universo ritual, das formas de racismo que ainda marcam as relações entre índios e não-índios na região. Em contraste, os indígenas de cultura de coca e tabaco, em suas reivindicações, escritos e ‘planes de vida’, salientam crescentemente essa forma disciplinar de cultivar, processar, consumir e compartilhar coca e tabaco, como parte integrante de sua educação e de sua vida social e cerimonial.” (pág. 178).
O Paricá
O pariká é um tipo de rapé (do francês râper, “raspar”), isto é, um tipo de fumo em pó para cheirar considerado sagrado, muito utilizado pelos xamãs do Noroeste da Amazônia em sua curas de doentes e outras atividades. O artigo de Robin Wright, coordenador do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena e Livre Docente da Unicamp, pretende discutir os significados simbólicos, culturais e históricos do pariká dentro da cultura dos Baniwa (povos que vivem na fronteira do Brasil com a Colômbia e Venezuela) com quem tem trabalhado desde 1976 e de outro psicoativo que normalmente acompanha seu consumo, o caapi (Banisteriopsis sp.).
Ele começa o artigo introduzindo o leitor sobre o estudo etnológico mais completo publicado até hoje sobre o pariká, a tese de doutorado de Wolfgang Kasfhammer (1997), que versa sobre a base mitológica do consumo ritual do pariká; o uso do rapé e seus diversos metódos de aplicação; sobre suas relações com os ciclos sazonais. E posteriormente vai dividir seu artigo em três partes: a primeira delas vai falar dos mitos Baniwa sobre o pariká – de como nos tempos primordiais essa substância foi adquirida pela humanidade, sobre seus significados e poderes; uma segunda parte é dedicada aos discursos xamânicos sobre o pariká, onde podemos encontrar relatos de pajés sobre suas experiências com a substância; e por último, Wright procura analisar através de histórias orais, o papel central do pariká e do caapi para as experiências de profetas na história de Baniwa. Durante o seu artigo, o autor também ressalta a pouca atenção que foi dada para o papel e a importância de substâncias sagradas (o pariká, o tabaco e o caapi) utilizadas por esses povos, tanto para a formação e experiência xamãnica, quanto profética, já que essas substâncias produziram mudanças históricas significativas na sociedade Baniwa. Por isso cabe a analise dos significados culturais atribuídos a elas para em seguida compreender o seu campo de influência. Entre os Baniwa, o pariká é tomado apenas pelos pajés e principalmente para fins de cura, normalmente utilizam ossos em forma de ‘Y’, colocando uma das extremidades do osso na narina e outra na boca, soprando fortemente; ou as extremidades da forquilha são introduzidas nas narinas e o cabo no rapé, inalando com força. Fala-se também sobre a situação atual do xamanismo Baniwa.
De maneira geral, usando as próprias palavras do autor “este artigo procurou apresentar o pariká em sua múltiplas facetas e potencial, apreciando a centralidade que teve na história do povo Baniwa (...). Destacou-se, também, o poder do pariká de transcender o tempo, ou melhor, de permitir ‘voltar’ ao mundo anterior e primordial, que é a eterna fonte de poder criativo (...). O pariká, podemos concluir, foi (e para muitos Baniwa ainda é) o remédio contra a ruindade e maldade que infestam esse mundo, e nisso consiste seu grande poder” (pág. 112).
Considerações Finais
O livro Uso Ritual das Plantas de Poder é uma coletânea que, como nos diz os autores da introdução do livro, destaca e retoma a relevância do tema dos psicoativos e dos estados alterados da consciência, sobretudo no campo das ciências sociais. Lembrando sempre que a reflexão sobre essa questão, longe de ser recente, esta presente de forma significativa na própria história da ciência moderna ocidental. A obra é riquíssima de informações. A maioria dos autores privilegia a atitude experimental diante da consciência, forma esta que inaugura uma ciência cujo objetivo é o próprio sujeito observador e, dentro desse contexto, as plantas de poder atuam como instrumentos valiossísimos, na medida que ampliam e aprofundam a visão e percepção humana ordinária. Os artigos também “focalizam, cada um a seu modo, o problema do proibicionismo e da legalidade do consumo de substâncias psicoativas no mundo moderno”, eles também “expressam uma visão segundo a qual o universo religioso encontra-se em constante comunicação e intercâmbio com as várias esferas – econômicas, política, cultural – da vida social” (pág.39).
Para finalizar, eu gostaria de ressaltar um fato marcante que observei: nos rituais com a utilização de plantas de poder, não existe uma figura, como por exemplo, o sacerdote ou o padre, que intercâmbia a relação do sujeito com a divindade. Adaptando as palavra de Isidore Ndjoung, líder buitista: com essas substâncias não se escuta falar de Deus, mas se vive Deus. A divindade fala com cada um, de maneira única e particular. E isto para mim, constitui um dos aspectos mais significativos que faz com que cresça, a cada dia mais, minha admiração por essas substâncias maravilhosas, que infelizmente sofrem de um preconceito e uma ignorância tamanha. Acredito que o mundo seria um lugar bem melhor se as pessaos pudessem sentir o sentimento de integração e amor que essas plantas proporcionam, um sentimento profundo de gratidão pela vida, que transborda e se faz verde.
Bibliografia:
O Uso Ritual das Plantas de Poder. Beatriz Caiuby Labate, Sandra Lucia Goulart (orgs.) – Campinas, SP: Mercado de Letras, 2005.
sábado, 27 de fevereiro de 2010
Cacos do Mundo
Aforismos sobre a globalização das crenças
Em tempos imemoriais, Brahmam (a Luz eterna) entrou em movimento gerando Vishnu (a Força) e Shiva (a Forma).
A Vishnu foi entregue a tarefa de criação e de manutenção de todo o Universo.
E a Shiva foi dada à missão de sua constante destruição.
E assim, viveram os três por muito tempo, com a criação e a transformação do Cosmo se alternaram diante do vazio imutável.
Certa vez, o “mais velho dos” deuses, entediado com o nada e com os ciclos de tempo gerados pela luta eterna entre Vishnu e Shiva, criou um espelho para se admirar.
Surgiu então a deusa Maya.
Disse então Brahmam: “Maya, vamos brincar?”
Ao que Maya respondeu: “Só se você criar o mundo”.
E Brahmam criou: o céu, a terra, o mar, o sol, a lua, as estrelas, o homem e os outros animais.
“Do que vamos brincar agora?” – perguntou Brahmam.
“De esconde-esconde” – disse Maya e tomando Brahmam pelas mãos, rasgou-o em milhões de pedacinhos, colocando o deus criador em cada um de suas criaturas.
E desafiou: ”Quero ver agora você se achar, Brahmam!”
Há um Deus tentando se lembrar de si mesmo dentro de cada um de nós e só conseguiremos que ele se torne consciente em nós, se conseguirmos vê-lo também nós outros. “Pelo caminho que viemos, é por ele teremos que voltar”. Mas, a globalização não é, por si só, a re-unificação da consciência cósmica de Brahmam. Por isso, discute-se aqui também que diferentes fragmentos tradicionais – as técnicas do Reiki, do Feng Shui, do xamanismo tolteca, da meditação vipassana - são simplificados e distorcidos pelo consumismo da Nova Era. Há também as crenças transversais, inter-culturais, em que a universalidade encontra diferentes interpretações, como na questão da reencarnação. Interessa-nos, sobretudo, pensar sobre as possibilidades terapêuticas da Ayahuasca dentro do cenário da globalização e do choque de diferentes identidades culturais.
#1 Reiki e Feng Shui
Recentemente, fiz um curso sobre Reiki Tradicional (isto é, sobre como essa técnica é conhecida e utilizada lá no Japão) e descobri que tudo ou quase tudo que eu havia aprendido desta técnica não era verdadeiro, ou pelo menos, que havia sido reinventado pelo esoterismo ocidental. Os símbolos, que muitos acreditavam vir de Atlântida e Lemúria, não desempenham um papel importante na técnica, há um verdadeiro ritual (com cantos e meditação) antes da prática e há vários procedimentos (escaneamento, limpeza, utilização diferente das mãos: à esquerda, voltada para cima, capta energia; a direita aplica a energia captada no doente) que foram deixados de lado.
