sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O Espelho de Oxum

Conta à lenda que, em um tempo imemorial, o rei Xangô, orixá escolhido por Oxalá para governar a terra e os outros deuses, tinha diversas esposas. As duas mais importantes eram Yansã, a Senhora das Tempestades, e Oxum, cujo domínio se estendia pelos rios, lagos e cachoeiras.

Certo dia, enciumada da preferência de Xangô pela sua adversária; Yansã decidiu vingar-se de Oxum e, em um raio intempestivo de cólera, investiu contra a mãe das águas doces, quando esta se banhava nua às margens de um grande lago, tendo apenas um espelho entre as mãos. Devido ao fato de não ser uma guerreira, mas uma mulher dócil e vaidosa, afeita apenas aos expedientes da Sedução e da Dissimulação para se defender; Oxum viu-se completamente indefesa frente à ira arrebatadora da Rainha dos Raios. Oxum, então, rezou a Oxalá e, em um instante mágico, percebeu que o Sol brilhava forte nas costas de sua agressora. Rapidamente, ela utilizou seu espelho para refletir os raios solares de forma a cegar Yansã.

Ao saber da vitória de Oxum, o rei Xangô reafirmou sua preferência pela Senhora das Águas, que além de mais bela e delicada, provou ser também mais poderosa que a Senhora das Tempestades.

Um Objeto Singular

O espelho aparece em inúmeros mitos e ‘reflete’ um sentido claramente universal porque tem um valor cognitivo e epistemológico. Ele é um símbolo da consciência. Consciência entendida não apenas como ‘auto-imagem social ou profissional’, mas, sobretudo como identidade psíquica profunda, a verdadeira face sob as máscara do ego, a centelha luminosa, o reflexo interior do Fiat Lux. Platão e Plotino o comparavam à alma, metáfora que em seguida foi adotada por Santo Atanásio e Gregório Niseno. Mas é com São Paulo que o Espelho se torna um valioso símbolo de transformação, um duplo instrumento para o conhecimento antropomórfico de Deus e para o conhecimento cosmológico do Homem.

"E nós todos que, com a face descoberta, refletimos como em um espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente, pela ação do Senhor, que é o Espírito. (...) Agora vemos em espelho e de maneira confusa, mas, depois, veremos face a face. Agora o meu conhecimento é limitado, mas, depois, conhecerei como sou conhecido.” (1)

Mas se o Espelho é símbolo do auto-conhecimento místico, da imagem e semelhança onde o Homem e Deus se refletem, ele também aparece constantemente como metáfora da ilusão narcísica, como confidente da beleza egóica, como um reflexo invertido da realidade. O símbolo da verdade é, ao mesmo tempo, signo da falsidade e da ilusão. E certamente foi este caráter paradoxal e contraditório que criou ‘O fascínio dos Espelhos’.

Das inúmeras narrativas onde este fascínio se manifesta escolhemos o mito nagô do Espelho de Oxum, originariamente recolhida por Pierre Verger na África (2), pois ele apresenta vários elementos simbólicos importantes para caracterizar o funcionamento arquetípico dos mitos que constituem o dispositivo especular e sua estratégia epistemológica. Antes, porém, de analisar os diversos aspectos simbólicos desta lenda mítica, vamos estudar como o tema do espelho se manifesta em outras narrativas de diferentes culturas, procurando identificar suas relações com um arquétipo único, que possa esclarecer o papel universal que o Espelho desempenha na lenda nagô.

Pelo fato de não emanarem luz própria, mas de refleti-la, os espelhos foram associados à Lua durante toda Antiguidade. Desta associação chave, sobrepuseram-se as que relacionam o Espelho ao feminino e à sua beleza. O simbolismo lunar do Espelho, no entanto, não se limita às mulheres e aos poetas que lhes cantam a beleza, mas encontra lugar também entre os feiticeiros e mágicos, que utilizavam as superfícies espelhadas para entrar em transe, como é o caso dos xamãs siberianos.

Possivelmente, a tradição de utilização mágica do espelho tenha tido sua origem no fato de ele ter sido usado na astronomia/astrologia para determinar o movimento das estrelas no céu. Não é sem motivo que o verbo especular, operação mental, procede do latim especulum, que originariamente significava observar o céu, admirar e estudar suas constelações. Como os estudiosos da ciência dos astros desta época, invariavelmente, eram também magos, os espelhos foram, gradativamente, interiorizados. ”De modo que” - comenta o cabalista Mario Satz (3) - “o espelho não somente está fora de nós, como um artifício metálico, disco polido entrevisto no toucador ou no harém, mas se encontra também entre os hemisférios cerebrais, que invertem o contemplado transladando o esquerdo ao direito e vice-versa.” É curioso observar que este duplo processo de representação da realidade através de espelhos se desenvolveu paralelamente em diversas culturas antigas - na China, na Índia, no Oriente Médio e no Mediterrâneo - gerando diferentes mitologias astrológicas, mas uma única concepção universal de representação.

A contemplação deste ‘espelho interior’ é particularmente rica entre os místicos sufis, que o entendem em um sentido semelhante ao de São Paulo, como a imagem de Deus e do Homem. “Deus é, pois” - escreveu Ibn Árabi de Múrcia (4) - “o espelho no qual tu mesmo te vês; do mesmo modo que tú és seu espelho em que Ele contempla seus nomes”. Outro místico sufi, Shabistari, é ainda mais específico em seu Jardim do Mistério

“O não-ser é um espelho, o mundo uma imagem, o homem é o olho dessa imagem, e Ele a luz do olho. Quem alguma vez viu o olho através do qual todas as coisas são vistas? O mundo se tornou homem, e o homem, mundo; não há explicação mais clara que essa. Quando olhas atentamente no coração da matéria, Ele é ao mesmo tempo a visão, o olho, a coisa olhada. A Santa Tradição nos legou isto, e sem olho nem ouvido o demonstrou”. (5)

Também o Zohar, recomenda que, para que o homem possa conhecer a Glória, utilize-se de um espelho, observando-a indiretamente para não ser cego por sua luminosidade resplandecente. Ou seja, o tema do Espelho é uma unanimidade entre os místicos, sejam judeus, cristãos ou mulçumanos. Este curioso consenso talvez explique a crença, também universal, de que quebrar um espelho acarreta em um longo período de azar ou má-sorte. Também a crença de que as ‘criaturas sem alma sob a forma humana’, como os vampiros e os zumbis, não têm suas imagens refletidas no Espelho; deve ter sua origem na associação universal dos espelhos à imagem holográfica de Deus no Homem, feita em diversas épocas por diferentes religiões.

Adiante, quando analisarmos a lenda de Oxum, veremos como, devido a sua associação universal com a Lua, o Espelho guarda uma relação direta com o simbolismo aquático, mas dele se diferencia por refletir a luz do fogo elementar. Agora, o importante é que se entenda que quando se fala do simbolismo do Espelho não se trata apenas da mitológica ilusão de Narciso ou ainda da fútil vaidade feminina, mas também da contemplação mística à luz de um limbo transcendente.

Mas se o Espelho serve para que as donzelas e cortesãs reforcem seus egos e para que os sábios místicos se desvencilhem dos seus, ele também é uma poderosa arma de guerra, utilizada para atear fogo gerar à distância através de raios luminosos, como no célebre episódio atribuído a Arquimedes de Siracusa, que com um gigantesco espelho catóptrico incendiava os navios que tentavam invadir a antiga ilha da Sicília.

