domingo, 30 de novembro de 2014

Narrativas Pré-históricas



A imaginação investigando o imemorial

1. Mito + Realidade
Escrever por aforismos ou pensar a marteladas, por vezes, nos torna pensadores assistemáticos, deixando lacunas e pontas soltas.
Recapitulemos, pois.
Partiu-se aqui da metapoética de Gaston Bachelard e de seu desafio. Em um segundo momento, aceitou-se a provocação e imaginaram-se conceitos resultantes da inter-relação dos quatro elementos entre si. Em seguida, após uma breve pausa para analisar o simbolismo do útero e do vinho, aplicou-se alguns desses conceitos a um universo empírico em particular: o preparo da Ayahuasca. Procedeu-se, então, a uma descrição subjetiva dessa experiência cognitiva, ressaltando a presença dos quatro elementos durante todo percurso.
Devaneando mais um pouco, chegou-se à refutação científica da hipótese do matriarcado arcaico e à necessidade de um reajuste elemental entre os gêneros, com os homens se reconectando ao corpo e às emoções; e as mulheres resgatando o sagrado feminino e sua intelectualidade. Mas, a demonstração da inexistência de um matriarcado arcaico (na memória histórica e social) não convenceu aos que acreditam nela (como memória arquetípica). O matriarcado arcaico não existiu do ponto de vista histórico, mas existe do ponto de vista psicológico. O matriarcado arcaico é uma lembrança do inconsciente coletivo, símbolo do útero histórico, de tempo anterior ao dilúvio e à memória.
E, não podemos cometer o mesmo erro do primeiro Bachelard separando radicalmente a verdade da imaginação. É preciso sobrepor à realidade histórica (o matriarcado nunca existiu) com a realidade mítica (o matriarcado está eternamente em nosso passado presente agora).
Para se tecer um texto metapoético, portanto, o corte epistemológico deve ser seguido de uma costura hermenêutica, em que a imaginação, depuradas de suas ilusões, ajude a construção científica e simbólica do sentido, da interpretação. E para investigar o inconsciente arcaico, a imaginação simbólica deve proceder a uma releitura das narrativas mitológicas, fazendo associações cognitivas entre os discursos teóricos, poéticos, esotéricos, tradicionais e filosóficos. E, dessa convergência discursiva e narrativa, nascem novas imagens, novos conceitos, novas ideias. Para tanto, é preciso libertar os simbolismos das tipologias nos quais eles foram confinados. É preciso deixar o simbolismo fluir como devaneio.

2. O cru e o cozido
O maior e mais completo estudo sobre a universalidade do mito é a tetralogia ‘Mitológicas’ de Lévi-Strauss. Após, estudar, durante 20 anos, diferentes mitologias ameríndias, o antropólogo estruturalista passou a crer, senão na unidade primordial de todos os mitos, pelo menos da universalidade da experiência mítica. Lévi-Strauss não apenas explicou cientificamente o significado cultural do mito (em suas particularidades linguísticas, econômicas e hereditárias), mas pôs-se a pensar (parcialmente) como ele.
Joseph Campbell, o conhecido mitólogo que levou as ideias de Jung aos campos da arqueologia, antropologia e história das religiões, que elaborou um modelo universal segundo o qual todos os grandes mitos fundadores das culturas humanas seriam, em última análise, uma única narrativa: o 'monomito' ou a jornada do herói. Campbell parte do geral (do inconsciente coletivo, dos arquétipos) para o particular (os mitos culturais específicos) e é universalista e cultua o sagrado como uma epifania transcultural. Enquanto a antropologia estruturalista, no sentido contrário, descreve o aspecto local das narrativas míticas dentro de um quadro aberto de referências linguísticas, alimentares, culturais. Ambos abordam 'o todo e as partes' – mas de modo bem diferente, inverso e até complementar em alguns aspectos. Os estruturalistas são mais indutivos; os mitólogos, mais dedutivos.
Lévi-Strauss chega à mesma conclusão que os mitólogos, mas por caminhos muitos mais tortuosos, fragmentados e complexos: a análise estrutural de 813 mitos com algumas variantes, de culturas nativas das duas Américas. E, ressalte-se também que ideia de um único mito arcaico de dimensões continentais é bastante diferente da noção de monomito universal de Campbell e da jornada do herói. Os mitólogos, no entanto, se deixam possuir pelo mito sem perceber e acabam tecendo generalizações etnocêntricas, adequando outras mitologias à sua. Para estudar um mito, é necessário se distanciar culturalmente dele e vê-lo de fora. E a importância da experiência mítica de um homem desencantado, como Lévi-Strauss, é justamente que ele vê o mito ao mesmo tempo como cientista e como selvagem, sem abrir mão de nenhum dos dois lados.
A conclusão de Strauss de que todos os mitos são um só, não é só devida às semelhanças de personagens e ações dramáticas nas diferentes narrativas, mas, sobretudo, ao fato das estruturas narrativas se perpetuarem tendo a si mesmo como referência, sempre contando sua própria história, mesmo com diversas variações de armadura, de código e de tema – como bem observou Greimas em sua homenagem teórica ao antropólogo (2088, 61-109).
O cru e o cozido é o primeiro dos quatro livros de Mitológicas[1] e trata do mito de referência o ‘desaninhador de pássaros’, denominado de M1, que serve como fio condutor de todas as análises que se seguem.
O mito foi colhido pelo próprio Lévi-Strauss quando esteve no Brasil, a partir de um canto conhecido por xogobeu pertencente ao clã paiowe dos índios Bororo do Mato Grosso. O mito conta a história de um incesto cometido por um índio com sua mãe. Ao descobrir a transgressão, o pai obriga o filho a realizar para se redimir várias missões impossíveis. Com a ajuda de uma avó feiticeira, que ensina ao neto a se transformar em animais, o índio consegue realizar todas as tarefas e no final se vinga do pai.
A narrativa mítica é bastante longa, muito fragmentada e se mistura com outras, principalmente com as narrativas de roubo do fogo de animais-donos-do-fogo pelos homens, tema bastante frequente na mitologia ameríndia brasileira: a onça para os jês, os corvos para os Guarani, o jacaré para os Yanomami, o urubu-rei para os Sapés.
Em algumas dessas lendas, o fogo não é furtado pelos homens, mas sim dado em troca de uma aliança e de um casamento do herói nativo com a filha de seres encantados. No mito da origem do fogo Xerente, o M124, por exemplo, (em que também há o incesto com a mãe e as provas impossíveis impostas pelo pai tirano), o fogo é um presente do casamento e da aliança entre os homens e os seres mágicos.
As Mitológicas começam e terminam com o mito de obtenção do fogo de cozinha, que é também um mito de origem da cultura humana. No último volume da série (O homem nu), Lévi-Strauss mostra como o motivo do “desaninhador de pássaros”, que enquadra a origem do fogo nos mitos Bororo e jê discutidos no primeiro volume (O cru e o cozido), é a versão semanticamente atenuada de um macro-esquema mítico de difusão continental. Os protagonistas desse “mito único”, ligados entre si por uma relação de afinidade matrimonial, são a raça humana, terrestre, e um povo celeste, os donos do fogo. Para resumir um longo raciocínio: o fogo, fundamento da cultura, é posto como correlato da aliança de casamento, fundamento da sociedade. Cozinhamos a carne que comemos assim como, e porque, não comemos de nossa própria carne. (Viveiros de Castro, 2000).

