sexta-feira, 14 de maio de 2021

tarô jodorowsky



Conclusão: o pensamento tarótico1


Alejandro Jodorowsky


Meus longos anos de contato com o Tarot me aportaram novas maneiras de captar o mundo e o outro, deixando que a intuição dançasse com a razão e se amalgamasse com aquilo que chamei de "pensamento tarótico"2 ... descrever o pensamento tarótico poderia constituir o objeto de um outro livro. Aqui, me contentarei em dar alguns exemplos.



Os Arcanos possuem múltiplos significados que vão do particular ao geral, do evidente ao inabitual. É preciso considerar cada Arcano como um conjunto de significações. Essas significações adquirem mais ou menos importância conforme o sistema cultural de quem os interpreta.

Na realidade, cada ser humano é um Arcano. Nós podemos viver bem a vida inteira ao lado de alguém, mas não poderemos dizer que o conhecemos totalmente. Estamos habituados a seus pensamentos, seus sentimentos, seus desejos, seus gestos, suas atividades rotineiras, mas basta um único acontecimento extraordinário - uma doença, uma catástrofe, um fracasso ou um sucesso - para descobrirmos nessa pessoa aspectos inabituais que nos surpreenderão feliz ou dolorosamente. Aquilo que pensamos ser a realidade é apenas uma parte da realidade. Aquilo que projetamos de uma pessoa é apenas uma parte de sua personalidade. Os defeitos ou qualidades que vemos nos outros são igualmente nossos. Essas condutas inesperadas com as quais o mundo e os outros nos surpreendem provocam reações que dependem do nosso nível de consciência. Em um nível de consciência pouco desenvolvido, qualquer mudança nos apavora, nos deixa desconfiados, nos faz fugir, nos paralisa, nos torna furiosos ou prestes a atacar. Uma consciência desenvolvida aceita a mudança contínua e avança, confiante, sem objetivo, desfrutando da existência presente, construindo passo a passo a ponte que atravessa o abismo.

Para chegar às leituras que curam, as primeiras coisas que precisei vencer foram as antipatias e simpatias. Cada habitante do nosso mundo representa um ponto de vista distinto, novo, que não existia antes de seu nascimento. Algo de original, de único. Quando um ente querido nos deixa, nós temos a impressão de que o universo inteiro se esvazia ... Quem quer que seja, o consulente merece nosso respeito como uma obra divina que jamais se repetirá, com a possibilidade de aportar ao mundo a semente de um bem desconhecido.



Não existe tarólogo impessoal. Todo tarólogo é marcado por uma época, por um território, por uma língua, uma família, uma sociedade, uma cultura.