De todas as lendas envolvendo espelhos como arma a mais conhecida é, sem sombra de dúvida, a luta de Kadmo contra a Medusa, narrada por Platão no Timeu. Nesta narrativa, o herói vence a terrível górgona, cuja o olhar tem o poder de transformar seus oponentes em pedra, com a ajuda de um espelho preso ao seu escudo. Kadmo fez com que a Medusa visualizasse sua própria imagem refletida no espelho e tivesse o mesmo destino de suas vítimas, petrificando-se para sempre. Ou seja, o espelho é uma arma capaz de fazer com que o outro se reconheça, com que o adversário tome consciência de si e de suas projeções. O mal reconhecendo a si mesmo como tal, perde toda a sua eficácia e sucumbe a sua própria consciência.

Talvez por isso, em seu livro De Natura Deorum, Cícero lembra que o Espelho é uma invenção de Esculápio, o deus da medicina; e os antigos sacerdotes nahuas do México costumavam levar um espelho pendurado no peito para que os “demais (homens) descobrissem seu verdadeiro rosto e ser corrigissem”(6). Pena que este expediente simbólico não tenha funcionado com os conquistadores espanhóis. Estes, aliás, realizaram boa parte da conquista das Américas a custa da sedução de miçangas e dos espelhos, presenteando-os aos indígenas, para que enquanto eles se distraíssem com seus reflexos, não percebessem o que se tramava às suas costas. Caberia ainda lembrar que a sobreposição de temas aparentemente contrários fez do Símbolo do Espelho uma metáfora do paradigma epistemológico pré-científico e, posteriormente, devido a sua reflexibilidade passiva frente ao pensamento consciente, o Espelho passou a ser comparado com o próprio inconsciente - como detalhamos a seguir sobre as relações do dispositivo especular com as ciências humanas.

A Porta do Inconsciente.

‘Espelho, espelho meu, existe algum intelectual mais sabido do que eu?’ Num primeiro nível, a reflexão sobre o espelho sempre será um questionamento do ego sobre si mesmo. Mas o espelho nunca responde, ou melhor, nunca discorda, ao contrário, seu silêncio eternamente cúmplice se faz íntimo das mais desmesuradas comparações.

Entretanto, é este primeiro momento de reflexão, embora sempre reafirme a identidade, que revela a objetividade do subjetivo, pois permite que o observador se observe, imaginando como será visto pelos outros. E desta reflexão primeira da consciênca é que (re)surgem as grandes idéias e os grandes empreendimentos. “Realidade ou alucinação, os mundos ordenados com estes instrumentos de precisão revelam a reversibilidade de todas as coisas: a certeza do aparente, a incerteza do existente.”(7) Aqui o Espelho é comparada a um grande lago de águas límpidas e cristalinas, como um campo projetivo da experiência humana, onde o homem pensa e repensa sua identidade.

Rompendo com esta primeira perspectiva estética, o tema de entrar através do Espelho em um mundo imaginário, presente, por exemplo, em Alice de Lewis Carroll, tornou-se lugar comum na atualidade, principalmente em Vídeo-Clips de bandas de rock e filmes de ficção cientifíca. Interessante é observar que este ‘mergulho no inconsciente’ sempre parece demarcar os limites a realidade virtual e a vida cotidiana, para a qual o protagonista sempre volta ao final da narrativa. É uma fuga do ego para fantasia e seu invariável retorno. Em muitos casos, o tema do espelho se confunde com o símbolo do Sósia, do Outro, do Duplo. (8)

É como se contemplar no espelho:
A forma e o reflexo se observam.
Tu não és o reflexo,
Mas, o reflexo és tú.

O reflexo, no entanto, não é apenas uma sombra: em algumas narrativas, o duplo se rebela contra sua matriz; em outras, o Sósia se liberta de uma dimensão paralela existente através do Espelho. Em todas podemos observar a idéia de porta dimensional e em boa parte a idéia da imagem refletida, do duplo como um veículo do Eu para viagens imaginárias, um ‘corpo astral ou sonhador’. Mesmo nas estórias onde o Sósia se rebela contra o protagonista e adquire vontade própria, existe esta relação, pois o Outro se revolta contra sua função original que é a de representar a forma no mundo dos reflexos, de duplicar o ego em uma imagem que possibilita o autoconhecimento. Porém, os espelhos guardam ainda um sentido mais profundo.

Entre os tibetanos, a Sabedoria do Grande Espelho ensina o segredo supremo: que o mundo das formas que ali se reflete não é mais que um aspecto do sunyata, da vacuidade. Patanjali (9) chamou esse conhecimento de ‘fluxo imóvel’ e não são raros relatos semelhantes dos místicos de diferentes tradições. Para eles, o Espelho é símbolo da transcendência temporal, da a-historicidade, da superação da continuidade da percepção sensorial pelos lampejos da eternidade.

Poderíamos, então, concluir que os mitos do Espelho simbolizam a própria representação, não se constituindo ou representando um único arquétipo, mas a própria noção de ‘inconsciente coletivo’ ou de unidade fundamental da experiência simbólica. Representando a própria representação, os espelhos são símbolos da realidade simbólica, são, assim, imagem paradigmática ou um dispositivo complexo, cuja a ambivalência expressa sempre um paradoxo: verdade absoluta e ilusão passageira, beleza superficial e profunda sabedoria, arma e remédio, alienação social e reintegração psíquica, etc,

Mas se vemos no Espelho este emblema de alma coletiva, ou pelo menos, se encontramos nele um símbolo da cultura ou a metáfora mais abstrata e paradigmática da linguagem, podemos comparar seus reflexos sintagmáticos aos arquétipos, pois enquanto o dispositivo especular enfatiza a diferença, seus espectros sempre reafirmam a identidade simbólica. Em si, os reflexos nunca são ambivalentes, eles são apenas imagens duplicadas. Já o Espelho não é uma simples estrutura duplicadora porque contextualiza e até transforma a realidade, uma vez que remete o observador a uma contemplação do conjunto da representação.

Enquanto os reflexos nos encantam e nos enganam como identidades arquetípicas, o Espelho representa a consciência de que essas identidades são passageiras e parciais. O Espelho é um convite à eternidade, como, aliás, sugerem as muitas lendas que o associam à longitividade e à manutenção da beleza por meios sobrenaturais, das quais O Retrato de Dorian Gray é certamente a mais conhecida.

Muito ainda poderia ser dito sobre os espelhos e sua vastíssima simbologia, porém já reunimos os elementos necessários a análise da lenda nagô a que nos propomos inicialmente. Voltemos agora, portanto, ao mito do Espelho de Oxum.

No Universo dos deuses nagôs

A narrativa começa dizendo que Oxalá, ‘em um tempo imemoriável’, delegara o governo da terra e dos deuses a Xangô, se comportando como um ‘deus oticius’ ou uraniano, que cria o mundo e o entrega à administração de um de seus filhos, deuses menores. Por uma feliz coincidência, este conceito de ‘Deus-pai’ existente ‘para além dos céus’ foi estabelecido por Mircea Eliade (10) justamente estudando a cultura Iorubá, onde Olorum se retira entregando todo poder a Obatalá.

O início da narrativa expressa, portanto, um duplicação do mito cosmológico. Trata-se de um ‘tempo imemorial’, mas não de um tempo ‘primordial’. Poderiamos, fazendo uma analogia grosseira entre as mitologias grega e nagô, dizer que se Olorum corresponde a Urano, Obatalá/Oxalá, apesar de seu papel eminentemente solar na lenda analisada, seria a versão africana de Cronos/Saturno, e ainda que Xangô, terceira geração divina a ocupar o poder, corresponderia a Zeus/Júpiter.