Enquanto os antropólogos, como Eduardo Viveiros de Castro, suspeitam que o fogo, a aliança e o casamento representam a entrada do homem branco na vida indígena ou a sua previsão mítica; alguns mitólogos menos rigorosos podem considerar que os ‘homens do céu’ são seres alienígenas. O fato que a descoberta do fogo desencadeou um desequilíbrio no universo humano. O fogo, nessa perspectiva antropológica, representa a tecnologia que transforma a Natureza (o cru) em Cultura (o cozido). Os homens praticamente não caçavam nem comiam carne antes do advento do fogo controlado e até hoje ainda não têm a anatomia e fisiologia adequadas para serem comedores de carne.
O advento do fogo nos transformou, não apenas em animais carnívoros, mas, sobretudo, em uma nova espécie predadora desequilibrando a antiga cadeia alimentar e o meio ambiente. A carne foi nosso fruto proibido e o fogo, nosso pecado ambiental.
3. O Dilúvio
O tema do dilúvio, por exemplo, está intimamente ligado ao do matriarcado arcaico e também é objeto de discussão entre cientistas (que o consideram um evento localizado) e mitólogos de diferentes tipos, que acreditam em uma inundação de proporções globais.
O dilúvio aparece em narrativas em americanas, asiáticas, sumérias, assírias, armênias, egípcias e persas, entre outras. Os registros históricos mais antigos que se conhece têm cerca de 4.500 anos. Em todos os continentes existem narrativas míticas tradicionais que aludem à ocorrência de um dilúvio global com paralelismos espantosos entre diversas culturas que não tiveram nenhum contato entre si, tendo sido documentadas mais de 250 em contextos culturais diferentes.
As narrativas mais conhecidas são as da Bíblia e do mito platônico de Atlântida. Mas, há estórias africanas, asiáticas e americanas, bem como lendas ocidentais mais antigas com elementos semelhantes.
Possivelmente, a estória de Noé é uma adaptação hebraica de uma narrativa bem mais antiga, um episódio da lenda suméria de Gilgamesh, que conta a estória de Utanapistim, que sobreviveu ao dilúvio construindo uma arca.
No hinduísmo, Matsya, uma encarnação de Vishnu (um Avatar) na forma de um peixe, avisa ao rei Manu do dilúvio e o aconselha a construir um barco.
A mitologia grega relata um grande dilúvio feito por Poseidon e Zeus para pôr fim à humanidade, uma vez que os homens haviam aceitado o fogo roubado por Prometeu do Olimpo. Deucalião e Pirra sobreviveram porque construíram uma arca a conselho de Prometeu.
Na África, o dilúvio resultou de uma briga de casal dos deuses primordiais Olokun, a Senhora dos Oceanos; e Olorun, Senhor dos Céus. Obatalá, deus solar filho do céu, ajuda os homens a sobreviver e ao pai a aprisionar a mãe no fundo dos mares.
Nas tradições da América pré-colombiana, Mapuche, Asteca, Inca, Uru e Maia também existem relatos diluvianos. No Popoc Vodul, por exemplo, livro sagrado recente dos Maias-quiché, escrito no período pós-clássico,  a criação da humanidade tem três momentos: primeiro são feitos homens de barro, mas como são frágeis, são substituídos por homens de madeira; esses são muito vaidosos, não adoram os deuses, e por isso são dizimados por um dilúvio enviado pelo deus Huracán; e, finalmente, são feitos atuais homens de milho.
Na interpretação cabalística do velho testamento também há três involuções: a queda de Adão e Eva, que marca a descida do mundo arquetípico das emanações ígneas (Atzluth) para o mundo aquático da criação das almas andrógenas (Briah); a destruição da torre de Babel, que representa a passagem para o mundo das formas aéreas (Yetzirah), para multiplicidade de linguagens mentais e para divisão entre os sexos; e o dilúvio de Noé, que corresponde à chegada ao mundo material (Assiah).
Há atualmente muitos esoterismos ‘involucionistas’ que seguem esse modelo de criação descendente do universo em quatro estágios/dimensões. Alguns acreditam que viemos de outros planetas ou dimensões que eram matriarcais. A cultura racional do livro Universo em Desencanto, por exemplo, fala de um tempo em que os homens não falavam e os úteros eram órgãos de comunicação, e assim, as mulheres centralizavam as decisões e governavam telepaticamente os homens. Nesses casos, não se trata de negar ou afirma a existência de um período histórico matriarcal antes do dilúvio, mas sim de se recordar de um tempo mítico antes da história.
Entre todas as narrativas sobre involução do sutil para o denso, a lenda Hopi de criação é bastante significativa:
No início dos tempos, uma faísca de consciência se incendiou na grande noite do espaço infinito. Esta luz era Tawa, o espírito do Sol.
Tawa então criou o Primeiro Mundo: uma enorme caverna povoada unicamente por insetos e governada pela Avó Aranha ou Kokyang Wuhti – a tecelã dos destinos, velha como o tempo e jovem como a eternidade, mãe de tudo na terra com quem se ela se funde e se confunde.
Observando como se moviam os insetos, Tawa achou sua criação pouco inteligente, incapaz de Lhe compreender e dar louvor.  Então lhes enviou a Avó Aranha que disse aos insetos:
- Tawa, o espírito do Sol que os criou, está descontente com vocês, porque não compreendeis em absoluto o sentido da vida. Assim, me foi ordenado que os encaminhassem ao Segundo Mundo, que está acima do teto da caverna.
