quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Jurema Rainha

Dentre os estudos da antropologia brasileira, a Jurema ocupa um lugar singular. [1]

O próprio termo comporta denotações múltiplas, que são associadas em um simbolismo complexo (MOTA & BARROS, 1990:171). Além do sentido botânico[2], a palavra Jurema designa ainda outros significados:

1. Preparado líquido à base de elementos do vegetal, de uso medicinal ou místico, externo e interno, como a bebida sagrada, "vinho da Jurema”;

2. Cerimônia mágico-religiosa, liderada por pajés, xamãs, curandeiros, rezadeiras, pais de santo, mestras ou mestres juremeiros que preparam e bebem este "vinho" e/ou dão a beber a iniciados ou a clientes;

3. Jurema sendo igualmente uma entidade espiritual, uma "cabocla", ou divindade evocada tanto por indígenas, como remanescentes, herdeiros diretos das cerimônias do Catimbó, de cultos afro-brasileiros e da Umbanda.

Para o professor José Maria Tavares de Andrade[3], esse “complexo semiótico” chamado Jurema, representa até hoje, na polissemia deste termo, um ponto de vista e uma resistência étnica dos nordestinos autóctones, “um fio condutor de um traço cultural, distintivo do componente indígena da cultura popular, regional e nacional”.

Vejamos a citação completa:

Numa primeira fase da colonização, a resistência dos povos indígenas no Nordeste, não permitiu que a Jurema, enquanto árvore sagrada, fosse conhecida, em seus usos e significados, não sendo assim documentada pelos colonizadores e estrangeiros. Numa segunda fase histórica a Jurema representa um elemento ritual ligado à própria resistência armada dos povos indígenas ou à guerra empreendida contra inimigos inclusive em suas alianças. Ainda nesta fase na qual a Jurema começa a ser documentada, seu significado ainda não é entendido mas seu uso já é motivo de repressão, prisão e morte de índios, (...).
Na medida em que avança o rolo compressor da colonização, processo de genocídio ou tentativa de dominação, não só política e econômica como também cultural, aparece uma nova forma de resistência: a Jurema assume um lugar central na religiosidade popular, não só indígena regional - Catimbó. Diante do componente negro a Jurema garante seu reconhecimento, como entidade (espírito, divindade, cabocla) autóctone, "dona da terra". A Jurema é absorvida pelos cultos afro-brasileiros, tendo surgido inclusive os "Candomblés de Caboclos". Nas últimas décadas é no contexto da Umbanda, religião nascente e em pleno processo de sistematização e de expansão nacional, que a Jurema é integrada na cosmologia sagrada, no panteão da religião nacional. Constatamos em vários estados nordestinos as "Linhas da Jurema", dentre as linhagens e filiações religiosas da Umbanda.
Nesses últimos anos, e paralelo ao movimento religioso propriamente brasileiro, a Jurema continua como "núcleo duro", segredo, bandeira ou símbolo, para os remanescentes indígenas, em pleno "movimento étnico", num contexto de defesa de seus direitos humanos, de suas áreas de reservas e de sua autonomia e reconhecimento no pluralismo da sociedade e das culturas brasileiras. (ANDRADE, 1992:2)

Não é difícil entender porque a Jurema seria sagrada para os índios nordestinos antes da chegada dos brancos. Segundo Andrade, “enraizamento lingüístico do termo Yu'rema na língua tupi é um forte indício de que o uso primordial, inclusive cerimonial do vinho da Jurema, além de ser herança da cultura indígena, regional, certamente já existia antes da presença dos colonizadores”.