Aliás, como já falamos de passagem, não são poucos e pequenos os elementos simbólicos comuns entre Xangô e o rei dos deuses gregos e romanos, pois ambos têm machados sagrados, lançam raios do alto de suas montanhas, representam o arquétipo da Justiça e, sobretudo, têm múltiplas relações amorosas hierogâmicas com diversas deusas que representam diferentes aspectos da Natureza, sempre feminina.

Em nossa estória, temos uma luta, não entre duas mulheres, mas entre dois destes aspectos femininos da natureza: Yansã, Rainha dos Raios, dos Ventos e das Tempestades, senhora dos eguns e do mundo dos mortos; e Oxum, Mãe das Águas Doces e senhora do jogo de adivinhação do Ifá. Oxum também é uma deusa do amor e da beleza, uma ‘Afrodite nagô’.

Os temperamentos das deusas são bastante opostos. Oxum exemplifica a mulher aparentemente submissa e dócil, mas, na verdade, sedutora e dissimulada. Yansã, ao contrário, encarna o ideal de uma mulher independente e sincera, mas de gênio irascível. É também a orixá feminina que tem mais relacionamentos amorosos com outros deuses, característica que, no entanto, não a fez menos ciumenta e possessiva. A Senhora das Águas nada podia contra a força dos ventos. Oxum não poderia se valer de suas armas habituais, a sedução e a mentira, mas para invocar o poder solar de Oxalá (o self), ela teve que transcender sua condição narcista e reflexiva. A superação desta vaidade inicial do espelho é que permite a Oxum usá-lo como uma arma real e não como um ‘instrumento psicanalítico’ feito o herói Kadmo diante da medusa. E este é um ponto chave desta lenda: apenas com a ajuda do elemento Fogo, a Mãe das Águas se torna também a Senhora do Espelho e vence Yansã. E assim conquista definitivamente a preferência de Xangô.

Pode-se também pensar o embate das duas deusas como uma luta entre um feminista militante contra uma dondoca. Mas essa forma de pôr as coisas não nos ajudará a entender o desfecho da lenda senão como uma advertência moralista de que o comportamento feminino mais adequado seja o da submissão dissimulada e não o da liberdade, autonomia e igualdade frente ao masculino. Entretanto, esta leitura é equivocada.

A mitologia nagô é amoral e não está preocupada em ditar modelos morais de comportamento. Na verdade, a vitória de Oxum tem dois significados para os Iorubás: representa, primeiro, do ponto de vista da agricultura, a preferência pelas chuvas moderadas atribuídas a Oxum como Orixá da Fertilidade do que pelas tempestades simbolizadas pelo casamento de Xangô com Yansã. E, no plano religioso, a vitória de Oxum representa a superioridade da atividade divinatória simbolizada pelo espelho (inconsciente coletivo) sobre a necromancia e o culto aos antepassados, representado pelo aspecto ctônico e intempestivo da Rainha dos Raios.

Mas esta tendência ocidental em ver uma espécie de ‘Eva’ em Oxum e uma ‘Lilith’ em Yansã tem uma razão de ser. Deixemos por hora esta questão e voltemos mais um vez ao tema do espelho, procurando agora observar como a lenda de Oxum é decisiva para sua compreensão.

A Caverna de Platão

De todas alegorias ou metáforas envolvendo o tema do espelho, a de maior significação epistemológica certamente é a da imagem paradigmática da Caverna descrita por Platão (11):

Acorrentados de costas para a luz em um cárcere subterrâneo, os prisioneiros só podem ver, dos homens, animais e figuras que passam pelo exterior, as sombras projetadas no fundo da Caverna. Quando um dos prisioneiros se liberta e retorna ao mundo exterior, é cego pela luminosidade do Sol e só aos poucos consegue se adaptar à nova realidade. Percebe, então, que o mundo no qual vivia era irreal e inconsciente, feita de sombras e reflexos das coisas. Porém, o prisioneiro correria sério risco de vida se, retornando ao interior da caverna, procurasse revelar aos seus antigos companheiros a irrealidade do mundo em que se encontram. Provavelmente, eles o matariam.

Nesta imagem genial, Platão não apenas resumiu sua concepção sobre a realidade e a linguagem, mas também nos trasmitiu sua experiência pessoal, mais precisamente, sua explicação filosófica para o trágico destino de seu mestre, Sócrates, forçado a beber veneno pelas autoridades atenienses em virtude de sua defesa intransigente de uma visão mais objetiva da realidade. E não foi o único. Giordano Bruno geralmente costuma encabeçar a longa lista dos mártires da ciência e do pensamento objetivo vitimados pela ignorância dos homens escravizados pelas representações subjetivas da realidade.

Entretanto, o desenvolvimento do pensamento científico não foi, como nos faz pensar o senso-comum, um gradual acumular de informações, mas, ao contrário, uma série de reviravoltas metodológicas, com sucessivas trocas de modelo. O próprio conceito de paradigma - ‘conjunto de estruturas cognitivas e epistemológicas’ - surgiu de uma longa discussão metodológica em torno das revoluções científicas (12).

Hoje, no entanto, vivemos um momento em que a racionalidade científica e sua visão objetiva do universo destroçaram a maioria das ilusões ideológicas das representações subjetivas. Poderíamos dizer, utilizando a imagem de Platão, que todos os homens se libertaram da caverna e do seu espelho, e que agora desprezam as imagens fantasmagóricas a que estavam acostumados no cativeiro. Neste novo contexto, as sombras tornaram-se símbolos do inconsciente - a que os ‘homens racionais’ negam, mas que voltam em seus sonhos e nas reflexões involuntárias de sua imaginação. Movidos pelo auto-conhecimento, os homens que atualmente decidem ‘voltar à caverna e ao seu velho espelho’ são considerados loucos ou excêntricos. Não se trata mais de conhecer a objetividade, mas de observar o desenvolvimento da consciência inter-subjetiva, de entender sua linguagem.

Assim, por exemplo, no paradigma científico da astronomia, sabemos que a Terra gira em torno do Sol; no entanto, continuamos dependendo simbolicamente do paradigma subjetivo da astrologia, que como uma linguagem do inconsciente, condiciona atitudes e comportamentos. Aliás, ao contrário do que pensam os historiadores da ciência, o sistema geocêntrico não significa que Ptolomeu acreditasse que o Sol girasse em torno da Terra, mas sim que ele colocava a questão da representação objetiva do universo em um segundo plano diante da idéia de decifração do destino através da observação especular das estrelas.

A tarefa metodológica que nos é contemporânea é estabelecer um terceiro paradigma de representação que concilie a objetividade científica com a função simbólica da linguagem desenvolvida pelo hemisfério esquerdo do celebro, que integre nosso conhecimento astronômico em uma nova simbologia astrológica, que relacione o espelho no fundo da caverna ao sol e ao mundo exterior.

Os ocultistas modernos estudiosos da Cabala hebraica (13) têm uma curiosa teoria a respeito de Deus, do Homem e da Mulher. Para eles, o fato do Homem ser a imagem e semelhança de Deus implica em que ambos jamais possam se ver frente a frente. Mas a mulher, devido ao fato de ter seu sistema neurológico invertido em relação ao masculino destro, pode ver Deus face a face. De acordo com este preceito, os homens nos rituais de magia e cerimônias religiosas deveriam se manter sempre de costas para o altar e de frente para participantes femininas - o que de fato acontece em diversas religiões.