Os insetos então começaram a escalar as paredes da caverna em direção ao Segundo Mundo. A subida era tão alta e tão penosa que, antes de chegarem ao Segundo Mundo, muitos dos insetos já haviam se transformado em animais serpentes, lagartos e dragões.
Tawa os contemplou e disse:
- Esses répteis são tão estúpidos quanto os insetos. Também não são capazes de compreender o sentido da vida.
Novamente pediu a Avó Aranha para que os conduzisse para o Terceiro Mundo – em um nível acima na caverna. E no transcurso desta nova viagem, alguns animais se transformaram em homens. No Terceiro Mundo, a Avó Aranha ensinou aos homens a tecerem e as mulheres a fazerem potes. Ela também instruiu convenientemente e na cabeça dos homens e mulheres começou a despontar uma vaga ideia sobre o sentido da vida. Entretanto, bruxos malvados, extinguiram a luz e cegaram os humanos. As crianças choravam, os homens guerreavam e se lastimavam, haviam perdido o sentido da vida.
A Avó Aranha voltou e lhes disse:
-  Tawa, o espírito do Sol, está muito triste com vocês, porque perderam a centelha de luz que havia brotado em suas cabeças. Agora, vão ter que subir ao Quarto Mundo. Mas desta vez, deverão encontrar o caminho sozinhos.
Os homens, perplexos, se perguntavam como poderiam subir sozinhos para o Quarto Mundo. Em fim, um ancião tomou a palavra:
- Vamos enviar nosso amigo Sapo como mensageiro para explorar o Quarto Superior e nos contar o que há por lá.
O Sapo pulou até o alto da caverna e encontrou no centro de um grande deserto, uma linda mulher, toda vestida de preto. Reconheceu então aquele personagem: era a Morte.
- Venho da parte dos homens que habitam o mundo debaixo deste – disse o Sapo. - Eles desejam compartilhar contigo este país. Isso é possível?
A Morte refletiu por alguns momentos.
- Se os homens querem vir, que venham!  Mas, como comigo tudo é passageiro, eles só durante algum tempo. Depois, só os que se desenvolverem, vão poder voltar ao Terceiro Mundo, os demais serão dados como alimento aos lagartos do plano debaixo e voltarão a serem insetos.
O Sapo voltou ao Terceiro Mundo e contou aos homens o que ouvido.
- A Morte aceita compartilhar com vocês o Quarto Mundo, comunicou, mas depois de um tempo apenas os que se desenvolverem poderão voltar.
Então os homens escalaram a Árvore que havia no centro do Terceiro Mundo. Nada levavam consigo, estavam nus, alegres como crianças, tão desprovidos como no seu primeiro dia de vida.
- Sejam prudentes e corajosos para voltarem quando chegar o dia! - recomendou a Avó Aranha - E não se esqueçam de que sou sua Mãe e que Tawa, o espírito do Sol, é seu pai!
Entretanto os homens já não mais a escutavam, pois já tinham alcançado às alturas.
Ao chegarem ao Quarto Mundo, os homens mortais construíram povoados, plantaram mandioca, milho, melões, fizeram jardins e hortas.
E desta vez, para dar sentido às suas vidas, se lembrarem de quem eram, de onde vieram e para onde estão indo – os homens inventaram as lendas e estórias sagradas, em homenagem a grande tecelã dos destinos.
4. Do mito ao tipo
Na África antiga, quando se nascia nas praias, se era filho de Yemanjá; se nas montanhas, de Xangô; e assim por diante. Os orixás eram ligados aos locais e não às pessoas individualmente. Por isso, eles eram passados de pai para filho. No Brasil, com a mistura das etnias, foi que surgiu o orixá como tipo psicológico individual e as referencias simbólicas espaciais foram colocadas em segundo plano.
Também na astrologia antiga não havia horóscopos individuais. As previsões eram meteorológicas e sobre guerras; e o mesmo o oráculo dos reis não era voltado sua vida pessoal, mas para seu reinado.
O simbolismo dos quatro elementos inspirou a tipologia dos quatro temperamentos hipocráticos (melancólico, fleumático, colérico e sanguíneo), até hoje utilizados pela medicina antroposófica; e a moderna tipologia psicológica junguiana (sensorial-motor, emocional, intuitivo e mental). Hoje vários tipos de simbologias tradicionais sobrevivem através de tipologias psicológicas: animais de poder, signos astrológicos chineses, kins do calendário maia.
E, talvez, um dos mais interessantes seja a tipologia do Eneagrama, desenvolvido por Claudio Naranjo, a partir das ideias de Gurdjieff sobre o simbolismo tradicional sufi da estrela de nove pontas. O místico armênio G. Gurdjieff elaborou um sistema de aprendizado que utilizava um modelo de síntese do Universo e do Homem, visto como um processo de três níveis em três etapas. A aplicação deste modelo ao corpo humano resultava na teoria das três oitavas. As atividades biológicas de alimentação, respiração e percepção através de vibrações audiovisuais são assim os três principais processos da máquina humana a serem desautomatizados. Esses processos por sua vez seriam interdependentes dentro de uma grande oitava.
Nesse modelo, o corpo humano é uma máquina biológica com quatro entradas e quatro saídas, todas relacionadas com trocas com o meio ambiente. E realizar a grande oitava através da desmecanização das oitavas menores, para Gurdjieff e seus seguidores, é a principal finalidade da existência humana no ecossistema, nossa missão fotossintética e espiritual: a produção do hidrogênio número um (o ouro alquímico).
Nesta lógica, aqueles que não conseguem chegar a estágios de consciência superiores, capaz de produzir essa refinada substância alquímica (muitas vezes comparadas aos sentimentos nobres como o amor) terão seus espíritos fatalmente reabsorvidos pela Lua, serão ceifados como árvores estéreis pelo universo. Gurdjieff cultivava a ideia de que apenas através do desenvolvimento tríplice integrado pode o homem construir uma alma e escapar da morte.