Além de seu caráter alucinógeno e do seu comprovado uso nas guerras e ritos de passagem, a Jurema, enquanto planta, desempenha um papel central no ecossistema semi-árido das caatingas nordestinas: durante os longos períodos de estiagem, quando a paisagem do sertão fica cinza e vermelho, apenas ela e o cacto do mandacaru resistem verdes e com reservas de água. Na verdade, no auge da estiagem, a casca da Jurema seca enquanto seu interior permanece viçoso. Quando a chuva volta, a casca seca cai e a árvore reaparece jovem. Esse fenômeno dá margem a uma longa mitologia de lendas e cantos envolvendo os ciclos de sazonalidade e morte/renascimento. Mas, ao contrário do mandacaru, do qual o sertanejo pode extrair água durante a estiagem, a água da Jurema é completamente inacessível ao uso humano. No caso da Jurema, a existência de água atrai a presença de pequenos insetos e de vários níveis de pequenos predadores da cadeia alimentar do ecossistema do sertão. As cobras são habituais no juremal, tanto pela existência farta de seu alimento como pela proteção dos galhos espinhosos, impossibilitando o trânsito de animais maiores. Este fato deu margem a uma extensa mitologia popular, cantada em pontos e chamadas tradicionais, em que as cobras protegem espiritualmente à árvore, assim como esta, com seus espinhos, protege os seus répteis guardiões. Assim, centro da resistência da vida orgânica à seca, em torno do qual todo ecossistema ‘não-humano’ (na verdade, não-mamífero) da caatinga gravita, a Jurema reina no sertão nordestino, desde tempos imemoriais, às margens de qualquer socialização: trata-se apenas um local perigoso e cheio de tabus, sob múltiplos aspectos.

Antes da chegada dos colonizadores, apenas os índios do sertão do Rio Grande do Norte, os Kariris e os Jê (ou Tapuios), tomavam Jurema. (SANGIRARDI JR., 1983) Essas tribos, detentoras dos ritos da Jurema, no entanto, se aliaram aos holandeses e foram completamente destruídas pelas forças portuguesas. A Jurema como identidade étnica foi então construída historicamente em segredo durante o período de colonização, chegando até tribos litorâneas distantes que não tinham tradição com a bebida. O uso da Jurema foi tolerado e aceito pelos portugueses católicos quando era canalizado para lógica de guerra contra invasores franceses e holandeses, enquanto seu uso religioso era condenado como feitiçaria. Há vários registros históricos (século XVI e XVII) sobre a eficácia militar dos guerreiros-juremeiros. Esta dupla permissão/condenação favoreceu uma expansão secreta e silenciosa da Jurema, levando o uso da bebida a ser conhecida até o Maranhão. (ANDRADE, 1992:9)

E foi assim, neste contexto contraditório, que a Jurema se firmou como prática étnica indígena e se misturou com os cultos africanos. E não se trata, nesses cultos, de reduzir a planta a um ‘espírito’ de uma cabocla como conhecemos na umbanda: o candomblé africano reconhece a Jurema como orixá, o único genuinamente brasileiro.[4] A Jurema chegou ao império como uma forma religiosa de resistência cultural bastante complexa, mantendo viva seu caráter guerreiro e marginal e conheceu ainda um novo ciclo de religiosidade popular - o dos mestres da jurema no catimbó nordestino, que, até a primeira metade do século XX utilizavam a bebida para desfazer feitiços e encantamentos no CE, PB e RN (CASCUDO, 1978).

Porém, apesar de se constituir como um complexo rico em variações, a maioria dos estudos antropológicos sobre a Jurema descreve apenas o Toré, festa dos índios nordestinos em que a bebida é ritualmente consumida. O relato mais antigo data de 1946, quando Oswaldo Gonçalves de Lima descreve o contínuo uso xamânico do vinho da jurema entre os índios Pankararu do Brejo dos Padres, no sul de Pernambuco.
Por volta de 1980, alguns pesquisadores advogam na extinção dos cultos da Jurema (SCHULTES & HOFMANN, citados por OTT, 2002:673). No entanto, sabe-se que algumas formas cerimoniais associadas ao Toré têm sobrevivido entre os Xucuru da Serra de Ararobá/PE; os Kariri-xocó de Colégio, na divisa entre AL e SE (MOTA, 1987); os Atickum-Umã/PE (GRÜNEWALD, 1995); os Truká (BATISTA, 1995) e numerosos outros grupos espalhados pelo sertão nordestino (PINTO, 1995). Além disso, durante a segunda metade do século XX, a cerimônia indígena do Toré tem sido adotada simbolicamente por grupos umbandistas ao longo do litoral nordestino.

A partir deste quadro, muitas perguntas impossíveis de serem respondidas podem ser formuladas: O que aconteceu com a Jurema? Como ela se transformou de prática xamânica, desta manifestação étnica-popular secreta dos índios e negros em uma simples ‘cabocla da linha de Oxossi’, sem qualquer relação com a planta e seu consumo?

Como uma tradição tão significativa desapareceu assim sem deixar vestígios?