Nesta proposição, enquanto o Homem é a imagem e semelhança de Deus, a Mulher é seu inverso simétrico, seu espelho. Assim, o Homem só pode ver a Deus através da mulher e Deus necessita dela para dar luz ao seu filho. Esta posição de ‘reflexo primordial’, de mediação entre o Criador e a criatura também tem um caráter universal entre as diversas deusas que representam a grande mãe cósmica. Assim, se ‘o universo é um sonho de Brahma’, se ‘o mundo foi criado para que Deus se reflita nele e conheça a Si próprio’, este espelho, segundo momento cosmogômico de muitas mitologias é sempre um elemento ‘feminino’.

Neste sentido geral e estritamente simbólico é que podemos associar Oxum à Eva e ao arquétipo feminino genuíno, enquanto Yansã, de costas para o sol, corresponderia ao arquétipo do feminino masculinizado. O significado central da narrativa está no fato de Oxum, devido à situação de perigo iminente, transcender a sua condição de mulher-objeto e se associar ao Sol, de abandonar o uso reflexivo tradicional de seu espelho e utilizá-lo de uma forma tecnológica, racional, solar; como uma arma laser. A lenda, desta maneira, representa a união cognitiva entre os hemisférios celebrais e a integração epistemológica dos paradigmas.

No Espelho, encontramos a interseção de duas formas de viver e de pensar o tempo: o transcorrer gradativo dos acontecimentos registrados pela memória e o eterno presente do mundo virtualizado das idéias. Ou, como dizia Santo Agostinho, “a memória das coisas dos homens e a memória das coisas de Deus”.

Chegamos ao final. Resta apenas a lembrança àqueles que não se reconheceram neste texto, que por mais que procurem um outro duplo com o qual se identifiquem, sempre encontrarão o sentimento de incompletude tão próprios dos espelhos e da instantaneidade dos seus múltiplos reflexos - dada à vastidão e à complexidade deste tema permanente.

Ou eterno?

NOTAS

(1) 2Coríntios 3,l8 e 1Coríntios l3,l2 - Novo Testamento, Bíblia. Edições Paulineas. l988.
(2) A Lenda foi reescrita a partir da versão da revista Planeta Especial - Os Orixás. Ed. Três. l982.
(3) SATZ, MARIO. O Dador Alegre. Ed. Ground. 1991.
(4) Ibdem.
(5) BALTRUSAITIS, JURGIS. El Espejo. Madri: Miraguano. 1988. Citado por Satz, M. Ibdem.
(6) Ibdem
(7) E. MEYEROVITCH. Les Songes et leur interpretation chez le Persans, Paris, 1959.
(8) MAESTRO TOZAN. Hokyo Zan Mai, Samadhi del Tesouro Ilusorio. Adiax, Barcelona. 1981.
(9) SATZ, MARIO. Ibdem.
(10) ELIADE, MIRCEA. Tratado Histórico das Religiões.
(11) Reescrito a partir da narrativa descrita no Timeu, Ed. Abril.
(12) KUNH, THOMAS. A Estrutura das Revoluções Científicas. Perspectiva.
(13) FORTUNE, DION. A Cabala Mística. Ed. Pensamento. 1986.

Os erros de Leônidas


Equívocos de Interpretação Dialógica

Por ocasião da segunda invasão dos persas à Grécia, o general Leônidas, rei de Esparta, foi até o Oráculo de Delfos perguntar sobre a possibilidade do exército espartano, de apenas 300 homens, enfrentar sozinho cinco mil persas no desfiladeiro das Termópilas. A pitonisa psicografou o seguinte: “Vais. Vencerás. Não morrerás lá”. E o general Leônidas, então, foi para a guerra e morreu junto com seus 300 espartanos. Seu filho, que também se chamava Leônidas, foi a Delfos cobrar a sentença do oráculo. Quando mostrou o papel psicografado, a pitonisa do templo leu: “Vais. Vencerás? Não. Morrerás lá”.

As Linguagens Simbólicas
Na estória do general Leônidas (originalmente contada por Heródoto, adaptamos a estória a partir de uma versão recriada por Monteiro Lobato, na Gramática da Emília), considerada por muitos como um desrespeito ao oráculo de Apolo, encontram-se muitos elementos valiosos para esclarecer alguns equívocos paradigmáticos muito freqüentes não apenas na arte divinatória, mas também em outras formas de investigação que a sucederam na intenção de desvendar o futuro e evitar a adversidade. Os mesmos equívocos epistemológicos cometidos na interpretação do oráculo pelo general espartano podem ser encontrados em discursos religiosos, filosóficos e até científicos.

O principal erro de Leônidas foi transferir a responsabilidade de seu destino para o oráculo, contrariando, assim, a célebre frase de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”. Infelizmente, a maioria das pessoas que freqüentam médiuns e cartomantes tem a mesma atitude do general espartano, pois, ao invés de um esforço sincero para se conhecerem melhor e tomarem suas decisões, elas querem saber de antemão o que vai acontecer.

A verdade, entretanto, é que não existem destinos fatais ou características pré-determinadas. Tanto na antiga arte divinatória como nas atuais ciências sociais, não são nem o ‘Destino’ nem o contexto social que determinam a consciência, mas o desenvolvimento moral e psicológico da consciência que liberta os homens de seu destino provável resultante do condicionamento social.

E, quanto mais o ser humano estiver consciente de si, a menos influências involuntárias estará submetido. Este era a intenção original da adivinhação: que os indivíduos percebessem a ação destas influências do inconsciente sobre si e alterassem o rumo de suas vidas através de sua liberdade.

Para tomar suas decisões mais importantes, os antigos chineses consultavam as rachaduras de um casco de tartaruga, exposto ritualmente a um ferro em brasa; os etruscos obedeciam aos deuses através do estudo dos relâmpagos; os caldeus reconheciam o universo nas vísceras de animais mortos. As técnicas e métodos primitivos de leitura do inconsciente estão sempre ligados a duas idéias fundamentais: a idéia de correspondência universal, segundo a qual pode-se conhecer o todo através de sua imagem em um fragmento; e a idéia de quebra da linearidade do tempo, da transcendência da duração contínua entre passado, presente e futuro - geralmente provocada pelo transe ou pela mudança do estado de consciência do adivinho. Os jogos de adivinhação são as associações e correspondências a que o homem chegou através da experiência da sincronicidade - a percepção da simultaneidade absoluta de todos os eventos. Com o tempo, a codificação dos sinais decifrados em transe estruturou o que chamamos de Linguagens Simbólicas do Inconsciente. Essas linguagens seriam formadas pela imagem arquetípica dos aspectos da natureza e ainda hoje estariam em permanente desenvolvimento.

Porém, com a progressiva dessacralização das culturas ancestrais - iniciada por volta de 1.500 a.C., com o aparecimento da vida sedentária nas primeiras cidades e da Escrita de codificação gráfico-fonética; sedimentada pelo pensamento filosófico desencadeado por Sócrates e Platão; e, concluída pela industrialização generalizada de todos os objetos e pelo desenvolvimento do pensamento científico - a antiga arte divinatória e suas linguagens simbólicas foram destronadas pela filosofia da objetividade e relegadas à condição de superstição e de crendice. Nas sociedades tradicionais, sem subjetividade individual nem objetividade uniforme, as artes divinatórias representavam a síntese hermenêutica do conhecimento humano; na modernidade, elas foram rebaixadas pelo pensamento científico a uma mistura vulgar de sugestão hipnótica com “sub-psicanálise”, as diversas ‘mancias’: a cartomancia, a geomancia, a quiromancia.