Seu programa de descondicionamento social se chama ‘Quarto Caminho’ justamente porque realiza uma síntese do caminho do faquir (o controle sobre o corpo/terra), do caminho do monge (devoção emocional/água) e do caminho do iogue (o poder da mente/ar), mantendo o elemento Fogo invisível em seu sistema ternário, como matéria-prima e produto final de sua alquimia musical.
Certo dia, diverti-me bastante com as críticas de Olavo de Carvalho a Gurdjieff[2], imaginando que, apesar de depreciativas e desqualificadoras, o próprio Gurdjieff concordaria com elas plenamente. Gurdijieff se considerava um relevador de segredos tradicionais e se identificava com os mitos rebeldes de Lúcifer e Prometeu. De nada vale, portanto, chama-lo de diabólico ou satanista, pois isso seria um elogio para quem acredita que, se não conseguir a energia necessária para fugir, será devorado.
Outra característica era que Gurdjieff adorava escandalizar religiosos. Carvalho ficou particularmente chocado com a ideia de que, durante a Santa Ceia, Jesus Cristo não deu pão e vinho aos seus apóstolos, mas sim a própria carne e o próprio sangue – a exemplo dos cultos arcaicos para Dionísio, deus grego do vinho, e de Osíris, deus solar egípcio - em que os deuses eram devorados – através de um sacrifício humano ou de um animal que os representava - pelos discípulos durante o ritual para depois ressuscitar (na pele de outro sacerdote do culto).
Porém, a própria existência desses cultos trágicos aos deuses solares arcaicos – a que se atribui o nascimento do teatro – é incerta e de difícil comprovação. Na verdade, a Santa Ceia é uma reinvenção do ritual da pascoa judaica, celebrando a fuga dos judeus do Egito, em que o pão e o vinho já cumpriam o papel de comunhão espiritual da eucaristia cristã. Nunca houve canibalismo ou culto trágico a deus solar – essas leituras só se tornaram possíveis após muitos séculos de miscigenação ideológica. A estória, por mais sugestiva que seja, é apenas uma provocação absurda.
Lembra-nos de outra estória igualmente absurda e provocativa: a ideia de parricídio arcaico de Freud, no livro Totem e Tabu (1969), segundo a qual o complexo de Édipo é a repetição neurótica do assassinato de um pai por seus filhos em tempos imemoriais.
Tanto Freud quanto Gurdjieff tentam explicar o comportamento cristão e a compulsão da culpa patriarcal com fábulas teóricas. O mesmo pode ser dito (mas em outro sentido) da fábula judaico-cristã da Queda de Adão e Eva, que coloca a culpa na mulher; ou nas lendas de dissociação do fogo carnal do fogo divinal de inúmeras sociedades. São apenas estórias para explicar o que não entendemos.
Ceuci era uma índia virgem que engravidou misteriosamente. Como não sabia o nome do pai de seu filho, foi forçada a tê-lo muito longe da aldeia, em terras estranhas. A índia deu ao menino o nome de Jurupari, mandado pelo sol para reformar os costumes da terra e também encontrar nela uma mulher perfeita com quem o sol pudesse casar.
Já ao sair do ventre de sua mãe, falou-lhe: "Não tenha receio mãe: eu venho de Tupã, que é meu pai, com a missão de reformar os costumes dos homens. Venho trazer a lei e o segredo, que ainda não existe nas tabas: por isso foi adequado o nome que me deste, Jurupari. Boca fechada, sigilo!".
Quando o Jurupari chegou a terra, as mulheres é que mandavam. De imediato, retirou-lhes o poder, transferindo-os para os homens, sob o argumento que o poder feminino contrariava as leis do Sol, a divindade máxima que era masculina.
Jurupari também estabeleceu uma nova e rigorosa distribuição de trabalho: os homens deveriam ir à guerra, à caça e pesca e às derrubadas da mata. As mulheres deveriam dedica-se à cerâmica, tecelagem, transporte de carga, trato dos filhos e agricultura. Além disso, Jurupari obrigou as jovens da tribo a manterem a virgindade até a primeira menstruação; condenou o homossexualismo; o incesto e o adultério que eram punidos com a morte. E para que os homens aprendessem a viver sem mulheres, Jurupari instituiu grandes festas que só eles podiam tomar parte. Inconformada com as leis e saudosa do filho, Ceuci resolveu, certa noite, dar uma espiadinha no cerimonial dos homens. Furtivamente, então, entrou na "Casa dos Homens", mas logo foi descoberta e morta pelos guerreiros do próprio filho.
Jurupari foi chamado às pressas para ver a mãe, mas não pode fazer mais nada, porque não podia abrir precedentes em suas leis. “Minha mãe morreu porque desobedeceu à lei de Tupã. A lei que eu vivo a ensinar. Não posso ressuscita-la, mas posso recomendá-la a meu pai que vai recebê-la de braços abertos lá no céu”.  E Ceuci subiu aos céus, em um arco-íris, transformou-se na estrela mais resplandecente da constelação das Sete Estrelas.
Jurupari veio a mando do Sol para reformar os costumes dos homens e também encontrar a mulher perfeita com quem o Sol pudesse casar. Não a encontrou e jamais encontrará. Talvez porque nenhuma mulher aceitará plenamente suas leis, talvez por ter renegado a própria mãe em nome delas, o herói solar é prisioneiro de sua missão. Ou maldição, pois Jurupari só regressará ao céu no dia em que tiver encontrado seu amor novamente.