Porém, só entenderemos o verdadeiro significado da Jurema, o motivo principal de sua 'sacralidade', seu misterioso desaparecimento e sua reconstrução mítica atual, se a relacionarmos com toda discussão contemporânea sobre 'entheogênesis'.

Drogas e religiosidade atual

Entheogênesis significa 'origem divina' (Theo = Deus, Gênesis = Origem). A palavra 'entheógenos', no entanto, surgiu em contraposição a denominação de 'alucinógenos' para designar a utilização de substâncias químicas com finalidades místicas, religiosas ou cognitivas. Segundo seus defensores a denominação de 'alucinógeno' para as substâncias químicas de feito psíquico, que provocam mudanças nos estados de percepção e consciência é preconceituosa, pois embute o sentido de entorpecimento e alienação. A enteogênesis seria, então, o uso não alienante das drogas - como prescreveram vários pensadores da Contracultura.

Timothy Leary, entre outros menos famosos, defendia o caráter revolucionário da experiência psicodélica através de drogas. Para Leary, os estados alterados de consciência provocavam mudanças existenciais profundas, transformações na personalidade, tornando as pessoas mais conscientes de si.

Também Carlos Castaneda, antropólogo convertido ao sistema de 'feitiçaria tolteca', iniciou-se nessa tradição através da utilização das 'plantas de poder', principalmente a Datura (a 'Erva do Diabo') e o Peyote (o 'mescalito'). A droga aqui é utilizada para romper com a descrição ordinária da realidade, com a percepção cotidiana de mundo, como uma forma de se sentir presente em outros universos dimensionais.

A droga alucina e cura, equilibra e enlouquece, maravilha e vicia. É um paradoxo, um dispositivo de funções aparentemente contrárias. Entre os autores brasileiros que pensaram a questão das drogas dentro de uma perspectiva foucaultiana dos modos de sujeição, Edson Passetti é talvez quem melhor coloque o papel central deste dispositivo na sociedade contemporânea.

A droga é pensada como produto médico para recolocar um indivíduo dentro da normalidade social. É também alucinógeno capaz - quando usado fora do espaço de confinamento - de fomentar ou gerar no indivíduo distorções em sua personalidade. De ambos os lados, a droga afeta a chamada alma do sujeito, quer recuperando-a quer perdendo-a. Assim, dentro da mais perfeita ordem das coisas, a droga é doença e cura, crime e lei, cujo uso é regulamentado por órgãos governamentais.
(...) A relação droga e alma, essa coisa que pode ser racionalmente capturada, organizada e disposta para que o indivíduo possa viver uma suposta plenitude terrena, que as religiões não fornecem - e justamente por esse princípio contribui para a reprodução da religião -, visa combater o desprezível no interior e no exterior do indivíduo, retificando partes ou o todo. (PASSETTI, 1991:.56-57)

Com o pesquisador Terence McKenna, o caráter cognitivo das drogas e da experiência psicodélica na contracultura vai se tornar uma 'etnofarmacologia', isto é, em um estudo sistemático das tradições de consumo de entheógenos. McKenna - autor de vários livros sobre diferentes substâncias psicoativas e religiosidade contemporânea (1993, 1995 e 1996) – estabelece uma associação estratégica entre três hipóteses de outros autores, que se tornarão os cânones do movimento entheogênico:

1. A hipótese de que foi através da ingestão de substâncias químicas psicoativas que os macacos se tornaram conscientes de si (Levi Strauss), dando início à evolução da espécie humana. Nesta hipótese, sugere-se que toda nossa experiência com o sagrado derivou originalmente do consumo de substâncias químicas.

2. A hipótese de construção de um “paraíso artificial” ou de uma utopia social constituída a partir de consciências quimicamente alteradas (Charles Baudelaire e Aldous Huxley). Desta segunda hipótese deriva a idéia de que o futuro é um retorno à memória arcaica.

3. A hipótese de Gaia (James Lovelock e Lynn Margulis) segundo a qual a biosfera da Terra é na verdade um organismo vivo. De forma que, mais do que dispositivos de poder para o controle social (as drogas), as substâncias psicoativas teriam como função primordial a re-ligação dos homens com a consciência telúrica do planeta.