Sabe-se que, nos primórdios da História, o nômade paleolítico caçava durante a lua cheia e, em sua caverna na lua nova, dedicava parte da caça ao ‘senhor das feras’, como forma de agradecimento e pedido de sucesso em novas empreitadas. Segundo Mircea Eliade (1), as imagens desenhadas nas cavernas tinham um caráter mnemônico, ou seja, eram objeto de culto e invocações durante os rituais sangrentos da lua nova. Elas eram um meio mágico pelo qual o homem arcaico simbolizava seus desejos.

Certo dia, no entanto, o caçador nômade desejou ‘caçar’ uma mulher ou derrotar um inimigo e acabou desenvolvendo um panteão para manipular as forças de seu universo cosmológico. Assim, para conquistar uma fêmea, ele deveria sacrificar determinados animais, vegetais e objetos com características comuns, a uma deusa aquática, como a deusa grega Afrodite, a Venús latina ou a deusa nagô Oxum dos afro-americanos. Já se o desejo era o de derrotar seus inimigos, ele invoca um deus guerreiro do fogo, como Ares, Marte ou Ogum, ou mesmo um demônio protetor do seu clã. Este panteão primitivo, que encarnava diferentes aspectos da natureza mesclados com o culto aos antepassados, foi, não apenas a primeira manifestação religiosa de que se tem notícia, mas também, o mais antigos registro da cultura humana.

A própria palavra ‘adivinhar’ significa literalmente ‘falar com os deuses’ e por isto a atividade passou a ser exercida exclusivamente por membros da classe sacerdotal ou por suas diferentes variações xamânicas e místicas. Porém, com o aparecimento das primeiras cidades e da vida sedentária, o homem evoluiu do estágio lunar-maternal para uma nova estrutura social e para um novo paradigma de representação. Enquanto o aparecimento da escrita fundou um novo tipo de cultura, o advento da agricultura impôs deuses e calendários solares e o poder político se ‘masculinizou’ em torno da imagem de reis freqüentemente considerados filhos ou descendentes das divindades solares.

Neste novo contexto, as linguagens simbólicas se tornaram mais probabilísticas e menos mágicas. Tratava-se então de prever os acontecimentos e não de controlá-los; de conhecer antecipadamente o destino a longo prazo e não de satisfazer às necessidades imediatas. Neste sentido, a arte divinatória incluía conhecimentos de medicina, meteorologia, administração pública e estratégia militar - além do necessário conhecimento psicológico do transe e dos elementos cognitivos que estruturavam a linguagem dos dogmas religiosos.

Os ‘deuses’ não eram mais simples personificações de forças naturais, mas também representavam simultaneamente lugares, vocações, dramas arquetípicos que fundavam costumes e tradições - estavam, portanto, muito longe da representação dos ‘tipos psicológicos’ modernos, como os atuais signos astrológicos e os orixás. Na Antigüidade não havia o que chamamos de ‘adivinhação individual’. Até mesmo os oráculos dos reis não se referiam a eles como pessoas mas como instituições. Nas artes divinatórias primitivas o que importava era a interpretação e a manipulação das forças naturais e não o destino individual dos consulentes. Ao contrário: a idéia de destino individual era constantemente ‘sacrificada’ em nome da harmonia cósmica.Muitos autores associam o aparecimento dos primeiros alfabetos a esta ‘racionalização solar’ dos símbolos arcaicos da adivinhação primitiva, ou pelo menos, que várias escritas ideográficas anteriores ao predomínio dos idiomas Indo-europeus (de codificação gráfico-fonética) foram marcadamente influenciados por técnicas divinatórias, tais como o chinês, o sânscrito, o hebraico antigo, os alfabetos rúnicos e os hieróglifos egípcios.

Jean Nougayrol (2), por exemplo, estudou a evolução dos sinais da auruspicia mesopotâmica nas culturas assírica e babilônica. O vocabulário técnico desta modalidade de adivinhação, em um primeiro período, contava com cerca de seis mil sinais de tipo funcional, sendo comparável à nossa toponímia cerebral. Havia uma relação direta entre cada símbolo e o objeto ou ação concreta representada. Com o passar do tempo, segundo Nougayrol, os sinais - que representavam diretamente as idéias mnemônicas do universo primitivo - foram sendo gradativamente agrupados e reduzidos, no sentido de representarem o panteão astrológico, passando a associar sons, fonemas a elementos da mitologia. Assim, os sinais da escrita cuniforme são o resultado de um longo processo histórico de simplificação dos símbolos arcaicos da auruspicia e de sua utilização de seus oráculos nas genealogias reais e nos calendários. É importante ressaltar que esta ‘racionalização’ dos sinais mnemônicos seguiu a evolução dos dogmas religiosos dos caldeus, os primeiros a apresentarem um panteão astrológico-solar completo, formado por uma trindade cósmica, sete divindades planetárias e doze entidades zodiacais. O fato de alguns alfabetos, como o hebreu, possuírem 22 letras (3+7+12) levou a maioria dos ocultistas modernos a sustentarem que as imagens das cartas de Tarô derivariam de uma linguagem universal, ou dos sinais das escritas ideográficas.

Hoje este modelo astrológico não nos serve mais de paradigma de observação científica dos céus mas continua válido como ‘Themata’ ou paradigma simbólico . Assim, no paradigma objetivo da astronomia, sabemos que a Terra gira em torno do Sol; no entanto, continuamos dependendo simbolicamente do paradigma subjetivo da astrologia, que como uma linguagem do inconsciente, condiciona atitudes e comportamentos, através da associação de determinadas características psicológicas aos meses do ano, por exemplo. A ciência e o pensamento objetivo superaram apenas parcialmente o antigo paradigma de representação e esta ‘superação’ é uma questão muito relativa: ao contrário do que pensam os historiadores da ciência, a idéia de um sistema geocêntrico não significa que Ptolomeu acreditasse que o Sol girasse em torno da Terra, mas sim que ele colocava a questão da representação objetiva do universo em um segundo plano diante da idéia de decifração do destino através da observação especular das estrelas. Devido ao movimento de precessão do eixo da terra, os céus astrológico e astronômico não coincidem mais. Tal fato, paradigmático da relação geral entre cosmologia científica e cosmogonia simbólica, divide atualmente os astrólogos em dois grandes grupos: os defensores de uma atualização do simbolismo ao céu real e os que dissociam completamente a linguagem astrológica da realidade astronômica.

Hoje, quando vemos no cinema as imagens de heróis como o agente 007 ou de estrelas Elizabeth Taylor não estamos distantes dos arquétipos marcianos e venusianos adorados nas cavernas. As linguagens simbólicas do inconsciente continuam na base do processo cognitivo, formando um importante patrimônio cultural coletivo com o qual não cessamos de interagir.

E mais: apesar das inúmeras diferenças epistemológicas dos modus operandi entre o conhecimento científico e o saber tradicional, ambos têm um único objetivo: evitar o infortúnio e a adversidade, procurando antecipar os acontecimentos para controlá-los. Infelizmente, as tentativas de fazer uma aproximação entre os dois saberes foram, até o momento, muito modestas. É claro que muitos trabalhos já enfatizaram a importância da imagem e do arquétipo em diferentes domínios epistemológicos (publicidade, psicologia, educação). Entretanto, ainda são escassas as iniciativas que pesquisam os efeitos e os limites do papel que os arquétipos desempenham na própria interpretação. Em seu prefácio a tradução alemã do Livro das Mutações (3), Jung esbouça pela primeira vez uma explicação científica sobre o fenômeno da adivinhação a partir de suas teorias da sincronicidade e do inconsciente coletivo. Este trabalho é retomado e desenvolvido por Marie-Louise Von Franz (4), que estuda diferentes gêneros de adivinhação à luz das categorias junguianas. Tornou-se lugar comum dizer atualmente que o tempo é a quarta dimensão do espaço físico e que ‘o passado e o futuro só existem no presente’. Os jogos de adivinhação procuram saber como as causas passadas e as possibilidades futuras condicionam o presente, como estes dados estão estruturados no inconsciente. Quando jogamos as cartas do Tarô, por exemplo, cada combinação particular espelha a situação alma do consulente, sua vida interior, para que ele tome consciência de como seu passado e seu futuro estão ‘organizados dentro de si’.

