domingo, 30 de novembro de 2014

Narrativas Pré-históricas



A imaginação investigando o imemorial

1. Mito + Realidade
Escrever por aforismos ou pensar a marteladas, por vezes, nos torna pensadores assistemáticos, deixando lacunas e pontas soltas.
Recapitulemos, pois.
Partiu-se aqui da metapoética de Gaston Bachelard e de seu desafio. Em um segundo momento, aceitou-se a provocação e imaginaram-se conceitos resultantes da inter-relação dos quatro elementos entre si. Em seguida, após uma breve pausa para analisar o simbolismo do útero e do vinho, aplicou-se alguns desses conceitos a um universo empírico em particular: o preparo da Ayahuasca. Procedeu-se, então, a uma descrição subjetiva dessa experiência cognitiva, ressaltando a presença dos quatro elementos durante todo percurso.
Devaneando mais um pouco, chegou-se à refutação científica da hipótese do matriarcado arcaico e à necessidade de um reajuste elemental entre os gêneros, com os homens se reconectando ao corpo e às emoções; e as mulheres resgatando o sagrado feminino e sua intelectualidade. Mas, a demonstração da inexistência de um matriarcado arcaico (na memória histórica e social) não convenceu aos que acreditam nela (como memória arquetípica). O matriarcado arcaico não existiu do ponto de vista histórico, mas existe do ponto de vista psicológico. O matriarcado arcaico é uma lembrança do inconsciente coletivo, símbolo do útero histórico, de tempo anterior ao dilúvio e à memória.
E, não podemos cometer o mesmo erro do primeiro Bachelard separando radicalmente a verdade da imaginação. É preciso sobrepor à realidade histórica (o matriarcado nunca existiu) com a realidade mítica (o matriarcado está eternamente em nosso passado presente agora).
Para se tecer um texto metapoético, portanto, o corte epistemológico deve ser seguido de uma costura hermenêutica, em que a imaginação, depuradas de suas ilusões, ajude a construção científica e simbólica do sentido, da interpretação. E para investigar o inconsciente arcaico, a imaginação simbólica deve proceder a uma releitura das narrativas mitológicas, fazendo associações cognitivas entre os discursos teóricos, poéticos, esotéricos, tradicionais e filosóficos. E, dessa convergência discursiva e narrativa, nascem novas imagens, novos conceitos, novas ideias. Para tanto, é preciso libertar os simbolismos das tipologias nos quais eles foram confinados. É preciso deixar o simbolismo fluir como devaneio.

2. O cru e o cozido
O maior e mais completo estudo sobre a universalidade do mito é a tetralogia ‘Mitológicas’ de Lévi-Strauss. Após, estudar, durante 20 anos, diferentes mitologias ameríndias, o antropólogo estruturalista passou a crer, senão na unidade primordial de todos os mitos, pelo menos da universalidade da experiência mítica. Lévi-Strauss não apenas explicou cientificamente o significado cultural do mito (em suas particularidades linguísticas, econômicas e hereditárias), mas pôs-se a pensar (parcialmente) como ele.
Joseph Campbell, o conhecido mitólogo que levou as ideias de Jung aos campos da arqueologia, antropologia e história das religiões, que elaborou um modelo universal segundo o qual todos os grandes mitos fundadores das culturas humanas seriam, em última análise, uma única narrativa: o 'monomito' ou a jornada do herói. Campbell parte do geral (do inconsciente coletivo, dos arquétipos) para o particular (os mitos culturais específicos) e é universalista e cultua o sagrado como uma epifania transcultural. Enquanto a antropologia estruturalista, no sentido contrário, descreve o aspecto local das narrativas míticas dentro de um quadro aberto de referências linguísticas, alimentares, culturais. Ambos abordam 'o todo e as partes' – mas de modo bem diferente, inverso e até complementar em alguns aspectos. Os estruturalistas são mais indutivos; os mitólogos, mais dedutivos.
Lévi-Strauss chega à mesma conclusão que os mitólogos, mas por caminhos muitos mais tortuosos, fragmentados e complexos: a análise estrutural de 813 mitos com algumas variantes, de culturas nativas das duas Américas. E, ressalte-se também que ideia de um único mito arcaico de dimensões continentais é bastante diferente da noção de monomito universal de Campbell e da jornada do herói. Os mitólogos, no entanto, se deixam possuir pelo mito sem perceber e acabam tecendo generalizações etnocêntricas, adequando outras mitologias à sua. Para estudar um mito, é necessário se distanciar culturalmente dele e vê-lo de fora. E a importância da experiência mítica de um homem desencantado, como Lévi-Strauss, é justamente que ele vê o mito ao mesmo tempo como cientista e como selvagem, sem abrir mão de nenhum dos dois lados.