A partir dessas premissas, é possível um desconcertante arsenal de perguntas:

"Estaríamos ainda evoluindo as leis eternas da natureza? Existiria um reino além do espaço e do tempo que asseguraria os padrões e as condições de criatividade e de organização, e o processo evolutivo emergente - ou o universo se construiria a si mesmo à medida que fosse caminhando? As causas das coisas estariam no passado ou no futuro? Haveria algum Objeto hiperdimensional, que nos atrairia para a frente? Seria a história apenas uma sombra que a escatologia projeta atrás de si? Seríamos nós, os seres humanos, os imaginadores ou os imaginados? Ou seria a história, de certo modo, uma co-criação - uma parceira instável, cronicamente evolvente e pusilânime entre nós mesmos e o Fazedor de Padrões hiperdimensionais? Seriam os vegetais visionários nossos potenciadores e nossos guias; e seria a teo-botânica a chave de tudo isso? Seria o caos meramente caótico, ou abrigaria a dinâmica de toda a criatividade? Que conexão existiria entre a luz física e a luz da consciência? Como transporíamos nossos limites fundamentais a fim de ingressar numa nova fase de aventura humana?" (MCKENNA, 1994.)

Atualmente na internet, tanto encontramos páginas dos grupos religiosos ligados a tradições com a Ayahuasca quanto de psiconautas e estudiosos. É bem verdade que as idéias do movimento entheógeno estão dando margem para toda sorte de exageros. Para alguns, por exemplo, o cogumelo entheogênico seria apenas o corpo físico de uma inteligência cósmica, vindo de outro planeta para colonizar a terra.

Por outro lado, é claro que os grupos tradicionais discordam destes psiconautas e tentam dialogar com as de idéias de McKenna. Alex Polari do Santo Daime, por exemplo, escreveu Seriam os Deuses Alcalóides?[5]

Mas, a verdade é que o próprio crescimento dos grupos tradicionais em progressão geométrica a nível internacional (que usam substâncias químicas através de plantas de poder - Ayahuasca, Peyote, San Pedro) se deve em grande parte ao movimento enteógeno e que este, muitas vezes, acaba influenciando e modificando bastantes aqueles - como veremos em relação a Jurema.

Reimportando identidade étnica

Para compreender esta recriação mítica da Jurema na atualidade, há dois trabalhos contemporâneos fundamentais. Em A Jurema em “Regime de Índio”: o caso Atikum (GRÜNEWALD, 1995) observa-se o contraste de alguns aspectos simbólicos desta reconstituição do uso cerimonial da Jurema em um contexto religioso contemporâneo e entre seu contexto tradicional. O texto trata de como, entre 1943 e 1945, os caboclos da Serra do Uma, descendentes de tribos indígenas desconhecidas, sabendo de que o governo brasileiro tinha como critério para concessão de terras para reservas indígenas a realização do Toré, procuraram a tribo dos Tuxá para aprender o ritual e conseguir o benefício. O que realmente acontece em 1949, quando os caboclos de Umã são elevados a categoria de índios Atikums (nome de um suposto ancestral mítico da tribo). Assim, o Toré e o uso ritual da Jurema são tradições a serem exibidas como certificados étnicos, devidamente reconhecidas pelo SPI (Serviço de Proteção ao Índio) e depois dele, a FUNAI. Grünewald observa, no entanto, que não se trata de um mero ardil para garantir a posse coletiva da terra, mas que os caboclos de Umã realmente passaram a acreditar em sua nova identidade Atikum. A Jurema deu a esses homens mais do que um pedaço de terra: uma identidade étnica une um grupo separando-o de outros, dando a ele um lugar no tempo e no espaço social.

Outro episódio, narrado de passagem neste texto, cita o trabalho desenvolvido por uma fundação holandesa, "Friends of the Forest – Ethnopharmacological agents; rituals and drug dependency treatment research". A fundação, em conjunto com universidades e autoridades públicas holandesas, aplicava tratamento gratuito para reabilitação de viciados em drogas (heroína, cocaína, álcool, etc) utilizando-se principalmente da Ayahuasca. No entanto, devido ao corte de fornecimento pela entidade que gerencia o Santo Daime, que considerou o uso terapêutico da bebida fora dos seus preceitos religiosos, “os amigos da floresta” passaram então a pesquisar e utilizar os mesmos princípios psicoativos extraídos de outras plantas similares. Nesta “ayahuasca analógica”, a Jurema Preta (Mimosa hostilis) passa a ser utilizada em combinação com sementes de Perganum harmala, um arbusto do oriente médio muito conhecido por suas características sedativas[6].