No entanto, a verdade é que levamos algum tempo para compreender a real natureza do tempo e os limites epistemológicos da previsibilidade. Recentemente, sob o nome de ‘experiência pré-cognitiva’, Danah Zohar (5) atualizou e ampliou a discussão iniciada por Jung sobre adivinhação e sua relação com a física contemporânea. É que, para escapar a concepção newtoniana de tempo linear e contínuo válido para todos os elementos de uma determinada totalidade, concepção universal e historicista (que no âmbito das ciências humanas poderiam ser representados por Marx e Max Weber); Jung e Von Franz incorreram em uma concepção einstiniana de um tempo relativista e sincrônico: a duração intrínseca do espaço físico.

Atualmente, graças aos teóricos da complexidade (Prigogine, Atlan, Morin), a descontinuidade e a sincronicidade de nossas memórias não são mais avessas à história e a irreversibilidade da vida. Ao contrário: agora elas se completam em uma visão que quer religar o universal ao particular, o global ao específico, o passado ao futuro. Trata-se agora de encontrar um equilíbrio entre um ‘querer involuntário’ formado pelo conjunto de fatores históricos determinantes e uma ‘consciência cognitiva’ forjada na seleção sincrônica das possibilidades. Esta nova concepção corresponde a noção de ‘múltiplos tempos simultâneos compreendidos dentro de um único tempo irreversível’ proveniente da mecânica quântica e oferece um novo paradigma de representação onde a previsibilidade de um evento dependerá, ao mesmo tempo, do simbólico e do científico, de uma leitura simbólica do inconsciente e do rigor crítico da sua interpretação (6).

“Vencer e voltar vivo” - era o desejo oculto no inconsciente do general espartano. Derrotar o exército persa com apenas 300 homens faria de Leônidas um herói nacional e daria a Esparta a hegemonia sobre toda Grécia. E este foi o segundo erro do rei espartano: movido pela vaidade e pela ambição política, Leônidas acreditou que seu desejo refletido pelo oráculo era a verdade.

Através de alguns simples procedimentos de sugestão hipnótica, qualquer cartomante pode induzir o consulente a escolher alguns desdobramentos do seu presente mediato, trabalhando suas perspectivas sociais e suas expectativas de desenvolvimento. Pelo reforço hipnótico dos desejos e projeções do consulente, o cartomante poderá até dizer fatos que realmente acontecerão. Mas isto não será uma previsão e sim uma manipulação psíquica, em que são reforçadas algumas possibilidades de desenvolvimento existencial em detrimento de outras. A grande maioria das pessoas procura na adivinhação apenas um reforço para seus desejos de ascensão social e/ou realização afetiva: uns desejam dinheiro, fama; outros querem viajar ou simplesmente casar e ter filhos.

“Qual é o perfil de sua felicidade?”- é a pergunta que o oráculo silenciosamente formula a cada inconsciente. Um adivinho experiente não reforça nem frustra os desejos das pessoas que procuram o oráculo, ele apenas faz com estas pessoas tomem consciência de como seus desejos estão estruturados no presente. Durante o processo de adivinhação, o consulente projeta seus conteúdos psíquicos dentro de uma determinada configuração, que representa sua situação existencial. O futuro é uma das possibilidades de desenvolvimento do presente. E a opção consciente por uma possibilidade determinada já significa uma transformação das condições do destino, porque altera substancialmente a situação imediata.

Por isso, a leitura do inconsciente não deve nunca se limitar à simples constatação da situação existencial do consulente, mas sim permitir uma reorganização psicológica de todos os elementos discursivos apresentados, deve promover uma transformação na situação enfocada. E para garantir essa intenção, deve-se sempre dividir o processo divinatório em duas etapas distintas, permitindo assim um autoconhecimento dinâmico, uma reflexão simbólica sobre a vida.

“Quais os elementos recorrentes e as tendências que condicionam sua presente situação existencial?” - será sempre a pergunta obrigatória da primeira metade de uma leitura do inconsciente, enquanto a segunda parte do processo deverá sempre romper com os fatores determinantes que se manifestaram, com a quebra do ciclo de repetição dos condicionamentos, representando a escolha de uma das alternativas de desenvolvimento apresentados. Dessa forma, a segunda parte do processo significará, então, a construção do seu próprio destino, transformando a ordem e o sentido dos arquétipos que antes condicionavam a situação.

A) Primeira parte: A SITUAÇÃO-PROBLEMA
§ Passado - principais recorrências biográficas e seus ciclos de repetição;
§ Futuro - principais tendências involuntárias e seus possíveis resultados;
§ Presente - situação existencial, contradição atual que impede o desenvolvimento e a auto-organização da pessoa.

B) Segunda parte: A ATITUDE-SOLUCÃO
§ Reorganização dos fatores condicionantes que formavam a situação anterior em um novo presente, adicionam ou retirando uma variável.
§ Escolha crítica de uma das alternativas possíveis do Destino.
§ Restruturação dos objetivos prioritários e da estratégia para realizá-los.

Assim, na primeira parte, o hermeneuta deve se prender à causalidade e buscar o mesmo rigor lógico e objetivo que um cientista na ‘verificação de uma hipótese’, observando a inter-relação da multiplicidade das condições e dos fatores determinantes de uma situação existencial. Já em um segundo momento, deve-se procurar se ater às possibilidades, às alternativas, às ‘hipóteses paralelas’, procurando se colocar do ponto de vista da sincronicidade, onde a coincidência dos fatores aponta sempre para uma transformação.

Dessa forma, os jogos de adivinhação, além de propiciarem um “diagnóstico”, também reprogramam o inconsciente, ajudando o consulente a modificar a situação em que se encontra. A adivinhação não é apenas a arte de decifrar problemas, mas também, sobretudo, a arte de descobrir alternativas: ajudar a escolher um futuro melhor dentre os diversos possíveis - eis o que deveria ser o papel legítimo dos oráculos!
E este foi o terceiro erro do general espartano: após delegar a responsabilidade de suas decisões ao oráculo e de se identificar acriticamente com seus desejos mais secretos, Leônidas não se preocupou em discutir alternativas. Entregou-se inconscientemente ao seu destino fatalmente determinado por si mesmo. Para não repetir os mesmos erros do general espartano, portanto, deve-se tomar algumas precauções em processos de leitura do inconsciente:

1) Ao contrário da cartomancia, onde o consulente pergunta e o oráculo responde, o decifrado deve colaborar com o decifrador, expondo de antemão o motivo da leitura e todos os problemas da situação a ser estudada. Deve ficar bem claro para ambos que a leitura do inconsciente é uma responsabilidade dos dois.

2) Não se deixar enganar pelas próprias ilusões. O desejo de casar com uma linda mulher é diferente do destino de casar com uma linda mulher, e se os leitores não estiverem preparados para distinguir esta sutil diferença, serão presas da própria ilusão.