A conclusão de Strauss de que todos os mitos são um só, não é só devida às semelhanças de personagens e ações dramáticas nas diferentes narrativas, mas, sobretudo, ao fato das estruturas narrativas se perpetuarem tendo a si mesmo como referência, sempre contando sua própria história, mesmo com diversas variações de armadura, de código e de tema – como bem observou Greimas em sua homenagem teórica ao antropólogo (2088, 61-109).
O cru e o cozido é o primeiro dos quatro livros de Mitológicas[1] e trata do mito de referência o ‘desaninhador de pássaros’, denominado de M1, que serve como fio condutor de todas as análises que se seguem.
O mito foi colhido pelo próprio Lévi-Strauss quando esteve no Brasil, a partir de um canto conhecido por xogobeu pertencente ao clã paiowe dos índios Bororo do Mato Grosso. O mito conta a história de um incesto cometido por um índio com sua mãe. Ao descobrir a transgressão, o pai obriga o filho a realizar para se redimir várias missões impossíveis. Com a ajuda de uma avó feiticeira, que ensina ao neto a se transformar em animais, o índio consegue realizar todas as tarefas e no final se vinga do pai.
A narrativa mítica é bastante longa, muito fragmentada e se mistura com outras, principalmente com as narrativas de roubo do fogo de animais-donos-do-fogo pelos homens, tema bastante frequente na mitologia ameríndia brasileira: a onça para os jês, os corvos para os Guarani, o jacaré para os Yanomami, o urubu-rei para os Sapés.
Em algumas dessas lendas, o fogo não é furtado pelos homens, mas sim dado em troca de uma aliança e de um casamento do herói nativo com a filha de seres encantados. No mito da origem do fogo Xerente, o M124, por exemplo, (em que também há o incesto com a mãe e as provas impossíveis impostas pelo pai tirano), o fogo é um presente do casamento e da aliança entre os homens e os seres mágicos.
As Mitológicas começam e terminam com o mito de obtenção do fogo de cozinha, que é também um mito de origem da cultura humana. No último volume da série (O homem nu), Lévi-Strauss mostra como o motivo do “desaninhador de pássaros”, que enquadra a origem do fogo nos mitos Bororo e jê discutidos no primeiro volume (O cru e o cozido), é a versão semanticamente atenuada de um macro-esquema mítico de difusão continental. Os protagonistas desse “mito único”, ligados entre si por uma relação de afinidade matrimonial, são a raça humana, terrestre, e um povo celeste, os donos do fogo. Para resumir um longo raciocínio: o fogo, fundamento da cultura, é posto como correlato da aliança de casamento, fundamento da sociedade. Cozinhamos a carne que comemos assim como, e porque, não comemos de nossa própria carne. (Viveiros de Castro, 2000).

Enquanto os antropólogos, como Eduardo Viveiros de Castro, suspeitam que o fogo, a aliança e o casamento representam a entrada do homem branco na vida indígena ou a sua previsão mítica; alguns mitólogos menos rigorosos podem considerar que os ‘homens do céu’ são seres alienígenas. O fato que a descoberta do fogo desencadeou um desequilíbrio no universo humano. O fogo, nessa perspectiva antropológica, representa a tecnologia que transforma a Natureza (o cru) em Cultura (o cozido). Os homens praticamente não caçavam nem comiam carne antes do advento do fogo controlado e até hoje ainda não têm a anatomia e fisiologia adequadas para serem comedores de carne.
O advento do fogo nos transformou, não apenas em animais carnívoros, mas, sobretudo, em uma nova espécie predadora desequilibrando a antiga cadeia alimentar e o meio ambiente. A carne foi nosso fruto proibido e o fogo, nosso pecado ambiental.
3. O Dilúvio
O tema do dilúvio, por exemplo, está intimamente ligado ao do matriarcado arcaico e também é objeto de discussão entre cientistas (que o consideram um evento localizado) e mitólogos de diferentes tipos, que acreditam em uma inundação de proporções globais.