Da mesma maneira que na literatura o romance deixou de ser narrado por um escritor-testemunha - considerado um deus -, deixando que as coisas se desenvolvam sem intervenções e sem ser afetado, e passou a ser contado por um personagem intimamente ligado aos acontecimentos, mais um ator na trama, eu precisei dar o mesmo passo na leitura do Tarot: de nenhuma maneira suportei a ideia de me colocar na posição de um vidente que conhece o presente e o futuro do consulente, observando-o desde uma altura mágica, impessoal, emprestando a voz a entidades de outro mundo... Sendo os Arcanos como telas de projeção, era necessário que eu me desse conta de que tudo o que via nas cartas estava impregnado pela minha personalidade. Não podendo me libertar de mim mesmo, eu me perguntei: "O que eu sou quando leio o Tarot? Será que meu pensamento é masculino? Será que é latino-americano? Europeu? Será adolescente ou maduro? Será que a minha moral é judaico-cristã? Será que sou crente, ateu, comunista, servidor do regime estabelecido? Será que percebo as características da minha época?"... Para chegar a uma leitura útil, eu me dei conta de que, sem poder me separar da minha personalidade, eu devia "trabalhá-la", poli-la até chegar a sua essência. Eu prometi a mim mesmo não obedecer às modas, não cair na peça de nenhuma tradição ou folclore ... Observei com atenção a minha imagem do mundo e tentei com todas as minhas forças modificar meu espírito masculino, aceitando o feminino, para fundir os dois até atingir o pensamento andrógino... Se nasci no Chile e me formei no México e na França, dentro de mim deixei de ter uma nacionalidade, conseguindo com toda sinceridade me sentir um cidadão do cosmos. Isso me levou a me dar conta dos meus limites enquanto ser humano. Minha consciência não era prisioneira de um corpo mineral, vegetal ou animal, ela era a essência do universo inteiro. O que me permitiu me colocar no lugar não apenas de outras pessoas, mas igualmente de objetos. O que será que sente o meu gato, esta árvore, o relógio no meu pulso, o sol, as pedras do calçamento onde piso, meus órgãos, minhas vísceras etc.? Nesse trabalho de desprendimento e refinamento, perdi não só a nacionalidade, mas também a idade, o nome, os rótulos como "escritor", "cineasta", "terapeuta", "místico" e muitos outros. Parei de me definir: nem gordo, nem magro, nem bom, nem mau, nem generoso, nem egoísta, nem bom pai, nem mau pai, nem isso, nem aquilo. Parei igualmente de esperar objetivos ideais: nem campeão, nem herói, nem santo, nem gênio. Tentei com todas as minhas energias ser aquilo que eu era. Parei de me prender a uma única língua e desenvolvi um amor, um respeito por todas as línguas, ao mesmo tempo em que me dei conta de que, se as palavras não atingiam a poesia, se tornavam engodos. Creio que a origem de todas as doenças psicossomáticas é um conjunto de palavras ordenadas em forma de proibição. Impor uma visão é proibir outras. O universo não possui limites e funciona com um conjunto de leis diferentes, às vezes contraditórias, em cada dimensão. Quanto mais eu expandia os meus limites, mais enxergava os limites do outro. Hoje em dia, quando leio o Tarot e entro em transe, meu eu quase transformado em você, eu me sinto diante do consulente como diante de um céu azul que recebe a passagem de uma nuvem... Na realidade, não lemos para dizer ao consulente aquilo que ele é, mas para compreendê-lo. No dia em que o compreendermos totalmente, nós desapareceremos... No fundo, creio que nossa verdadeira consulente é a morte. Tentemos compreendê-la. Quando morremos, isto é, quando nos tornamos ela, nós nos dissolvemos, por fim, na Verdade.



Nenhum tarólogo pode dizer a verdade. Ele só pode dizer sua interpretação da verdade. Quando se lê o Tarot, não se sabe. Uma vez que ele lê para compreender, o tarólogo deve continuar a leitura mesmo que não compreenda o que ele vê. Da mesma maneira que toda interpretação é fragmentária, a abundância de interpretações faz com que o consulente se aproxime do conhecimento... Não existe pergunta insignificante. As perguntas superficiais e as profundas, as inteligentes e as estúpidas possuem a mesma importância: as interpretações de cada Arcano sendo infinitas, o valor da pergunta dependerá não de sua qualidade, mas da qualidade da resposta do tarólogo.

Eu me dei conta de que compreender aquilo que eu via era uma ilusão. Para compreender verdadeiramente uma coisa, era preciso decifrar o que é o universo. Sem abarcar o todo, era impossível saber com certeza o que era uma de suas partes. O consulente não é um indivíduo isolado. Para saber quem ele é, o tarólogo, além de sua vida desde o instante em que foi concebido e viu a luz do dia, deveria conhecer a vida de seus irmãos, de seus pais, de seus tios, de seus avós e, se possível, a vida de seus bisavós. Saber a educação que ele recebeu, conhecer os problemas da sociedade na qual ele viveu, assim como os arquétipos e a cultura que formaram seu espírito ...



Uma vez que é impossível captar a totalidade do outro, é da mesma maneira impossível julgá-lo. A positividade ou a negatividade de um acontecimento não são intrínsecas; são apenas interpretações subjetivas. Em deferência ao consulente, é preferível sempre buscar a interpretação positiva.

Uma árvore, ao mesmo tempo que eleva seus galhos para o céu, mergulha suas raízes na terra. A luz é infinita, a escuridão é infinita. Cavar no sofrimento contido em nosso inconsciente faz com que nos impregnemos com o sofrimento de toda a humanidade; a dor é infinita. Uma vez expressos o pranto e a cólera, é mais útil buscar valores escondidos como tesouros em nosso ser essencial. A paz é infinita.



Um tarólogo não deve comparar o consulente com outras pessoas que se parecem fisicamente. Comparar, enquanto maneira de definir, é uma falta de respeito para com a diferença essencial de cada ser.

