EU E ALEJANDRO
Marcelo Bolshaw Gomes
A primeira vez que ouvi falar de Alejandro Jodorowsky foi lendo O Incal. Nos anos 80, no Rio de Janeiro, meu amigo Mario Marcio Rocha tinha a coleção da revista Heavy Metal e eu havia lido O Homem é Bom?, de Jean Giraud (Moebius). Então, quando vi seu nome e seu desenho inconfundível em O Incal, devorei a história assim que pude. Publicado originalmente em dezembro de 1980 na revista Métal Hurlant e seus seis álbuns foram publicados entre 1981 e 1988 pela Les Humanoïdes Associés com o título Uma Aventura de John Difool. Em 1998, a série mudou de nome para O Incal. No Brasil, foi publicada no ano de 2012 de duas formas distintas; pela editora Devir. Em 2021 a série foi relançada (acrescida por novas histórias que Jodorowsky fez com outros desenhistas) pela editora Pipoca e Nanquim com o nome "Todo Incal".
Em um futuro imaginário, o detetive particular John Difool faz uma jornada espiritual do heroi (cerrtamente inspirada em Joseph Campbell) para defender o Incal, um cristal com o poder da luz, de vários antagonistas concorrentes e dos antagonistas sistêmicos, detentores do Incal das trevas. A narrativa iniciática do protagonista, com elementos mitológicos, está colocada em um contexto de ficção científica em que a consciência luta contra o mecânico, mas com referências políticas, econômicas e sociais da cultura pop. Ao longo do tempo, outras histórias são criadas dentro do mesmo universo narrativo de ficção científica psicodélica , o jodoverse, com elementos simbólicos em comum, como os Metabarões e os Tecnopadres.
Dez anos depois, em Natal, a amiga Milena Azevedo me deu os arquivos digitais dos filmes El Topo (1970)4 e Montanha Sagrada (1973), comparando a linguagem de Jodorowsky a de Glauber Rocha. El Topo é um western surrealista, com cenas bizarras de sexo e mutilação para criticar comportamentos religiosos, retoma o modelo da jornada espiritual do herói, agora com um Cowboy como protagonista, vencendo vários inimigos em seu percurso mítico. O filme foi elogiado por John Lenon e George Harrison, fato que abriu as portas para o financiamento da Montanha Mágica.
Achei os filmes herméticos, prolixos, cansativos – ou seja: não entendi nada. E fiquei com vergonha de não entender, me senti humilhado culturalmente. Como não podia conviver com esses sentimentos. Então, procurei me informar melhor e acabei encantado com as explicações críticas do próprio autor sobre seu trabalho.
Na sinopse da Montanha Sagrada descobri que se tratava dos “nove dos mais poderosos industriais e políticos do planeta desejam obter a imortalidade. Um Alquimista (interpretado por Jodorowsky) lhes fala da Montanha Sagrada e da busca pela imortalidade”. Jodorowsky acrescenta: “Esse filme é minha própria busca por iluminação”.
Então, munido dessas informações, assisti novamente aos filmes e (acho) que os entendi. De certa forma, os filmes aprofundam a estrutura narrativa (da jornada heroica) de O Incal, deslocando o contexto cenográfico da ficção cientifica para o faroeste e para o misticismo. Mas, continuava desconfortável a experiência de um cinema que tinha que ser explicado para ser entendido. Por vezes, pensei que era uma confusão entre metáforas e símbolos, que Jodorowsky fazia um cinema de metáforas pensando que fazia um cinema simbólico. Em outras ocasiões, imaginei que sua concepção de cinema era muito elitista e se aproximava de um teatro filmado, de um ritual ético/político e estético/psicológico, acessível apenas a alguns. Percebi que havia muita gente que se sentia (mal) como eu e que Jodorowsky não era uma unanimidade: havia quem achasse que ele era um gênio e havia quem pensasse que era apenas um artista confuso.
Só compreendi a grandeza e a importância de Alejandro como artista multimídia e pensador quando vi Jodorowsky's Dune (2013).
'Dune de Jodorowsky' é um documentário americano 2013 dirigido por Frank Pavich. O filme conta a tentativa frustrada do diretor chileno Alejandro Jodorowsky de adaptar, para o cinema em meados dos anos 1970, o romance de ficção científica Dune, de Frank Herbert escrito em 1965.
Jodorowsky queria que seu filme fosse como uma viagem de ácido lisérgico, que fosse uma experiência estéica capaz de mudar o comportamento das pessoas. Concepção Visual e storyboard de Moebius; trilha sonora do Pink Floyd (Dark side of the moon); artistas HR Giger, Chris Foss e Jean Giraud para set e para o projeto; Dan O'Bannon para efeitos especiais; e Salvador Dalí Orson Welles, Gloria Swanson, David Carradine, Mick Jagger, Amanda Lear, e outros para o elenco. Jodorowsky treinou seu próprio filho em artes marciais e esgrima. O filme nunca foi feito por falta de visão dos estúdios de Hollywood.