3) Deve-se sempre estar aberto para novas alternativas. Na verdade, o objetivo da leitura deve ser a busca de alternativas ao destino. Quem não quer mudanças pessoais não deve procurar processos oraculares, pois, de saída, já se entrega como vítima das forças do inconsciente. Daí a necessidade de uma análise compreensiva das possibilidades de mudança.

Os Quatro Níveis da Linguagem

Mas o que o general espartano e seus equívocos têm a nos ensinar? O que as ciências humanas podem aprender com a hermenêutica simbólica do Tarô? É que esses três erros de interpretação na leitura do inconsciente correspondem aos princípios metodológicos básicos da decifração hermenêutica: a observação descritiva, a interpretação dialógica e a análise compreensiva. Entretanto, só chegamos à raiz última do sentido de um discurso quando o revivêssemos - e é isso que desejamos demonstrar. Por exemplo: “Adão viu os animais”.

Sentido Literal: Um homem, chamado Adão, viu seres de outras espécies.

Sentido Alegórico: Adão reconheceu seus instintos e paixões.

Sentido Tradicional: O primeiro dos homens tomou consciência de sua singularidade ontológica em relação a outros seres.

Sentido Místico: (ritualizacão do texto) Eu, Adão, o primeiro ser humano, vejo os animais e observo que eles são, ao mesmo tempo, seres reais e sentimentos meus.

Segundo o Zohar (7), há quatro níveis de decifração hermenêutica no estudo das Sagradas Escrituras: PESCHAT ou sentido literal; REMEZ ou sentido alegórico; DERASCHÁ ou sentido tradicional; e SOD ou sentido místico. Porém, este método de extração do sentido através de quatro leituras sucessivas é bem mais antigo. Ele já era utilizado por Filon de Alexandria, por volta do ano zero. Podemos, usando critérios semelhantes, observar diferentes ‘profundidades’ do sentido na linguagem e estabelecer quatro níveis de significação para todos os discursos: o Sígnico, o Simbólico, o Paradigmático e o Arquetípico.

O Nível Sígnico e a Observação Descritiva

No primeiro nível, tratamos a linguagem como objeto: como uma ‘realidade-concreta’, como algo tátil, material, que produz uma sensação, que tem um peso e uma quantidade, como algo que tem um cheiro. É a linguagem em suas dimensões física e biológica. O processo de produção de uma linguagem está claramente refletido no aspecto material de seus discursos. Por isso, neste primeiro momento, deve-se esquecer o conteúdo e medir as formas destes discursos de um ponto de vista quantitativo.

Também neste primeiro nível devemos observar o que o discurso quer dizer literalmente, o que ele significa do ponto de vista de quem o proferiu, ou seja, como ele foi ‘codificado’. Neste nível de decifração, estuda-se, portanto, o aspecto material e o aspecto de significação intencional-consciente de uma linguagem determinada: O QUE e COMO os discursos se realizam, ou ainda, o léxico e suas gramáticas.

A = A’

Temos, assim, uma primeira função da linguagem, a reflexiva, em que os discursos tentam reproduzir seus objetos, onde a linguagem (A’) tenta representar fielmente a sua realidade-referente (A). Dessa forma, por exemplo, a capital do Rio Grande do Norte é representada pelo signo ‘Natal’.

O Nível Simbólico e a Interpretação Dialógica

No segundo nível, a linguagem é vista como um sujeito, como a expressão de uma consciência humana. Assim, o segundo passo de nossa pesquisa é discutir o conteúdo dos discursos. O QUEM e O PORQUÊ da comunicação, os interlocutores e a ‘causalidade’ da linguagem. Situar-se em um universo de perpétua transformação exige do ser humano uma constante adaptação ao meio ambiente e a transmissão desta experiência entre grupos e gerações.

Assim, neste nível de decifração da linguagem não se trata mais de duplicar reflexivamente a realidade, mas sim de transmitir experiência existencial, ‘fazer comum’ sentimentos e desejos, comunicar um modo subjetivo de compreender a informação. A transcendência do sentido - através do qual ‘a expressão dos sentimentos’ ganha uma profundidade significativa e um caráter abstrato e genérico - se deve à Função Simbólica da Linguagem, que desempenha um papel dialógico e interativa, fazendo uma representação final do mundo mais significativa que a mera reprodução da realidade que lhe deu origem.

O homem é o único animal auto-eco-organizador porque sua cultura não apenas reproduz o real, mas também porque ela é uma mensagem sobre a vida e suas dificuldades.

Enquanto no nível sígnico, há um sujeito impessoal que acredita descrever cientificamente ‘seu objeto’; no simbólico, é o ‘objeto’ que diz ‘algo’ a respeito do ‘sujeito’. E este ‘algo’ revela um novo patamar para o sentido, que não só reflete o mundo, mas também o modifica simbolicamente, interpretando-o através de sensações, sentimentos e idéias valorativas.

A = B/C

Esta é a função dialógica ou simbólica da linguagem: a realidade (A) é referente da linguagem na razão direta de sua transmissão (B) e na razão inversa de sua percepção (C). Assim, a palavra ‘Natal’ tanto representa uma cidade como uma data do ano. Este duplo (ou múltiplo) sentido é que caracteriza o símbolo. No entanto, quanto mais sentidos uma representação comportar (polissemia), mais distante ela estará de reproduzir reflexivamente a realidade (paráfrase).

Como vimos na primeira parte da dissertação: o real, a coisa, o referente são representados por uma imagem holográfica estruturada pela percepção com base nas experiências anteriores e rapidamente arquivada na memória. Quando, em um segundo momento, formos transmitir informações sobre aquele objeto ou realidade, a consciência reconstituirá a imagem da percepção arquivada segundo critérios coletivos, determinados pela linguagem particular do seu grupo.

Assim, distinguimos metodologicamente duas instâncias nesse processo cognitivo: a primeira representação da consciência é analógica, involuntária e organizada pela experiência; na segunda a representação é motivada e codificada segundo fatores sociais. A consciência interpreta a percepção dos sinais dentro de um quadro de referências analógico ditada pela experiência e as transmite segundo normas e regras coletivas. O signo é uma relação arbitrária entre um conteúdo mental e uma imagem acústica. Os signos tratam de como interiorizamos, sem perceber, as regras da consciência social. O símbolo, ao inverso, é uma experiência direta da percepção individual com o inconsciente coletivo.

Interpretar é ler o inconsciente alheio, é inferir os motivos políticos inconfessáveis e as intenções psicológicas que muitas vezes o próprio sujeito do discurso desconhece. Mas, é preciso ter cuidado, porque se nesse nível toda linguagem é uma representação involuntária, os discursos não são meras metáforas da realidade, mas sim a própria realidade discursiva a ser decifrada. Para se interpretar um discurso ‘dialogicamente’ é preciso revivê-lo, vivenciando-o ‘por dentro’. E para tanto, é preciso uma análise compreensiva, comparando seus valores como os do enunciador do discurso. O importante seria ressaltar que a hermenêutica é uma interpretação duplamente dialógica, pois além de interpretar a linguagem ‘por dentro’, lendo os signos através de seu conteúdo simbólico; ela sempre leva em conta o conflito complementar entre duas diferentes estratégias cognitivas: a arqueológica e a teleológica. Uma engendrada pela representação sígnica quer construir uma explicação causal e determinista de nosso universo, e a outra, instigada pela imaginação simbólica quer libertar o homem de suas necessidades, enfatizando o mundo das possibilidades em que os sonhos coletivos transformam-se em paradigmas da realidade.