A lenda de Jurupari, de origem tupi, traz alguns elementos simbólicos para nossa compreensão. O primeiro é que, em determinado momentos surgiram as leis e, consequentemente, o poder patriarcal entre os índios. As leis institucionalizavam a divisão do trabalho entre os gêneros e previam punições às transgressões. A maior de todas as transgressões, penetra no domínio proibido do sagrado masculino, foi realizada pelo poder feminino, o que levou a sua punição e posterior sublimação. O resultado, no entanto, é a infelicidade do herói solar, cujo destino é viver sem a metade que o completa e o une à totalidade.
Reparem que, em relação a Adão e Eva, a curiosidade Ceuci não é um pecado original feminino, não há o mal (a serpente). Também não há culpa e remorso, mas sim infelicidade trágica de Jurupari ao ter que cumprir as próprias leis. E, por outro lado, em relação a historietas macabras de Freud e Gurdjieff, não há o complexo de Édipo: os homens não matam o pai, mas sim a mãe. Morta e sublimada como mãe celeste, Ceuci é uma representação sagrada da mulher patriarcal.
5. Édipo tupiniquim
Muito já se escreveu sobre o mito de Édipo: Freud, Malinowski, Lévi Strauss, Lacan, Foucault. O Édipo tornou-se um ‘mito teórico’ dos intelectuais ocidentais. Uma narrativa para sociedade ocidental explicar sua culpa inconsciente de dominar todos e destruir tudo. E muito ainda se escreverá a respeito do mito grego, uma vez que existem aspectos astronômicos e políticos históricos na narrativa (CARVALHO, 1984) que escaparam ilesos da guerra travada entre psicanálise e a análise estrutural.
O termo ‘Complexo de Édipo’ foi criado por Freud e designa o conflito entre desejos amorosos e hostis que a criança experimenta com relação aos seus pais. Para Freud, um desejo edipiano é um fenômeno universal psicológico inato (filogenético) dos seres humanos e a causa de grande culpa inconsciente de “dirigir nosso primeiro impulso sexual para nossa mãe e nosso primeiro ódio e nosso primeiro desejo assassino contra nosso pai”. O complexo é formado pela repetição neurótica dos crimes de nossos antepassados, pelos assassinatos e incestos que cometemos para aprender a ser humanos e rejeitarmos nossos instintos animais, fundando assim a cultura, nossa humanidade.
Para antropologia, o simbólico não é resultante do recalque dos desejos e instintos; o mito não é uma lenda ou fabulação, mas sim uma organização da realidade a partir da experiência sensível. Levi Strauss reconhece que a proibição do incesto é uma condição necessária da cultura, mas não como culpa inconsciente e sim como um sistema de parentesco, um sistema de troca entre as famílias de um mesmo grupo. Para Strauss, o interdito do incesto é uma regra cuja função principal é mais obrigar a dar a mãe e a irmã a outro do que simplesmente impedir de se ter relações com elas.
Assim, enquanto Freud crê no complexo de Édipo e na sublimação dos instintos, Lévi-Strauss prefere descrever o tabu do incesto matrilinear como o centro de um sistema de recorrências involuntárias que tem como estrutura a perpetuação das relações de parentesco, isto é: a reprodução de um modelo de trocas sexuais.
Além disso, o interdito do incesto matrilinear é uma intercessão entre os domínios da natureza e da cultura. A Natureza é universal, espontâneo e inconsciente; enquanto a Cultura corresponde ao conjunto das regras relativas e particulares a cada lugar. Há diversas culturas e uma única natureza. E a proibição do incesto é a única regra universal, presente em todas as culturas humanas.
A proibição, como se sabe, também gera a transgressão. E, ao mesmo tempo em que funciona como um impedimento para a maioria, o interdito do incesto também provoca atração de alguns poucos transgressores. E esse é contexto preliminar do mito da conquista do fogo: o incesto e a expulsão do herói solar por seu pai. O herói, no entanto, enfrenta e vence os seres encantados, casa-se com eles e recebe o domínio do fogo. Então, dono de grande poder, volta à sua terra e mata o pai, a mãe e todos que o humilharam no passado. O mito assim tanto prescreve o tabu como sua transgressão heroica e destrutiva. E esses transgressores dos limites entre natureza e cultura estão destinados a se tornarem senhores do fogo e da guerra. E essa armadura narrativa do mito ameríndio engendrada por Lévi-Strauss pode ser aplicada a outros mitos de origem ocidentais, como a tragédia de Édipo, o drama de Percival ou mesmo a estória de Adão e Eva.
O trabalho de Lévi-Strauss teve (e tem) uma repercussão gigantesca. Formou-se uma longa tradição acadêmica de estudos sobre a origem do fogo em ameríndios brasileiros, mais um ‘mito acadêmico’: Roberto Da Matta estudou a origem do fogo na versão dos Timbiris; Terence Turner escreve sobre o mito do fogo Kaiapó; Clastres estudou a versão Guarani do mito; Betty Mindlin (2002) faz um extenso levantamento sobre os mitos ameríndios do fogo e seus estudos principais. Segundo esses estudos, o aparecimento do fogo e dos deuses solares entre os nativos das Américas foi posterior ao dilúvio, enquanto nas lendas clássicas ocidentais o advento do fogo foi anterior à catástrofe. Aliás, o roubo do fogo foi ‘o’ motivo do dilúvio ser enviado como castigo dos deuses em várias mitologias ocidentais.
E o mais importante: o que chamamos de 'matriarcado' é, na verdade, o período que antecede ao advento do fogo.


