terça-feira, 2 de março de 2010

Waiho Wale Kahiko


Gisela Barbosa

Desde os tempos primeiros, nas Ilhas do Pacífico, existe uma visão da vida chamada Huna. Esta palavra significa segredo ou conhecimento secreto. Refere-se ao lado profundo das coisas, àquele lado não perceptível aos olhos pouco treinados. O prefixo Ka é guardião, ou mestre praticante. Os xamãs havaianos, como os xamãs de outras partes do mundo, não têm hierarquia entre eles. Aprendizes são estudantes e colegas, não seguidores. E mestres são mestres do conhecimento e da prática, não de pessoas.
Hoje em dia Kahuna é uma palavra usada mais livremente. Deve-se, então, acrescentar uma outra palavra que determina qualidade, como por exemplo, Kahuna Lapa'au, um mestre de ervas, massagens e energias; Kahuna Pule, para mestre de preces e cerimônias; e Kahuna Kupua para o mestre xamã.
Ainda que existam escolas de treinamento, a ênfase no ensino personalizado tem como prerrogativa a questão do poder pessoal. Jamais um xamã vai ser paternalista, pois assim estaria fazendo por você, enquanto a intenção maior é a devolução de seu poder profundo (falaremos mais detalhadamente sobre este assunto no capítulo referente às técnicas e práticas contemporâneas de xamanismo). Poderão ser criadas situações para que obstáculos à sua integridade emirjam e se façam presentes. Só assim poderão ser superados. Portanto, ainda que cercado de cuidados, o xamã não faz por você.
Estes são os aspectos da transmissão de ensinamentos xamânicos: a presença integral da pessoa no empenho de caminhar seu caminho, a manifestação do desejo de adquirir o conhecimento e as qualidades inatas (o tom) capaz de realizar na vida o ensinamento recebido. Ainda que, conforme a história das pedras, transcrita acima, o movimento inicial do instrutor de mencionar, como que casualmente, o poder das pedras possa parecer intervenção diretiva, é preciso ter sempre em mente que o acesso a dimensões do conhecimento secreto, da percepção da realidade no movimento oculto (aquele que, como o vento, sopra e faz as coisas se moverem) é intrínseco no xamanismo. O que ocorreu, no caso, foi apenas a explicitação do que já estava acontecendo em níveis outros de percepção.
Uma das maiores exuberâncias do xamã Kahuna do Havaí é de ser, particularmente, um seguidor do caminho do aventureiro. Serge King distingue-o do caminho do guerreiro da seguinte forma: enquanto este tende a personificar o medo, a doença e a desarmonia e concentra-se em desenvolver o poder, o controle e as habilidades de combate a fim de lidar com eles, o xamã aventureiro tende a despersonificar estas condições, a trata-las como efeitos e não como coisasnota. E concentra-se em desenvolver a harmonia, a cooperação e o amor. O caminho do aventureiro é, por natureza, muito sociável. O caminho do guerreiro é solitário, buscando o poder e a iluminação pessoal.
Ao mesmo tempo, finaliza afirmando que é "muito difícil, senão impossível, diferenciar entre mestres dos dois caminhos. Porque, quanto mais poderoso você for, mais e mais amor terá, já que há menos e menos a temer. E quanto mais amor você tiver, mais e mais poderoso será, já que há muita, muita confiança".
A conveniência de dividir a natureza do ser humano em três aspectos que serão nomeados e descritos a seguir é comum a várias culturas de épocas e lugares diferentes. Ainda assim, não há nada na tradição polinésia que indique que estes três aspectos sejam realmente separados. Não há nada na natureza humana que impeça de fazer, por exemplo, 16 divisões, ou 64, como o I Ching, ou 256, como o Ifá. Três são, simplesmente, úteis, convenientes e, portanto, uma verdade que funciona.
O aspecto do coração, o corpo, o Eu Inferior (Ku) tem como função principal a memória e suas habilidades como aprender e lembrar, desenvolver hábitos e manter a integridade do corpo e a identidade no dia-a-adia. A memória como função do corpo, ou o registro de um modelo vibracional ou modelo de movimento que tem seu locus nas camadas musculares é uma memória experimental, ou vivida. Há ainda a memória genética, que é de fato guardada no nível celular e traz o conhecimento da linhagem ancestral à qual pertence. Para se liberar esta memória, portanto, é preciso movimento. Movimento este que, sob certos estímulos físicos ou mentais, internos ou externos, ocorre e dá origem aos comportamentos emocionais, físicos e mentais. A memória será inibida se o movimento for inibido por tensão ou estresse. A memória genética está estocada nas células e se encontra em todo o corpo, enquanto que a aprendida parece se localizar em pontos específicos do tecido muscular, áreas estas que estavam em atividade ou energizadas no momento do aprendizado. Se a parte do corpo onde a memória está arquivada fica sob tensão suficiente, ela então será inibida ou ficará até inacessível.
O tempo, para Ku, é único. Tudo existe apenas agora, no presente. Se você recordar de uma vivência ruim de sua infância, é bem provável que apresentará reações fisiológicas e emocionais tanto quanto estivesse vivenciando neste momento. É como um arquivo, e quando este arquivo é acessado, os dados se encontram presentes neste momento.
O caminho que seu corpo escolhe, conforme a sabedoria Kahuna, de acessar memórias que implicarão na reação emocional e comportamental às situações que se apresentam tendem, em primeiro lugar, a buscar a memória ancestral e depois, se houver várias escolhas em potencial, sintonizar a memória aprendida numa tendência especificadora. Por exemplo, se houver uma situação estressante que envolva a auto-estima - que geralmente tem como locus o tórax - e a memória genética lhe oferece a opção de uma bronquite, um ataque de ansiedade ou um resfriado, mas se na semana passada Ku aprendeu com outra pessoa ou na televisão tudo sobre os sintomas do resfriado, é provável que faça, então, esta escolha.
Lono é o aspecto do ser humano que é conhecido como mente, é a parte consciente, perceptiva das informações internas e externas. Relaciona-se com pensamentos, idéias, imaginação, intuição, palpites, receptora de inspiração, som, toque, cheiro, movimento, tempo. Sua principal função é tomar decisões, incluindo atenção, intenção, escolha e interpretação. É seletiva, aumentando a habilidade pessoal ou a efetividade. Sua principal motivação é a ordem: regras, categorias e entendimento. Liga-se à lógica, recorrendo ao Eu Básico para acessar sua memória. Quando o medo está presente, a motivação para a ordem transforma-se em motivação para a segurança.
Sua arma principal é a imaginação, pois é a única parte sua sob seu controle direto. O desenvolvimento da imaginação é de suprem importância para o xamã urbano.

Kane é o que é chamado de alma, mas sem o conceito ou a idéia de separação. É a centelha divina. Nunca interfere na experiência pessoal sem o consentimento, o chamado dos outros Eus, pois segue o livre-arbítrio. A não ser que haja a possibilidade de desvio profundo de seu caminho... Kane só interfere diretamente quando algo está para acontecer e poderia lhe impedir de cumprir seu propósito de vida. Sua principal função é a criatividade, e seu principal instrumento é a energia.


Nota: (Estudos sobre xamanismo havaiano e polinésio. Trecho da tese de doutorado de Gisela Barbosa. Texto cedido pela autora.)
fonte: http://www.terramistica.com.br/

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