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quarta-feira, 3 de março de 2010
XAMANISMO BRASILEIRO
sábado, 27 de fevereiro de 2010
Santo Daime
O QUE É O SANTO DAIME
- Da Consciência de nossa dupla Simbiose
Conta uma lenda indígena norte-americana que, nos primórdios da história da terra, houve uma grande conferência de todos animais existentes, em protesto contra a atitude devastadora e ignorante do Homem diante do meio ambiente. "A natureza é a grande mãe de todos os bichos e o homem deseja submete-la aos seus caprichos" - denunciou a serpente, cobrando uma atitude de todos.
"A única forma é fazê-lo sentir na própria pele o efeito de seus atos, mesmo que isso leve muitas gerações" - ponderou o coiote. E assim, ficou decidido que cada animal se transformaria em uma doença humana: o leão seria os males do coração; o elefante, a obesidade; os eqüinos, as doenças de pele. E quanto mais o Homem destruísse a Natureza, mais ele seria vítima da vingança dos espíritos animais, na forma de doenças.
Segundo a lenda, então, o mundo vegetal sentiu compaixão pelo Homem e decidiu ajudá-lo. E as plantas se transformaram em remédios, uma para cada tipo de doença gerada pelos instintos animais. Às plantas mais nobres, no entanto, foi dada a missão de despertar a consciência, para que um dia o Homem aprendesse a viver em harmonia com a terra e cumprisse seu destino.
RESUMO:
O
Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD), órgão do
Ministério da Justiça, publicou no Diário Oficial da União, dia
25 de janeiro de 2010, resolução regulamentando o uso religioso da
Ayahuasca - bebida de propriedades psicoativas utilizadas por
diferentes cultos brasileiros (Santo Daime, União do Vegetal, a
Barquinha – para citar os principais) do norte do país. A decisão
do governo brasileiro cria uma jurisprudência internacional
importante, confirmando os pareceres da Suprema Corte dos EUA. Por
outro lado, a resolução proíbe o uso terapêutico da bebida, bem
como seu uso recreativo associado a eventos turísticos. Além disso,
a resolução estabeleceu regras para que a bebida seja
comercializada ou utilizada fora do contexto religioso. A
decisão desencadeou algumas reações contrários de setores
conservadores, acusando o governo de ter liberado uma droga perigosa
que “causa alucinações” sob a desculpa de uma pretensa
finalidade religiosa. Respondendo a essa colocação, o presente
texto tem por objetivo explicar o que é o Santo Daime; como é a
experiência cognitiva de beber Ayahuasca, do ponto de vista
psicológico, como também apresentar de forma resumida a singular
pesquisa acadêmica e existencial desenvolvida por diversos
pesquisadores a partir dessa experiência cognitiva, comprovando
assim seu valor inestimável.
- Da Consciência de nossa dupla Simbiose
Conta uma lenda indígena norte-americana que, nos primórdios da história da terra, houve uma grande conferência de todos animais existentes, em protesto contra a atitude devastadora e ignorante do Homem diante do meio ambiente. "A natureza é a grande mãe de todos os bichos e o homem deseja submete-la aos seus caprichos" - denunciou a serpente, cobrando uma atitude de todos.
"A única forma é fazê-lo sentir na própria pele o efeito de seus atos, mesmo que isso leve muitas gerações" - ponderou o coiote. E assim, ficou decidido que cada animal se transformaria em uma doença humana: o leão seria os males do coração; o elefante, a obesidade; os eqüinos, as doenças de pele. E quanto mais o Homem destruísse a Natureza, mais ele seria vítima da vingança dos espíritos animais, na forma de doenças.
Segundo a lenda, então, o mundo vegetal sentiu compaixão pelo Homem e decidiu ajudá-lo. E as plantas se transformaram em remédios, uma para cada tipo de doença gerada pelos instintos animais. Às plantas mais nobres, no entanto, foi dada a missão de despertar a consciência, para que um dia o Homem aprendesse a viver em harmonia com a terra e cumprisse seu destino.
Preambulo
Sempre
pensei em escreve um texto sobre o Daime. E até fiz um texto bem
descritivo, mas que não problematizava a experiência. E eu queria
escrever um texto para registrar a vivência espiritual que modificou
minha vida radicalmente. Um testemunho subjetivo de um sujeito
apaixonadamente envolvido com seu objeto, mas que procura entendê-lo
da forma mais objetiva possível. Há
vários obstáculos para essa ‘objetivação’.
Em
primeiro lugar, é preciso entender que a Pesquisa
do Ayahuasca não é apenas um campo interdisciplinar ou
multidisciplinar, e sim um ‘espelho transdisciplinar’ porque
implica em auto conhecimento: as informações científicas só fazem
sentido se enquadradas em um sistema de crenças. Assim, para mim, a
pesquisa do Ayahuasca passou a ser uma via de mão dupla:
questionando minhas crenças em relação à objetividade científica;
e, no sentido inverso, repensando a modernidade a partir da
experiência cognitiva da bebida. Não havia como desenvolver uma
pesquisa teórica sobre a Ayahuasca e não fazer também uma
investigação pessoal sobre o seu papel transformador em minha vida.
E
em segundo lugar, também é preciso entender que o Santo Daime é
uma ‘leitura’ da Ayahuasca. A mesma bebida é utilizada em outros
sistemas de crenças, em outros rituais, como no caso da UDV e da
Ayahuasca peruana. E para ter uma visão objetiva de minha
experiência com o Santo Daime, falta-me um conhecimento mais
profundo dessas outras leituras.
Só
me restou assim o recurso de ver o todo refletido em uma de suas
partes.
1.
O Daime por ele mesmo
Então, certa vez, dentro
de um trabalho espiritual, perguntei ao Daime: “O que é o Daime?”
– na esperança de que ele fosse capaz de me explicar sua natureza
e como ela se encaixa em nossa história. E ninguém melhor que ele
próprio para me explicar quem e o que ele é e significa. Em
resposta à minha indagação, comecei a perceber as diferentes
pessoas que participam do trabalho e as concepções que elas tinham
do que estavam fazendo ali. Encontrei, assim, cinco definições
diferentes: o Daime é uma bebida; o Daime é uma religião; o Daime
é uma doutrina; o Daime é um Ser Divino e o Daime é um Sacramento.
As duas primeiras
definições (o Daime é uma bebida e o Daime é uma religião) eram
dos visitantes e as três últimas (o Daime é uma doutrina, o Daime
é um Ser Divino e o Daime é um Sacramento) eram de ‘fardados’,
isto é, de adeptos que utilizam o uniforme do culto.
Vejamos cada uma dessas
concepções.
‘O
Santo Daime é uma bebida’
é uma usual concepção entre os ex-usuários de drogas que buscam o
culto, como também curiosos em geral. É a definição daqueles que
procuram a viagem. A bebida em questão é preparada através da
infusão do cipó do Jagube ou Mariri (Banisteriopsis caapi) e da
folha da Rainha ou Chacrona (Psycotria viridis) - naturais da região
amazônica.
O uso da bebida
sacramental era restrito a família imperial inca, descendente de
Inti, o rei Sol. Com a destruição do império, introduziu-se junto
a várias tribos indígenas da região amazônica peruana, colombiana
e brasileira, onde se tornou conhecida por vários nomes,
principalmente Ayahuasca. Conforme relatos históricos, o príncipe
Atahualpa se rendeu aos invasores espanhóis e acabou assassinado.
Segundo a lenda, o príncipe seu irmão, Huascar, se refugiou na
floresta amazônica. Lá divulgou a bebida, que recebeu o seu nome,
que se difundiu entre várias tribos indígenas, como as dos Kampas e
dos Kaxinawás, localizadas perto da fronteira com o Peru e a
Bolívia.
Ingerindo o chá, os
índios absorvem o espírito da planta e, em transe, têm
experiências psíquicas e vivenciam fenômenos paranormais, tais
como a telepatia, a regressão a vidas passadas, contatos com os
espíritos dos seus antepassados mortos, presciência e visão à
distância. Há relatos etnográficos de xamãs usavam a bebida para
descobrir qual era a doença de seus pacientes e saber como tratá-la.
“A
Ayahuasca amplifica a capacidade psicossomática de responder a
gradações mais sutis de estímulos além de muitas vezes integrar
as diversas faculdades sensoriais em processos sinestésicos. Esse
efeito de aumentar a capacidade de experienciar, de avaliar e
apreciar por si mesmo, é central para a compreensão do seu
significado. Esta amplificação, como uma lupa, permite uma
(re)visitação intensiva e absorta dos conteúdos mentais -
recordações, ideias, fantasias, pensamentos, emoções, medos,
esperanças, sensações em gerais. (...) O grande valor da
Ayahuasca, trazidos à nossa atenção pelas sociedades indígenas, é
que ela dissolve os limites da mente inconsciente; ela dá acessos
aos conteúdos reprimidos e esquecidos. Ela possibilita o
reconhecimento das configurações universais da psique, os
arquétipos de humanidade, junto com um leque mais abrangente de
conhecimentos e maneiras de conscientizar, até eventualmente a
vivência dos diversos aspectos da união mística. Na medida em que
o indivíduo consegue ver as coisas de uma maneira não distorcida,
vendo claramente não apenas o seu passado mais também a presunção
e cegueira da sua própria cultura e grupos de referencias, ele
necessita, além de tolerar a decepção e o sofrimento, superar
sentimentos de desamparo. Nem sempre é fácil ter de ver e aceitar
que não somos assim tão vítimas, mas sim responsáveis pelas
nossas vidas; aceitar ser capaz, reconhecer o seu potencial e a
responsabilidade que isso requer implica coragem e determinação.”
