domingo, 28 de fevereiro de 2010

Simetria e Paradoxo


Homem, Mulher; Luz, Trevas; Vida, Morte - vivemos em um universo de polaridades opostas. Mas, interpretamos essas polaridades de diferentes formas. Quando uma polaridade de opostos irreconciliáveis forma uma unidade, uma síntese resultante do conflito dos extremos, então a polaridade será chamada de Contradição Dialética. Se, no entanto, a polaridade não tiver uma unidade e não produzir um terceiro termo sintético, mas simplesmente oscilar entre os extremos irredutíveis, aperfeiçoando-os sem unificá-los, então o par de opostos será uma Oposição Dialógica. Pode-se ainda falar de Alternância Binária, quando os opostos de uma polaridade não coexistirem, o presente de um implica na ausência do outro. De forma que, dependendo dos conceitos, um mesmo conjunto de polaridades pode ter diferentes interpretações. O Livro das Mutações (I Ching), por exemplo, é todo construído a partir da polaridade Yin-Yang e comporta duas leituras filosóficas diferentes dentro das tradições chinesas: a taoísta (mais holística e dialética) e confucionista (mais dialógica e binária).

Algumas tradições mais antigas tratam as polaridades de opostos de uma forma ainda mais diferente e, aparentemente, incompreensível para o pensamento científico: o Paradoxo. O deus Abraxás de Creta antiga, Janus dos Romanos e o par Tonal/Nagual nas Américas são exemplos de deuses de "duas faces" paradoxais, isto é, de uma concepção em que a polaridade de opostos que dá origem a vida e ao universo que não comporta nenhuma forma de totalização ou unificação globalizante. Aliás, talvez algumas de nossas polaridades dialéticas e dialógicas (Vida/Morte, Bem/Mal, Ser/não-Ser) sejam também paradoxos que recusamos a aceitar.

Nas mitologias pré-colombianas, principalmente nas culturas Maia e Tolteca, os deuses gêmeos também desempenham um papel central. No Popoc Vodul, um livro sagrado dos Maias do período pós-clássico, os deuses gêmeos após um jogo de pelota no inferno, na verdade, uma armadilha para matá-los, vencem os demônios, conquistam a ressurreição e submetem os senhores de Xibalda. Já para os toltecas mais do que deuses, o tonal e o nagual são princípios cognitivos e realidades paralelas. O tonal é o mundo conhecido, a realidade que apreendemos pelos sentidos; o nagual é o mundo dos sonhos, o desconhecido. Mas, não se trata de um dualismo fundamental, de uma dialética ou de uma oposição dialógica. Os princípios opostos seria, nesta concepção, um paradoxo entre dimensões contrárias, sem totalização ou perspectiva de uma síntese unificante. Um é irredutível ao outro.

Há sempre uma dupla realidade, uma simetria entre o lado de dentro e o de fora do universo, o micro e o macrocosmo. No campo filosófico há, para Platão, um mundo sensível-concreto e outro inteligível-abstrato; uma cidade dos homens e uma cidade de Deus para Santo Agostinho; para Descartes, coisas extensas e objetos virtuais. Com Kant, há uma inversão de perspectiva: a realidade deixa de ser uma percepção e passa a ser uma interpretação. O mundo externo se torna uma projeção estruturada do sujeito, a simetria torna-se um reflexo invertido.

No campo religioso também há simetria, mas é o metafísico que se reflete no físico: “assim em cima, como embaixo” - expressão presente não apenas nas Tábuas de Esmeralda de Hermes Trimegisto, mas presente em todas as grandes tradições, como a chinesa (céu e a terra), a indiana (o universo-templo e o corpo-templo), e a ocidental (o homem como a imagem e semelhança de Deus). No renascimento, ou melhor: no humanismo iluminista, há cruzamento desses dois modos de representação simétricos, o filosófico e o tradicional, em que o homem ocupa o lugar central (como na tradição judaico-cristã), mas o universo externo que enquadra e determina a experiência subjetiva (como crê a modernidade).

Assim como Foucault em As Palavras e as Coisas derrubou o sujeito antropomorfico das ciências humanas, Osho, Gurdjieff e Carlos Castaneda (para citar os mais conhecidos) instauram um novo paradigma no esoterismo, em que o homem não é mais o centro do universo, mas apenas um ser que vive em universo povoado por outros seres, em outras ordens de evolução. O homem não é mais a síntese última da vida nem uma miniatura do modelo do cosmo. É apenas um bicho entre outros bichos e outras formas de vida, inorgânicas, que ele nem ao menos consegue perceber. “Um predador secundário da cadeia alimentar planetária” - como sugere Castaneda. E esta consciência pós-antropocêntrica desloca a questão da simetria para fora (e para além) do homem.