O dilúvio aparece em narrativas em americanas, asiáticas, sumérias, assírias, armênias, egípcias e persas, entre outras. Os registros históricos mais antigos que se conhece têm cerca de 4.500 anos. Em todos os continentes existem narrativas míticas tradicionais que aludem à ocorrência de um dilúvio global com paralelismos espantosos entre diversas culturas que não tiveram nenhum contato entre si, tendo sido documentadas mais de 250 em contextos culturais diferentes.
As narrativas mais conhecidas são as da Bíblia e do mito platônico de Atlântida. Mas, há estórias africanas, asiáticas e americanas, bem como lendas ocidentais mais antigas com elementos semelhantes.
Possivelmente, a estória de Noé é uma adaptação hebraica de uma narrativa bem mais antiga, um episódio da lenda suméria de Gilgamesh, que conta a estória de Utanapistim, que sobreviveu ao dilúvio construindo uma arca.
No hinduísmo, Matsya, uma encarnação de Vishnu (um Avatar) na forma de um peixe, avisa ao rei Manu do dilúvio e o aconselha a construir um barco.
A mitologia grega relata um grande dilúvio feito por Poseidon e Zeus para pôr fim à humanidade, uma vez que os homens haviam aceitado o fogo roubado por Prometeu do Olimpo. Deucalião e Pirra sobreviveram porque construíram uma arca a conselho de Prometeu.
Na África, o dilúvio resultou de uma briga de casal dos deuses primordiais Olokun, a Senhora dos Oceanos; e Olorun, Senhor dos Céus. Obatalá, deus solar filho do céu, ajuda os homens a sobreviver e ao pai a aprisionar a mãe no fundo dos mares.
Nas tradições da América pré-colombiana, Mapuche, Asteca, Inca, Uru e Maia também existem relatos diluvianos. No Popoc Vodul, por exemplo, livro sagrado recente dos Maias-quiché, escrito no período pós-clássico,  a criação da humanidade tem três momentos: primeiro são feitos homens de barro, mas como são frágeis, são substituídos por homens de madeira; esses são muito vaidosos, não adoram os deuses, e por isso são dizimados por um dilúvio enviado pelo deus Huracán; e, finalmente, são feitos atuais homens de milho.
Na interpretação cabalística do velho testamento também há três involuções: a queda de Adão e Eva, que marca a descida do mundo arquetípico das emanações ígneas (Atzluth) para o mundo aquático da criação das almas andrógenas (Briah); a destruição da torre de Babel, que representa a passagem para o mundo das formas aéreas (Yetzirah), para multiplicidade de linguagens mentais e para divisão entre os sexos; e o dilúvio de Noé, que corresponde à chegada ao mundo material (Assiah).
Há atualmente muitos esoterismos ‘involucionistas’ que seguem esse modelo de criação descendente do universo em quatro estágios/dimensões. Alguns acreditam que viemos de outros planetas ou dimensões que eram matriarcais. A cultura racional do livro Universo em Desencanto, por exemplo, fala de um tempo em que os homens não falavam e os úteros eram órgãos de comunicação, e assim, as mulheres centralizavam as decisões e governavam telepaticamente os homens. Nesses casos, não se trata de negar ou afirma a existência de um período histórico matriarcal antes do dilúvio, mas sim de se recordar de um tempo mítico antes da história.
Entre todas as narrativas sobre involução do sutil para o denso, a lenda Hopi de criação é bastante significativa:
No início dos tempos, uma faísca de consciência se incendiou na grande noite do espaço infinito. Esta luz era Tawa, o espírito do Sol.
Tawa então criou o Primeiro Mundo: uma enorme caverna povoada unicamente por insetos e governada pela Avó Aranha ou Kokyang Wuhti – a tecelã dos destinos, velha como o tempo e jovem como a eternidade, mãe de tudo na terra com quem se ela se funde e se confunde.
Observando como se moviam os insetos, Tawa achou sua criação pouco inteligente, incapaz de Lhe compreender e dar louvor.  Então lhes enviou a Avó Aranha que disse aos insetos:
- Tawa, o espírito do Sol que os criou, está descontente com vocês, porque não compreendeis em absoluto o sentido da vida. Assim, me foi ordenado que os encaminhassem ao Segundo Mundo, que está acima do teto da caverna.
