BUDISMO NA VEIA
O grande tesouro de sabedoria e espiritualidade do Budismo é a meditação Vipassana. A técnica foi elaborada por Sidarta Gautama, o 1º Buda, há 2.600 anos. Como foi a primeira meditação, ela está na raiz tanto das meditações zen quanto das meditações visuais e mântricas das escolas tibetanas.
Vipassana significa “insight”, ver as coisas como elas realmente são. É a observação da experiência da percepção direta. E o princípio subjacente é a investigação e entendimento dos fenômenos manifestados nos cinco agregados: o apego à forma física, às sensações ou sentimentos, à percepção, às formações mentais e à consciência. Ou seja: tornarmo-nos conscientes das sensações do corpo; dos afetos individuais; da sintaxe da percepção; dos padrões coletivos de cognição do pensamento; e, finalmente, conscientes de nossa própria consciência, da consciência do contexto de enunciação da própria consciência. A técnica tradicional é dividida em duas etapas: Anapana, em que apenas concentra atenção em um ponto específico do corpo (o mais comum é a entrada e a saída de ar das narinas); e Vipassana propriamente dita, que consiste em movimentar a atenção pelo corpo no sentido ascendendo e descendente, como um scanner. Não há mantras, visualizações ou respiração específica, mas sim a observação da respiração (esteja ela profunda ou rápida).
A meditação Vipassana foca a interconexão entre mente e corpo, a qual pode ser experimentada diretamente por meio da atenção disciplinada às sensações físicas. Essa técnica de meditação, utilizada por dez dias consecutivos dentro do nobre silêncio e de uma dieta vegetariana de baixa caloria, leva a observação da mente pela consciência como algo objetivo, externo à percepção.
Em outras técnicas, há uma expansão da consciência que extrapola os limites do ego, mas essa permanece dentro da mente. A consciência em estado de percepção ampliada acessa níveis profundos do inconsciente, mas permanece dentro dos limites da estrutura mental. O que acontece com a técnica Vipassana é diferente: através da focalização da atenção na respiração (fronteira sensorial entre o intencional e o involuntário), acessam-se os padrões profundos do inconsciente, vistos pelo lado de fora.
É a fala que organiza a memória com sua narrativa. Com ‘o nobre silêncio’, há um aumento da memória e sua reorganização fora dos padrões discursivos. Não apenas lembramo-nos de mais coisas, como também a forma como nos recordamos dos eventos não é tão ego-centrada. Com silêncio, a memória não funciona mais por lembranças discursivas, mas sim por recordações visuais.
As sensações de dor e sofrimento emocional devido às restrições perceptivas do enorme esforço cognitivo voltado para atenção sobre o corpo e a respiração fazem emergir desejos de aversão e as sensações de bem estar corporal fazem emergir desejos de cobiça (não só sexuais, mas de repetição de situações prazerosas).
Quando temos experiências ruins, desejamos não repeti-las e surge a aversão; quando temos experiências boas, desejamos repeti-las e então surge a cobiça. Normalmente, em outras técnicas ou terapias com foco sensorial, esses desejos de repetir experiências prazerosas são vistos como positivos, mas quando vistos objetivamente na Vipassana, eles se mostram obsessões neuróticas tão nefastas quanto às aversões inconscientes que nos impedem de aceitar a vida.
Aliás, esse é um ponto importante em dois aspectos. Primeiro: o Budismo prescreve a ‘equanimidade’ ou a capacidade de entender o lado positivo das experiências ruins e o lado negativo das experiências boas, mas esse equilíbrio só pode ser desenvolvido na prática através da técnica da Vipassana.
A prática da meditação Vipassana traz toda a hermenêutica budista embutida em si. A ideia de não-reação, por exemplo, perpassa toda a doutrina budista; e na Vipassana não se deve reagir nem às dores, nem às outras sensações, sentimentos ou percepções – apenas observar.
A meditação treina na prática seu praticante na noção aceitação budista. E o mais importante: o Budismo é a única hermenêutica religiosa que compreende (ou que deseja compreender) criticamente as experiências psicológicas positivas e, principalmente, que prescreve a suspeita em relação à transcendência.