Advoga-se aqui que a hipótese de que a simetria entre a Cognição Ordinária e a Cognição Extraordinária é um paradoxo insuperável para o qual não existe totalização ou unificação globalizante. O Mundo e a Consciência são termos irredutíveis desta simetria da cognição humana entendida não como uma contradição dialética ou uma oposição dialógica, mas sim como um paradoxo absurdo. Isto não significa insistir no pos-modernismo, mas de reconhecer nossa incapacidade de solucionar definitivamente a duplicidade da percepção e a hipótese de sua simetria.

Para as tradições, a simetria é dada como certa (o mundo material é um desdobramento denso dos universos sutis); para modernidade, a simetria é parcial e invertida (o subjetivo reflete a realidade); para os pós-modernos, não há simetria alguma (nem reflexividade entre dimensões ontológicas paralelas: os objetos é que são duplos construídos intersubjetivamente em plano imanente; mas, a verdade é que não compreendemos nossa dupla cognição). E para investigar a probabilidade desta simetria entre o que vivemos e o que sonhamos, definimos alguns modelos para uma fenomenologia dos estados de consciência ordinária e extraordinária.

Para pensar uma fenomenologia dos estados de consciência partimos de uma comparação entre o atual conhecimento científico e algumas idéias de pensadores, que, apesar de irrealistas, intuíram vários aspectos importantes do funcionamento cerebral da subjetividade. A teoria dos oito cérebros, de Timothy Leary (1961), por exemplo, recentemente foi atualizada por Robert Anton Wilson (1987), na forma de oito circuitos neurocerebrais. Essas teorias subdividem a atividade cognitiva em duas categorias:

a) A Cognição Ordinária ou "o lado esquerdo do Cérebro" , responsável pela cognição atual do mundo, formada por quatro circuitos integrados: o circuito da sobrevivência (ou a Consciência), o circuito das emoções (ou o Ego), o circuito da linguagem (ou Mente) e o circuito sócio-sexual (ou a Personalidade). Esta cognição é comum a todas as pessoas e, em parte, é consciente de si e de seu contexto.

b) A Cognição Extraordinária ou "o lado direito do Cérebro", formado por funções ainda adormecidas que correspondem às nossas possibilidades de evolução: o circuito neurosomático, o circuito neuroelétrico, o circuito neurogenético e o circuito neuroatômico. Também é chamada, por vários, autores, de Individualidade, em oposição à Personalidade.

1 - Cognição Ordinária

A Consciência equivale neste sistema à percepção sensorial da realidade, que remonta à cognição dos invertebrados, ao 'cérebro réptil' ou à capacidade de agir instintivamente. A neurociência atual considera que essa consciência-percepção é produzida pelo 'Arqueocortex'.

"Este cérebro invertebrado foi o primeiro a evoluir (faz de 2 a 3 milhares de milhões de anos) e é o primeiro a ativar-se quando nasce uma criatura humana. Programa a percepção numa espécie de codificação dividida em coisas 'boas e nutritivas' (para as que se sente atraído) e 'perigosas e tóxicas' (as que evita ou ataca)." (WILSON, 1987, 1)

Assim entendida, a consciência não é algo transcendente ou metafísico, mas apenas um circuito de informações instintivas essenciais à sobrevivência. Pode-se dizer que a consciência é o 'ser-no-mundo'. Ela não é um fenômeno em si, mas o espaço em que os fenômenos acontecem, uma clareira em meio a um universo sombrio, uma abertura pela qual vemos a realidade.

O Ego, por sua vez, corresponde ao circuito das emoções e a uma estruturação de identidade espacial e de uma relação de poder, de propriedade em relação ao meio ambiente e a outros egos (alter-egos). O ego é uma estrutura identitária territorial, em que o animal se apossa do espaço.

"Este segundo e mais avançado biocomputador se formou quando apareceram os vertebrados e a competição pelo território (talvez uns 500.000.000 A.C.). No indivíduo este enorme túnel de realidade é ativado quando as cintas mestras do DNA disparam a metamorfose do arrastar-se ao andar. Como sabem todos os pais, o menino que começa a caminhar já não é uma criatura passiva orientada a sobrevivência biológica, mas um mamífero político, cheio de exigências territoriais físicas e psíquicas, rápido em intrometer nos assuntos familiares e nos objetos de decisões." (WILSON, 1987, 1)

Assim, enquanto a Consciência corresponde à sensação de estar aqui e agora em corpo orientado para a sobrevivência animal; o Ego orientado por afetos e desafetos é o segundo circuito sensorial mamífero do status (atualidade-não atualidade) no grupo ou tribo. Para a neurociência é o Paleocortex ou "cérebro límbico".