Os insetos então começaram a escalar as paredes da caverna em direção ao Segundo Mundo. A subida era tão alta e tão penosa que, antes de chegarem ao Segundo Mundo, muitos dos insetos já haviam se transformado em animais serpentes, lagartos e dragões.
Tawa os contemplou e disse:
- Esses répteis são tão estúpidos quanto os insetos. Também não são capazes de compreender o sentido da vida.
Novamente pediu a Avó Aranha para que os conduzisse para o Terceiro Mundo – em um nível acima na caverna. E no transcurso desta nova viagem, alguns animais se transformaram em homens. No Terceiro Mundo, a Avó Aranha ensinou aos homens a tecerem e as mulheres a fazerem potes. Ela também instruiu convenientemente e na cabeça dos homens e mulheres começou a despontar uma vaga ideia sobre o sentido da vida. Entretanto, bruxos malvados, extinguiram a luz e cegaram os humanos. As crianças choravam, os homens guerreavam e se lastimavam, haviam perdido o sentido da vida.
A Avó Aranha voltou e lhes disse:
-  Tawa, o espírito do Sol, está muito triste com vocês, porque perderam a centelha de luz que havia brotado em suas cabeças. Agora, vão ter que subir ao Quarto Mundo. Mas desta vez, deverão encontrar o caminho sozinhos.
Os homens, perplexos, se perguntavam como poderiam subir sozinhos para o Quarto Mundo. Em fim, um ancião tomou a palavra:
- Vamos enviar nosso amigo Sapo como mensageiro para explorar o Quarto Superior e nos contar o que há por lá.
O Sapo pulou até o alto da caverna e encontrou no centro de um grande deserto, uma linda mulher, toda vestida de preto. Reconheceu então aquele personagem: era a Morte.
- Venho da parte dos homens que habitam o mundo debaixo deste – disse o Sapo. - Eles desejam compartilhar contigo este país. Isso é possível?
A Morte refletiu por alguns momentos.
- Se os homens querem vir, que venham!  Mas, como comigo tudo é passageiro, eles só durante algum tempo. Depois, só os que se desenvolverem, vão poder voltar ao Terceiro Mundo, os demais serão dados como alimento aos lagartos do plano debaixo e voltarão a serem insetos.
O Sapo voltou ao Terceiro Mundo e contou aos homens o que ouvido.
- A Morte aceita compartilhar com vocês o Quarto Mundo, comunicou, mas depois de um tempo apenas os que se desenvolverem poderão voltar.
Então os homens escalaram a Árvore que havia no centro do Terceiro Mundo. Nada levavam consigo, estavam nus, alegres como crianças, tão desprovidos como no seu primeiro dia de vida.
- Sejam prudentes e corajosos para voltarem quando chegar o dia! - recomendou a Avó Aranha - E não se esqueçam de que sou sua Mãe e que Tawa, o espírito do Sol, é seu pai!
Entretanto os homens já não mais a escutavam, pois já tinham alcançado às alturas.
Ao chegarem ao Quarto Mundo, os homens mortais construíram povoados, plantaram mandioca, milho, melões, fizeram jardins e hortas.
E desta vez, para dar sentido às suas vidas, se lembrarem de quem eram, de onde vieram e para onde estão indo – os homens inventaram as lendas e estórias sagradas, em homenagem a grande tecelã dos destinos.
4. Do mito ao tipo
Na África antiga, quando se nascia nas praias, se era filho de Yemanjá; se nas montanhas, de Xangô; e assim por diante. Os orixás eram ligados aos locais e não às pessoas individualmente. Por isso, eles eram passados de pai para filho. No Brasil, com a mistura das etnias, foi que surgiu o orixá como tipo psicológico individual e as referencias simbólicas espaciais foram colocadas em segundo plano.
Também na astrologia antiga não havia horóscopos individuais. As previsões eram meteorológicas e sobre guerras; e o mesmo o oráculo dos reis não era voltado sua vida pessoal, mas para seu reinado.
O simbolismo dos quatro elementos inspirou a tipologia dos quatro temperamentos hipocráticos (melancólico, fleumático, colérico e sanguíneo), até hoje utilizados pela medicina antroposófica; e a moderna tipologia psicológica junguiana (sensorial-motor, emocional, intuitivo e mental). Hoje vários tipos de simbologias tradicionais sobrevivem através de tipologias psicológicas: animais de poder, signos astrológicos chineses, kins do calendário maia.