Quando me interessei por Reiki, me disseram que o Dr. Mikao Usui foi o principal elaborador da técnica, que transmitiu, por volta de 1930, a 16 professores, entre eles ao Doutor Chujiro Hayashi. Esse abriu um hospital em Tóquio e foi responsável pela cura de um câncer de uma havaiana, a senhorita Hawayo Takata, que trouxe o Reiki para o Ocidente. Hoje há pelo menos três grupos internacionais que disputam o legado do Dr. Hayashi e da Srt. Takata: a Aliança Reiki, a Associação Americana Internacional de Reiki (AIRA) e o Usui System. Osho também decidiu abrir sua própria linha de Reiki.
Um de seus discípulos, Frank Arjana Petter, para aprofundar seus estudos, decidiu ir ao Japão e empreender uma pesquisa sobre as origens da técnica. Foi então que se descobriu um Reiki bem diferente do que aquele que se conhecia. O mestre Usui, além de passar seus conhecimentos para o Dr. Hayashi, criou uma sociedade secreta, a Gakkai, que conta com milhares de participantes. Apesar da origem budista, o Reiki tradicional está inserido em um contexto Xintoísta (uma religião japonesa de culto aos antepassados de caráter extremamente nacionalista): antes das aplicações recitam-se os versos do imperador Hiroíto (aliado de Hitler e Mussolini na 2a Grande Guerra), pratica-se a meditação Gassho (de mãos unidas) e a respiração abdominal desempenha um papel muito mais importante que a visualização dos símbolos.
O mais interessante desta descoberta, no entanto, é perceber o que fizemos de uma prática espiritual retirando-a de seu contexto cultural. Transposto para ocidental como uma mercadoria, o Reiki passou a ser uma ‘franquia’ de trabalho espiritual, onde as iniciações (na verdade, venda de símbolos) substituíram procedimentos rigorosos de desenvolvimento moral e energético. E mais: é curioso como erigimos sistemas de crenças próprias sobre um fragmento cultural descontextualizado. Mas, como dizia meu finado pai: “no caminho da vida espiritual não existem enganadores, apenas os enganados”. Não foi ninguém que me enganou, fui eu que me enganei. Mais uma vez.
Porém, diante de mais esse engano, vejo três atitudes diferentes: os desenganados (que abandonaram o uso da técnica), os que aderiram ao Reiki tradicional (mas, não ao xintoísmo, espero) e os que ignoram solenemente a descoberta de Petter, uma vez que o importante é a prática de difusão da luz e não as teorias que a sustentam. De certa forma, me incluo nesse último grupo. Embora, prefira sempre saber a verdade, acredito que Destino escreve certo por linhas tortas e que todos os enganos são necessários para nos tornarmos conscientes.
Mais um exemplo de engano transcultural: o Feng Shui, a arte chinesa de organização ambiental da energia, que estuda a relação do homem com seu ambiente, baseado na observação das estrelas, o relevo das montanhas, a forma dos rios, ruas e construção e a disposição dos móveis. Esse saber teve sua origem em antigos mestres taoístas que estudavam a natureza e compreenderam como a energia em volta deles se comportava, e como poderia afetar uma residência. Constataram que o ambiente era influenciado por duas forças fundamentais: vento e água. Em um segundo momento, também se considerava as estrelas da data de fundação do imóvel e do nascimento de seus habitantes (em geral, pelo método dos quatro pilares: hora, dia, mês e ano). Além do estudo das forças fundamentais do ambiente e das diversas técnicas astrológicas, o Feng Shui orienta a escolha do local em que a edificação deve ser construída; determina o pólo norte através de uma bússola astrológica, Lu Pan, associando-o sempre a entrada da casa; e, finalmente, analisa e propõe mudanças na organização interna do ambiente de acordo com harmonia entre os cinco elementos chineses: a madeira, o fogo, a terra, o metal e a água.
Porém, boa parte do Feng Shui ‘de Nova Era’ que é divulgado na mídia deriva do sistema da Escola Americana, que não é propriamente de origem taoísta, mas sim partidária do budismo tântrico, da ‘Seita do chapéu preto’, Escola que simplifica consideravelmente o sistema tradicional do Feng Shui, eliminando sua referência macro-cósmica e dando mais ênfase a decoração de ambientes do que a construção de casas. Assim, não há influências astrológicas e um espelho (representando o elemento água) fica sempre na entrada, independentemente de sua posição em relação aos pontos cardeais. Assim, o Feng Shui ficou reduzido à harmonização do ambiente interior através da teoria dos cinco elementos e de seus dois ciclos: o ciclo da criação (de acordo com a rotação no sentido horário na mandala) e o ciclo do controle (formado pelas setas interiores). No ciclo da criação a madeira é combustível do fogo, cujas cinzas vitalizam a terra, que cria o metal, que mineraliza a água; no ciclo do controle: a madeira se nutre da terra, que represa e absorve a água, que apaga o fogo, que por sua vez derrete o metal, que corta a madeira. Os consultores de Feng Shui, de acordo com isso, analisam qual o elemento dominante ou em desequilíbrio, e, conforme os dois ciclos, adicionam ou retiram outros elementos harmonizando assim o ambiente.
Porém, esta análise e mudança dos ambientes internos através dos cinco elementos descontextualizada das técnicas astrológicas é uma simplificação. Nela, há uma ênfase na relação simbólica entre o corpo do morador e sua residência; enquanto, nos sistemas chineses tradicionais, a relação era o ambiente micro e o universo macro. Na verdade, há várias escolas do Feng Shui e diferentes métodos e ênfases. A Sociedade Taoísta do Brasil ensina de forma tradicional todo o conhecimento de duas importantes escolas: Escola das Oito Casas (Ba Zhai) e a Escola das Estrelas Voadoras (Fei Xin). Outro ponto polêmico em relação a este aspecto macro-cósmico do Feng Shui tradicional é a questão de sua aplicabilidade no hemisfério Sul, uma vez que há vários fatores simétricos e invertidos em relação à estrutura simbólica chinesa. Por exemplo, há uma analogia entre as estações do ano e a mandala do Pa Kua, que orienta a construção do imóvel. Abaixo do equador, no entanto, as estações são simétricas às do hemisfério norte, invertendo toda simbologia do sistema. Além disso, a própria gravidade tem sua rotação no sentido contrário, determinando que os movimentos dos ventos e das correntes marítimas se desenvolvam inversamente. Levando em conta essas inversões, vários autores apresentam uma adaptação do Feng Shui para o hemisfério sul; substituindo as plêiades da Ursa Maior (que representam o pólo norte estelar e o centro da astrologia chinesa) pela constelação do Cruzeiro do Sul (e pelo pólo sul estelar como centro do céu). Também é preciso dizer que o Feng Shui evoluiu em novas disciplinas: a Radestesia, a Biogeologia e a Permacultura.
Outro caso de auto-engano esotérico interessante, que comporta essas mesmas três atitudes – o desiludido, o que não aceita a verdade e aquele que convive parcialmente com decepção – é o dos seguidores das idéias de Carlos Castaneda, o grande adaptador e divulgador do xamanismo mexicano. O que queremos ressaltar é que, assim como o Reiki, o xamanismo tolteca foi reinventado formando um novo sistema de crenças, bem diferente daquele que pretendia originalmente seguir.
O importante para nós é ressaltar agora, com esses três exemplos de apropriação simplificante de fragmentos das culturas tradicionais pelo movimento new age (o Reiki tradicional tornado comercial, a ‘toltequidade’ transformada em Tensegridade e o Feng Shui reduzido à decoração de ambientes), é que a globalização nos deu uma vasta gama de técnicas e saberes específicos voltados para o autoconhecimento, mas que o desejo de se enganar continua sendo dominante e universal.
# 2 Meditação Vipassana
Mas, há também nesse cenário globalizado, ‘adaptações bem sucedidas’, fragmentos tradicionais que se revitalizaram com a globalização, interagindo com outras culturas sem perder sua força original, como é o caso da meditação Vipassana.
No dia 10 ao dia de janeiro de 2008 fiz meu primeiro retiro de dez dias de meditação Vipassana em Miguel Pereira, no Rio de Janeiro. Vipassanā (Pāli) ou vipaśyanā (sânscrito) significa “insight”, ver as coisas como elas realmente são. Foi elaborada por Sidarta Gautama, o 1º Buda, há 26 séculos. É a observação da experiência da percepção direta.