A Mente, neste sistema, representa a organização do circuito da linguagem. Ela se formou quando os hominídeos começaram a se diferenciar dos demais primatas (uns 4-5 milhões A.C.) e é ativado quando o menino, já maior, começa a administrar utensílios e a linguagem de forma própria. Para Wilson, a ...

(...) "impressão desses três circuitos determina, aproximadamente à idade de três anos e meio, o grau e o estilo básicos de confiança/desconfiança que coroaram a 'consciência', o grau e estilo de truculência/sujeição que determinaram o status do 'ego', e o grau e estilo de perícia/deselegância por meio do que a 'mente' manejará instrumentos ou idéias." (1987, 2)

E, assim, do ponto de vista evolutivo, a Consciência é basicamente invertebrada, flutuando passivamente para a alimentação e a proteção do perigo; o Ego é mamífero, sempre lutando pelo status dentro da ordem tribal do grupo; e a Mente é paleolítica e formadora da cultura humana e confrontando-se com a vida através de uma matriz de instrumentos e de simbolismos. A neurociência chama de 'Neocortex' à porção de 85% da massa cerebral que desempenha essas funções.

Pode-se dizer que o ego é formado pela fala e a mente, pela escrita (pelo pensamento abstrato, descontextualizado). Osho usa uma metáfora interessante, dizendo que a Mente é um espelho, coletivo e externo, e o Ego é nosso reflexo, circunstancial e efêmero, neste suporte no qual nos vemos indiretamente, uma vez que nos recusamos a olhar frente e a frente para nós mesmos (2004, 62). Ambos, no entanto, mente e ego, são estruturas identitárias construídas por nós (por nossa consciência) através dos outros.

A 'Personalidade adulta' ou 'quarto cérebro' é, para Leary/Wilson, a estrutura psíquica que organiza o circuito sócio-sexual, é típico do Homo Sapiens.

Este quarto cérebro se formou quando os grupos de hominídeos evoluíram para sociedades e programaram comportamentos sexuais específicos para seus membros, uns 30.000 a.C. É ativado na puberdade, quando os sinais de DNA desencadeiam a liberação glandular de hormônios sexuais e se inicia a metamorfose ao estado adulto. Os primeiros orgasmos ou experiências de acoplamento imprimem um rol sexual característico que, novamente, é gerado de forma bioquímica e permanece constante durante toda a vida, a menos que alguma forma de lavagem de cérebro ou reimpressão bioquímica o altere. (1987, 3)

Não existe, na neurociência atual, estudos científicos sobre uma parte do cérebro específica em que este tipo de atividade psíquica se desenvolva. Prefiro pensar que a Personalidade é um circuito que coordena e orienta as relações entre a Consciência, o Ego e a Mente. A personalidade assim entendida é também uma máscara, uma persona, atrás da qual se esconde uma individualidade psíquica formada pelos circuitos neurocerebrais da cognição extraordinária – que veremos em seguida.

Mas, é importante perceber que essa é apenas uma de várias fenomenologias dos estados de consciência possíveis. Estudando várias tradições religiosas diferentes, Ken Wilber (2006, 272-273) oferece um modelo de analogia universal das fenomenologias quaternárias, a partir das categorias de corpo, mente, alma e espírito. Também há estruturas ternárias de cognição, que são um pouco menos 'platonizadas'. Osho, um dos que usa múltiplos sistemas e modelos sem se prender a nenhum, afirma que a personalidade é construída horizontalmente através do tempo e a individualidade, pela experiência vertical da eternidade. Nessa perspectiva, o homem só constroe uma alma quando ativa dos circuitos neurocerebrais da cognição extraordinária. Ou na linguagem poética de Castaneda: a Personalidade é tonal; a Individualidade, nagual. O tempo-espaço histórico e contínuo é tonal, o silêncio infinito da eternidade invisível é nagual.

2 - Cognição extraordinária

Conhecendo a si mesmo, "somos mais e mais capazes de acelerar nossa própria evolução" - acredita Wilson, propondo que enquanto os quatro circuitos do lóbulo esquerdo (Consciência, Ego, Mente e Personalidade) contêm as lições aprendidas de nossa biografia e presentes (pessoal e coletivo); os quatro circuitos do lóbulo direito (Neurosomático, Neuroelétrico, Neurogenético e Neuroatômico) é um anteprojeto evolutivo de nosso futuro.

O circuito neurosomático entra em atividade quando o sistema nervoso percebe sua capacidade de lúdica-compreensiva. Este "quinto cérebro" surgiu faz uns 4.000 anos nas primeiras civilizações do ócio. Quando ativado, este circuito produz uma conexão hedonista, uma diversão extática, um desapego de todos os anteriores mecanismos compulsivos dos primeiros quatro circuitos. Leary achava que essa sensação, no momento evolutivo adequado, desencadearia uma mutação neurosomática ou uma desprogramação nos mecanismos de manutenção da Cognição Ordinária. Também se pode associar esta auto-percepção somática como um estado propiciar de regeneração orgânica, quando entramos em um estado de consciência que "nos cura" através da compreensão e da adaptação às situações.