E, talvez, um dos mais interessantes seja a tipologia do Eneagrama, desenvolvido por Claudio Naranjo, a partir das ideias de Gurdjieff sobre o simbolismo tradicional sufi da estrela de nove pontas. O místico armênio G. Gurdjieff elaborou um sistema de aprendizado que utilizava um modelo de síntese do Universo e do Homem, visto como um processo de três níveis em três etapas. A aplicação deste modelo ao corpo humano resultava na teoria das três oitavas. As atividades biológicas de alimentação, respiração e percepção através de vibrações audiovisuais são assim os três principais processos da máquina humana a serem desautomatizados. Esses processos por sua vez seriam interdependentes dentro de uma grande oitava.
Nesse modelo, o corpo humano é uma máquina biológica com quatro entradas e quatro saídas, todas relacionadas com trocas com o meio ambiente. E realizar a grande oitava através da desmecanização das oitavas menores, para Gurdjieff e seus seguidores, é a principal finalidade da existência humana no ecossistema, nossa missão fotossintética e espiritual: a produção do hidrogênio número um (o ouro alquímico).
Nesta lógica, aqueles que não conseguem chegar a estágios de consciência superiores, capaz de produzir essa refinada substância alquímica (muitas vezes comparadas aos sentimentos nobres como o amor) terão seus espíritos fatalmente reabsorvidos pela Lua, serão ceifados como árvores estéreis pelo universo. Gurdjieff cultivava a ideia de que apenas através do desenvolvimento tríplice integrado pode o homem construir uma alma e escapar da morte.
Seu programa de descondicionamento social se chama ‘Quarto Caminho’ justamente porque realiza uma síntese do caminho do faquir (o controle sobre o corpo/terra), do caminho do monge (devoção emocional/água) e do caminho do iogue (o poder da mente/ar), mantendo o elemento Fogo invisível em seu sistema ternário, como matéria-prima e produto final de sua alquimia musical.
Certo dia, diverti-me bastante com as críticas de Olavo de Carvalho a Gurdjieff[2], imaginando que, apesar de depreciativas e desqualificadoras, o próprio Gurdjieff concordaria com elas plenamente. Gurdijieff se considerava um relevador de segredos tradicionais e se identificava com os mitos rebeldes de Lúcifer e Prometeu. De nada vale, portanto, chama-lo de diabólico ou satanista, pois isso seria um elogio para quem acredita que, se não conseguir a energia necessária para fugir, será devorado.
Outra característica era que Gurdjieff adorava escandalizar religiosos. Carvalho ficou particularmente chocado com a ideia de que, durante a Santa Ceia, Jesus Cristo não deu pão e vinho aos seus apóstolos, mas sim a própria carne e o próprio sangue – a exemplo dos cultos arcaicos para Dionísio, deus grego do vinho, e de Osíris, deus solar egípcio - em que os deuses eram devorados – através de um sacrifício humano ou de um animal que os representava - pelos discípulos durante o ritual para depois ressuscitar (na pele de outro sacerdote do culto).
Porém, a própria existência desses cultos trágicos aos deuses solares arcaicos – a que se atribui o nascimento do teatro – é incerta e de difícil comprovação. Na verdade, a Santa Ceia é uma reinvenção do ritual da pascoa judaica, celebrando a fuga dos judeus do Egito, em que o pão e o vinho já cumpriam o papel de comunhão espiritual da eucaristia cristã. Nunca houve canibalismo ou culto trágico a deus solar – essas leituras só se tornaram possíveis após muitos séculos de miscigenação ideológica. A estória, por mais sugestiva que seja, é apenas uma provocação absurda.
Lembra-nos de outra estória igualmente absurda e provocativa: a ideia de parricídio arcaico de Freud, no livro Totem e Tabu (1969), segundo a qual o complexo de Édipo é a repetição neurótica do assassinato de um pai por seus filhos em tempos imemoriais.
Tanto Freud quanto Gurdjieff tentam explicar o comportamento cristão e a compulsão da culpa patriarcal com fábulas teóricas. O mesmo pode ser dito (mas em outro sentido) da fábula judaico-cristã da Queda de Adão e Eva, que coloca a culpa na mulher; ou nas lendas de dissociação do fogo carnal do fogo divinal de inúmeras sociedades. São apenas estórias para explicar o que não entendemos.