[1]O cru e o cozido’ publicado na França em 1964; ‘Do mel às cinzas’ (1967); ‘Origens das maneiras à mesa’ (1968); e ‘O homem nu’ (1973).
[2]    www.olavodecarvalho.org/avisos/Quem_Gurdjieff.pd

Estudos Cabalísticos




1. A Árvore da Vida
Mircea Eliade (1993, 213-265) demonstra a universalidade do simbolismo vegetal da Árvore da Vida em diferentes mitologias: como árvore da imortalidade e da regeneração, como árvore-imagem do cosmo, como altar ao ar livre, e, finalmente, como Axis Mundi, um centro do mundo e suporte do universo, em que o tempo se verticaliza permitindo a passagens para outros mundos, seja infernal ou celestial.
A árvore cabalística, no entanto, é a mais complexa e abrangente de todas essas representações. A Árvore da Vida é um diagrama da estrutura do universo da cabala hebraica de tempos imemoriais, que os ocultistas e bruxos dos séculos XIX e XX transformaram em um eixo arquetípico vertical, um centro simbólico sobre o qual se organizam os diversos níveis da manifestação. A árvore, nesta versão, não forma um sistema fechado; ela é um método de correspondência universal ou uma chave analógica para decifrar outros sistemas simbólicos.
Segundo a tradição, a árvore cabalística foi ensinada pelos anjos aos homens para que eles conseguissem voltar ao paraíso primordial. Para outros, ela foi recebida por Set, o terceiro filho de Eva; ou também entregue a Abraaão por Melkisedk. Há também versões de que ela diretamente ditada por Jeová a Moisés, durante os 40 dias no monte Sinai. Do ponto de vista histórico, no entanto, sabemos que o símbolo da árvore cabalística, como tradição oral do misticismo hebraico, data da época do segundo cativeiro babilônico, sendo uma espécie de adaptação do simbolismo astrológico dos caldeus ao monoteísmo judaico. Por muitos séculos, ela foi transmitida oralmente como um tipo de exegese mística do Torah até que, por volta de 100 d.C., surgiram o Sepher Yetzirah e o Zohar – livros tradicionais que tratam do diagrama da árvore. Desde então, a árvore cabalística teve vários ciclos distintos dentro da tradição judaica, com características bastante diferentes (o ciclo mágico da floresta negra, o ciclo filosófico especulativo da Espanha no século XII, o ciclo monástico de Safed dirigido por Isaac Luria), mas só se popularizou quando foi apropriada e universalizada pelos ocultistas nos séculos XIX e XX (principalmente Eliphas Levi e Alesteir Crowley). 
Muitos cabalistas da tradição hebraica criticam a apropriação feita da Árvore da Vida pelos ocultistas. Mas a verdade é que, se os esotéricos beberam na tradição hebraica para elaborar sua própria versão universalista do simbolismo tradicional, o misticismo judaico também se reciclou e influenciou com a abordagem ocultista e, mais recentemente, com o desenvolvimento da psicologia analítica. Um exemplo atual desta recíproca é Z’ev Ben Shimom Halevi (1992), um cabalista genuinamente hebraica fortemente influenciada pelo esoterismo e por Jung.
No diagrama da árvore, as dez Sephiroth (plural de Sephirah) são esferas de energia em que a manifestação se desenvolve. Cada sephirath está contida na anterior e contem, em si, a possibilidade da próxima.
A Árvore da Vida
Kether ­ A Coroa, onde o Incognoscível se manifesta como uma luz estática e apolar, a chama eterna da vida, o centro de todos os círculos. O ponto.
Chokmah ­ A Sabedoria corresponde à luz que entra em movimento e se torna uma força cinética. É representado geometricamente pela reta ou pelo círculo. É a primeira expansão do universo e está no topo da coluna da misericórdia.
Binah ­ A Inteligência, onde a força encontra resistência ao seu movimento e gera a forma, representada pelo triângulo ou prisma. É a primeira contração do universo e está no topo da coluna da severidade.
Cheseed ­ A Bondade, esfera onde, equilibrando as restrições impostas pela forma, a manifestação se realiza através da misericórdia divina. É a segunda expansão do universo. Essa esfera é simbolizada pelos deuses jupiterianos, como Zeus e Xangô.
Geburah ­ A Severidade, esfera onde a força, seja física ou moral, se manifesta com energia e impetuosidade. É a segunda contração do universo. É simbolizado pela Espada e pelos deuses guerreiros, como Ares e Ogum.
Tiphareh ­ A Beleza, esfera que harmoniza a contradição ética entre a severidade e a clemência. Ela é geralmente representada pelos deuses solares e redentores, que se sacrificam em benefício ao Todo.
Netzach ­ A Eternidade, esfera que representa os sentimentos e os instintos, o fogo sexual e o planeta Vênus. É a última expansão do universo.
Hod ­ A Reverberação, esfera que representa o pensamento consciente e a mente concreta e o planeta mercúrio, e é a última contração do universo.
Yesod O Fundamento, esfera que representa a Lua e a essência da vida orgânica, o duplo­etéreo.
Malkuth ­O Reino, esfera que representa a essência inorgânica da materialidade, a imagem sensorial da realidade, o planeta Terra, o corpo físico concebido dentro do mundo material.