(BARBIER, 2002)
O uso da Ayahuasca foi,
durante séculos, difundido dentre as várias tribos indígenas da
região. Absorvendo o espírito das duas plantas, passavam por
experiências psíquicas e vivenciavam fenômenos paranormais como
telepatia, premonição, regressão a vidas passadas, contatos com
espíritos de desencarnados, com encantados e elementais da natureza,
realizavam viagens astrais. É conhecida também a função meta
terapêutica da Ayahuasca, na identificação de doenças e
prescrição de tratamentos. No início do século XX, com o
intercâmbio cultural entre índios e seringueiros, a Ayahuasca
passou a ser conhecida e usada pelos nordestinos que colonizaram a
Amazônia ocidental. Destes contatos surgiram vários grupos
sincretizaram o seu uso com o catolicismo popular, normatizando
doutrinas de grande penetração urbana.
Já
‘o
Santo Daime é uma religião’
é uma concepção de um visitante mais espiritualizado que busca a
experiência de expansão da consciência. Geralmente, são pessoas
que participam ou já participaram de outros trabalhos espirituais.
Desde o início do século, nos contatos culturais entre seringueiros
e índios, a Ayahuasca passou a ser usada pelos migrantes
nordestinos, que colonizaram a Amazônia ocidental. Destes contatos
surgiram diversos grupos que associaram o uso da bebida a um contexto
religioso cristão espírita, dos quais a União do Vegetal, no
estado de Rondônia, o Santo Daime e a Barquinha, no Acre, são os
maiores expoentes.
Raimundo
Irineu Serra (1890/1971) foi um dos que realizou trabalhos com a
Ayahuasca, criando uma estrutura ritual absolutamente brasileira, por
ele rebatizada de "Santo Daime". Fundou, em
1930, o
Centro de Iluminação Cristã de Luz Universal (CICLU) em
Rio Branco, Acre.
Logo
surgiram outras ramificações, sendo a principal a comunidade
denominada Centro da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra
(CEFLURIS), fundada pelo Padrinho Sebastião Mota de Melo,
responsável pela expansão nacional e internacional da bebida e do
culto.
Outro culto ayahuasqueiro
importante é o da Barquinha Fundada em 1945, também em Rio Branco,
por Daniel Pereira de Mattos, esta igreja mistura elementos da
religião afro-brasileira Umbanda e da Santo Daime.
A União do Vegetal foi
fundada a 21 de Fevereiro de 1961, em Porto Velho Rondônia, por um
seringueiro chamado José Gabriel da Costa. Quando trabalhava num
seringal na Bolívia, José Gabriel conheceu índios nativos que o
apresentaram à ayahuasca na própria selva.
O crescimento e difusão
dos diversos grupos religiosos que utilizam a Ayahuasca geraram
resistências nos setores conservadores da sociedade, que
pressionaram o Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN) para
embargar o funcionamento destas instituições nos grandes centros
metropolitanos. No entanto, depois de acuradas investigações, o
Conselho decidiu liberar a utilização do chá para fins religiosos
em 1992. Ficaram estabelecidos vários limites e critérios através
do diálogo entre as entidades religiosas e os pesquisadores de
várias especialidades. Segundo a então presidente do CONFEN, Ester
Kosovsky, "a investigação, desenvolvida desde l985, baseou-se
numa abordagem interdisciplinar, levando em conta o lado
antropológico, sociológico, cultural e psicológico, além de
análises fitoquímicas". O relator do processo de investigação,
Domingos Carneiro de Sá, explicou que o fato fundamental para a
liberação da bebida foi o comportamento dos daimistas e a seriedade
dos centros que utilizam o chá em seus rituais:
“Não
foram observadas atitudes anti-sociais dos participantes dos cultos,
ao contrário, podemos constatar os efeitos integrados e
reestruturantes do Daime com indivíduos que antes de participarem
dos rituais apresentavam desajustes sociais ou psicológicos”.
(SILVA SÁ, 1996, 145-174)
E,
finalmente, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD),
órgão do Ministério da Justiça, publicou no Diário Oficial da
União do dia 25 de janeiro de 2010, resolução regulamentando o uso
religioso da Ayahuasca. A resolução
estabeleceu regras para que a bebida não seja comercializada ou
utilizada fora do contexto religioso.
Com a expansão do Daime
para outros países, surgiram questões jurídicas internacionais
referentes à utilização e ao transporte da bebida.
‘O
Santo Daime é uma doutrina’
é uma concepção que enfatiza justamente esse aspecto de cultura
popular acreana, de patrimônio cultural (músico, poético e
espiritual) brasileiro. Os partidários dessa concepção dão
bastante importância ao ritual, ao calendário litúrgico e aos
ensinos éticos prescritos nos hinos, como também à memória
histórica dos fundadores do culto.
Os hinos, cantados no
decorrer da noite, são recebidos mediunicamente e ensaiados com
antecedência para a apresentação durante o ritual. As ideias
básicas transmitidas pelos hinos são as de solidariedade e
consciência ecológica - trovas poéticas entoada em melodias
simples e repetitivas, que funcionam como ‘mantras’.
Além do canto, há
também uma dança - chamada de “bailado” - que consiste em
deslocar o corpo no compasso da música, em conjunto com todos, para
a direita e para a esquerda de forma alternada, em uma espécie de
‘ciranda estática’. Esta corrente de voz e movimento é ritmada
por maracás, pequenos chocalhos de lata. Os participantes se
posicionam em filas formando um quadrilátero, com as moças e as
mulheres de um lado e os homens e rapazes do outro, ao redor de uma
mesa. Nas festas oficiais, os homens usam ternos brancos e gravatas
azuis, e as mulheres, camisa e saia branca com uma jardineira verde
com fitas coloridas e usam uma coroa prateada.
Ao centro, o Santo
Cruzeiro (a cruz de Caravaca) e a Estrela do Oriente (o selo de
Salomão com uma águia sobre uma lua minguante). Além de Jesus
Cristo ser frequentemente sincretizado com o Sol, a Virgem Maria é
associada à Lua, ao Mar e à Floresta, e as presenças de São João
Batista e do Patriarca São José são constantemente lembradas nas
canções do Santo Daime. Outra imagem frequente é a do “Divino
Pai Eterno”, afirmação do princípio monoteísta da doutrina, que
impera sobre uma “Corte Celestial de Todos os Seres Divinos” -
que engloba, no manto panteísta da Rainha da Floresta, entidades que
vão dos Devas Orientais aos Orixás africanos. Porém, a entidade
central do ritual do Santo Daime é Juramidam, o “Mestre Império”.
Este ser é quem, segundo os hinos e os participantes do culto,
preside os rituais e é identificado como o próprio espírito da
bebida ingerida nas cerimônias.
O efeito da bebida do
Santo Daime promove uma expansão na consciência que, sem a perda da
capacidade de ação voluntária, permite que se observe o próprio
sentimento e pensamento com maior clareza. No decorrer do ritual, o
estado de consciência intensificada pelo chá amplifica as situações
recorrentes da vida cotidiana, revelando contradições existenciais
e processos interiores que se repetem inconscientemente em diversos
níveis. Esses processos involuntários são compreendidos pela
consciência intensificada dos participantes, através da corrente
formada pelo bailado e pelos hinos, que sugerem sempre uma solução
positiva para os problemas. Segundo os participantes do culto, o
ritual é “uma autoanálise”. O processo vivido sobre o efeito da
bebida, abrindo as portas do subconsciente e ação condicionante do
hinário (hinos + bailado) leva a um exame crítico de nossas ações
cotidianas, com base nos princípios cristãos.
A
concepção que acredita que “o
Santo Daime é um Ser Divino”
é aquela que acredita no poder da bebida independente do ritual (e
do sistema de crenças, embora ela também seja parte do sistema de
crenças) que acredita se comunicar diretamente com o espírito da
planta ou com uma inteligência superior à humana. Essa concepção
tem diferentes versões e estilos. Os mais tradicionalistas, por
exemplo, personificam na figura de seu criador, Raimundo Irineu
Serra. Ele representa o retorno de Cristo à terra e quando se toma o
Daime (geralmente diante de uma grande foto do Mestre Irineu) é com
o espírito de Raimundo Irineu Serra que cada consciência dialoga.
Em outras linhas, como a do Padrinho Sebastião, também há adeptos
da concepção de que o Santo Daime é um ser divino, mas em um
paradigma mais amplo e panteísta: “o mestre está no sol, na lua e
nas estrelas”. Essa concepção de ‘bebida mestra’ também
aparece diferentes tipos de xamanismo e em outros rituais e sistemas
de crenças, como na UDV. É preciso dizer que, enquanto o processo
de legalização do culto teve a participação decisiva dos
partidários da ‘Doutrina’, todo processo de globalização do
uso da bebida (de miscigenação com outras culturas espirituais) se
deve principalmente aos adeptos do ‘Ser Divino’.
E
o Daime
é um Sacramento?
Esta forma de pensar é mais abrangente e inclui as quatro concepções
anteriores. A comunicação com o divino não se dá apenas pelos
hinos ou com um único ser, mas através de várias inteligências,
espíritos, guias, arquétipos; e, principalmente, com o foco da
atenção voltado para desprogramação da consciência.
Pode-se dizer que as
pessoas que pensam ‘o Santo Daime é uma doutrina’ e as pessoas
que pensam ‘é um ser divino’ representam as mesmas ênfases dos
que pensam ‘o Daime é um bebida’ e ‘é uma religião’ em uma
oitava superior. Os que pensam que ele é uma bebida ‘evoluem’
para a posição que ele é um ser divino; enquanto os que acreditam
que se trata de uma religião passam a entendê-lo como uma doutrina
espírita ou como um culto cristão. A concepção que entende o
Santo Daime como um Sacramento é aquela que entende a importância
dos dois lados, tanto da bebida como do sistema de crenças, mas seu
foco é o desenvolvimento da consciência.