O consulente pode não conhecer a si mesmo e, na maior parte do tempo, ignorar as influências recebidas de sua árvore genealógica. Se ele fala uma única língua, se ele não viajou para países distantes, se ele não estudou outras culturas, se ele jamais imobilizou seu corpo para meditar, se tendo de escolher entre fazer ou não fazer, ele fugiu de toda experiência nova com medo do fracasso, podemos dizer que seu inconsciente se apresenta para ele não como aquilo que é, ou seja, um aliado, mas como um mistério inquietante, um inimigo... Jamais ele saberá a base real daquilo que pensa, sente, deseja ou faz ... Isso porque, durante a leitura do Tarot, suas perguntas, por mais superficiais que pareçam, ocultarão processos psicológicos profundos ... "Será que devo ir ao salão de beleza, tingir o cabelo e mudar de penteado?": a pergunta é muito simples, aparentemente frívola, mas, no entanto, pode receber uma resposta profunda. Se fosse só isso que dizem as palavras, que necessidade a pessoa teria de ser aconselhada? Bastaria tomar a decisão sozinha ... Podemos ver nessa tintura e nessa mudança de penteado que a consulente exprime seu desejo de mudar de vida, de não estar mais sozinha, ou ao contrário, de terminar seu casamento, ou sob outro aspecto, de empreender novas experiências, de buscar ser reconhecida - que ela exprime sua insatisfação diante de si mesma ou sua descoberta de novos valores que a obrigam a se separar de uma personalidade antiga ... O Tarot nos ensina a respeitar todas as perguntas: cada pergunta é uma oportunidade de aprofundar a descoberta de nós mesmos para vivermos engastados como um pedra preciosa na joia que é o presente. A maior parte dos consulentes não se sente como algo que existe e é, mas como algo que ainda será.



Toda generalização é ilusória. Os acontecimentos nunca são semelhantes ... Quando damos o outro como exemplo, sempre aquele que o cita emite uma concepção pessoal. Para cada indivíduo, o outro édiferente.

Sendo o outro parte de um todo infinito, é impossível isolá-lo em uma definição; quando o outro é capturado e interpretado por nós, ele recebe os limites que corresponde ao nosso nível de consciência. Esse outro é uma mistura daquilo que ele mostra e daquilo que nós acrescentamos fazendo dele nosso próprio reflexo. As qualidades que enxergamos nele, assim como os defeitos, fazem parte das nossas próprias qualidades e defeitos ... Ao julgá-lo, ao mensurá-lo, ao lhe atribuir rótulos - bom, mau, belo, feio, egoísta, generoso, inteligente, estúpido etc. - estaremos mentindo a nós mesmos. Todo julgamento que exprimirmos é sempre feito em comparação com a imagem limitada, e portanto artificial, que temos de nós mesmos.



O real não é bom, nem mau, nem belo, nem feio em si, ele não possui nenhuma outra qualidade. A unidade divina não pode ter qualidades, nem ser definida por um tarólogo que não a compreende, pois não a pode conter. O Todo é formado por todas as partes, mas todas as partes não formam o Todo.

Em nenhum momento o tarólogo pode se arvorar a ser juiz de seu consulente ou a aceitar como reais, justas, as visões que ele tem dos membros de sua família ou dos seres que ele evoca na leitura.



Em um mundo infinito, não se pode afirmar: "Tudo é assim". A fórmula correta é: "Quase tudo é assim". Se noventa e nove por cento éconsiderado negativo, não se pode excluir a positividade do um por cento. Esse um por cento positivo é mais digno de definir a totalidade que os noventa e nove por centro negativos. Essa pequena positividade redime a grande negatividade.

Eis por que não é útil afirmar que o mundo é violento. Podemos admitir que existe violência no mundo, muita violência, mas não podemos defini-lo por esse erro. O mundo é também perfeito como o cosmos. O ser humano é igualmente assim. Não se pode afirmar que ele é doentio. Enquanto a vida lhe dá alento, o corpo humano é um organismo complexo, misterioso, dotado de saúde. Estar vivo é estar são, física e mentalmente. Podemos ter doenças, atitudes psicóticas, mas por mais que sejam graves, elas não fazem de nós "doentes" ou "loucos", elas não definem nosso ser, mas nosso estado presente ... O espírito humano, infinito, não suporta rótulos ... O tarólogo, mais do que lhe mostrar seus numerosos defeitos, deve tentar captar as qualidades do consulente que, mesmo que não sejam numerosas, lhe ajudarão mais a ser o que ele é verdadeiramente.



Não devemos definir o consulente por suas ações, mas sim definir as ações que o consulente realizou. Ele não é "tolo": ele cometeu tolices; ele não é "ladrão": ele se apropriou de coisas que pertenciam a outra pessoa. Se definirmos o consulente por suas ações, nós o separaremos da realidade.