E o princípio subjacente é a investigação e entendimento dos fenômenos manifestados nos 5 agregados (skandhas), nomeados como apego à forma física (rūpa), às sensações ou sentimentos (vedanā), à percepção (saṃjñā, Pāli saññā), às formações mentais (saṃskāra, Pāli saṅkhāra) e à consciência (vijñāna, Pāli viññāṇa). Minha interpretação: nos tornarmos conscientes das sensações do corpo; dos afetos individuais; da sintaxe da percepção; dos padrões coletivos de cognição do pensamento; e, finalmente, conscientes de nossa própria consciência. No entanto, devido ao enquadramento social, a maioria se limita a observação do corpo-mente, e dificilmente chega-se à consciência do contexto de enunciação da própria consciência.
Eu já havia feito, em 1985, quatro dias de meditação vipassana no mosteiro budista em Santa Tereza, com Don, um ex-monge Theravada que havia sido discípulo direto do Krisnamurti. Nesta versão, a meditação Vipassana tinha uma parte andando e notas mentais para pontuar a observação. Além disso, ele supervisionava o processo interior de cada um bem de perto, diferente do método do Goenka que é para 100 pessoas de cada vez (no mínimo dez dias) e que as palestras pré-gravadas em CDs.
A técnica tradicional é dividida em duas etapas: Anapana, em que a pensa concentra atenção em um ponto específico do corpo (o mais comum é a entrada e a saída de ar das narinas), e Vipassana propriamente dita, que consiste em movimentar a atenção pelo corpo no sentido ascendendo e descendente, como um scaner - o que é bastante difícil e demorar alguns dias para conseguir. Não há mantras, visualizações ou respiração específica, mas sim a observação da respiração (esteja ela profunda ou rápida). A meditação Vipassana foca a interconexão entre mente e corpo, a qual pode ser experimentada diretamente por meio da atenção disciplinada às sensações físicas, que constituem a vida do corpo, e que continuamente se interconectam com a vida da mente e a condicionam. Essa técnica de meditação, utilizada por dez dias consecutivos dentro do nobre silêncio e de uma dieta vegetariana de baixa caloria, leva a observação da mente pela consciência como algo objetivo, externo à percepção. No nível de consciência normal, a consciência habita dentro da mente.
Em outras técnicas que pratiquei (tomando Daime ou como as meditações dançantes do Osho), houve uma expansão dessa consciência que extrapola os limites do ego, mas essa permaneceu dentro da mente. A consciência, em estado de percepção ampliada, acessou níveis profundos do inconsciente, mas permaneceu dentro dos limites da estrutura mental-emocional. O que acontece com a técnica Vipassana é diferente: através da focalização da atenção na respiração (fronteira sensorial entre o intencional e o involuntário), sem a utilização de quaisquer sons ou visualizações, acessam-se os padrões profundos do inconsciente, vistos pelo lado de fora. As sensações de dor e sofrimento emocional devido às restrições perceptivas do enorme esforço cognitivo voltado para atenção sobre o corpo e a respiração fazem emergir desejos de aversão e as sensações de bem estar corporal fazem emergir desejos de cobiça (não só sexuais, mas de repetição de situações prazerosas).
Normalmente, em outras técnicas ou terapias com foco sensorial, esses desejos são vistos como positivos, mas quando vistos objetivamente, como a consciência posta para o lado de fora da estrutura mental-emocional, mostram-se apenas uma camada mais profunda do inconsciente individual. E mais: é a fala que organiza a memória com sua narrativa. Com ‘o nobre silêncio’, há um aumento da memória e sua reorganização fora dos padrões discursivos. Não apenas lembramos de mais coisas, como também a forma como nos recordamos dos eventos não é tão ego-centrada. Com silêncio, a memória não funciona mais por lembranças, mas sim por recordações.
A experiência me rendeu também um paradoxo cognitivo produzido pela própria meditação. Os paradoxos são temas recorrentes, sem solução, que, contraditoriamente e ao mesmo tempo, são também uma forma de resistência e uma forma de aprofundamento da mente durante o processo de observação. Meu paradoxo se referia a uma desconfiança neokantiana de que meus esforços de concentrar minha atenção na respiração e nas sensações físicas eram, de fato, imaginários.
Eu estava realmente sentindo ou imaginava que estava sentindo? Há alguma diferença entre as duas percepções? Entre a observação e a imaginação? Será que a consciência pode observar a mente do lado de fora ou eu (ou a minha mente) havia criado um observador imaginário aparentemente exterior à mente?
Esse paradoxo do ser sujeito-objeto tem vários níveis e não tem solução. Por exemplo: a contradição entre aceitação e reação/ação consciente. A prática da meditação vipassana traz a hermenêutica budista embutida em si, seus conceitos e seus valores, sua estrutura metafísica. A idéia de não-reação perpassa toda doutrina budista. Para aprofundar a meditação não devemos reagir nem às dores e nem às outras manifestações cognitivas (sensações, sentimentos, percepções, etc) – apenas observar.
Mas, para mim, as éticas espirituais guerreiras (os samurais, os toltecas, os guaranis, entre tantos) estão bem além dos padrões do paradoxo budista de ‘reação-aceitação’. Ao invés de reagir ou não-reagir, é preciso espreitar; é preciso entender “o dar a outra face” como ação consciente criativa e não como aceitação da violência sofrida ou como uma reação. A meditação Vipassana consiste justamente em se domesticar para não reagir a nada. Então, surgiu dentro de mim uma luta interior entre aceitar o mundo como ele é e o inconformismo de não agir para transformá-lo. E uma reflexão sobre o contraste ente a moralidade budista e a ética guerreira.
Esses paradoxos entre observação/imaginação e aceitação/rejeição, vividos dentro do processo de meditação como resistências/aprofundamentos, funcionam como desafios de desenvolvimento, impedimentos que nos provocam a vencê-los.
# 3 O uso terapêutico da Ayahuasca
Gostaria agora de estabelecer alguns parâmetros para o uso terapêutico da ayahuasca como também procedimentos para dar contingência às emergências espirituais; e discutir os fatores que determinam a adaptação criativa e a descaracterização cultural de uma determinada tradição religiosa ou técnica espiritual do mundo globalizado, dando ênfase, evidentemente, ao processo de expansão internacional da Ayahuasca.
Uma primeira distinção necessária é sobre as noções de ‘uso religioso’ e de ‘uso terapêutico’ de substâncias químicas que promovem a expansão da consciência. Alguns pesquisadores argumentam que essa distinção não faz nenhum sentido e que o ‘uso’ indígena seria mais terapêutico que religioso. Em minha perspectiva, o uso religioso caracteriza-se principalmente por ser vertical, enfatizando a relação entre o Ego e o Eu Superior (ou a divindade); enquanto o uso terapêutico é horizontal, focado na relação entre o ‘Eu’ e o ‘Outro’. Embora essa seja uma distinção teórica, pois na prática os dois aspectos são indissociáveis, há intenções e ambientes (sets and settings) bem diferentes nas duas propostas. E essa diferença nos faz levantar várias questões.
Por exemplo: será que um dependente químico de drogas não tem maiores chances de recuperação em um paradigma (= ambiente + intenção) religioso, em que sua dependência transmuta-se em autonomia espiritual, do que em um paradigma psicológico onde ela pode ser transferida para o terapeuta ou para outros objetos horizontais? Ou ainda: será que Ayahuasca facilita ou amplifica a catarse emocional? Por que a exposição de sentimentos e emoções negativas (como a raiva e a tristeza) tão apropriadas no processo terapêutico pode gerar obsessões psíquicas e espirituais, quando realizada em estados de consciência alterada? O louvor ao sagrado cura devido sua gratuidade, já dar suporte ao desenvolvimento de resiliências (trabalho terapêutico) é uma atividade profissional remunerada – como conciliar essas questões?
O uso religioso tem por objetivo o desenvolvimento ético e moral dos participantes do culto em geral, enquanto o uso terapêutico pressupõe um problema específico a ser resolvido por alguém em particular. Mas , é preciso definir melhor como se pode (e como não se deve) usar a DMT e suas bebidas enteógenas para tratar de uma resistência específica ao desenvolvimento individual. E não estabelecer um ‘novo uso’ para a bebida.