LINHA
DO TEMPO
| |
Século
XIII
|
O
uso da bebida sacramental era restrito a família imperial inca,
descendente de Inti, o rei Sol.
|
1533
|
O
príncipe inca Atahualpa se rende aos invasores espanhóis e
acaba morto. Seu irmão, Huascar se refugia na floresta amazônica
e a Ayahuasca é introduzida em as várias tribos indígenas da
região.
|
1616
|
O
uso da Ayahuasca é condenado pela Inquisição.
|
1840
|
A
Harmalina é isolada da planta Peganum armala em laboratório na
Europa.
|
1849
1858
|
O
botânico Richard Spruce, o biólogo Alfred Russell Wallace e o
naturalista Henry Walter Bates fazem os primeiros estudos sobre a
bebida.
|
1905
|
Zerda
e Bayon chamam o alcaloide do "yajé" dos índios de
"telepatina".
|
1917
|
O
primeiro terreiro de Umbanda de Porto Velho, Rondônia, é aberto
por Chica Macaxeira, maranhense da tradição do Tambor de Mina.
É usada a Ayahuasca nos rituais.
|
1920
|
Os
irmãos Antônio Costa e André Costa fundaram um centro chamado
Círculo de Regeneração e Fé (CRF), em Brasiléia, Acre.
|
1930
|
Fundação
do Centro
de Iluminação Cristã de Luz Universal (CICLU) em
Rio Branco, Acre, por
Raimundo Irineu Serra (1890/1971)
com a Ayahuasca, com uma estrutura ritual absolutamente nova, por
ele rebatizada de 'Santo Daime'.
|
1931
|
A
DMT (Dimetiltriptamina) é sintetizada e identificada como outro
alcaloide da Ayahuasca.
|
1945
|
Fundação
da Barquinha, por Daniel Pereira de Mattos, em Rio Branco, Acre.
|
1957
|
Hochstein
e Paradies chamam de 'efeito ayahuasca' à combinação de
Harmina e a Harmalina com a DMT.
|
1961
|
Fundação
da União do Vegetal (UDV), por José Gabriel da Costa em Porto
Velho, Rondônia.
|
1972
|
O
cientista Robert Gordon Wasson propõe o termo "enteógeno"
substituto para alucinógeno.
|
1975
|
Fundação
do Centro da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra
(CEFLURIS), fundada pelo Padrinho Sebastião Mota de Melo,
responsável pela expansão nacional e internacional da bebida e
do culto.
|
1985
1992
|
O
crescimento e difusão dos diversos grupos religiosos que
utilizam a Ayahuasca geraram resistências nos setores
conservadores da sociedade, que pressionaram o Conselho Federal
de Entorpecentes (CONFEN) para embargar o funcionamento destas
instituições nos grandes centros urbanos. No entanto, depois de
acuradas investigações, o Conselho decidiu liberar a utilização
do chá para fins religiosos em 1992.
|
2010
|
Conselho
Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) regulamenta o uso
religioso da Ayahuasca no Brasil
|
2.
A pesquisa transdisciplinar sobre Ayahuasca
Os estudiosos da
Ayahuasca também podem ser subdivididos em três grandes grupos: a)
os pesquisadores que dão ênfase ao efeito da DMT no cérebro,
geralmente pesquisadores da área de saúde orientados para o estudo
do tratamento de dependência química (que se assemelham aos adeptos
que dão ênfase à bebida/ser divino); b) os pesquisadores que dão
ênfase aos sistemas de crenças, em geral, antropólogos,
historiadores e psicólogos mais concentrados na questão do
condicionamento social dos usos da bebida (que correspondem aos
adeptos que enfatizam a religião/doutrina); e c) os pesquisadores
que, considerando os dois aspectos, elaboram um novo sistema de
crenças, mais universal (que correspondem aos adeptos
'sacramentalistas').
Vejamos
cada um desses grupos de pesquisadores.
Para
os que dão ênfase à DMT,
como Ralph
Miller (2000), por exemplo, o importante é o papel psicoativo da
bebida:
A
Pineal irá produzir DMT em grandes quantidades em pelo menos dois
momentos das nossas vidas: no nascimento e na morte. Talvez ela
prepare a chegada e a partida da alma. Pessoas que experimentam
"situações de quase morte" – vendo luzes fortes,
portais, ícones religiosos – relatam efeitos semelhantes aos das
experiências com DMT. As moléculas de DMT são similares às
moléculas da Serotonina e se encaixam nos mesmos receptores do
cérebro. Isto é extraordinário porque, assim como a Serotonina, a
DMT é uma chave específica que naturalmente se encaixa nesta
"trava" do cérebro. Assim, você tem a DMT se encaixando
aos receptores do cérebro, o que produz visões, enquanto as
propriedades pró-Serotonina e pró-Dopamina do chá criam um estado
de alerta e receptividade.
Há
uma grande diferença entre as distorções cognitivas provocadas por
entorpecentes e o uso ritual de plantas de poder. Diferenças de
intenção e ambiente – “set and setting”, na famosa definição
estabelecida por Timothy Leary e muito repetida desde então para
caracterizar as condições necessárias para o uso de substâncias
psicoativas em processos de autoconhecimento. O efeito deste uso ‘com
finalidades de desenvolvimento’ é chamado de ‘enteógeno’ em
oposição ao termo ‘alucinógeno’ – utilizado para
caracterizar o efeito alienante e a distorção perceptiva. Mas, os
argumentos de ‘ambiente’ e ‘intenção’ raramente são
suficientes para convencer leigos (e cientistas fixados no fator
psico químico) da grande diferença cognitiva entre a experiência
enteógena e a viagem alucinógena.
Strassman
(2001) diz o corpo produz naturalmente DMT na hora da morte para
favorecer a lembrança dos momentos marcantes da vida. A DMT permite
a utilização consciente da memória visual através do lado direito
do cérebro, em oposição à nossa memória discursiva ordinária
organizada através da fala. É a fala que transforma a memória em
narrativa, se simplesmente contarmos nossa estória, oscilaremos
entre os papéis de vítima e de herói. É o hemisfério esquerdo do
cérebro que acessa a memória e quer comunicar a lembrança
resgatada a alguém.
Com
a DMT, ao contrário, feita em estado de silêncio interior, sem
interlocutor ou escuta analítica externa, as lembranças emergem
objetivas, permitindo a reintegração emocional dos momentos vividos
com distanciamento, vistos de fora, como em um filme narrado por
outra pessoa.
E
essa pode ser a principal aplicação terapêutica da DMT em um
futuro breve: fechar (reviver e superar) as feridas emocionais que
jorram do inconsciente. O acesso consciente à memória visual também
pode ser colocada sob a forma de ‘sonhos lúcidos’, isto é, a
ocorrência de estado de funcionamento cerebral de alto desempenho -
o sono REM (rapid eye moviment) – que normalmente acontece enquanto
o sujeito está dormindo, durante o estado de vigília.
Para
Strassman, há quatro estágios progressivos do efeito do DMT: o
estado eufórico, o ‘caleidoscópio colorido’, o estado de
diálogo com as entidades e a transcendência do ego. Para isso, ele
teria que trabalhar suas dosagens cada vez maiores de DMT. A
experiência, no entanto, comprova que o mero aumento de dosagem
química não basta para se alcançar estados de percepção mais
profundos e intensos, é preciso também ter a ligação espiritual -
que só vem através de treinamento em alguma técnica ou ritual.
Aliás, quando maior a capacidade mental de alteração o estado de
percepção, menor a dosagem necessária – como pode ser comprovado
pela maioria dos adeptos mais antigos dos cultos.
E, certamente, as imagens
psíquicas, sejam elas arquétipos universais ou lixo subconsciente,
em nada ajudam ou enriquecem a experiência espiritual da DMT. O
importante é compreender o quadro de relações (sociais, cósmicas,
afetivas, políticas, etc) em que se está inserido. A ideia de
‘miração’ ou ‘sonho lúcido’ (e de diferentes estágios
progressivos do transe quimicamente induzido) não pode ser
desvinculada do sistema de crenças do sonhador.
Eu, por exemplo,
reconheço quatro paradigmas diferentes sobrepostos e simultâneos no
trabalho espiritual com DMT: o paradigma da luta do bem contra o mal;
o paradigma de ajuda aos espíritos sofredores vivos e mortos; o
paradigma de diálogo/conflito do Eu com o Outro; e, finalmente, o
paradigma da Consciência da Divindade (ou da recapitulação da
biografia pela consciência e a identificação com narrativas
míticas e simbólicas). O modelo de estágios progressivos de
estados de consciência de Strassman tem seu valor, mas é preciso
perceber que ele também se baseia em um sistema de crenças, mesmo
que sejam crenças científicas céticas.
Atualmente,
várias pesquisas investigam a utilização de medicamentos a base de
DMT para tratamento químico de depressão, neuroses, fobias,
síndromes neurológicas, bem como sua utilização como
potencializador da consciência em processos terapêuticos. (v.
Apêndice A)
Como
dissemos antes, existem também pesquisas
que dão mais ênfase ao contexto
que ao aspecto psicoativo.
Enquanto
os pesquisadores das áreas clínicas e biológicas dão um enfoque
enquadrado particularmente aos efeitos químicos da DMT no cérebro,
os pesquisadores das áreas antropológicas e psicológicas estudam a
mudança nos estados de consciência e de percepção, distribuindo
sua atenção em três fatores: a bebida, o ambiente (setting) e a
intenção (set). A hipótese, denominada em inglês de 'set and
setting', formulada inicialmente por Timothy Leary com LSD nos anos
60, afirma que o conteúdo de uma experiência com substancia
psicoativa é uma resultante da interação desses três fatores
básicos.
Charles S. Grob fez a
mais ampla revisão bibliográfica sobre o Ayahuasca na área da
psicologia clínica e neuro psiquiatria (METZNER, 2002, p. 195) e
considera a hiper
sugestionabilidade
como um dos efeitos psico químicos, detalhando o aspecto ambiental
(setting) em vários fatores (o papel do líder, do grupo, do local).
Ele é um dos pesquisadores que concluem que “o contexto, o roteiro
e o propósito” são mais importantes do que os efeitos químicos
de substância psicoativas (nos processos de “cura” e de
autoconhecimento propiciados pela bebida).