Já o circuito neuroelétrico entra em atividade quando o sistema nervoso descobre sua função de metaprogramação, atuando como um tradutor universal das linguagens ao um padrão binário de uma linguagem primária. Enquanto o circuito neurosomático havia uma mudança de comportamento pela adaptação passiva, a cognição neuroelétrica é positiva e há uma mudança por reprogramação ativa.

Para Leary ...

" (...) o sexto cérebro consiste no sistema nervoso sendo consciente de se mesmo, independentemente dos mapas de realidade impressos cognitivamente (circuitos I-IV), e até mesmo independentemente do êxtase corporal (circuito V) e suas características (...) são: a simultaneidade, a eleição múltipla, a relatividade e a fusão instantânea de todos os sentidos em universos paralelos de possibilidades alternativas."

O circuito neurogenético é ativado quando o sistema nervoso começa a receber sinais do interior da genoma individual, por meio do diálogo DNA-RNA. Aqui o Ser se torna consciente de seu Destino. Para Leary, esta mutação leva a diferentes tipos de experiências "fora do corpo": "recordações de vidas passadas", "projeções astrais", etc. Wilson associa esse circuito ao "inconsciente coletivo" de Jung e ao "inconsciente filogenético" de Groff e Ring.

E o circuito neuroatômico é ativado quando o sistema nervoso é percebe sua fonte de energia quântica, a luz e a idéia de espaço-tempo são eliminadas. A barreira einsteiniana da velocidade da luz é transcendida e escapamos da realidade eletromagnética das coisas e dos objetos para viver em um universo relacional. Para Leary, a "consciência atômica" é a conexão explicativa máxima do homem, que no futuro unirá a parapsicología e a parafísica na primeira teologia científica, empírica e experimental da história. E para Wilson, "o 'cérebro' cósmico inteiro micro-miniaturizado na hélice do DNA, é a inteligência local guiando a evolução planetária." Ou como disse Lao-tse: 'O maior está dentro do menor'. Neste modelo quaternário, portanto, a cognição ordinária é composta por quatro circuitos neurológicos (Consciência, Ego, Mente e Personalidade) e a cognição extraordinária é construída, hipoteticamente, por quatro circuitos sinápticos (neurosomático, neuroelétrico, neurogenético e neuroatômico). E cada circuito extraordinário corresponde ao desenvolvimento de um circuito ordinário.


Personalidade
(Cognição Ordinária)


Individualidade
(Cognição Extraordinária)


Circuito da sobrevivência (ou a Consciência) Corpo
Físico


Circuito neuroatômico ou Espírito


Circuito das emoções (ou o Ego) Corpo Vital ou
duplo-etéreo (00-07)


Circuito neurogenético ou Alma Intuitiva ou Atma (56-63)


Circuito da linguagem (ou Mente) Veículo Mental
(07-14)


Circuito neuroelétrico ou Alma Inspirativa ou Buddhi (49-56)


Circuito sócio-sexual (ou a Personalidade) Corpo Astral
(14-21)


Circuito neurosomático ou Alma Imaginativa ou Manas
(42-49)


Na verdade, este modelo esboçado a partir das idéias de Leary e Wilson é semelhante ao modelo biográfico da Antroposofia de Rudolf Steiner, em que: aos 42 anos, há a possibilidade de construir uma alma imaginativa (ou manas) a partir do corpo astral; aos 49 anos, há possibilidade de desenvolver uma alma inspirativa (ou buddhi) a partir da mente; e aos 56, há possibilidade de formar uma alma intuitiva (ou atma) a partir do corpo vital. Ao invés do desabrochar de almas a partir de corpos como pensava Steiner, pensa-se agora em termos de desenvolvimento de circuitos cerebrais potenciais simétricos aos circuitos já existentes, mas trata-se apenas de uma diferença de linguagem.

Também são possíveis analogias e contrapontos com outros modelos, como o de Estados de Consciência x Estágios de Desenvolvimento, elaborado por Ken Wilber, como veremos adiante. Porém, o importante é ressaltar a relação de oposição paradoxal entre o ordinário e o extraordinário, entre o que conhecemos e o que desconhecemos e acreditamos ser simétrico ao conhecido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LEARY, Timothy. As sete línguas de Deus. New York: Thompson and Brothers,1961.
WILSON, Robert Anton. Os sete cérebros de Leary. Fragmento de texto na internet, tradução anônima, original datado de 1987.

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