A tradição daimista prescreve rigorosamente a não-intervenção, seja a forma de toque corporal, massagem corporal ou tentativa verbal de comunicação, quando um participante do culto faz uma ‘passagem’, isto é, encontra com alguma resistência em seu processo de desenvolvimento e sofre algum tipo de mal-estar.
Nesta perspectiva, é aconselhável que ‘a bebida e a pessoa se entendam’ ou que o processo psíquico desencadeado seja resolvido através de uma auto-adaptação da pessoa à situação emergente sem interferências. Tal prescrição é extremamente válida, principalmente no âmbito das igrejas e templos religiosos em que pessoas sem preparação (sem formação profissional específica) podem querer ajudar outras em um momento crítico circunstancial, através de um toque corporal.
Por outro lado, o uso consorciado da ayahuasca com algumas experiências com mudanças dos padrões corporais se mostrou bastantes produtivas, devido ao relaxamento muscular propiciado pela ingestão da bebida, como as aplicações sucessivas de massagem da técnica desenvolvida por Ida Roofing. O processo de alinhamento postural pode ser potencializado através de alongamentos e de exercícios regulares diários (de Pilates, RPG ou de Iso-stretching), sem ingestão de nenhum aditivo químico. Os exercícios preparariam para um realinhamento postural e comportamental profundo e permanente, feito em estado de consciência alterado.
Nesse caso, a ayahuasca é utilizada dentro de um processo de longo prazo, com objetivos e outras práticas terapêuticas. Não são as práticas terapêuticas que são inseridas no ritual e sim o ritual que é inserido em um processo terapêutico.
Já o uso da Ayahuasca consorciado diretamente às práticas catárticas da bioenergia e das meditações dançantes do Osho não apresentaram para mim nenhum benefício visível e certamente podem reforçar, ao invés de dissolver, as resistências psicológicas, sejam elas ‘couraças energéticas’ ou complexos comportamentais. Ou seja: a tradição espiritual desaconselha a prática da intervenção terapêutica no paradigma religioso, mas a experiência psicológica incentiva o uso de enteógenos como uma forma de intervenção espiritual no paradigma terapêutico.
Portanto, não se trata de utilizar técnicas e práticas de outras paragens para ‘completar’ ou ‘aperfeiçoar’ os rituais associados à Ayahuasca e às plantas de poder brasileiras, mas sim de aprender a utilizar estes rituais e estas plantas em processos terapêuticos. E, dentro de processos terapêuticos, dentro das experiências que organizei e presenciei, a Ayahuasca tem se mostrado muito mais adequado às técnicas de regressão biográfica através de sugestão hipnótica do que, diretamente, aos movimentos corporais e as massagens voltados para catarse.
Há também outras possibilidades de integração, como as técnicas de roda, os exercícios de respiração (1) e as metodologias de re-organização da memória e da vida presente (2).
As técnicas de roda, ou a ciranda de vozes e de dança, é um suporte de transmissão de memória e conhecimento anterior ao advento da escrita, quando os contextos de recepção e de transmissão de informação eram comuns. A roda centralizava o acesso ao conhecimento e instituía um tempo circular, simultâneo, sem continuidade. Com a escrita (e a memória social), surgiu a história (e o tempo linear baseado na acumulação de informação), os contextos de recepção passaram a ser múltiplos e distintos do contexto da fala.
Percebe-se que os cantos e a dança em roda fazem parte da Ayahuasca. A química prescinde de práticas rituais para se realizar com sentido para seus usuários. Ao anular os rituais e práticas associadas ao culto da bebida, também se perde o que há de espiritual no efeito da substância psicoativa. A DMT descontextualizada é apenas uma droga psicodélica, que provoca acessos visuais.
Hoje (graças à Internet) retornamos parcialmente ao tempo simultâneo e a esse suporte arcaico da cultural oral. O próprio ritual do Daime, o hinário bailado e cantado, é um excelente exemplo de uso da roda de vozes e danças como estrutura trifásica (de movimento, canto e pensamento), como forma de propiciar um aprendizado existencial significativo e de transmitir conteúdos simbólicos, integrado ao paradigma histórico da escrita e do pensamento objetivo. O bailado também tem suas limitações criativas em relação a outras formas de roda de dança e canto.
As técnicas aqui descritas não têm por objetivo aperfeiçoar o modelo do bailado (acrescentando novas possibilidades terapêuticas ao ritual religioso), mas sim, de integrar esse modelo a outras técnicas de roda dentro de um contexto terapêutico atual, múltiplo e aberto. Nesse sentido, em relação às técnicas de roda, destaco dois trabalhos: o círculo de repetição (3), danças sagradas circulares e da paz universal.
4# tratamento de dependência química
Além dessas discussões sobre as técnicas adequadas, a questão do uso terapêutico da Ayahuasca levanta ainda várias questões paralelas, como a da emergência de surtos psicóticos e a da possibilidade de recuperação de dependentes químicos.
A ayahuasca tem o efeito de agravamento dos sintomas, ele promove e desenvolve mudanças existenciais, levando as situações contraditórias a níveis críticos. Assim, outro tema correlato ao uso terapêutico da ayahuasca, é que ele desencadeia crises psíquicas e emergências espirituais. A experiência atesta que tais casos tanto podem ser vistos como uma superação de tendências psicóticas como podem causar danos irreversíveis, caso o sujeito das crises não encontre o apoio e a compreensão necessários para entender a situação em que se encontra. O papel da família, da comunidade religiosa e do ambiente profissional parece ser preponderante para a recuperação e a superação das crises.
Daí a necessidade de se estabelecer critérios e parâmetros para propiciar a emergência espiritual de conteúdos psíquicos não se torne uma psicose ou uma esquizofrenia irreversível.
Muitas instituições religiosas acreditam se defender dessas situações através de uma rigorosa entrevista (chamada incorretamente de anámnese), que realizada de forma burocrática por pessoas despreparadas faz uma triagem preconceituosa e de baixa qualidade. Uma entrevista preliminar com as pessoas que vão tomar ayahuasca pela primeira vez é fundamental para o aproveitamento adequado da experiência, mas não deve tentar enquadrar os entrevistados em categorias de risco, pois essa prática além de moralista e politicamente incorreta é ineficaz no sentido de identificar comportamentos problemáticos ou possíveis emergências espirituais.
A verdade é que nada substitui uma conversa franca e compreensiva. Mais do que perguntar, o entrevistador deve responder as dúvidas e questões postas pelo entrevistado. E mesmo que identificados fatores de risco nos entrevistados, isto não deve ser motivo para exclusão ou para constrangimento, mas sim como uma informação relevante para compreensão do processo de transformação que se iniciará.
Não basta informar os possíveis prejuízos da utilização de outras substâncias (como o álcool e a cafeína) e de excessos sexuais em conjunto com a ayahuasca, é preciso explicar, sem fanatismo ou superstições, quais sãos esses danos e quais são as conseqüências do uso indisciplinado da ayahuasca.
Porém, se os próprios adeptos dos cultos não obedecerem às prescrições que professam aos neófitos, as restrições necessárias à experiência soarão como hipocrisia e farisaísmo. E se é incorreto tentar escapar às crises antecipadamente pela triagem e exclusão, também é errado tentar encobri-las depois que emergem.
Nesses casos, além de um atendimento terapêutico individualizado, deve-se manter a participação do sujeito em crise nos rituais religiosos ou nas práticas terapêuticas de grupo (caso isto seja possível) sem o consumo da ayahuasca ou com doses simbólicas. A exclusão do sujeito em crise do contexto da emergência espiritual (e seu deslocamento para outros cenários) é prejudicial à conclusão satisfatória do processo.
Em relação à recuperação de dependentes químicos através de processos terapêuticos utilizando a Ayahuasca, há várias iniciativas bem sucedidas em curso, mas também vários equívocos. Não podemos tratar desse assunto aqui me profundidade, mas gostaria de apontar dois enganos bastante freqüentes que tenho observado: a) a substituição do consumo de drogas pelo consumo da Ayahuasca; e b) a substituição da medicação apropriada pela Ayahuasca.