Em relação às
características dos estados de consciência quimicamente alterados
pelo Ayahuasca, Grob aponta:
a)
Diminuição
ou expansão da consciência reflexiva, com alterações de
pensamento, mudanças subjetivas na concentração, na atenção, na
memória e no julgamento podem ser induzidas voluntariamente em
vários níveis de uma mesma experiência. b) Aumento da imaginação
visual. Grob também identifica, dentre as experiências de milhares
usuários entrevistados, várias recorrências psicológicas durante
o transe: medo de perder o controle; resistência do ego (bad trip) e
transcendência para estados místicos (entrega); aumento da
expressão emocional - tristeza, alegria, desespero, fé; entre
outras menos frequentes.
Outra
grande contribuição ao estudo psicológico do Ayahuasca é o
trabalho de Benny Shanon, O
Conteúdo das visões da Ayahuasca (2003),
em que além de trabalhar um levantamento das imagens das mirações
e da hipótese de aceleração e desaceleração da percepção do
tempo durante o transe, se discute também a pesquisa da mente
através do Ayahuasca (e não mais o efeito da Ayahuasca na mente
humana).
Shanon já havia escrito
sobre o Ayahuasca como instrumento de investigação da mente (in
LABATE, 2002; pág. 631), através dos parâmetros teóricos da
psicologia cognitiva. Para ele, há questões fenomenológicas de
primeira ordem (o que está sendo experimentado?) e de segundo ordem
(Há uma ordem e um sentido no que está sendo experimentado?). Em
relação às questões fenomenológicas de primeira ordem, Shanon
distingue as questões de conteúdo das de domínio e de estrutura.
Assim, felinos, pássaros e répteis são as imagens mais recorrentes
nos transes, seguidos de perto pelos palácios, tronos e imagens
arquitetônicas celestiais. A pesquisa destaca que as imagens são
‘universais da mente’ (semelhantes aos ‘arquétipos’ de
Jung), pois surgem em indivíduos culturalmente diferentes. Esses
conteúdos podem surgir de diferentes domínios e o encadeamento
dessas formas com estes conteúdos forma estruturas narrativas
paralelas aos rituais.
E Shanon entrevê,
através deste sistema cognitivo de conteúdos/domínios, os
parâmetros estruturais da consciência e destaca pelo menos quatro
aspectos relevantes em relação ao efeito do Ayahuasca: a percepção
do pensamento como uma cognição coletiva, a indistinção entre o
interior e o exterior, as experiências desindentificação pessoal e
de tempo não-linear.
Sob o efeito da DMT os
pensamentos não são individuais, mas sim ‘recebidos em rede’ (a
mente como um rádio); que não existe a distinção entre o
sensorial e o sensível; podem se transformar em animais (jaguares e
águias são frequentes) ou em outras pessoas; e finalmente percebem
o transcorrer do tempo de forma desigual, em que alguns segundos
demoram séculos e horas se sucedem rapidamente e em que alguns
momentos se experimentam a simultaneidade (ou a sensação de
eternidade) temporal.
Desses quatro aspectos
relevantes o mais interessante é o que trata de nossa percepção do
tempo. Quando tomam Ayahuasca as pessoas percebem que seus
pensamentos não são individuais, mas sim ‘recebidos em rede’ (a
mente como um rádio); que não existe a distinção entre o
sensorial e o sensível; podem se transformar em animais (jaguares e
águias são frequentes) ou em outras pessoas; e finalmente percebem
o transcorrer do tempo de forma desigual, em que alguns segundos
demoram séculos e horas se sucedem rapidamente e em que alguns
momentos se experimentam a simultaneidade (ou a sensação de
eternidade) temporal. Quando baixamos arquivos no computador, pode-se
perceber que alguns segundos demoram mais que outros, em função do
peso do arquivo e da aceleração da conexão da internet. O que
Shanon suspeita é que o mesmo acontece com a mente, mas só é
perceptível sob o efeito do Ayahuasca.
A
DMT nos recoloca novamente dentro da simultaneidade. Com base nessas
pesquisas e em minha vivência pessoal pode-se dizer que a
experiência de ‘mirar’ ou ter ‘sonhos lúcidos’ se aproxima
muito mais de uma supercognição (envolvendo os dois hemisférios
cerebrais simultaneamente) do que de uma alucinação ou de apenas
ilusões visuais. Supercognição que permite à consciência
enraizada no presente ativar as memórias do passado com objetividade
visual e prever (ou até mesmo influenciar) acontecimentos futuros,
“resolver problemas”, conseguir reverter as relações de
conflito, submissão ou enaltecimento que se apresentem na própria
'miração'.
É
o que também nos revela a perspectiva antropológica. Segundo
Calávia Saez (2008), quando os Yaminawa tentam explicar o que o
ayahuasca é para eles, usam comparações como o ‘cinema do
índio’, a ‘televisão’ do índio e até ‘o avião do índio’.
O ayahuasca é o que permite uma visão ao longe e media o modo de
ver o universo em seu conjunto. Todavia, além de ser uma tecnologia
de transcendência do tempo/espaço, o Ayahuasca teve (ou tem) outro
função menos evidente: criar uma linguagem xamânica comum entre
grupos étnicos diferentes.
O
que eram praticas xamânicas muito diferenciadas tem se transformado,
talvez nos últimos 100 anos, numa espécie de ecumene indígena
organizada em volta do uso da ayahuasca e dos cantos que acompanham
esse uso. O xamanismo dos Shipibo-Conibo, dos Kokama, dos Kaxinawa,
dos Yaminawa, dos Kampa, não são mais o que poderíamos chamar de
xamanismos locais, étnicos, pertencentes a um pequeno grupo
etnolingüístico. Há muito tempo que esse xamanismo se transformou
numa linguagem comum, num mundo extremamente comunicado onde as
canções da ayahuasca se transmitem de um grupo a outro. Enfim, a
ayahuasca tem contribuído de modo muito importante para dar forma a
um xamanismo que, apesar pensarmos que é extremamente antigo,
provavelmente adquiriu a sua forma atual com a expansão, através da
comunicação, da tradução facilitada pelo uso desse veículo, da
ayahuasca.
Hoje,
vendo os hinos do Daime cantados em vários idiomas, não se pode
deixar de pensar que se trata do mesmo fenômeno. Para Calávia Saez,
os Yaminawa quando bebem Ayahuasca, além das canções em línguas
exóticas, entoam as canções em sua própria língua de um modo
diferente. “É um modo de tratar a língua de uma qualidade poética
minimalista realmente surpreendente e lembra os poemas curtos
japoneses, Hai-kai’s;
evocando detalhes infinitesimais que existem nas folhas, nas flores e
na pele dos animais.” Experiência estética semelhante a dos hinos
do Daime cantados em português mundo a fora. As pessoas cantam e
compreendem telepaticamente o conteúdo, mas não sabem o que
exatamente significam. “Aprender a tomar ayahuasca significa
aprender a entender esse modo de poesia”.
Como
dissemos no início, a maioria das pesquisas se subdivide entre as
que dão ênfase ao contexto cultural
e as que ressaltam o efeito cognitivo da bebida. (v. Apêndice A e
B: A pesquisa da Ayahuasca no Brasil e O uso terapêutico e
dependência química) Porém, existem também pesquisas que advogam
uma perspectiva semelhante à que entendem o Daime como sacramento,
que compreende tanto a concepção que valoriza o contexto quanto ao
efeito da DMT.
3.
Pesquisa enteógena
Com Terence McKenna (1993, 1994, 1995 e 1996) se estabelece uma associação estratégica entre duas hipóteses diferentes até então, que se tornaram os cânones do movimento enteógeno: em primeiro lugar, a hipótese de que foi através da ingestão de substâncias químicas psicoativas que os macacos se tornaram conscientes de si, dando início à evolução da espécie humana. Nesta hipótese, sugere-se que toda nossa experiência com o sagrado derivou originalmente do consumo de substâncias químicas. E depois, a hipótese de Gaia (James Lovelock e Lynn Margulis) segundo a qual a biosfera da Terra é na verdade um organismo vivo. De forma que, mais do que dispositivos de poder para o controle social (as drogas), as substâncias psicoativas teriam como função primordial a re-ligação dos homens com a consciência telúrica do planeta.
Mas, o que realmente
chama atenção nas ideias dos irmãos McKenna é a compreensão das
plantas enteógenas no contexto de uma “grande simbiose”. Nesta
perspectiva, a simbiose entre as plantas e os animais na biosfera da
terra não se limita à troca de oxigênio por gás carbônico ou à
produção recíproca de alimento e proteção, mas, sobretudo, a um
projeto maior, no qual as plantas enteógenas cumprem um papel
estratégico modificando o comportamento humano em relação ao meio
ambiente. Ou seja: estamos sendo colonizados e doutrinados pelo mundo
vegetal para mudar os padrões de animais predadores e interagir
melhor com toda a vida orgânica no planeta. Para nós, essa
‘simbiose’ (entre o homem e o mundo orgânico) realmente existe,
mas não é tão ‘grande’ assim, se levarmos em conta a
possibilidade de uma simbiose entre o homem e o reino inorgânico, em
que haja uma troca de energia vital orgânica por consciência
temporal inorgânica, como quer Castaneda.
Nesse caso, a Ayahuasca
além de veículo de uma mensagem do reino vegetal - para alguns a
DMT seria uma mensagem química para nosso cérebro - para reverter o
processo planetário de autodestruição do homem e da vida orgânica,
mas também um meio de realização de um simbiose com o reino
mineral. Como se sabe, a psicoatividade oral da DMT depende da
inibição das enzinas MAO; e nem a folha nem o cipó são
psicoativos tomados separadamente. E, então, como os índios
descobriram o ‘efeito ayahuasca’? Como os índios descobriram,
entre milhares de plantas, sem nenhum tipo de instrumento técnico ou
de conhecimento científico, que a combinação de duas delas tinha
um efeito capaz de provocar o transe, sem efeitos colaterais nocivos?