Temos, portanto, uma série de dez círculos concêntricos, uns dentro dos outros, mantendo uma relação de polaridade em função à esfera anterior que o engloba e também em função à esfera que o contem em seguida. E esse conjunto de círculos pode ser disposto de vários modos.
As disposições ‘por três colunas’ verticais (a severidade ou contração, o equilíbrio e a graça ou expansão) ‘por três tríades’ horizontais (um triangulo voltado para cima e dois para baixo) são as mais comuns e dão ao iniciante uma visão do funcionamento geral da árvore como símbolo integrado de outros símbolos.
Nessa disposição, os mundos cabalísticos aparecem como níveis: o primeiro triângulo, o voltado para cima, está no mundo das emanações arquetípicas; a segunda tríade, o primeiro triângulo invertido, representa o reflexo do primeiro mundo da criação, governado por Arcanjos; e a terceira tríade corresponde ao um segundo reflexo da eternidade no mundo das formas, em que habitam os anjos e outras criaturas. Nessa disposição, o mundo material corresponde à décima esfera (Malkuth), o reino.
Também é bastante comum a disposição das esferas uma tríade superior e sete esferas inferiores: enquanto as três primeiras Sephiroth (Kether, Chokmah e Binah) formam um conjunto denominado ‘rosto maior’, formado pelas três causas primárias; as outras Sephiroth, por sua vez, formam o ‘rosto menor’ e as sete causas secundárias – o Menorah, o castiçal de sete velas.
Imaginemos que desejamos fazer um bolo. Este motivo, quando vem à mente, equivale à primeira tríade, onde Kether representa o desejo, Chokmah, à ideia, e Binah, a sua imagem formal. Porém, o bolo só sairá da imaginação para a realidade se cruzar o abismo, chegando ao sétimo nível de materialização: Cheseed corresponderá à escolha dos ingredientes; Geburah, ao esforço necessário à preparação da massa; Tiphareh, ao equilíbrio entre a quantidade dos ingredientes e sua correta preparação; Netzach, ao toque artístico necessário e à intuição; Hod, às instruções técnicas da receita; Yesod, ao cozimento no forno; e, finalmente, Malkuth, à forma final do bolo, à sua materialidade.
Além dos processos descendentes e materializantes que baixam da luz para concretude, a que se chama 'criativos'; existem os processos 'evolutivos', que partem da matéria em busca de uma realidade mais sutil. Os ocultistas chamam o sentido ascendente da árvore de ‘O Caminho da Serpente da Sabedoria’ e o sentido descendente de ‘O Caminho da Espada Flamejante’.
A árvore cabalística representa este duplo circuito dos processos criativos e evolutivos. As sephiroth ou esferas de manifestação funcionam como ‘transistores’ deste circuito, unidades que recebem e emitem energia transformando suas características. Os cabalistas analisam todos os fenômenos à luz destes critérios, reduzindo-os sempre aos mesmos elementos, as dez esferas da manifestação.
Pode-se ascender pela Árvore de dois modos: o caminho do místico, em que o aspirante se eleva verticalmente chegando ao Deus imanifesto, ao nada; e o caminho do feiticeiro, em que o neófito ascende, em um zig-zag lento e tortuoso, através dos diferentes aspectos da manifestação, as forças da natureza. O místico se funde com o nada que há por trás de todas as coisas; o feiticeiro combina todas as coisas manifestas segundo sua energia para realizar as operações necessárias ao seu desenvolvimento e de sua comunidade.
O místico ascende à divindade através do pilar central da Árvore da Vida, o caminho do renunciante; enquanto o feiticeiro deve oscilar através dos pilares laterais, os eixos da bondade e da severidade, alternando uma rigorosa disciplina espiritual ao exercício da generosidade e da gratidão. Quando se diz que o místico 'sobe a árvore' pelo pilar central, significa que o neófito controla os instintos do corpo (Malkult), domina os desejos da alma (Yesod) e chega ao coração de self (Tiphareh), ele precisa ainda cruzar o grande abismo para se integrar à luz (Kether) e sumir no Ain Soph (o 'sem fim'). Em contrapartida, o feiticeiro, subindo a árvore lentamente pelos lados, oscilando entre os pilares do karma e da graça, dominando as sete forças da natureza; para em um segundo estágio, ser capaz de interagir com a tríade superior: a forma, a força e a luz.
Na árvore, o conhecimento é o casamento da sabedoria com a inteligência: Daath, a sephirah invisível, que fica no centro superior da Árvore. A esfera de Daath fica no pilar central do equilíbrio, abaixo da coroa de Kether (a luz) e a cima da esfera solar de Tiphareh (a beleza, o self). A esquerda, no alto do pilar da severidade, está Binah (a inteligência); e a direita, no alto do pilar da generosidade, está Chokmah (a sabedoria). Daath representa o fruto proibido.
Na tradição ocultista, tanto os místicos como os feiticeiros, antes de cruzar o portal de luz de saída do universo manifesto para o nada devem se iniciar na esfera do Conhecimento. Caso o neófito se deixe atrair pela inteligência do lado esquerdo, perderá a sabedoria e se tornará cruel e cínico.
Por outro lado, caso ele se deixe levar pela esfera da sabedoria, perdendo a sagacidade e a esperteza, poderá enlouquecer.
Na cabala, Deus é o nada absoluto existente por trás da manifestação. A Luz (Kether) é relativa, a manifestação primordial, mas não é transcendente e sim imanente, está ‘dentro’ das esferas seguintes, cada vez mais exteriores.
A imagem de uma cebola com várias cascas é representa essa concepção de universos embutidos em camadas sobrepostas, em que a luz imanente é a semente; e a casca mais externa, o mundo material.
Há também o importante símbolo da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, reflexo invertido da Árvore da Vida. Na estória de Adão e Eva, a árvore proibida era essa árvore secundária e não a Árvore da Vida, ambas ficavam no centro dos jardins do Éden. Sendo que a Árvore da Vida está no mundo das emanações arquetípicas; e a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal está invertida, de cabeça para baixo, com suas raízes brotando dos céus e que seus galhos mergulhando nas dimensões mais densas: nos mundos espiritual, astral e material.
2. A Escada de Jacó
Eliphas Levi, pseudônimo do padre Alfonsé Louis Constant, foi o primeiro ocultista a interessar pela Cabala hebraica em l856 e associou-a ao baralho de Tarô. Para o ocultista, os arcanos maiores do Tarô correspondem às 22 letras do alfabeto hebraico e aos caminhos subjetivos que interligam as esferas. Além disso, Levi associou também os quatro naipes do baralho aos quatro mundos cabalísticos, relacionando as suas 16 cartas de figura ao Tetragrama Sagrado (o ‘IHVH’) e as suas 40 cartas numeradas às 10 esferas da Árvore da Vida. Haveria, portanto, quatro árvores de dez esferas cada. O número quarenta representa a totalidade da existência e da experiência humana. Os períodos medidos por este número são frequentes na tradição judaico-cristã: os 40 dias do dilúvio de Noé, os 40 anos durante os quais os israelitas erraram pelo deserto, os 40 dias que Moisés passou no Sinai, os 40 dias do jejum de Cristo, entre outros. Todas essas experiências têm o mesmo significado: a reintegração mística com Deus às viagens empreendidas por Enoch através dos palácios celestiais que antecedem o trono do Altíssimo onde Criador e Criatura se encontrarão frente a frente.
Shimon Halevi estabelece uma relação diferente da expressa pelo número quarenta, mais complexa e desigual, entre os quatro mundos cabalísticos e as árvores da Vida e do Conhecimento entrelaçadas.
A primeira árvore também é chamada de Adão Kadmo, e suas emanações arquetípicas correspondem a partes do seu corpo. Assim, a sexta esfera da Árvore da Vida (o Self cósmico) corresponde ao plexo solar do Adão Kadmo e à primeira esfera da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal (as portas dos Jardins do Eden).
A décima esfera do mundo arquetípico (os pés do corpo espiritual do Adão Kadmo) corresponde à sexta esfera do segundo mundo (Self universal da humanidade) e à primeira esfera do mundo astral (ponto que corresponde ao mito da torre de Babel).
O mesmo esquema se repete em relação ao quarto mundo: a primeira esfera do mundo material (a glândula pineal) coincide com a sexta do mundo astral (o Self cultural coletivo) e com a décima do terceiro mundo (o corpo emocional). Além disso, a última esfera do mundo astral (o corpo sonhador) coincide com a sexta do mundo material (o Self individual). E esse conjunto simbólico, a passagem do terceiro mundo para realidade material, é que está associado, na cabala, à terceira queda da humanidade, ao evento do dilúvio e ao desequilíbrio elemental desencadeado pelo uso do fogo como tecnologia de guerra.