O valor de uma leitura depende do nível de consciência do tarólogo. Se ele é sábio, ele pode obter mensagens preciosas, por mais absurdos que sejam os Arcanos escolhidos pelo consulente. A consciência elevada do tarólogo outorga sabedoria ou tolice à leitura, mas os Arcanos em si mesmos não são sábios nem tolos: eles não possuem qualidades. Quem possui qualidades é aquele que as enuncia.

As leituras, apesar de sua importância, são sempre interpretações pessoais do tarólogo, e por isso mesmo não devemos lhes dar a qualidade de prova absoluta ... Nenhuma leitura pode constituir prova de umfato.

A exatidão e a precisão, em uma realidade constantemente cambiante, são dois obstáculos à compreensão.

O desejo de perfeição, de exatidão, de precisão, de repetição daquilo que é conhecido e estabelecido são manifestações de um espírito rígido que teme a mudança, a diferença, o erro, a permanente impermanência do cosmos. Essa atitude obstinadamente racional se opõe ao pensamento tarótico, que se assemelha ao pensamento poético. Já ouvimos o poeta Edmond Jabes dizer: "Ser é interrogar o labirinto de uma pergunta que não tem resposta".



Depois que interpretamos um Arcano, podemos, mais tarde, modificar essa interpretação. As interpretações não são parte integrante do Arcano, o Arcano não pode mudar, mas sim o tarólogo, na medida em que ele éum ser que se transforma. Não mudar nunca de interpretação é teimosia. Toda mensagem obtida pela leitura das cartas pode ser contradita por uma segunda leitura das mesmas cartas. As mensagens não são extraídas das próprias cartas, mas de interpretações que damos a essas cartas.

Responder "não" a uma afirmação é um erro. Nada pode ser negado em sua totalidade. Melhor é dizer: "É possível, mas de um outro ponto de vista podemos também dizer o contrário".

A doença é essencialmente separação, isto é, ela surge essencialmente da crença de que estamos separados.

Alguns autores de livros de autoajuda aconselham a não pensarmos como um corpo que tem um espírito, mas como um espírito que tem um corpo ... Ponto de vista que a princípio adotei com fervor; depois, pensando que a solução correta de um problema não produz um ganhador e um perdedor, mas dois ganhadores, aceitei ­ de acordo com a finalidade da alquimia: espiritualização da matéria e materialização do espírito - que eu era ao mesmo tempo um espírito que tinha um corpo e um corpo que tinha um espírito ... Mas, se considerarmos a primeira afirmação, será que eu era realmente um espírito, isto é, uma entidade individual, diferente do todo ...? Sim, eu era um espírito, mas era ao mesmo tempo um planeta, uma galáxia, um universo e, se eu aceitasse um princípio criador, um Deus. Isso me obrigou a dizer: sou um corpo que possui um deus, sou um deus que possui um corpo ... Será que eu podia, então, separar meu corpo dos outros corpos, da Terra, das estrelas, da matéria universal?



A saúde é a Consciência divina. O caminho que leva até ela é a informação, desde que se considere informação não tanto as palavras mas as experiências de um conhecimento que, inscrito no corpo, se apresenta como uma exigência daquilo que nos falta. E isso que nos falta é a experiência da união com o deus interior. O sofrimento é a ignorância. A doença é a ausência de consciência. O consulente, sendo totalmente relacional, para chegar à saúde precisa receber a informação essencial. Para que uma doença possa ser curada, ele deve se colocar em relação a seu deus interior.

Se o mundo é infinito, nenhuma ordem é real. Só pode ser ordenado aquilo que possui limites precisos. Podemos buscar a utilidade momentânea de uma ordem, mas não sua veracidade. O mundo é uma representação subjetiva que pode ser ordenada de infinitas maneiras. Convém buscar a ordem que nos cause menos sofrimento.

A chave mágica que permite ao consulente, assim como ao tarólogo que lhe faz a pergunta, organizar positivamente sua passagem pelo mundo é: "A vida me alegra?" Essas pessoas, esse trabalho, esta cidade, esse país, esta casa, esse móvel, tornam minha vida feliz? Se não tornam minha vida feliz, isso quer dizer que não me convêm enquanto companhia, meio ambiente, território, atividade. Isso me convida a evitar me envolver com eles.