Para alguns xamâs, foram as próprias plantas que ensinaram os
homens.
E
esta é questão que norteia a pesquisa transdisciplinar (METZNER,
2002, 264) em que a experiência emergente da espiritualidade
transborda os limites de todas as tradições religiosas: o Ayahuasca
nos dá saúde, conhecimento, poder espiritual. E nós? O que estamos
dando em troca? Amor e alegria? Aperfeiçoamento pessoal, dinheiro e
trabalho para as instituições responsáveis? Ou você não se
considera em dívida com plantas, nem como pessoas ou instituições?
Há uma evidente mudança
de atitude na maioria das pessoas que tomam Ayahuasca. Cerca de 10%,
aproximadamente, apenas consideram a experiência sem significado
para sua vida. Dos 90% que consideram a experiência relevante, mas
da metade não volta ou participa esporadicamente dos cultos. As
instituições calculam, informalmente, que, em média, 30% dos que
conhecem o Santo Daime, escolhem este caminho para seu
desenvolvimento espiritual e se fardam. Com passar dos anos, além de
uma grande taxa de evasão, a participação dos rituais se banaliza
e o impacto de transformação do começo perde seu poder, levando o
adepto ou a novos níveis de esforço e aplicação para seguir com
seu desenvolvimento ou a uma adaptação conformistas em relação às
instituições religiosas e à própria sociedade em geral. Entre as
linhas que seguem o Padrinho Sebastião, houve um momento em que a
vida comunitária na Amazônia era estimulada como uma forma de
continuar o processo de desprogramação da vida social, mas,
atualmente, todas as instituições que trabalham com o Santo Daime
dão ênfase a integração social de seus participantes. (v.
Apêndices C e D)
Também
levem-se em conta que há grandes desigualdades culturais na
expansão: o
Santo Daime do norte do país sempre foi bem diferente da religião
no sul e sudeste. No Acre, o Daime é uma religião popular e tem um
caráter conservador, um aspecto importante da identidade cultural
daquele estado; no sudeste, ele floresceu em extratos da classe média
urbana, com jovens culturalmente globalizados oriundos da vida
política e do universo das drogas. São estratos sociais bem
diferentes, com formações culturais bastante distintas.
Os
dirigentes centros da Amazônia dizem que “igreja não é clínica
de tratamento de pessoas com distúrbios psicológicos ou com
dependentes químicos”. Ocorre, no entanto, que no sul e sudeste do
país, a grande maioria dos fardados são ex-dependentes ou
portadores de distúrbios de comportamento, que descobriram na
doutrina uma forma de conforto e transformação. E essa demanda
clínica está em processo de crescimento exponencial no exterior.
Penso que não adianta proibir o comércio do sacramento ou
restringir sua produção, porque isto leva apenas a devastação
devido a incapacidade de conter o poder dinheiro e do consumo
internacional. O turismo também. O turismo não surgiu do
entretenimento, mas da busca do sagrado (das peregrinações
religiosas à terra santa, à meca, ao caminho de santiago, etc). A
proibição do turismo associado à ayahuasca não é apenas um
absurdo porque impede o desenvolvimento econômico regional, mas
sobretudo porque impossibilita o desenvolvimento espiritual da
humanidade.
A
resolução do CONAD é representa a legalização do Ayahuasca no
Brasil. Mas, há também uma contrapartida negativa: a regulamentação
poderá levar a uma fossilização institucional do movimento, a uma
folclorização cultural dos rituais e/ou a um distanciamento cada
maior da verdadeira essência do espírito revolucionário do
Ayahuasca. A necessidade de regulamentação do movimento
ayahuasqueiro está levando a um progressivo enquadramento social dos
grupos e a uma atitude conformista em relação a mudanças na
sociedade e nas instituições.
Em minha experiência
pessoal, observei que os dois primeiros anos de doutrina são de
experiências transpessoais (mirações como as descritas e
classificadas por Shanon). São anos, invariavelmente, de grandes
transformações. Em seguida, o adepto passa por um período de
experiência reeducativas do ponto de vista interpessoal (‘passagens’
que envolvem a projeção dos pais em padrinhos e madrinhas, que
envolvem conflitos e amizades com outros participantes, amores
platônicos e reais para o aprendizado de suas preferências e
afinidades). Acredito que esse período possa se estender
indefinidamente. E, após dez anos, caso tenha se aplicado no estágio
anterior, em um período de desenvolvimento pessoal, em que a tônica
é o aperfeiçoamento ético subjetivo, em que as conquistas são
graduais e precisam ser bem consolidadas. Em minha opinião, boa
parte dos adeptos da doutrina do Santo Daime chega apenas ao segundo
nível de desenvolvimento, ficando trabalhando situações
recorrentes, enganchado na rede de suas relações interpessoais. É
claro que esses são parâmetros absolutamente subjetivos (mesmo que
calcados na observação de outras pessoas além de mim), de quem
acha que permaneceu se desenvolvendo dentro da doutrina daimista
durante mais de 20 anos. As pesquisas com usuários de longo prazo
(desenvolvidas pelo Projeto Hoasca da UDV, entre outros) se limitam
ao estudo da inexistência de danos físicos e na atitude de
integração social propiciada pela bebida. Ninguém até o momento
estudou variáveis menores como mudanças na alimentação ou
inibição progressiva de comportamento sexual, e muito menos, é
claro, variáveis subjetivas relativas ao desenvolvimento ético e
espiritual.
A
chave para o desenvolvimento contínuo, e na superação de seus
diferentes estágios, talvez esteja tanto na pergunta formulada por
Metzner (o que damos em troca do recebemos das plantas de poder?)
como da ideia contida na palavra ‘Daime’. A retribuição da
generosidade divina com a generosidade humana em um forte sentimento
de agradecimento. “Já que tudo me foi dado, vou me dar todo
também” – essa ideia é que faz vigorar o sentido do Sacramento,
não é mais a planta, a bebida ou a doutrina que é sagrada, mas “Eu
sou” (um em conjunto com a divindade).
APENDICE
A: A pesquisa da Ayahuasca no Brasil
Uma
boa introdução à pesquisa do Ayahuasca é o livro Religiões
ayahuasqueiras: um balanço bibliográfico
(2008),
de Beatriz Caiuby Labate, Isabel Santana de Rose e Rafael Guimarães
dos Santos. O balanço das pesquisas realizadas sobre Santo Daime,
Barquinha e UDV, contabilizou 52 livros (13 em inglês), 35
dissertações de mestrado, sete teses de doutorado, nove pesquisas
em andamento e um número incalculável de monografias e artigos -
em
11 áreas distintas de conhecimento.
Os
primeiros artigos são dos anos 50. O marco fundador do campo na
academia é a tese O
Palácio de Juramidam
(1983), de Clodomir Monteiro. Em 1984, Alex Polari, Cefluris, lança
seu 1º livro. Em 1986 saiu o primeiro artigo acadêmico sobre a UDV,
do Anthony Henman, em uma revista mexicana chamada América
Indígena.
Em 1993 foi realizado o Hoasca
Project.
A Barquinha tem seu primeiro livro em 1999. A década de 90 é
marcada pela expansão do campo de estudos no Brasil e, a partir do
ano 2000, começam a ser produzidos trabalhos no exterior. Outro
marco importante é a pesquisa, realizada em 2003, sobre adolescentes
da UDV.
Os
estudos sobre Ayahuasca hoje se multiplicam em progressão
geométrica, levando os autores a declarar de que a “lista já
nasce desatualizada, porque enquanto estamos falando tem alguém
publicando alguma coisa”. E, de fato, de lá para cá várias
teses, dissertações e monografias foram defendidas, diversos
artigos científicos e ensaios foram escritos em nome da Pesquisa do
Ayahuasca.
Gostaria
de destacar algumas iniciativas recentes. Ayahuasca:
uma experiência estética
(2009),
de Rafael Barroso Mendonça, dissertação sobre a adequação entre
o estado visionário e as práticas de vida do usuário, o modo de
subjetivação do indivíduo. Uma
etnografia ayahuasqueira nordestina
(2009),
de Wagner Lins Lira, uma análise etnográfica de duas dissidências
nordestinas do Santo Daime e da UDV -
a
Sociedade Espiritualista União do Vegetal, localizada no município
de Riacho das Almas (PE) e o Centro de Harmonização Interior
Essência Divina, situado em Riacho Doce (AL) – buscando
compreender suas relações empatia e oposição com as antigas
matrizes ayahuasqueiras.
Um
dos trabalhos mais interessantes é o de José Eliézer Mikosz, A
arte visionária e a Ayahuasca:
Representações Visuais de Espirais e Vórtices Inspiradas nos
Estados Não Ordinários de Consciência (2009).
Mikosz estuda várias formas visuais (espirais, mandalas, labirintos,
universos em camadas) e suas possíveis significações. Apesar de
usar como referência os Estados Não Ordinários de Consciência
(ENOC), em vários momentos aproxima-se bastante da idéia de sonhos
lúcidos, de Stephen LaBerge, desenvolvida por Strassman.
A
ayahuasca talvez permita entrar no rio mercurial (streaming of
consciousness) que corre entre a vigília e o sono, a interseção
entre a realidade cotidiana e seu fluido reflexo nos infinitos mundos
da imaginação. A ayahuasca, como outras plantas e substâncias
psicointegradoras, possui a potencialidade de aproximar o ser humano
do lugar, por assim dizer, de onde os mitos procedem. Essa suspeita
surgiu pela semelhança da experiência vivida com a ayahuasca e os
estados hipnagógicos e mesmo dos sonhos. De onde vêm os
pensamentos, são deliberados por volição, são sempre escolhas do
“pensador” ou surgem como acontecimentos independentes,
interagindo então com o indivíduo? Os devaneios, o estado
hipnagógico, este muitas vezes similar às mirações, parecerem se
desenvolver em uma corrente de consciência que passa como pano de
fundo, independentemente da direção consciente do indivíduo. Essa
corrente pode ser comparada a um filme contendo uma mistura de
conteúdos pessoais e impressões e experiências vindas do meio
ambiente. É possível interagir com esse conteúdo à medida que o
estado de vigília vai relaxando seu controle, seja no início do
sono, seja pela ação de psicoativos como a ayahuasca. Estudos mais
profundos sobre essa característica da consciência certamente
trarão conhecimentos maiores sobre os esforços cognitivos da mente.