Mas não é só: os próprios pesquisadores da fundação Friends of the Forest descrevem seu contato com os índios Atikum e como introduziram o uso desta nova fórmula em alguns de seus rituais (BARBOSA, 1998:27-28). Segundo eles, os Atikum não apenas reconheceram a potencialização dos efeitos da Jurema pelo Perganum harmala, como também ficaram com sementes do arbusto para plantar no sertão. O texto insinua que houve uma assimilação cultural de técnicas de preparo científicas, importadas do exterior, pela “cultura Atikum” e que tal fato poderá ressuscitar a tradição da Jurema.[7]

O segundo texto contemporâneo fundamental para compreensão da Jurema é o artigo Pharmahuasca, anahuasca e jurema preta: farmacologia humana de DMT oral mais harmine (OTT, 2002), que investiga a hipótese de sinergia psicoativa entre o DMT e as b-carbonilas, chamado de ‘efeito Ayahuasca’ em diferentes preparos: a pharmahuasca (cápsulas de DMT e Harmine sintéticos), a anahuasca (bebidas preparadas com plantas diferentes da Ayahuasca, mas com os mesmos princípios ativos) e a Jurema preta. A hipótese de ‘efeito Ayahuasca’ (HOLMSTEDT-LINDGREN, 1967 in MOTA, 1990) é de que a psicoatividade oral do DMT depende da inibição da monoanima-oxidase (a enzina catabólica MAO), causada pela ingestão simultânea de b-carbonilas. Na Ayahuasca, o princípio simbólico feminino é constituído pela folha da Psychotria viridis (Chacrona ou Rainha), portadora de DMT; e o princípio masculino, pelo cipó Banisteriopsis caapi (Jagube ou Mariri), que contém harmina e harmalina, inibidores que geram a psicoatividade. Porém, nem a folha nem o cipó são psicoativos tomados separadamente.

No caso específico da jurema preta, que apresenta um nível de concentração de DMT muito superior ao de outras plantas e é principal fonte contemporânea de triptaminas para as farmahuascas e anahuascas, OTT investiga o chamado ‘agente propiciador’ de sua psicoatividade, referente à perda ou a falta de um ingrediente complementar ao vinho da Jurema preta, uma vez que esta não possui b-carbonilas. Descartadas (através de análises químicas) as hipóteses de que o tabaco e o suco de maracujá consumidos durantes os Torés fornecessem as harminas necessárias para psicoatividade, o pesquisador sugere a possibilidade de que “o vinho da Jurema é potencialmente visionário por si mesmo”, desde que consumido em altas dosagens (25 gramas de entrecasca, duas vezes 125 ml de água a cada vez) preparada de maneira tradicional (espremendo a raiz batida em água fria sem aditivos). Seguindo este método, o pesquisador afirma ter alcançado efeitos do tipo DMT, porém durante menos tempo.

OTT sugere ainda a possibilidade de existência de alguma outra enzima catabólica desconhecida (uma vez que não existem MAO na Jurema) ou mesmo de uma variação do próprio DMT, o DMT complexo, que, segundo ele, chegaria ao cérebro sem a necessidade de aditivos ou inibidores.

Particularmente não acredito nem na hipótese de Ott de que a Jurema, dentro de determinadas condições desconhecidas, é autopsicoativa; nem tão pouco creio que o movimento entheógeno reavive a “tradição” de identidade étnica de seus cultos. Prefiro pensar que o mistério do ingrediente complementar, possivelmente perdido com a destruição das tribos do sertão do RN, ainda pode ser descoberto através de pesquisas botânicas. Aliás, este desaparecimento do ingrediente (ou sua ocultação até os nossos dias) explica bem a decadência dos cultos. Não sabemos se realmente os Atikum levarão adiante os ensinos dos holandeses. Também não é possível saber, pelo menos através da pesquisa antropológica, se realmente existe uma tradição secreta da Jurema, que detenha o conhecimento do ingrediente inibidor. O certo é que hoje é mais fácil encontrar trabalhos espirituais com a utilização da Jurema na Europa que nas caatingas do nordeste brasileiro.