Essas duas ‘substituições’ são interpretações equivocadas. A Ayahuasca pode ajudar na recuperação de dependentes químicos caso seja compreendida como ‘sacramento’ e não como uma droga ou um remédio. E, é claro, de nada adianta o uso sacramental da ayahuasca sem um processo terapêutico que inclua o confinamento em ambiente adequado, a mudança de hábitos alimentares e, essencialmente, da motivação emocional do recuperando através de diferentes tipos de práticas. Prescreve-se, pois, tais fatores em conjunto ao uso sacramental, e não a dupla substituição.
Boa parte da literatura acadêmica mais recente sobre Ayahuasca trata de seu uso terapêutico, principalmente da possibilidade de sua utilização em tratamentos de dependência química, uma vez que já existe um alto de número de ex-usuários recuperados entre os adeptos das religiões ayahuasqueiras.
O texto coletivo Considerações sobre o tratamento da dependência por meio da ayahuasca (LABATE, SANTOS, ANDERSON, MERCANTE, BARBOSA, 2009) faz uma revisão bibliográfica específica desta literatura e sistematiza as principais reflexões sobre o potencial terapêutico do uso ritual da ayahuasca no tratamento ao abuso de substâncias psicoativas.
O texto analisa a experiência de dois centros terapêuticos que combinam elementos da medicina e da psicologia ao uso da ayahuasca: o Instituto de Etnopsicologia Amazônica Aplicada (IDEAA), próximo à comunidade do Santo Daime Céu do Mapiá, no município de Pauini (AM), no Brasil e o Takiwasi, em Tarapoto, no Peru. São ainda discutidas perspectivas para uma futura agenda de pesquisas científicas interdisciplinares sobre este tema, refletindo sobre as possibilidades de diálogo entre biomedicina, antropologia e psicologia, além dos dilemas éticos e metodológicos envolvidos neste tipo de investigação.
A aparente melhora de muitos casos de abuso e dependência de substâncias psicoativas, segundo o relato de vários grupos terapêuticos e religiosos voltados para o uso ritual da ayahuasca, bem como de antropólogos, psicólogos e psiquiatras que estudam o tema, representa um fenômeno de saúde promissor. Esse pode ser melhor compreendido a partir de estudos interdisciplinares sistemáticos que combinem a abordagem quantitativa com uma sutileza qualitativa e etnográfica. Tal esforço interdisciplinar deve ser acompanhado também de uma tentativa de diálogo com os saberes nativos, colaborando para que o conhecimento adquirido durante décadas pelos diferentes grupos que utilizam a ayahuasca no tratamento da dependência auxilie futuros estudos clínicos de terapias psicodélicas voltadas para abordar o problema.
#5 Pesquisa Acadêmica
Uma boa introdução à pesquisa do Ayahuasca é o livro Religiões ayahuasqueiras: um balanço bibliográfico (2008), de Beatriz Caiuby Labate, Isabel Santana de Rose e Rafael Guimarães dos Santos. O balanço das pesquisas realizadas sobre Santo Daime, Barquinha e UDV, contabilizou 52 livros (13 em inglês), 35 dissertações de mestrado, sete teses de doutorado, nove pesquisas em andamento e um número incalculável de monografias e artigos - em 11 áreas distintas de conhecimento.
Os primeiros artigos são dos anos 50. O marco fundador do campo na academia é a tese O Palácio de Juramidam (1983), de Clodomir Monteiro. Em 1984, Alex Polari, Cefluris, lança seu 1º livro. Em 1986 saiu o primeiro artigo acadêmico sobre a UDV, do Anthony Henman, em uma revista mexicana chamada América Indígena. Em 1993 foi realizado o Hoasca Project. A Barquinha tem seu primeiro livro em 1999. A década de 90 é marcada pela expansão do campo de estudos no Brasil e, a partir do ano 2000, começam a ser produzidos trabalhos no exterior. Outro marco importante é a pesquisa, realizada em 2003, sobre adolescentes da UDV. Os estudos sobre Ayahuasca hoje se multiplicam em progressão geométrica, levando os autores a declarar de que a “lista já nasce desatualizada, porque enquanto estamos falando tem alguém publicando alguma coisa”. E, de fato, de lá para cá várias teses, dissertações e monografias foram defendidas, e diversos artigos científicos e ensaios foram escritos em nome da Pesquisa da Ayahuasca.
Gostaria de destacar o trabalho de José Eliézer Mikosz, A arte visionária e a Ayahuasca: Representações Visuais de Espirais e Vórtices Inspiradas nos Estados Não Ordinários de Consciência (2009). Mikosz estuda várias formas visuais (espirais, mandalas, labirintos, universos em camadas) e suas possíveis significações. Apesar de usar como referência os Estados Não Ordinários de Consciência (ENOC), em vários momentos aproxima-se bastante da idéia de sonhos lúcidos, de Stephen LaBerge (4).
A ayahuasca talvez permita entrar no rio mercurial (streaming of consciousness) que corre entre a vigília e o sono, a interseção entre a realidade cotidiana e seu fluido reflexo nos infinitos mundos da imaginação. A ayahuasca, como outras plantas e substâncias psicointegradoras, possui a potencialidade de aproximar o ser humano do lugar, por assim dizer, de onde os mitos procedem. Essa suspeita surgiu pela semelhança da experiência vivida com a ayahuasca e os estados hipnagógicos e mesmo dos sonhos. De onde vêm os pensamentos, são deliberados por volição, são sempre escolhas do “pensador” ou surgem como acontecimentos independentes, interagindo então com o indivíduo? Os devaneios, o estado hipnagógico, este muitas vezes similar às mirações, parecerem se desenvolver em uma corrente de consciência que passa como pano de fundo, independentemente da direção consciente do indivíduo. Essa corrente pode ser comparada a um filme contendo uma mistura de conteúdos pessoais e impressões e experiências vindas do meio ambiente. É possível interagir com esse conteúdo à medida que o estado de vigília vai relaxando seu controle, seja no início do sono, seja pela ação de psicoativos como a ayahuasca. Estudos mais profundos sobre essa característica da consciência certamente trarão conhecimentos maiores sobre os esforços cognitivos da mente. (MIKOSZ, 2009,249 )
Em relação à cognição visual (a miração) resultante dos efeitos da Ayahuasca, o trabalho de Mikosz baseia-se em boa parte nas pesquisas de Rick Strassman sobre a substância psicoativa do Ayahuasca, a DMT (a dimetiltriptamina), e não sobre a bebida propriamente dita ou no sistema de crenças que configura seu uso.
Strassman (2001) diz o corpo produz naturalmente DMT na hora da morte para favorecer a lembrança dos momentos marcantes da vida. O xamanismo tolteca chama isto de 'recapitulação' e corresponde a limpeza dos vínculos cármicos adquiridos durante a vida. A DMT permite a utilização consciente da memória visual através do lado direito do cérebro, em oposição à nossa memória discursiva ordinária organizada através da fala. É a fala que transforma a memória em narrativa, se simplesmente contarmos nossa estória, oscilaremos entre os papéis de vítima e de herói. É o hemisfério esquerdo do cérebro que acessa a memória e quer comunicar a lembrança resgatada a alguém.
Com a DMT, ao contrário, feita em estado de silêncio interior, sem interlocutor ou escuta analítica externa, as lembranças emergem objetivas, permitindo a reintegração emocional dos momentos vividos com distanciamento, vistos de fora, como em um filme narrado por outra pessoa.
E essa pode ser a principal aplicação terapêutica da DMT em um futuro breve: fechar (reviver e superar) as feridas emocionais que jorram do inconsciente individual.
O acesso consciente à memória visual também pode ser colocada sob a forma de ‘sonhos lúcidos’, isto é, a ocorrência de estado de funcionamento cerebral de alto desempenho - o sono REM (rapid eye moviment) – que normalmente acontece enquanto o sujeito está dormindo, durante o estado de vigília (5).
Vários místicos tradicionais opõem sonho e consciência. A consciência está sempre presente no aqui e agora. O sonho é memória passada e previsão do futuro. O sonho lúcido (ou o Estado de Consciência Alterada através da DMT) é visto por eles como uma alucinação a ser vencida pela consciência, como uma passagem por reinos intermediários ou como realidades subjetivas que aprisionam a alma. O xamanismo em suas diferentes versões, no entanto, acredita no desenvolvimento através dos sonhos.