(MIKOSZ,
2009,249 )
Também
merece ser citado o trabalho de doutorado de José Erivan Bezerra de
Oliveira, Santo
Daime, o professor dos professores
(2008) focado na transmissão de conhecimento através dos hinos. A
partir dos conceitos de memória social e performance, a tese
investiga a relação entre ensino e aprendizagem nos rituais e em
sua experiência cognitiva. Nessa perspectiva o aspecto histórico (a
memória social) e biográfico dos hinários dão sentido pedagógico
à experiência religiosa.
Tais
pesquisas (entre outras) atestam não apenas a qualidade e a
importância do Ayahuasca como objeto de reflexão transdisciplinar,
mas, sobretudo, a singularidade e relevância desta produção
acadêmica no contexto científico internacional contemporâneo. Ou
seja: o Ayahuasca e seu estudo são importantes contribuições
brasileiras ao patrimônio da humanidade – não apenas ao
patrimônio cultural do Acre e da União. O que está em jogo não a
sobrevivência cultural do Santo Daime, da Barquinha ou da União do
Vegetal, nem mesmo o uso indígena ou psiconáutico do Ayahuasca, mas
sim, o papel extraordinário que a DMT desempenhou e desempenha na
evolução psíquica e biológica humana, como também, o que pode
vir a desempenhar no futuro, seja na recuperação de dependentes
químicos e de psicoses depressivas, seja no seu desenvolvimento
ético e de novas qualidades cognitivas no âmbito da percepção e
da consciência. Ou seja: a discussão tem uma importância bem maior
do que enxerga a maioria dos envolvidos.
APENDICE
B: Uso terapêutico e dependência química
No
entanto, boa parte da literatura acadêmica mais recente sobre
Ayahuasca trata de seu uso terapêutico, principalmente da
possibilidade de sua utilização em tratamentos de dependência
química, uma vez que já existe um alto de número de ex-usuários
recuperados entre os adeptos das religiões ayahuasqueiras.
O
texto coletivo Considerações
sobre o tratamento da dependência por meio da ayahuasca (LABATE,
SANTOS, ANDERSON, MERCANTE, BARBOSA, 2009) faz uma revisão
bibliográfica específica desta literatura e sistematiza as
principais reflexões sobre o potencial terapêutico do uso ritual da
ayahuasca no tratamento ao abuso de substâncias psicoativas. O texto
analisa a experiência de dois centros terapêuticos que combinam
elementos da medicina e da psicologia ao uso da ayahuasca: o
Instituto
de Etnopsicologia Amazônica Aplicada (IDEAA),
próximo à comunidade do Santo Daime Céu do Mapiá, no município
de Pauini (AM) e o Takiwasi,
em Tarapoto, no Peru. São ainda discutidas perspectivas para uma
futura agenda de pesquisas científicas interdisciplinares sobre este
tema, refletindo sobre as possibilidades de diálogo entre
biomedicina, antropologia e psicologia, além dos impasses éticos e
metodológicos envolvidos neste tipo de investigação.
A
aparente melhora de muitos casos de abuso e dependência de
substâncias psicoativas, segundo o relato de vários grupos
terapêuticos e religiosos voltados para o uso ritual da ayahuasca,
bem como de antropólogos, psicólogos e psiquiatras que estudam o
tema, representa um fenômeno de saúde promissor. Esse pode ser
melhor compreendido a partir de estudos interdisciplinares
sistemáticos que combinem a abordagem quantitativa com uma sutileza
qualitativa e etnográfica. Tal esforço interdisciplinar deve ser
acompanhado também de uma tentativa de diálogo com os saberes
nativos, colaborando para que o conhecimento adquirido durante
décadas pelos diferentes grupos que utilizam a ayahuasca no
tratamento da dependência auxilie futuros estudos clínicos de
terapias psicodélicas voltadas para abordar o problema.
Em
relação ao uso terapêutico, há três assuntos centrais em pauta
hoje: a) a emergência de surtos psicóticos; b) como utilizar o
Ayahuasca na recuperação de dependentes químicos; e c) quais são
os métodos de trabalho e as técnicas mais adequadas para esta
integração.
O
ayahuasca tem o efeito de agravamento dos sintomas, ele promove e
desenvolve mudanças existenciais, levando as situações
contraditórias a níveis críticos. Assim, outro tema correlato ao
uso terapêutico do ayahuasca, é que ele desencadeia crises
psíquicas e emergências espirituais. A experiência atesta que tais
casos tanto podem ser vistos como uma superação de tendências
psicóticas como podem causar danos irreversíveis, caso o sujeito
das crises não encontre o apoio e a compreensão necessários para
entender a situação em que se encontra. O papel da família, da
comunidade religiosa e do ambiente profissional é preponderante para
a recuperação e a superação das crises. Daí a necessidade de se
estabelecer critérios e parâmetros para propiciar a emergência
espiritual de conteúdos psíquicos não se torne uma psicose ou uma
esquizofrenia irreversível.
Movidos
por esta preocupação a resolução do CONAD prescreve - e muitas
instituições religiosas acreditam se defender dessas situações
através de – uma rigorosa entrevista (chamada incorretamente de
anamnese), que realizada de forma burocrática por pessoas
despreparadas faz uma triagem preconceituosa e de baixa qualidade.
Uma entrevista preliminar com as pessoas que vão tomar ayahuasca
pela primeira vez é fundamental para o aproveitamento adequado da
experiência, mas não deve tentar enquadrar os entrevistados em
categorias de risco, pois essa prática além de moralista e
politicamente incorreta é ineficaz no sentido de identificar
comportamentos problemáticos ou possíveis emergências espirituais.
A
verdade é que nada substitui uma conversa franca e compreensiva. Mas
do que perguntar, o entrevistador deve responder as dúvidas e
questões postas pelo entrevistado. E mesmo que identificados fatores
de risco nos entrevistados, isto não deve ser motivo para exclusão
ou para constrangimento, mas sim como uma informação relevante para
compreensão do processo de transformação que se iniciará. A
responsabilidade é mais importante do que o registro de controle.
Como
também não basta informar os possíveis prejuízos da utilização
de outras substâncias (como o álcool e a cafeína) e de excessos
sexuais em conjunto com a ayahuasca, é preciso explicar, sem
fanatismo ou superstições, quais sãos esses danos e quais são as
consequências do uso indisciplinado da ayahuasca.
Porém,
se os próprios adeptos dos cultos não obedecerem às prescrições
que professam aos neófitos, as restrições necessárias à
experiência soarão como hipocrisia e farisaísmo. E se é incorreto
tentar escapar às crises antecipadamente pela triagem e exclusão,
também é errado tentar encobri-las depois que emergem.
Nesses
casos, além de um atendimento terapêutico individualizado, deve-se
manter a participação do sujeito em crise nos rituais religiosos ou
nas práticas terapêuticas de grupo (caso isto seja possível) sem o
consumo da ayahuasca ou com doses simbólicas. A exclusão do sujeito
em crise do contexto da emergência espiritual (e seu deslocamento
para outros cenários – psico-terapêutico ou médico-psiquiátrico)
será prejudicial à conclusão satisfatória do processo.
Outro
assunto recorrente das pesquisas recentes sobre o Ayahuasca é sobre
distinção entre as noções de ‘uso religioso’ e de ‘uso
terapêutico’ de substâncias químicas que promovem a expansão da
consciência. Alguns pesquisadores argumentam que essa distinção –
agora oficialmente adotada pela resolução do CONAD - não faz
nenhum sentido e que o ‘uso’ indígena seria mais terapêutico e
recreativo do que religioso.
Em
minha perspectiva, há diferenças: o uso religioso caracteriza-se
principalmente por ser vertical, enfatizando a relação entre o Ego
e o Eu Superior (ou a divindade); enquanto o uso terapêutico é
horizontal, focado na relação entre o ‘Eu’ e o ‘Outro’.
Embora essa seja uma distinção teórica, pois na prática os dois
aspectos são indissociáveis, há intenções e ambientes (sets and
settings) bem diferentes nas duas propostas.
E
essa diferença nos faz levantar várias questões. Por exemplo: será
que um dependente químico de drogas não tem maiores chances de
recuperação em um paradigma (= ambiente + intenção) religioso, em
que sua dependência transmuta-se em autonomia espiritual, do que em
um paradigma psicológico onde ela pode ser transferida para o
terapeuta ou para outros objetos horizontais? Ou ainda: será que
Ayahuasca facilita ou amplifica a catarse emocional? Por que a
exposição de sentimentos e emoções negativas (como a raiva e a
tristeza) tão apropriadas no processo terapêutico pode gerar
obsessões psíquicas e espirituais, quando realizada em estados de
consciência alterada? O louvor ao sagrado cura devido sua
gratuidade, já dar suporte ao desenvolvimento de resiliências
(trabalho terapêutico) é uma atividade profissional remunerada –
como conciliar essas questões?
O
uso religioso objetiva o desenvolvimento ético e moral dos
participantes do culto em geral, enquanto o uso terapêutico
pressupõe um problema específico a ser resolvido por alguém em
particular. Mas, é preciso definir melhor como se pode (e como não
se deve) usar o Ayahuasca em uma resistência específica ao
desenvolvimento individual e não estabelecer um ‘novo uso’ para
a bebida.