Mas, a influência do trabalho de Jodorowsky/Moebius (a concepção visual, os figurinos, as naves, alguns efeitos especiais) é evidente em vários filmes de ficção científica que se seguiram, como Star Wars. Em 1982, no entanto, os direitos do filme foram comprados pelo cineasta italiano Dino De Laurentiis, que acabou lançando o filme Dune 1984, dirigido por David Lynch – que foi um grande fracasso de crítica e público. Apesar de tudo, Jodorowsky não guarda mágoas, conta a história de sua vida com uma paixão e uma compreensão generosas. E, no final do documentário 'Dune de Jodorowsky', o cineasta convida cineastas e desenhistas, com a ajuda dos computadores, a realizarem seu sonho: a produção do storyboard de Moebius. O que esperamos que aconteça em breve.
O filme é uma lição de vida. Além de ser a história do mais fantástico filme nunca realizado (pelo menos, por enquanto), com impacto na história do cinema e da ficção científica, mostra a relação de aprendizagem existencial do criador com sua criação.
Em seguida, descobri a psicomagia e sua proposta audiovisual de cura através da arte (2019). Jodorowsky se contrapoe à cartarse verbal psicanalítica, racional e bem comportada, que não favorece transformações orgânicas. Para ele a cartase libertadora é a artística, expressiva, corporal, encenada com a força simbólica necessária para despertar os sentimentos reprimidos dos traumas do passado. Ele também acredita na reconstrução teatral psicomágica das narrativas de vida. Devemos recontar a história de nossas vidas - “como na recapitulação de Carlos Casteneda” (1) e do xamanismo tolteca.
Jodorowsky é um xamã pós moderno! Por onde passa, ele trabalha com pessoas, dramatizando suas vidas em narrativas; fazendo grupos e oficinas sobre temas simbólicos; desencadeando mudanças de todos os tipos.
Será que Jodorowsky deseja curar as pessoas com seus filmes? (2)
Talvez em seus primeiros filmes, ele tenha tipo a pretensão de curar através do cinema, mas depois do episódio de Duna, seus filmes ficaram mais pessoais e terapeuticamente autoficcionais, com reinvenções explícitas de sua própria história. Nas cineautobiografias A dança da realidade (2013) e Poesia sem fim (2016), o diretor Alejandro Jodorowsky rememora e reimagina seu passado, recontando sua história com intervenções, curando a si mesmo “metagenealogicamente”, superando a “origem de seus problemas pessoais e coletivos através da arte”. Ele continua o mesmo, mas agora é o protagonista de suas histórias.
Em agosto de 2019, tive a honra de ser convidado como avaliador da banca de mestrado (em Comunicação e Culturas Midiáticas da Universidade Federal da Paraíba de Agamenon Porfirio de Lima Filho) que defendeu a dissertação: Escritas de Si e fabulação da memória no cinema autobiográfico de Alejandro Jodorowsky (2020).
Por tudo, passei a me identificar profundamente com o cineasta-xamã e a entender sua contribuição decisiva para o entrecruzamento entre arte, terapia e pensamento.
Porém, na minha perspectiva, a sua maior contribuição para posteridade (e também o ponto em nossa afinidade se torna mais profunda) é seu livro O Caminho Tarot (2016), escrito com Marianne Costa. Na verdade, toda criatividade arquetípica de personagens, ações e situações; todo trabalho narrativo (seja nos quadrinhos, no cinema, no teatro, na terapia e na literatura) de Jodorowsky é baseado nos arcanos do tarô. Na conclusão do livro, o velho xamâ faz uma espécie de testamento tarológico, em que justifica toda sua ética em relação ao outro e ao mundo - a partir da perspectiva de um jogador frente ao seu consulente.
Jodorowsky confirmou vários pontos (contra cartomancia, contra as adaptações esotéricas de outros sistemas simbólicos como a astrologia e a cabala, a perspectiva da psicologia analítica junguiana, entre outros) que desenvolvi em meu livro Cartografia Arquetípica, indo muito mais além no estudo do simbolismo do Tarô de Marselhe, principalmente em relação à leitura do sistema como um todo.
Hoje, vendo seu trabalho em panorâmica, vejo uma parte de mim mesmo em desenvolvimento paralelo. História em quadrinhos, cinema, tarô. Não havia ainda a internet, mas eu já compartilhava pela alma meus interesses com este mestre feiticeiro. Imagino que não seja o único e que sua herança ainda esteja para ser vislumbrada.
NOTAS
(1) Entrevista ao jornalista Fernando Sanchez Dragó . Primeira parte < https://youtu.be/Sm8xAlFF18c > e segunda parte < https://youtu.be/bZt4v4UIdv0 >.
(2) A monografia Cinema como instrumento de psicomagia – a cura do espectador, de Eric Mendonça Carraro (2017) faz um resumo destes textos < https://dspace.unila.edu.br/handle/123456789/2275 >
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