Para Strassman, há quatro estágios progressivos do efeito do DMT: o estado eufórico, o ‘caleidoscópio colorido’, o estado de diálogo com as entidades e a transcendência do ego. Para isso, ele teria que trabalhar suas dosagens cada vez maiores de DMT (e não de IMAO). A experiência, no entanto, comprova que o mero aumento de dosagem química não basta para se alcançar estados de percepção mais profundos e intensos, é preciso também ter a ligação espiritual - que só vem através de treinamento em alguma técnica ou ritual. Aliás, quando maior a capacidade mental de alteração o estado de percepção, menor a dosagem necessária – como pode ser visto na maioria dos adeptos mais antigos dos cultos.
“Eu só miro as situações em que estou envolvido” – confessou-me certa vez um experiente ayahuasqueiro. E, certamente, as imagens psíquicas, sejam elas arquétipos universais ou lixo subconsciente, em nada ajudam ou enriquecem a experiência espiritual da DMT. O importante é compreender o quadro de relações (sociais, cósmicas, afetivas, políticas, etc) em que se está inserido. E mais: “Mirar com firmeza resolve os problemas” – me ensinou o caboclo. A ‘firmeza no mirar’ é permanecer em estado de consciência alterada intenso, profundo e por longos períodos de tempo (e baixas dosagens de DMT) e conseguir reverter as relações de conflito, submissão ou enaltecimento que se apresentem.
A idéia de ‘miração’ ou ‘sonho lúcido’ (e de diferentes estágios progressivos do transe quimicamente induzido) não pode ser desvinculada do sistema de crenças do sonhador. Eu, por exemplo, reconheço quatro paradigmas diferentes sobrepostos e simultâneos no trabalho espiritual com DMT: o paradigma da luta do bem contra o mal; o paradigma de ajuda aos espíritos sofredores vivos e mortos; o paradigma de diálogo/conflito do Eu com o Outro; e, finalmente, o paradigma da Consciência da Divindade (ou da recapitulação da biografia pela consciência/identificação com narrativas míticas e simbólicas).
O modelo de estágios progressivos de estados de consciência de Strassman tem seu valor, mas é preciso perceber que ele também se baseia em um sistema de crenças, mesmo que sejam crenças científicas céticas.
Outra grande contribuição ao estudo do Ayahuasca é o trabalho de Benny Shanon (2003), que faz um levantamento estatísticos das imagens psíquicas geradas a partir da experiência do Ayahuasca. Shanon tornou-se muito conhecido devido sua hipótese de Moises teria acidentalmente consumido DMT (uma vez que a Arca da Aliança seria feita de Acácia - um tipo de jurema) e entrado em transe no monte Sinai.
Shanon destaca ainda quatro aspectos relevantes em relação ao efeito do Ayahuasca: a percepção do pensamento como uma cognição coletiva, a indistinção entre o interior e o exterior, as experiências desindentificação pessoal e a percepção de tempo não-linear. Sob o efeito da DMT os pensamentos não são individuais, mas sim ‘recebidos em rede’ (a mente como um rádio); que não existe a distinção entre o sensorial e o sensível; podem se transformar em animais (jaguares e águias são freqüentes) ou em outras pessoas; e finalmente percebem o transcorrer do tempo de forma desigual, em que alguns segundos demoram séculos e horas se sucedem rapidamente e em que alguns momentos se experimentam a simultaneidade (ou a sensação de eternidade) temporal.
Desses quatro aspectos relevantes o mais interessante é o que trata de nossa percepção do tempo. Quando baixamos arquivos no computador percebe-se que alguns segundos demoram mais que outros, em função do peso do arquivo e da aceleração da conexão da internet (6). O que Shanon suspeita é que o mesmo acontece com a memória humana, mas só é perceptível sob o efeito da DMT. É a pesquisa da mente através do ayahuasca (e não mais do efeito do ayahuasca na mente).
Tanto Shanon como Strassman enfatizam a idéia de tempo descontínuo. A DMT nos recoloca novamente dentro da simultaneidade. Com base nessas pesquisas e em minha vivência pessoal pode-se dizer que a experiência de ‘mirar’ ou ter ‘sonhos lúcidos’ se aproxima muito mais de uma supercognição (envolvendo os dois hemisférios cerebrais simultaneamente) do que de uma alucinação ou de apenas ilusões visuais. Supercognição que permite à consciência enraizada no presente ativar as memórias do passado com objetividade visual e prever (ou até mesmo influenciar) acontecimentos futuros.
Segundo o professor Oscar Calávia Saez (2008), quando os Yaminawa tentam explicar o que o ayahuasca é para eles, usam comparações como o ‘cinema do índio’, a ‘televisão’ do índio e até ‘o avião do índio’. O ayahuasca é o que permite uma visão ao longe e media o modo de ver o universo em seu conjunto. Todavia, além de ser uma tecnologia de transcendência do tempo/espaço, o Ayahuasca tem outro função menos evidente: criar uma linguagem xamânica comum entre grupos étnicos diferentes.
O que eram praticas xamânicas muito diferenciadas tem se transformado, talvez nos últimos 100 anos, numa espécie de ecumene indígena organizada em volta do uso da ayahuasca e dos cantos que acompanham esse uso. O xamanismo dos Shipibo-Conibo, dos Kokama, dos Kaxinawa, dos Yaminawa, dos Kampa, não são mais o que poderíamos chamar de xamanismos locais, étnicos, pertencentes a um pequeno grupo etnolingüístico. Há muito tempo que esse xamanismo se transformou numa linguagem comum, num mundo extremamente comunicado onde as canções da ayahuasca se transmitem de um grupo a outro. Enfim, a ayahuasca tem contribuído de modo muito importante para dar forma a um xamanismo que, apesar pensarmos que é extremamente antigo, provavelmente adquiriu a sua forma atual com a expansão, através da comunicação, da tradução facilitada pelo uso desse veículo, da ayahuasca.
Hoje, vendo os hinos do Daime cantados em vários idiomas, não se pode deixar de pensar que se trata do mesmo fenômeno. Mais não é só isso! Segundo Saez, os Yaminawa quando bebem Ayahuasca, além das canções em línguas exóticas, entoam as canções em sua própria língua de um modo diferente. “É um modo de tratar a língua de uma qualidade poética minimalista realmente surpreendente e lembra aqueles poemas curtos japoneses, os Hai-kai’s; evocando detalhes quase infinitesimais que existem nas folhas, na pele dos animais.” Experiência estética semelhante a dos hinos do Daime cantados em português mundo a fora. As pessoas cantam e compreendem telepaticamente o conteúdo, mas não sabem o que exatamente significam. “Aprender a tomar ayahuasca significa aprender a entender esse modo de poesia”.
O debate envolvendo a globalização cultural das técnicas religiosas tradicionais e o uso terapêutico da Ayahuasca está apenas começando. Porém, o aspecto fundamental neste turbilhão de acontecimentos é o fato da sociedade atual – ou a cultura pós-moderna ainda em construção – criar as condições sociais necessárias a um novo uso da ayahuasca, que nos permite (ou nos permitirá em uma escala de massas) experimentar a morte e a transformação existencial de uma forma mais acentuada.
# 6 Viva a Morte!
Negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Observando os doentes terminais, os médicos chegaram a constatação de cinco reações emocionais em relação à morte. No estágio de negação e Isolamento, não acreditamos: “Isso não pode estar acontecendo comigo”. No estágio de Cólera (Raiva), reclamamos: “Por que eu? Não é justo.” Depois negociamos: “Me deixe viver apenas até meus filhos crescerem.” Em seguida vem a depressão: “Estou tão triste. Por que se preocupar com qualquer coisa?” E, finalmente, compreendemos a situação e a aceitamos: “Vai tudo acabar bem.”
Originalmente aplicaram-se estes estágios para qualquer forma de perda pessoal catastrófica, desde a morte de um ente querido e até o divórcio ou separações entre amigos antigos e familiares. Com o tempo, no entanto, se percebeu que qualquer mudança pessoal significativa pode levar a estes estágios. Por exemplo, advogados criminalistas de defesa experientes estão cientes de que réus que estão enfrentando a possibilidade de punições severas com pouca possibilidade de evitá-las freqüentemente experimentam estes estágios, sendo desejável que atinjam o estágio de aceitação antes de se declararem culpados.