Ceuci era uma índia virgem que engravidou misteriosamente. Como não sabia o nome do pai de seu filho, foi forçada a tê-lo muito longe da aldeia, em terras estranhas. A índia deu ao menino o nome de Jurupari, mandado pelo sol para reformar os costumes da terra e também encontrar nela uma mulher perfeita com quem o sol pudesse casar.
Já ao sair do ventre de sua mãe, falou-lhe: "Não tenha receio mãe: eu venho de Tupã, que é meu pai, com a missão de reformar os costumes dos homens. Venho trazer a lei e o segredo, que ainda não existe nas tabas: por isso foi adequado o nome que me deste, Jurupari. Boca fechada, sigilo!".
Quando o Jurupari chegou a terra, as mulheres é que mandavam. De imediato, retirou-lhes o poder, transferindo-os para os homens, sob o argumento que o poder feminino contrariava as leis do Sol, a divindade máxima que era masculina.
Jurupari também estabeleceu uma nova e rigorosa distribuição de trabalho: os homens deveriam ir à guerra, à caça e pesca e às derrubadas da mata. As mulheres deveriam dedica-se à cerâmica, tecelagem, transporte de carga, trato dos filhos e agricultura. Além disso, Jurupari obrigou as jovens da tribo a manterem a virgindade até a primeira menstruação; condenou o homossexualismo; o incesto e o adultério que eram punidos com a morte. E para que os homens aprendessem a viver sem mulheres, Jurupari instituiu grandes festas que só eles podiam tomar parte. Inconformada com as leis e saudosa do filho, Ceuci resolveu, certa noite, dar uma espiadinha no cerimonial dos homens. Furtivamente, então, entrou na "Casa dos Homens", mas logo foi descoberta e morta pelos guerreiros do próprio filho.
Jurupari foi chamado às pressas para ver a mãe, mas não pode fazer mais nada, porque não podia abrir precedentes em suas leis. “Minha mãe morreu porque desobedeceu à lei de Tupã. A lei que eu vivo a ensinar. Não posso ressuscita-la, mas posso recomendá-la a meu pai que vai recebê-la de braços abertos lá no céu”.  E Ceuci subiu aos céus, em um arco-íris, transformou-se na estrela mais resplandecente da constelação das Sete Estrelas.
Jurupari veio a mando do Sol para reformar os costumes dos homens e também encontrar a mulher perfeita com quem o Sol pudesse casar. Não a encontrou e jamais encontrará. Talvez porque nenhuma mulher aceitará plenamente suas leis, talvez por ter renegado a própria mãe em nome delas, o herói solar é prisioneiro de sua missão. Ou maldição, pois Jurupari só regressará ao céu no dia em que tiver encontrado seu amor novamente.
A lenda de Jurupari, de origem tupi, traz alguns elementos simbólicos para nossa compreensão. O primeiro é que, em determinado momentos surgiram as leis e, consequentemente, o poder patriarcal entre os índios. As leis institucionalizavam a divisão do trabalho entre os gêneros e previam punições às transgressões. A maior de todas as transgressões, penetra no domínio proibido do sagrado masculino, foi realizada pelo poder feminino, o que levou a sua punição e posterior sublimação. O resultado, no entanto, é a infelicidade do herói solar, cujo destino é viver sem a metade que o completa e o une à totalidade.
Reparem que, em relação a Adão e Eva, a curiosidade Ceuci não é um pecado original feminino, não há o mal (a serpente). Também não há culpa e remorso, mas sim infelicidade trágica de Jurupari ao ter que cumprir as próprias leis. E, por outro lado, em relação a historietas macabras de Freud e Gurdjieff, não há o complexo de Édipo: os homens não matam o pai, mas sim a mãe. Morta e sublimada como mãe celeste, Ceuci é uma representação sagrada da mulher patriarcal.
5. Édipo tupiniquim
Muito já se escreveu sobre o mito de Édipo: Freud, Malinowski, Lévi Strauss, Lacan, Foucault. O Édipo tornou-se um ‘mito teórico’ dos intelectuais ocidentais. Uma narrativa para sociedade ocidental explicar sua culpa inconsciente de dominar todos e destruir tudo. E muito ainda se escreverá a respeito do mito grego, uma vez que existem aspectos astronômicos e políticos históricos na narrativa (CARVALHO, 1984) que escaparam ilesos da guerra travada entre psicanálise e a análise estrutural.