Todo conceito é duplo, composto pela palavra enunciada e uma palavra contrária não pronunciada. Afirmar alguma coisa é também afirmar a existência de seu contrário. O tarólogo deve buscar a relação de um conceito com seu contrário. Por exemplo: feio (em relação a alguma coisa bela); pequeno (em relação a alguma coisa grande); defeito (em relação a alguma qualidade) etc. Fora da relação, o conceito não tem nenhum sentido.

O consulente não chegará a saber quem ele é sem se comparar. A personalidade adquirida, e não a personalidade essencial, se constitui com base em comparações. Desde a infância, exigem de nós que pareçamos, não que sejamos. Se a criança não corresponde àquilo que os pais acreditam que ela deva ser, eles a culpabilizam. As revistas de moda exibem mulheres que obedecem a critérios de beleza muitas vezes afastados da realidade humana. Da mesma maneira, o cinema e a televisão. Quando uma consulente sofre de um complexo de feiúra, é fundamental que o tarólogo descubra com o que ela se compara. O olhar dos pais e dos professores forma o espírito da criança. Se ninguém a olha tal como ela é - submetendo-a a olhares críticos ou comparando-a com os irmãos, irmãs ou amigos "melhores" -, a criança cresce tendo a sensação de não ser ninguém, sem se conceder o direito à realização de suas potencialidades ... As escolas que estabelecem os cânones de inteligência, pensando que só existe uma maneira correta de pensar, provocam desvalorizações dramáticas. O tarólogo deve escavar como um arqueólogo na memória do consulente, buscando os "exemplos perfeitos" com os quais o consulente se compara para libertá-lo da inveja ... Aquele com quem o consulente se compara, seu desejo de ter e de ser o que o outro possui e aquilo que o outro é, persegue o consulente como uma sombra amarga... Alguns pais nocivos, ao mesmo tempo que exigem o sucesso de seus rejeitados, os proíbem de maneira tácita de realizar aquilo que eles mesmos não puderam realizar. A neurose do fracasso faz com que muitos consulentes se desconheçam a si mesmos. O tarólogo deve começar sua leitura aceitando que se dirige a alguém que é aquele que sua família, sua sociedade quiseram que ele fosse, motivo pelo qual ele crê possuir objetivos que não são seus, com obstáculos artificiais e miragens à guisa de soluções. O Tarot poderá indicar sua natureza, seus objetivos, seus obstáculos e as soluções verdadeiras lhe fazendo ver a região muda de sua existência.



Aquilo que o consulente não sabe faz parte de sua vida, tanto quanto aquilo que ele sabe. Aquilo que o consulente não fez é tão importante quanto aquilo que ele fez. Aquilo que o consulente poderá um dia fazer faz parte daquilo que ele já está fazendo. Aquilo que o consulente foi e o que não foi, aquilo que ele é e aquilo que ele não é, aquilo que ele será e aquilo que ele não será constituem igualmente seu mundo.

Alguns consulentes, por medo de perder aquilo que acreditam ser sua individualidade, não querem ser curados, mas querem que nos ocupemos deles. Mais do que obter soluções, desejam ser ouvidos, que tenhamos pena deles. Diante das revelações da leitura, eles apresentam defesas... Embora sofram, eles afirmam que está tudo bem com a família, que na infância foram amados, que não foram afetados por nenhum tipo de abuso, que levam uma vida confortável. Não consideram nada aquilo que podemos lhe revelar como sendo verdade ... Em face dessa atitude, o tarólogo deve ter uma paciência de santo. Uma coisa é doar, outra coisa é obrigar a receber... Ao aceitarmos as defesas, em vez de atacá-las de maneira direta, é preciso contornar as negações até descobrir uma abertura por onde introduzir uma Ínfima tomada de consciência. Depois, ele deve convidar o consulente a meditar sobre essa revelação durante o tempo que for necessário e, uma vez que ela for bem compreendida, voltar a escavar em sua memória com a ajuda de uma nova leitura. "Para avançar um quilômetro é preciso dar um passo" (Tao Te Ching). No entanto, o terapeuta, por um desejo de poder, não deve tentar criar "clientela"... isto é, consulentes que depositem nele/nela uma dependência infantil, interpretando um papel de pai-mãe-prostituto que lhes serve de aspirina emocional. O Tarot não cura, ele serve para detectar a chamada "doença". Uma vez obtido isso, cabe a um psicanalista, um psiquiatra ou um psicomago continuar o trabalho.