Também se observou que estes estágios nem sempre ocorrem nesta ordem, nem são todos experimentados por todos os pacientes, mas afirmou que uma pessoa sempre apresentará pelo menos dois. Há pessoas que vencem suas doenças mortais pela negação obstinada. Outras são derrotadas pela aceitação precoce, outras ainda vitimadas pela própria piedade durante o estágio de tristeza ou sucumbem afogados na própria raiva. Os estágios são progressivos, mas não são hierárquicos. Um não é melhor que outro.
A raiva e a tristeza são, na verdade, em minha opinião de ser vivente diante da morte, intervalos entre estágios mentais mais organizados, são descargas emocionais, mais que estágios em si: a raiva transforma a negação em negociação, a tristeza faz com que a negociação se torne aceitação. Osho diz que são humores polares e aconselha que sejam utilizados um contra o outro, para neutralizá-los mutuamente: quando estiver com raiva, tente se entristecer com o que lhe enraivece; em contrapartida, quando estiver triste procure se indignar com os motivos que te deprimem.
Isto é particularmente válido se pensarmos que há pessoas com uma maior propensão a tristeza (que geralmente têm dificuldades em lutar por seus objetivos) e também pessoas com um caráter predominantemente colérico, pouco sensíveis a reconhecer as próprias falhas como resultantes de suas ações. Raiva e tristeza são reações emocionais contrárias, que todos temos em maior ou menor proporção, diante de nossas perdas irreversíveis e da eterna impermanência do tempo de vida. Aliás, o ciclo maniáco-depressivo, descoberto por Willis e Freud e reinventado como transtorno bipolar atualmente, é uma prova de que esses estágios devem ser vistos como momentos opostos de re-equilíbrio emocional do corpo e não como reações específicas diante da morte e da perda.
Portanto, excluídos a raiva e a tristeza de nosso modelo dos estágios de luto, restam três momentos genuínos de reação à morte: a negação, a negociação e a aceitação. Talvez se trate apenas de uma questão de correlação de forças: quando temos muita energia, negamos a morte; quando não temos, a aceitamos; na dúvida, negociamos. Estágios universais, é verdade, mas com variações infinitas refletindo uma grande diversidade de pessoas e reações. Em uma tipologia ternária geral, como a tipologia do Eneagrama de Naranjo, por exemplo, pode-se dizer que as pessoas mais mentais são mais propensas ao medo, que as pessoas do tipo sentimental são mais ansiosas e que as pessoas com ênfase na motricidade é que têm, principalmente, essa oscilação polar dos temperamentos agressivos e deprimidos. Aliás, pode-se inclusive reconhecer uma tipologia ternária com base nos diferentes tipos de reação precoce à própria morte: os negadores neuróticos (ou os contestadores), os negociadores compulsivos (ou os dominadores) e os aceitadores profissionais (ou os submissos) (7).
Acontece que o momento de enfrentamento da morte é um momento de superação das neuroses e das recorrências psicológicas. E muitos comportamentos padrões automatizados são reconhecidos, aceitos e dissolvidos. Todos os caminhos levam à aceitação (até mesmo a aceitação neurótica, que acredita poder perdoar antes de sofrer, leva, após outros estágios dramáticos, à aceitação verdadeira). As pessoas e as formas de reação ao catastrófico são muitas, mas a morte e sua aceitação nivelam tudo a dois pontos comuns: o fim do tempo e a necessidade de mudança.
Nesse contexto, a consciência ocupa um lugar central. Antigamente, evitava-se contar aos doentes terminais sua situação porque se acreditava que isso aceleraria seu processo. Depois, em uma onda humanista, investiu-se na atitude contrária, dizendo aos doentes suas chances reais (ou não) de recuperação e quando tempo de vida lhes restava. Hoje, os dois procedimentos são utilizados dependendo da maturidade das pessoas, dos princípios éticos do médico e, principalmente, do interesse particular das famílias envolvidas (o que, muitas vezes, é ‘particularmente’ cruel).
Consciência tanto no sentido de ter acesso à informação (consciouness) como no sentido da percepção direta (conscience), afetiva e efetiva, de seu estado terminal. Uma coisa é a informação (“fumar faz mal a saúde” - por exemplo), outra é a percepção. Aliás, a própria definição do ‘momento da morte’ é uma questão complexa (8). Geralmente, percebemos inconscientemente que estamos morrendo, ou que (uma vez que todos estão morrendo desde que nascem) estamos próximos de partir do mundo material. Trata-se de assumir mentalmente o que já percebemos involuntariamente através do corpo.
Os grandes mamíferos (elefantes, baleias), não apenas sabem o momento de sua morte mas também aceitam seu destino com uma sabedoria que nós, seres humanos, dificilmente alcançamos. Isto porque são (foram e serão) raros os homens que conhecem o dia da própria da morte e várias são as tradições consideram o ‘conhecimento e a aceitação do dia determinado’ como uma prova de espiritualização humana incontestável. Há, inclusive, várias narrativas lendárias e literárias sobre o tema de conhecer e aceitar o próprio destino.
Eis aqui o primeiro ponto que gostaria de firmar: a flor já existe na semente, a morte é imanente à vida, e não sua transcendência para outro plano. E, nesse sentido imanente, ela não apenas é um mecanismo de aperfeiçoamento genético da evolução biológica, mas, sobretudo, um mecanismo de aperfeiçoamento ético e evolução espiritual da consciência. Ou seja: a morte não se refere só à vida mas também à consciência.
Assim, a verdadeira questão não é se existe vida após a morte, mas sim se há consciência após a morte. E essa é a segunda questão que eu gostaria de abordar. O conceito de Experiência de Quase-Morte (EQM) (9), que refere-se a um conjunto de sensações associadas a situações de morte iminente, associadas a hipóxia cerebral, como o efeito ‘túnel de luz’ e a ‘experiência fora-do-corpo’ (autoscopia). O termo foi cunhado pelo Dr. Raymond Moody em seu livro escrito em 1975, “Vida Depois da Vida”.
Para nós, o importante é que, após a EQM os pacientes parecem alterar o próprio ponto de vista em relação ao mundo e as outras pessoas. As mudanças comportamentais são significativamente positivas. O principal fator para a mudança é a perda do medo da morte; passam a valorizar mais as suas vidas e a dos outros; reavaliam os seus valores, ética e prioridades habituais; tornam-se mais serenos, confiantes e … conscientes.
Em outros tempos, essas EQMs eram rituais de iniciação. O confronto com a própria morte era um mecanismo social para qualificação da consciência e fazia parte das ‘tradições cívicas da tribo’. Na verdade, nossa sociedade não aboliu completamente esse mecanismo, ela pulverizou esse rito de passagem em diversas micro-mortes, em diversas perdas e frustrações pelos quais nos lembramos da vida e afiamos nossa consciência. ‘Quase-morremos’ várias vezes em uma única vida.
E isto nos leva a um terceiro ponto: a vida pós-moderna e a morte da morte. Edgar Morin, na esteira da morte de Deus (postulada por Nietzsche) e a morte do Homem (sustentada por Foucault) tentou assassinar a própria morte, com a noção de ‘amortalidade científica’ (em oposição à ‘imortalidade’ tradicional). A medicina e a ciências atuais querem estender o tempo de vida ao máximo, querem vencer a morte. Tanto a Tradição como a Ciência querem vencer a morte, mas enquanto a primeira, romântica, aspira a imortalidade dos deuses na eternidade, a última, mais realista, estuda modos de aumentar a longividade e de diminuir a dor, o sofrimento e os efeitos do envelhecimento no próprio mundo material. E a esse projeto científico da modernidade, neurótico e sem sabedoria, Morin chamou ‘amortalidade’.