A
tradição daimista prescreve rigorosamente a não-intervenção,
seja a forma de toque corporal ou tentativa verbal de comunicação,
quando um participante do culto faz uma ‘passagem’, isto é,
encontra com uma resistência em desenvolvimento e sofre algum tipo
de mal-estar. Nesta ótica, é aconselhável que ‘a bebida e a
pessoa se entendam’ ou que o processo psíquico desencadeado seja
resolvido através de uma auto-adaptação da pessoa à situação
emergente sem interferências. Tal prescrição é extremamente
válida, principalmente no âmbito das igrejas e templos religiosos
em que pessoas sem preparação (sem formação profissional
específica) podem querer ajudar outras em um momento crítico.
Por
outro lado, o uso consorciado da ayahuasca com algumas experiências
com mudanças dos padrões corporais se mostrou bastantes produtivas,
devido ao relaxamento muscular propiciado pela ingestão da bebida,
como as aplicações sucessivas de massagem da técnica desenvolvida
por Ida Roofing. Este processo de alinhamento postural pode ainda ser
potencializado através de alongamentos e de exercícios regulares
diários (de Pilates, RPG ou de Iso-stretching).
Já
o uso do Ayahuasca consorciado diretamente às práticas catárticas
da bioenergia e das meditações dançantes do Osho não apresentaram
(para mim) nenhum benefício visível e certamente podem reforçar,
ao invés de dissolver, as resistências psicológicas, sejam elas
‘couraças energéticas’ ou complexos comportamentais. Ou seja: a
tradição espiritual desaconselha a prática da intervenção
terapêutica no paradigma religioso, mas a experiência psicológica
incentiva o uso da DMT como uma forma de intervenção espiritual no
paradigma terapêutico. Portanto, não se trata de utilizar técnicas
e práticas de outras paragens para ‘completar’ ou ‘aperfeiçoar’
os rituais associados ao Ayahuasca e às plantas de poder
brasileiras, mas sim de aprender a utilizar estes rituais e estas
plantas em processos terapêuticos. E, dentro de processos
terapêuticos, dentro das experiências que organizei e presenciei, o
Ayahuasca tem se mostrado muito mais adequado às técnicas de
regressão biográfica através de sugestão hipnótica do que,
diretamente, aos exercícios de movimento corporal e as massagens
voltados para catarse.
Há
também outras possibilidades de integração, como as técnicas de
roda. A ciranda de vozes e de dança é um suporte de transmissão de
memória e conhecimento anterior ao advento da escrita, quando os
contextos de recepção e de transmissão de informação eram
comuns. A roda centralizava o acesso ao conhecimento e instituía um
tempo circular, simultâneo, sem continuidade. Com a escrita (e a
memória social), surgiu a história (e o tempo linear baseado na
acumulação de informação), os contextos de recepção passaram a
ser múltiplos e distintos do contexto da fala. Hoje (graças à
Internet) retornamos parcialmente ao tempo simultâneo e a esse
suporte arcaico da cultural oral. O próprio ritual do Daime, o
hinário bailado e cantado, é um excelente exemplo de uso da roda de
vozes e danças como estrutura trifásica (de movimento, canto e
pensamento), como forma de propiciar um aprendizado existencial
significativo e de transmitir conteúdos simbólicos, integrado ao
paradigma histórico da escrita e do pensamento objetivo.
Ou
seja: mesmo com o foco na DMT, percebe-se que os cantos e a dança em
roda fazem parte da experiência espiritual do Ayahuasca. A química
prescinde de práticas rituais para se realizar com sentido para seus
usuários. E o CONAD foi bastante feliz em observar que, sem os
rituais e práticas associadas ao culto da bebida, a DMT
descontextualizada é apenas uma droga psicodélica que provoca
acessos visuais.
APENDICE
C: Um seminário provinciano
De
12 a 15 de abril de 2010, ocorreu no Horto Florestal de Rio Branco
(AC) o seminário ‘Construindo Políticas Públicas para Ayahuasca’
- realizado Câmara Temática de Cultura Ayahuasqueiras da Fundação
Garibaldi Brasil, Assembléia Legislativa, Governo do Estado, através
da Fundação Elias Mansour e com a participação de (quase) todas
as comunidades tradicionais ayahuasqueiras. O objetivo declarado foi
debater questões relativas às áreas da cultura, meio ambiente,
educação, turismo, saúde, urbanismo e segurança pública que
afetam diretamente os centros que usam ayahuasca no Acre. O resultado
dos debates
foi entregue aos deputados estaduais, durante sessão solene
de entrega dos títulos de Cidadão Acreano aos três fundadores das
‘religiões ayahuasqueiras’, Raimundo Irineu Serra (do Santo
Daime), José Gabriel Costa (da União do Vegetal - UDV) e Daniel
Pereira de Mattos (da Barquinha).
Em
primeiro lugar é preciso reconhecer a importância da merecida
homenagem aos “Três Mestres Fundadores” das religiões
ayahuasqueiras pelo estado do Acre, porém, também é necessário
dizer que as propostas para elaboração de ‘políticas públicas
para a ayahuasca’ feitas pelas ‘comunidades tradicionais
ayahuasqueiras’ de Rio Branco deixaram muito a desejar. Foram muito
tímidas, sem compreensão da dimensão nacional e internacional na
atualidade, voltadas principalmente para secretarias estaduais
visando atender as necessidades básicas de cidadania das comunidades
urbanas de Rio Branco.
Faltou
a compreensão correta do que seja uma ‘política pública’. E
consequentemente do que seria uma ‘política pública para
ayahuasca’. O único texto sobre o tema, A
elaboração das políticas públicas brasileiras em relação ao uso
religioso da ayahuasca,
de Edward MacRae (2008), segue uma abordagem antropológica (e não
das ciências políticas de onde vem o termo ‘políticas públicas’)
apenas descreve o processo de legalização e regulamentação da
bebida pelo CONAD, lamentando a inevitável ingerência governamental
nos assuntos da religiosidade popular. E, na falta de um referencial
teórico adequado, o conceito de ‘política pública’ foi
reduzido à noção de política setorial (ou de um conjunto de ações
governamental para um setor específico) no âmbito exclusivamente
estadual e interpretado dentro de cultura política clientelista
acreana, lugar comum no norte e nordeste do país.
Tal
interpretação deu origem a vários equívocos, visíveis nas
resoluções do seminário. Por exemplo: a proposta 9 na área de
urbanismo – “Garantir a implementação de iluminação pública
e projeto de arborização com espécies adequadas, nas vias que dão
acesso aos Centros Ayahuasqueiros” – não pode ser considerada
uma ‘política pública’, é sim, uma obrigação da prefeitura
municipal com todos os tipos de igrejas e grupos religiosos. Ou
ainda: a proposta 10 da área de educação entre outras semelhantes,
“Realizar projeto piloto de ensino religioso focado nas culturas
tradicionais da ayahuasca, na escola (pública) Raimundo Irineu
Serra” é rigorosamente inconstitucional, pois o Estado é laico e
tem o dever de resguardar a liberdade religiosa das crianças diante
da comunidade.
Mas
a principal decepção com o resultado do seminário foi mesmo pelo
foco restrito e deslocado da realidade internacional em que a
ayahuasca está inserida. Também se ressalte que a grande causa e
consequência desta falta de sintonia com o cenário globalizado, foi
a ausência do Cefluris (ou ICEFLU, sigla abreviada atual) no
seminário, a maior e mais importante entidade daimista, responsável
pela expansão mundial da bebida e pelo aparecimento de várias
propostas híbridas de trabalho com ayahuasca com outras tradições
espirituais. A exclusão (ou não-participação) dos seguidores da
linha de Sebastião Mota de Melo foi orquestrada pelos centros que se
autodenominam de ‘tradicionais’ em virtude não apenas do
preconceito com a postura expansionista e globalizada do Cefluris,
mas também da responsabilização, de forma não-declarada, da
trágica morte do cartunista paulistano Glauco Villas Boas e das
várias reportagens negativas sobre o Santo Daime na mídia
brasileira. Embora não digam claramente, os centros tradicionais
entendem que a expansão da doutrina daimista, bem como sua
conjugação com outros rituais e outras plantas de poder, são os
responsáveis por todas as desgraças do culto e pela sua péssima
imagem na opinião pública. Não vamos entrar aqui diretamente nesta
discussão, apenas ressaltar que tal atitude de exclusão unilateral
(ou bilateral) em nada colabora para elaboração de políticas
públicas efetivas de âmbito nacional que diminuam os problemas de
todos, aumentando a animosidade entre os centros acreanos e os
diferentes tipos de grupos em outros estados e em outros países,
gerados pela política expansionista do Cefluris.
Além
de incorrer neste equívoco, muito comum em se tratando de políticas
públicas petistas, o seminário acreano sobre ayahuasca ficou muito
limitado ao âmbito estadual, como dissemos antes. Vou dar alguns
exemplos. Os pontos 4 (“Incentivar os processos de cultivo,
garantindo sua sustentabilidade, através do programa do Ativo
Florestal e outros) e 5 (“Disponibilizar profissionais qualificados
do serviço público, como responsáveis técnicos pela elaboração
de planos de cultivo e manejo, conforme as demandas dos Centros das
Comunidades Tradicionais da Ayahuasca”) das resoluções na área
de meio ambiente não levam em conta o crescimento exponencial do
consumo global de ayahuasca nem são efetivas no combate à
biopirataria. Devia-se propor grandes plantios de cipó jagube e da
folha rainha em outras regiões que não à amazônica (o cerrado e o
semi-árido) de forma a atender essa demanda de crescimento global e
evitar o contrabando dos produtos e a depredação da floresta. O
mesmo pode ser dito quanto a regulamentação necessária para o
transporte da bebida e do material entre estados – que não leva em
conta a possibilidade de produção em outros lugares.
Ou
ainda, na área de cultura, há várias propostas enfatizando a
necessidade de “registro, valorização, preservação” da
memória histórica dos cultos ayahuasqueiros locais (isto é: o
passado da ayahuasca); mas absolutamente nada em relação à
necessidade de pesquisa transdisciplinar (terapêutica, botânica,
neuroquímica, espiritual) e às possibilidades de desenvolvimento
futuro da bebida. E uma política pública nacional em relação à
ayahuasca deve ter como uma das prioridades à pesquisa científica
em todos os seus aspectos. Se reduzirmos o estudo da ayahuasca à
promoção da cultura popular acreana, estaremos sucumbindo ao
subdesenvolvimento.