Todos os Arcanos pertencem ao Tarot. É por isso que duas cartas observadas juntas, mesmo que pareçam conter significados absolutamente diferentes, possuem detalhes em comum. Diante de qualquer conjunto de cartas, épreciso sempre buscar o maior número de detalhes que lhes sejam comuns.

Todos os seres humanos pertencem a uma espécie comum e vivem no mesmo território, o planeta Terra. Por esse motivo, duas pessoas reunidas, mesmo que sejam de raças, culturas e situações sociais ou níveis de consciência diferentes, possuem características comuns. O tarólogo, abandonando qualquer veleidade de se sentir superior, deve captar essas semelhanças e concentrar a princípio sua leitura nas experiências que o unem ao consulente. Ninguém melhor que um "ex-doente" para curar um "doente".



O mau tarólogo, que confunde pensar e crer, enuncia interpretações caprichosas para depois buscar nos Arcanos símbolos que possam confirmar essas conclusões. Para ele, a verdade vem a priori, e é seguida a posteriori pela busca da verdade.

Para adotar uma conclusão, é preciso examinar os Arcanos sob o maior número de pontos de vista. Depois, escolher as interpretações que melhor convenham ao nível de consciência do consulente. E, em seguida, tirar as conclusões da comparação das interpretações escolhidas em detrimento das outras. Toda conclusão é provisória e só se aplica a um momento da vida do consulente, pois foi tirada de interpretações que, sendo feitas do ponto de vista do tarólogo, são limitadas.

Os testemunhos, apesar de sua importância, são sempre interpretações pessoais de um fato e, justamente por esse motivo, não lhes devemos conferir estatuto de prova absoluta. Nada do que o tarólogo leu pode constituir prova de um fato.

Dar conselhos a um consulente - "Você deve fazer isso", "Você não deve fazer aquilo" - é um abuso de poder. O tarólogo deve oferecer possibilidades de ação, deixando que o consulente faça sua escolha. O tarólogo não deve nunca ameaçar - "Se você não fizer assim, eis o que vai lhe acontecer" -, pois os atos realizados por obrigação, mesmo que pareçam positivos, agem como maldições.

Se o leitor é antes de mais nada um "eu", sendo incapaz de se tornar o espelho que reflete o outro, na realidade ele utiliza o consulente para curar a si mesmo. Em vez de ver, ele se vê. Em vez de compreender, ele impõe sua visão do mundo. Em vez de despertar os valores do consulente, ele o mergulha em um fascínio em que o tarólogo é o adulto e o outro a criança. O tarólogo não é a porta, mas a campainha, ele não é o caminho, mas o tapete que limpa o barro dos sapatos, ele não é a luz, mas o botão do interruptor.



O tarólogo não deve fazer promessas líricas ou elogios: "Você é uma alma nobre, você é uma pessoa boa, vai dar tudo certo, Deus te recompensará etc.", palavras inúteis que impedem a tomada de consciência. Para curar, o consulente não deve fugir do sofrimento, mas encarar o sofrimento, assumi-lo para em seguida dele se libertar. Um sofrimento conhecído é mais útil que cem louvores.

Quando, aos vinte e quatro anos, em um brutal acidente, meu filho Teo morreu, uma dor indescritível desintegrou meu espírito. Como um leproso, assisti sua cremação. Quando eu não achava que encontraria consolo possível, vi meu filho Brontis se aproximar do corpo e colocar um Tarot de Marselha na mão dele. Acompanhado do Tarot, ele foi cremado. Recebi uma urna com as cinzas desses dois seres sagrados ... Desde então, e para sempre, até o fim da minha existência, os Arcanos, mesclados ao meu filho, ocupariam um trono em minha memória. Aquilo em que acreditamos verdadeiramente e aquilo que amamos verdadeiramente são uma única e mesma coisa... A imensa dor da perda de um ser amado destrói a imagem que temos de nós mesmos. Se tivermos a coragem de nos reconstruir, nós nos tornaremos mais fortes, ao mesmo tempo em que compreenderemos melhor a dor dos outros.


1Final do livro O CAMINHO DO TARÔ, de Jodorowsky e Marianne Costa. tradutor: Alexandre Barbosa de Souza. Editora Chave, 2016. pág. 569-584.

2 De maneira filosófico-poética, sem dizer que me referia ao Tarot, já fiz isso em A escada dos anjos: uma arte de pensar (L'Échelle des anges: un art de penser, Le Relié. 2001). 

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