Outra grande diferença entre as sociedades tradicionais e a nossa é que, enquanto antes enfrentávamos principalmente perigos e ameaças externas, atualmente nós fabricamos artificialmente nossos riscos para otimizar nossa vida em sociedade. “Nossa época não é mais perigosa ou menos arriscada que as de gerações precedentes, mas o equilíbrio entre riscos e perigos se alternou”. (GIDDENS, 2003, p. 44) E mais: agora somos nós mesmos a nossa maior ameaça: hoje o risco de uma catástrofe ecológica provocada pelo crescimento industrial; ontem, vivemos o risco de uma guerra termonuclear; amanhã, viveremos o risco de uma vida de crescentes incertezas (e a incerteza é um risco que não pode ser calculado). Os motivos que nos assustam são reais, mas são também artificiais.
A experiência da morte imanente à da própria vida. Ela é, simultaneamente, uma meta e um limite: não se trata de uma ameaça eventual ou um medo inconsciente, mas de uma presença constante a cada segundo que mantém todos internamente submissos às redes sociais. É como se a vida fosse uma corrida de maratona, em que, para chegarmos ao final, precisamos dosar respiração, cuidar da postura, da hidratação para não sairmos machucados ou doentes. Na vida contemporânea é preciso sempre ‘estar no limite’ e manter um cuidado obsessivo com o corpo. A noção de morte como risco permanente é uma nova forma de produção de sentido existencial. A morte como companhia constante, que antes era uma experiência exclusiva de poucos místicos, se tornou agora um modo de sujeição das elites na cultura contemporânea. E um modo fragmentado em vários micro-mortes simuladas, em vários choques existenciais do corpo em risco, em vários momentos finais antecipados de um único tempo irreversível. Não se trata mais de ‘viver a morte’ mas sim de sobreviver às muitas mortes. E não adianta negar ou negociar, ter raiva ou ficar triste, é preciso aceitar as mudanças e se adaptar à transformação.
Então, esses são os três pontos que queria ressaltar sobre a morte e sobre o morrer contemporâneo: a morte é imanente à vida; ela existe em função do desenvolvimento da consciência; e, atualmente, foi (ou é) fragmentada e dramatizada em vários eventos parciais menores, ao mesmo tempo em que a vida é artificialmente estendida pela ciência e pela cultura atual.
E a Ayahuasca?
Certamente desempenha um papel muito importante nesse processo. Não apenas porque nos permite vislumbrar essas relações que descrevemos, sobretudo porque pode propiciar essa nova experiência de morte a prazo a um grande número de pessoas, ou melhor, pode potencializar um processo social em curso neste sentido de tornar a experiência de morte mais intensa e mais segura.
NOTAS
NOTAS
(1) Minhas experiências com a jurema e com modos alternativos de trabalhar com Ayahuasca me levaram ao estudo dos exercícios e técnicas de respiração taoísta. Ao contrário dos exercícios respiratórios catárticos de outras tradições (o Pranayana, a respiração holotrópica do Groff, a respiração tolteca do fogo) que enfatizam a hiperventilação (ou no aumento da profundidade e da intensidade dos ciclos respiratórios), as técnicas de respiração taoísta são basicamente suaves e delicadas, exigindo do praticante mais atenção e bastante tenacidade. Dennis Lewis (1997) tem vários exercícios interessantes, envolvendo o controle do ar pelo diafragma (respirações torácica superficial e ampliada pelo abdômen), a respiração risonha com a mentalização de órgãos direcionada para cura e os três tipos funcionais de respiração. Para Lewis, a respiração é energizante quando a inspiração for maior que a expiração; a respiração é depurativa quando a expiração for maior que inspiração; e, quando inspiração e expiração forem iguais, a respiração é equilibrada. Uma forma simplificada de experimentar as três respirações funcionais taoístas é prender a respiração alternamente com os pulmões cheios (respiração energizante) e com os pulmões vazios (respiração depurativa). Assim, por exemplo, podem-se começar todos juntos, com as mãos dadas, subindo os braços na inspiração e baixando-os na expiração, com três respirações equilibradas, três respirações prendendo o ar nos pulmões (mentalizando luz, vida, alegria), novamente três respirações equilibradas, três respirações prendendo os pulmões sem ar (e mentalizando a morte e a descarga de energias negativas); e finalmente três respirações equilibrantes. Depois de realizar o exercício coletivamente, ele também pode ser feito individualmente em silêncio, cada um no seu tempo.
(2) Outra técnica individual, particularmente adequada ao uso de plantas de poder, é a recapitulação da tradição tolteca. A técnica consiste em revisar minuciosamente a própria vida com ajuda da respiração visando reviver os eventos traumáticos passados e resgatar a energia gasta com essas cicatrizes psíquicas no presente.
(3) O Círculo de Repetição é uma técnica que consiste em todos imitarem cada um dos participantes da roda. Tanto se pode deixar livre a ordem e o tempo de participação de cada um, de modo orgânico; como também estabelecer uma seqüência (o sentido horário do círculo, por exemplo) e um tempo (mínimo e/ou máximo) de fala para cada um, mas a imitação deve ser a mais perfeita possível em termos de movimento, voz e intenção – devendo-se evitar o máximo ‘interpretar’ o outro, embora isso seja inevitável e as pessoas acabem vendo como são vistas pelos outros. Esse não é a principal função do exercício, apenas um estágio inicial. Com o tempo (uns 30 minutos), cria-se uma corrente semi-telepática entre os participantes, que passam a sentir a presença de si nos outros e dos outros dentro de si, e se estabelece um jogo profundo de troca de identidades e modos de ver e pensar. O Círculo comporta diferentes aplicações pedagógicas (ensino de línguas, de música, contar estórias míticas), terapêuticas (expressão de conteúdos emocionais reprimidos, ampliação da identidade individual) e psicoespirituais (canalização de mensagens e novas compreensões, viagens da imaginação – a repetição de vozes com os olhos fechados), embora a verdadeira essência desta prática esteja em seu caráter lúdico e aberto à improvisação.
(4) + sobre os sonhos lúcidos: http://www.lucidity.com/
(5) Em 1952, Leitman e Aserinsky (2003) estabeleceram, através de eletroencefalogramas, o ciclo fisiológico do sono, composto por pelo menos três estágios com diferentes propriedades neurofisiológicas: o estágio hipnagógico (início do sono em que os pensamentos consistem em imagens fragmentadas e pequenas cenas), o estágio do sono de ondas lentas (em que as ondas cerebrais do neo-cortex apresenta freqüências baixas e grande amplitude) e o estágio do sono REM. Durante o sono REM, o cérebro apresenta um funcionamento das sinapses cerebrais superior ao estado da vigília em momentos da maior atividade (confronto com perigo, luta pela sobrevivência, contato sexual iminente).
(6) A propósito, todos trabalhos citados podem ser baixados da Biblioteca Virtual dos Pesquisadores do Ayahuasca. http://www.4shared.com/dir/18370815/2ce564a0/sharing.html
(7) LEWIN (1965, 1989) definiu esse três comportamentos a partir do estudo de vários grupos de animais (insetos, mamíferos, répteis). Em outros trabalhos, os redefini como “pastores, ovelhas e lobos” (GOMES, 2000).
(8) Há a morte aparente, a morte celular, a cerebral, a morte das funções vitais, a decomposição orgânica. Na verdade, a morte é um processo não é um momento.
(9) Artigo com revisão da literatura cientifica <http://www.hcnet.usp.br/ipq/revista/vol34/s1/116.html> e
Vídeos com entrevistas com pessoas que quase-morreram. <http://youtube.com/watch?v=XPzTa-HDV3A>
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GIDDENS, Anthony. O Mundo em descontrole – o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2003.
GOMES, Marcelo Bolshaw. Um Mapa, Uma Bússola – Hipertexto, Complexidade e Eneagrama. Rio de Janeiro, Editora Mileto, 2001.
LEWIS, Dennis. O Tão da respiração natural – para saúde, o bem-estar e o crescimento interior. Tradução Marta Rosas. São Paulo: Pensamento, 1997.
Vídeos com entrevistas com pessoas que quase-morreram. <http://youtube.com/watch?v=XPzTa-HDV3A>
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GIDDENS, Anthony. O Mundo em descontrole – o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2003.
GOMES, Marcelo Bolshaw. Um Mapa, Uma Bússola – Hipertexto, Complexidade e Eneagrama. Rio de Janeiro, Editora Mileto, 2001.
LEWIS, Dennis. O Tão da respiração natural – para saúde, o bem-estar e o crescimento interior. Tradução Marta Rosas. São Paulo: Pensamento, 1997.
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