O termo ‘Complexo de Édipo’ foi criado por Freud e designa o conflito entre desejos amorosos e hostis que a criança experimenta com relação aos seus pais. Para Freud, um desejo edipiano é um fenômeno universal psicológico inato (filogenético) dos seres humanos e a causa de grande culpa inconsciente de “dirigir nosso primeiro impulso sexual para nossa mãe e nosso primeiro ódio e nosso primeiro desejo assassino contra nosso pai”. O complexo é formado pela repetição neurótica dos crimes de nossos antepassados, pelos assassinatos e incestos que cometemos para aprender a ser humanos e rejeitarmos nossos instintos animais, fundando assim a cultura, nossa humanidade.
Para antropologia, o simbólico não é resultante do recalque dos desejos e instintos; o mito não é uma lenda ou fabulação, mas sim uma organização da realidade a partir da experiência sensível. Levi Strauss reconhece que a proibição do incesto é uma condição necessária da cultura, mas não como culpa inconsciente e sim como um sistema de parentesco, um sistema de troca entre as famílias de um mesmo grupo. Para Strauss, o interdito do incesto é uma regra cuja função principal é mais obrigar a dar a mãe e a irmã a outro do que simplesmente impedir de se ter relações com elas.
Assim, enquanto Freud crê no complexo de Édipo e na sublimação dos instintos, Lévi-Strauss prefere descrever o tabu do incesto matrilinear como o centro de um sistema de recorrências involuntárias que tem como estrutura a perpetuação das relações de parentesco, isto é: a reprodução de um modelo de trocas sexuais.
Além disso, o interdito do incesto matrilinear é uma intercessão entre os domínios da natureza e da cultura. A Natureza é universal, espontâneo e inconsciente; enquanto a Cultura corresponde ao conjunto das regras relativas e particulares a cada lugar. Há diversas culturas e uma única natureza. E a proibição do incesto é a única regra universal, presente em todas as culturas humanas.
A proibição, como se sabe, também gera a transgressão. E, ao mesmo tempo em que funciona como um impedimento para a maioria, o interdito do incesto também provoca atração de alguns poucos transgressores. E esse é contexto preliminar do mito da conquista do fogo: o incesto e a expulsão do herói solar por seu pai. O herói, no entanto, enfrenta e vence os seres encantados, casa-se com eles e recebe o domínio do fogo. Então, dono de grande poder, volta à sua terra e mata o pai, a mãe e todos que o humilharam no passado. O mito assim tanto prescreve o tabu como sua transgressão heroica e destrutiva. E esses transgressores dos limites entre natureza e cultura estão destinados a se tornarem senhores do fogo e da guerra. E essa armadura narrativa do mito ameríndio engendrada por Lévi-Strauss pode ser aplicada a outros mitos de origem ocidentais, como a tragédia de Édipo, o drama de Percival ou mesmo a estória de Adão e Eva.
O trabalho de Lévi-Strauss teve (e tem) uma repercussão gigantesca. Formou-se uma longa tradição acadêmica de estudos sobre a origem do fogo em ameríndios brasileiros, mais um ‘mito acadêmico’: Roberto Da Matta estudou a origem do fogo na versão dos Timbiris; Terence Turner escreve sobre o mito do fogo Kaiapó; Clastres estudou a versão Guarani do mito; Betty Mindlin (2002) faz um extenso levantamento sobre os mitos ameríndios do fogo e seus estudos principais. Segundo esses estudos, o aparecimento do fogo e dos deuses solares entre os nativos das Américas foi posterior ao dilúvio, enquanto nas lendas clássicas ocidentais o advento do fogo foi anterior à catástrofe. Aliás, o roubo do fogo foi ‘o’ motivo do dilúvio ser enviado como castigo dos deuses em várias mitologias ocidentais.
E o mais importante: o que chamamos de 'matriarcado' é, na verdade, o período que antecede ao advento do fogo.


[1]O cru e o cozido’ publicado na França em 1964; ‘Do mel às cinzas’ (1967); ‘Origens das maneiras à mesa’ (1968); e ‘O homem nu’ (1973).
[2]    www.olavodecarvalho.org/avisos/Quem_Gurdjieff.pd

Nenhum comentário:

Postar um comentário