Vivemos um processo de reconstrução mítica globalizada, em que uma planta genuinamente brasileira, símbolo de parte de nossa consciência étnica, está sendo reinventada em um contexto global contemporâneo e até mesmo re-importada de volta para as classes médias culturalmente mais sofisticadas da sociedade brasileira.

REFERENCIAS

ANDRADE, J. M – Jurema: da festa à guerra, de ontem e de hoje. João Pessoa, UFPB, 1992.
BARBOSA, W. M. da S. A Jurema Ritual in Northern Brazil. From the Newsletter of the Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies (MAPS) - Volume 8 Number 3 Autumn 1998 - pp. 27-29.
BATISTA, M. R. R. O Uso da Jurema entre os Turká. Trabalho apresentado no 1o ERSUPP. Salvador, 1995.
CASCUDO, L. da C. Meleagro; pesquisa do catimbó e notas da magia branca no Brasil. Natal: Agir/Fundação José Augusto, 1978.
GRÜNEWALD, R. A. A Jurema e o "Regime de Índio" Atikum. Trabalho apresentado no 1o ERSUPP. Salvador, 1995.
MCKENNA, T. - Alucinações Reais. Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1993.
______, Alimento dos Deuses Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1995
______, Retorno à cultura arcaica Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1996
______, (com Ralph Abraham e Rupert Sheldrake) [[']]Caos, Criatividade e o retorno do Sagrado - triálogos nas fronteiras do Ocidente[[']] São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1994
MOTA, C. N. Jurema and Ayauasca: Dreams to Live by. In: Ethnobiology: Implications and Aplications. Vol. 2. Belém, Museu Goeldi, 1990.
MOTA, C. N. & BARROS, J. F. P. de. Jurema: Black-Indigenous Drama and Representations. In: Ethnobiology: Implications and Aplications. Vol. 2. Belém, Museu Goeldi, 1990
NASCIMENTO, M. T. S. Caboclos dos Troncos Velhos: Identidade Étnica e Experiência Religiosa através do Uso da Jurema. Trabalho apresentado em versão preliminar no 1ERSUPP. Salvador, 1995.
OTT, J. Pharmahuasca, anahuasca e jurema preta: farmacologia humana de DMT oral mais harmine, in LABATE, B.C. & ARAÚJO, W. S. (org.s); O Uso Ritual da Ayahuasca. Tradução de Claudia Rosa Riolfi e Valdir Heitor Barzotto. São Paulo: Fapesp/Mercado de Letras, 2002.
PASSETTI, E. Das Fumaries ao Narcotráfico. São Paulo, EDUC, 1991.
PINTO, R. S. A Jurema como vegetal psicoativo. Ensaio apresentado em O Uso e Abuso de Drogas. Salvador, Bahia, 5-8 outubro 1995.
REESINK, E. O Segredo do Sagrado: o Toré entre os Índios do Nordeste. Trabalho apresentado no II Encontro da ANPOCS Norte-Nordeste. João Pessoa. 1995.
SANGIRARDI Jr. Jurema. In: Os Índios e as Plantas Alucinógenas. Rio de Janeiro, Editorial Alhambra. 1983.

NOTAS
[1] http://arcadauniao.org/artigo.php?idEdicao=6&idArtigo=33
[2] Etnobotânica da Jurema: Mimosa tenuiflora (Will.) Poiret (= M. hostilis Benth.) e outras espécies de Mimosáceas no Nordeste-Brasil, principalmente a hostilis, chamada Jurema Preta.
[3] Doutor em Antropologia e pesquisador do GERSULP, Strasbourg. Ming Anthony, Muséum National d´Histoire Naturelle, Paris.
[4] A Jurema como nação: http://www.geocities.com/Athens/Atlantis/5418/
[5] http://www.santodaime.org/arquivos/alex1.htm
[6] Também conhecido como Syrian Rue, essa planta é conhecida desde tempos pré-históricos do Mediterrâneo até Ásia central. Está associada à tradição dos tapetes voadores árabes e das bebidas sagradas da Antiguidade (o Soma do Rig Veda e do Haoma do Avesta da Pérsia).
[7] Indiretamente, o texto de Grünewald explica que os pesquisadores da Friend of the Forest conheceram apenas um trabalho periférico de catimbó, distante da “verdadeira tradição” do Toré. Porém, a relação entre os Atikum e os holandeses continuou, como se pode constatar em: http://yatra.yage.net/

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