3. O Tetragrama IHVH
A lenda conta que quatro grandes rabis (Akiva, Ben Zoma, Ben Azai e Aher) se dedicaram a estudos esotéricos e “entraram no paraíso”. A estória afirma que “Aher viu e morreu; Bem Azai viu e perdeu a razão; Ben Zoma viu e corrompeu-se. Apenas rabi Akiva entrou e saiu em paz”.

Há várias interpretações diferentes do significado e do papel do sagrado nome de Deus (IHVH) dentro da cabala hebraica. O nome Jeová deriva do anagrama, cuja pronúncia correta teria sido proibida no passado, uma vez que seria capaz de invocar a presença do Altíssimo. Uma das interpretações possíveis sugere que o Tetragrama (formado pelas letras hebraicas Iod, He, Vau e novamente He) resume um método de subida pela árvore, que é basicamente formada por tríades de esferas concêntricas.
Segundo o Zohar há quatro níveis de decifração hermenêutica no estudo das Sagradas Escrituras: PESCHAT ou sentido literal; REMEZ ou sentido alegórico; DERASCHÁ ou sentido tradicional; e SOD ou sentido místico. Porém, este método de extração do sentido através de quatro leituras sucessivas é bem mais antigo. Ele já era utilizado por Filon de Alexandria, por volta do ano zero, na tradução do velho testamento para o grego. O Hermeneuta (GOMES, 1996) atualiza e redefine este método de interpretação através de quatro leituras para o ambiente das ciências humanas atuais: a leitura literal (objetiva), a alegórica (simbólica), a tradicional (contextual) e mística (ou teatral). 
·         No primeiro nível, tratamos a linguagem como objeto: como uma ‘realidade concreta’, como algo tátil, material, que produz uma sensação, que tem um peso e uma quantidade, como algo que tem um cheiro. É a linguagem em suas dimensões física e biológica. Neste primeiro momento, deve-se esquecer do conteúdo e medir as formas destes discursos de um ponto de vista quantitativo. Também neste nível observa-se o que o discurso quer dizer literalmente, o que ele significa do ponto de vista de quem o proferiu, ou seja, como ele foi ‘codificado’. Neste nível de decifração, estuda-se o aspecto material e o aspecto de significação intencional consciente de uma linguagem determinada: O QUE e COMO os discursos se realizam.
·         No segundo nível, a linguagem é vista subjetivamente como a expressão de uma consciência humana. Assim, o segundo procedimento de nossa pesquisa é discutir o conteúdo dos discursos. O QUEM e O PORQUÊ da comunicação, os interlocutores e a ‘causalidade’ da linguagem. Situar-se em um universo de perpétua transformação exige do ser humano uma constante adaptação ao meio ambiente e a transmissão desta experiência entre grupos e gerações. E nesse nível de leitura, os discursos não são meras representações do real, mas também são mensagens involuntárias.
·         No terceiro nível, trata-se de observar os rituais que perpetuam a linguagem. É o discurso reduzido aos seus verbos, às suas paixões, à ação histórica e suas ressonâncias intersubjetivas. Ocultas pelas realidades física e subjetiva dos discursos surgem as estruturas inconscientes de repetição da linguagem. A relação entre a forma imposta pela transmissão e os múltiplos conteúdos percebidos do discurso, entre o aspecto físico e o psicológico da linguagem, é sempre histórica e faz parte de uma tradição determinada socialmente. Assim, o terceiro procedimento de nossa pesquisa consiste em determinar o ONDE e o QUANDO dos discursos, em localizar e entender o discurso dentro do quadro histórico em que ele está inserido.
·         No quarto nível de leitura, a linguagem vive no espírito dos seus discursos, na experiência existencial que eles transmitem, nas suas diferentes respirações frente à morte. O sentido aqui é trágico, não reativo, para além da representação: um sentido que apesar de partilhar o drama não encena seu sofrimento. Neste nível, a intensidade e a duração interrogam sobre o ritmo, a respiração e sobre a consciência que o discurso tem de si. Acima de todas as formas, além de todas as ideias e paixões, os discursos têm um significado existencial, um sentido revivido pela experiência humana cravada nas profundezas inconscientes, onde se, descobre o aspecto universal da linguagem entre as aparentes diferenças culturais. Zeus, Júpiter e Xangô são diferentes representações históricas do arquétipo da justiça, que tem suas raízes em um dispositivo psicológico que equilibra transgressão e culpa.

Pode-se dizer, seguindo a lenda dos quatro rabis e o método das quatro leituras, que a palavra mata, o símbolo enlouquece, o exemplo perverte e apenas o arquétipo realmente explica a linguagem, pois ao comparar o real ao ideal, revela como a realidade extrapola seus modelos. Mais que um conjunto de leituras e procedimentos técnicos sobre decifração de códigos, o método das quatro leituras tem por objetivo a compreensão de si e dos outros, que pode ser aplicado à Árvore da Vida, à Escada de Jacó e não apenas às Escrituras.
A imagem de Jesus Cristo (o arquétipo do solar, Tiphareh), por exemplo, pode ser vista como um fato histórico, como um símbolo de sacrifício e renúncia ou como um elemento ideológico de uma religião, mas só fará sentido se for vivido como uma experiência do Self. Se o sacrifício pessoal for vivido e compreendido como uma experiência do Self, a pessoa poderá então se defrontar com a própria violência represada pelas limitações e restrições do mundo. Chegará assim à esfera do arquétipo do guerreiro (Geburah), centro da agressividade e resistência. Ser guerreiro significa disciplinar a própria força e é uma necessidade da vida, vivida como uma aventura heroica e profissão real; que só faz sentido ao ser reinventado no cotidiano. Ao viver e superar os desafios da esfera solar e da esfera de marte, o sacrifício e a disciplina, o aprendiz poderá se defrontar com a esfera da autoridade. O arquétipo do pai e o complexo de Édipo (representados pela esfera de Cheseed) são simultaneamente uma imposição, uma válvula de escape e um modelo estruturante para quem se coloca na posição de filho. Porém, apenas assumindo a posição de pai de outros é que vivemos o arquétipo e o transformamos. No caso, sendo um pai que reinventa o recalque, a sublimação e o exemplo a que foi submetido.
A meditação da árvore consiste justamente em respirar quatro vezes consecutivas em cada esfera, começando por Kether no alto da cabeça, descendo até Malkuth nos pés e retornando no sentido ascendente até o ponto de partida. A prática desta meditação trará em si novos elementos embutidos (palavras-mantra, imagens de cada esfera) para serem incorporados por cada praticante. A cabala, em profundidade, só é recebida através de revelação.


Essa meditação é atribuída a Issac Luria, de Safed, mas tem características universais, apresentando semelhanças no escaneamento do corpo pela respiração com a técnica da meditação budista Vipassana e dos pontos de concentração de energia com a ioga tântrica dos ‘Chakras’. O mais importante é a concentração durante as descidas/subidas na árvore interior com a respiração e o entendimento dos conceitos das esferas.

lenda da oliveira


Conta a lenda que, certo dia, dois deuses gregos, Atena e Posídon, reindicaram o lugar de padroeiro da capital da Trácia, a cidade de Atenas. Para resolver o conflito, o Tribunal do Olimpo, composto por doze deuses, decidiu que o controle da cidade seria entregue a quem criasse a obra mais fantástica.
 
Posídon pegou no seu tridente e batendo com ele numa rocha transformou-a em um magnífico cavalo-Pégaso.
 
Atena por sua vez afugentou o cavalo e fez nascer uma árvore de porte médio e modesta aparência, mas carregada de frutos negros e luzidios que continham um precioso liquido que se parecia com ouro incandescente.
 
O tribunal de deuses decidiu a favor da deusa da sabedoria e da guerra, tornando-a protetora da cidade, sendo a oliveira um símbolo de paz, prosperidade e da própria cidade de Atenas. A devoção dos atenienses ao azeite de oliveira chegou ao exagero de só permitir que mulheres virgens e homens celibatários pudessem se encarregar do cultivo da oliveira e da produção do azeite.
 
O azeite tornou-se então a base da culinária mediterrânea, conhecida por propiciar a longitividade.
 
Outros povos (e outras lendas) também reinvidicam a sagralidade da oliveira. Os Egípcios atribuíam a Ísis a invenção do modo de extração do azeite. Para os romanos, a árvore é um presente de Minerva, deusa da paz e da sabedoria. No Islã, a oliveira é a árvore central, o eixo do mundo, símbolo do Homem universal, do Profeta, e está associada à Luz. Para os Japoneses, a oliveira é a árvore da vitória, simbolizando a amabilidade e o sucesso. Na China, a madeira de oliveira neutraliza alguns venenos e maus-olhados, o que lhe confere a qualidade de protetora.