Na
área do turismo, há um único ponto: “Formar uma Comissão com
representantes das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca para atuar
no âmbito do Conselho Estadual de Turismo, com vistas a emitir
Resolução regulamentando as atividades turísticas nas comunidades
citadas, em consonância com a regulamentação do CONAD”.
Ignora-se, assim, tudo que o ecoturismo fez e que está se fazendo em
termos de desenvolvimento sustentado, principalmente na região
Juruá. A atividade turística associada aos cultos da ayahuasca
deveria ser vista como uma poderosa ferramenta de desenvolvimento
social e não como um problema. Os centros de Rio Branco deveriam
elaborar um evento anual, semelhante ao Centenário em 1992, para
atrair visitantes e não reclamar da cidade ter ser tornado apenas um
local de passagem para o Juruá ou para o Mapiá. Outros pontos
ignorados? O projeto Linha
do Tucum
em
Ipixuna: o governo do Acre, as prefeituras, o Sebrae e o Banco do
Brasil deveriam criar vários projetos como este, incentivando o
beneficiamento do extrativismo. Também o trabalho desenvolvido pelo
Centro
Medicina da Floresta
tem
hoje projeção internacional e deveria ser apoiado e multiplicado
por políticas públicas voltadas para sustentabilidade das
comunidades daimistas dentro da floresta.
Porém,
infelizmente tanto o ecoturismo religioso como essas importantes
iniciativas são de daimistas partidários da linha do padrinho
Sebastião e ficaram de fora do seminário das políticas públicas
das comunidades tradicionalistas. Aliás, a própria história do
desenvolvimento institucional do primeiro Cefluris e do atual
Ida-cefluris, visto de forma crítica mas sem preconceitos, pode ser
a base para formulação de uma política pública de primeiro mundo
- sem clientelismo político.
APENDICE
D: Uma análise da evolução institucional da linha cefluristaO
primeiro CEFLURIS (Centro Eclético Fluente da Luz Universal Raimundo
Irineu Serra), na concepção visionária de seu criador Sebastião
Mota e Melo, foi uma entidade que queria combinar três tipos de
organização: uma igreja,
uma associação de moradores (uma forma de representação política
em relação ao poder público) e uma cooperativa comunitária.
Religião, Política e Economia em uma única organização
holística. Mas, não deu certo! Ou foi necessário para que se
entendessem melhor os problemas de convivência social.
Em
primeiro lugar devido à divisão entre irmandade (os fardados de
fora, que moravam na cidade, principalmente o padrinho Wilson
Carneiro e o pronto socorro de Rio Branco) e comunidade (os que
moravam na colônia 5000). Esta dissociação igreja x comunidade do
modelo ceflurista se reproduziu durante os anos 80 em várias igrejas
do sul que embarcaram na fantasia comunitária. Era comum escutar dos
fardados urbanos, profissionais liberais, afirmações de que
sustentavam os de dentro; enquanto que viviam em comunidade
reclamavam que seguravam a situação espiritual dos que vivem na
ilusão do lado de fora. Dissociação que os centros e igrejas
daimistas de outras linhas sem preocupações comunitárias, em que
cada um volta para sua casa e para seu o trabalho após o hinário,
nunca tiveram. O certo é que: enquanto nos anos 80 os fardados do
cefluris do sul país eram encorajados a abandonar seus trabalhos
urbanos para irem para o Mapiá ou viver em comunidades semi-rurais
em torno das igrejas; nos anos 90, o discurso será de reintegração
social e familiar; e em 2000 vários dos que foram viver no Mapiá
nos anos 80 voltaram às suas cidades natais para que os filhos façam
faculdade ou devido a problemas de saúde. Hoje o modelo de
organização da igreja ceflurista já não se caracteriza mais essa
dicotomia estrutural entre comunidade e irmandade. Porém, o grande
problema do modelo ceflurista original não era a relação entre a
comunidade interna e a igreja de todos, mas sim entre a “federação
de famílias” e a ‘cooperativa’, ou melhor, entre os aspectos
‘familiar’ e o ‘produtivo’ da proposta do padrinho Sebastião.
A comunidade do padrinho Sebastião era uma ‘federação de
famílias’ – ao contrário das comunidades daimistas do sul.
Quando conheceu a comunidade do Céu da Montanha, em Visconde de
Mauá, ele disse: “A comunidade aqui do Alex (Polari) é melhor que
a minha” – se referindo não apenas a sustentabilidade material
da comunidade ao grau de responsabilidade individual das pessoas do
sul em relação aos seus conterrâneos. Aliás, o que há de mais
revolucionário e apocalíptico no padrinho Sebastião é sua
proposta de comunidade auto-sustentável na floresta – proposta
completamente abandonada hoje por seus seguidores. A evolução do
Céu do Mapiá de uma comunidade que aspirava à sustentabilidade ao
vilarejo rico, cujas principais atividades econômicas estão
associadas à prestação de serviços direta ou indiretamente
ligados ao turismo dá um estudo a parte. O certo é que, neste novo
contexto, tanto o antigo CEFLURIS perdeu seu sentido original, como o
seu modelo exportado e reproduzido pelo mundo a fora foi perdendo seu
valor de referência e hoje praticamente não existem comunidades das
igrejas associadas a esta linha de trabalho. A verdade é a própria
família do padrinho boicotou sua proposta de vida material integrada
à espiritual, gerando, desde o começo, a divisão atual entre
fardados e filiados. E esta segunda dicotomia, entre a proposta
comunitária e a proposta cooperativa, persiste até agora sob uma
forma de três comportamentos éticos diferentes.
Os
três comportamentos cefluristas se baseiam na dissociação da
tríplice estrutura que forma o Santo Daime: a igreja, a doutrina e o
sacramento. Há adeptos cefluristas que dão mais ênfase ao aspecto
institucional; outros enfatizam o aspecto doutrinário e uns poucos,
nos quais me incluo, consideram ser o sacramento, o elemento mais
importante. Os institucionalistas dão ênfase às regras
administrativas; os doutrinaristas, às normas litúrgicas e
ritualísticas; e o sacramentalistas, ao desenvolvimento da
consciência e são flexíveis diante das regras dos primeiros e das
normas dos segundos. Geralmente, os doutrinaristas criticam os
institucionalistas. Dizem que estão burocratizando a doutrina, que
querem administrar tudo e todo mundo e que, no fundo, só querem
mesmo o dinheiro (os doutrinaristas mais radicais são totalmente
contrários que se pague pelo sacramento). Os institucionalistas por
sua vez gostariam de associar os doutrinaristas e argumentam que já
não é possível um comportamento tradicional no mundo moderno, que
é preciso se modernizar, ser democrático, pagar mensalidade para
que o sacramento não seja vendido, etc e tal. Mas, no fundo, os
institucionalistas acham os doutrinaristas meio hipócritas e falsos,
que usam o rigor tradicionalista para esconder sua incapacidade de
mudança pessoal e social, presos que estão em uma rede de fofocas
paróquias. Ambas as concepções, a institucionalista e a
doutrinarista, são consumidoras de Daime. Apenas o sacramentalistas
entendem o Santo Daime como um processo de produção capaz de mudar
seus agentes. A igreja e a doutrina vieram de dentro do sacramento.
Mas, o Santo Daime para se desenvolver como um todo tem que integrar
os aspectos institucionais, doutrinários e de auto-suficiência. O
desenvolvimento exagerado dos dois tipos consumidores leva à
dependência dos grupos com a floresta.
Fundado
em 1997, o IDA-CEFLURIS também tem uma proposta tríplice, mas de
caráter mais amplo. Ele é: a) a entidade mantenedora da igreja do
Culto Eclético Raimundo Irineu Serra, do Céu do Mapiá; b) uma ONG
de filiação individual voltada para o desenvolvimento sustentado da
floresta amazônica (na verdade, o prefixo ‘IDA’, adicionado ao
antigo nome, significa Instituto de Desenvolvimento Ambiental); e c)
uma federação de filiação corporativa (igrejas, pontos, grupos).
Ou seja: os seguidores da linha do padrinho Sebastião são os únicos
que estão institucionalmente capacitados para exercer políticas
públicas, pois tem uma ONG ou um Instituto que os habilita a exercer
um papel público mesmo sendo uma entidade privada. Por outro lado, a
organização é também uma corporação formada para representar
muitas igrejas, formar quadros, fornecer orientação doutrinária e
espiritual – e não de forma federativa, mas de modo autocrático e
centralizador. E o resultado é que não desempenha bem nenhuma das
duas funções, nem de ONG voltada para o desenvolvimento ambiental,
nem função religiosa, assistindo a igrejas de todo mundo.
Assim
a instituição atual é herdeira tanto dos acertos como dos erros de
sua antecessora. A ideia de reunir religião, representação
política e autonomia econômica em uma única organização
persistiu. Mas também persiste a dicotomia interna do grupo. Hoje,
deve existir uma quantidade de ‘fardados-não-filiados’ cinco
vezes ou mais superior ao número dos que pagam mensalidade à
entidade que substituiu o antigo Cefluris. E esse é, em minha
opinião, a causa principal que gera tantos problemas – e não a
expansão internacional, o uso de outras plantas de poder ou o
contato com outras tradições espirituais: a absoluta falta de
controle do Cefluris sob seus fardados, que não prestam contas a
ninguém. A solução, no entanto, me parece bem simples: a criação
de federações de igrejas que assumam o trabalho doutrinário e
controlem diretamente seus fardados e a contratação de uma
auditória externa de planejamento estratégico, redefinindo os
objetivos e os projetos do Instituto de Desenvolvimento Ambiental
desvinculado de assuntos religiosos e aberto a outras comunidades
amazônica
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