O Nível Paradigmático e a Análise Compreensiva

No terceiro nível, trata-se de observar os dogmas e rituais que perpetuam a linguagem. É o discurso reduzido a seus verbos, às suas paixões, à ação histórica e suas ressonâncias intersubjetivas. Ocultas pelas realidades física e subjetiva dos discursos, surgem aqui as estruturas inconscientes de repetição da linguagem. A relação entre a forma imposta pela transmissão e os múltiplos conteúdos percebidos do discurso, entre o aspecto físico e o psicológico da linguagem, é sempre histórica e faz parte de uma tradição determinada socialmente. Assim, o terceiro passo de nossa pesquisa consiste em determinar o ONDE e o QUANDO dos discursos, em localizar e entender o discurso estudado dentro do quadro histórico em que ele está inserido.

Mas para localizar um discurso no tempo/espaço é preciso situar-se também. Porque estamos, nós também, sujeitos à projeção, à transferência e às analogias deste ‘efeito simbólico’ em que os ‘sentidos ocultos’ se escondem. Assim, se na interpretação dialógica, o sentido simbólico é produto de uma leitura do inconsciente do enunciador e do conflito dos interlocutores no interior do discurso; na análise compreensiva, o sentido implica que analisemos também a nossa própria subjetividade e nos perguntemos em que o discurso nos sensibiliza e afeta emocionalmente.

D = C/B D = 1/A

Temos, portanto, neste nível de significação, a função compreensiva da linguagem: um paradigma ‘D’ é estruturante na razão direta de sua percepção ‘C’ e na razão inversa de sua transmissão ‘B’. Também podemos dizer que um paradigma ‘D’ é estruturante na razão inversa de sua realidade-referente ‘A’. Uma imagem serve de modelo a um objeto na medida em que não o conhecemos; e, inversamente, quanto mais conhecemos um objeto, menos o imaginamos. Ou seja: Quanto mais ideal for a imagem, mais distante ela será de seu modelo real. Entretanto, sempre haverá um motivo por detrás de uma associação analógica entre muitos sentidos e um único signo: a cidade de Natal foi descoberta no dia de natal - o que explica e desmistifica a imagem dos que não conhecem este lugar tropical e acalentavam uma impressão simbólica repleta de neve, renas e pinheiros.

Neste nível, portanto, não basta tomar o próprio inconsciente individual como objeto, enunciando-se como ‘meta-sujeito’. É preciso colocar em xeque toda nossa cultura. E a análise compreensiva é justamente essa comparação mito\lógica dos valores éticos e culturais, histórica e socialmente produzidos, que nos permite reconstituir as relações aproximadas entre o sentido originalmente enunciado e suas possíveis leituras. A analogia dos mitos, sensibilidades, gestos, nos revela uma nova função da linguagem, responsável não apenas por estruturar comportamentos, mas também por permitir compreendê-los. Apenas consciente das próprias intenções e limites, o hermeneuta compreenderá o enunciador e decifrará o sentido de seus sentimentos e de suas paixões.

A linguagem, portanto, além de reflexiva e de comunicativa, é também paradigmática, funcionando como um modelo estruturante da realidade - que não apenas contextualiza o discurso, mas está inscrito em um sentido mais profundo e polêmico do que os do signo e do símbolo: o sentido compreensivo, em que os valores éticos e os mitos de diferentes culturas se confrontam diante do pesquisador que souber reconhecer a natureza inconsciente dos afetos e aversões frente ao discurso que estuda. Assim a linguagem ‘funciona’ simultaneamente como um espelho da realidade objetiva, como uma mensagem inconsciente (ou uma memória coletiva de nossa subjetividade involuntária), e, finalmente, como um modelo estruturante e compreensivo das relações do EU com o OUTRO - em que o sentido é reconstruído paradigmaticamente dentro do quadro de referências subjetivas em que foi originalmente concebido.

De forma que na análise compreensiva há sempre um conflito intersubjetivo entre múltiplas formas de representar a realidade. Porém, essas ‘diferenças’ apenas ressaltam a afinidade transcultural dos mitos e valores simbólicos através dos quais pode-se compreender alguns traços universais do imaginário e, assim, conhecer melhor a nós mesmos e a nossa relação com a linguagem. Quando falamos de ‘diferenças’ epistemológicas e cognitivas é preciso deixar claro que entendemos a linguagem como um campo integral e homogêneo, que não comporta cortes ou marcos definitivos. Apesar disso, é nesta inevitável comparação entre os nossos valores e os do discurso em que se encontram os mais desconcertantes elementos simbólicos comuns a diferentes paradigmas; pois é nesta analogia ética que se revela a existência de uma última instância cognitiva mais profunda e abrangente, formada por imagens psíquicas universalmente associadas a temas e idéias transculturais, a que chamamos de arquétipos.

Os arquétipos não têm uma única função específica e são sempre ambivalentes e paradoxais. Eles expressam contradições meta-racionais que se perpetuam em diversos paradigmas, em diferentes culturas. Às vezes extremamente simples (o Pai, a Mãe, o Outro-Sexo), às vezes complexos (a Justiça, o Mal, o Sacrifício), eles representam dispositivos psicológicos universais. Podemos caracterizá-los como o que há de universal na linguagem, o seu aspecto espiritual. Chegamos, assim, a um derradeiro nível da linguagem - lá onde ela não é mais decifrável, mas sim, reatualizada/ritualizada.

O nível arquetípico

A lenda conta que quatro grandes rabis (Akiva, Ben Zoma, Ben Azai e Aher), no século II, se dedicaram a estudos esotéricos e “entraram no paraíso” (8). A estória afirma que “um deles viu e morreu; o segundo viu e perdeu a razão; o terceiro viu e corrompeu-se. Só rabi Akiva entrou e saiu em paz”. Poderíamos, parodiando a lenda, dizer que a palavra mata, o símbolo enlouquece, o exemplo perverte e apenas o arquétipo realmente explica a linguagem - pois ao comparar o real ao ideal, revela como a realidade extrapola seus modelos.

Mas decifrar o sentido não basta. De nada adianta a crítica das ideologias e dos discursos, se isto nos leva apenas à desmistificacão dos fetiches, à destruição niilista do sentido, à polissemia. Restituir o sentido à linguagem não é apenas revivê-la, mas recriá-la, reinventá-la, atualizando sua significação. No quarto nível de leitura, a linguagem vive no espírito dos seus discursos, na experiência existencial que eles transmitem, nas suas diferentes respirações frente à morte.

O sentido aqui é nietzschianamente trágico, não-reativo, para além da representação: um sentido que apesar de partilhar o drama não encena seu sofrimento. Neste nível de leitura da linguagem, os advérbios de intensidade e duração interrogam sobre o ritmo, a respiração e, sobre a consciência que o discurso tem de si. Acima de todas as formas, além de todas as idéias e paixões, os discursos têm um significado existencial, um sentido revivido pela experiência humana cravada nas profundezas inconscientes da linguagem: a morte e a relação com o sobrenatural.

O exemplo de arquétipo mais citado é o das diversas deusas mitológicas que formam o arquétipo da ‘grande mãe’. Mas existem também casos mais complexos em que formas culturais diferentes expressam um mesmo mecanismo psíquico universal. Palas Atenas, o Júpiter latino e o orixá Xangô, por exemplo, são diferentes representações históricas do arquétipo da justiça, que tem suas raízes em um dispositivo psicológico que equilibra transgressão e culpa.

Das diferentes abordagens que usam o termo, a do historiador Mircea Eliade é que melhor consegue caracterizar o significado do ‘sagrado’ como um apriori epistemológico, definindo o fenômeno mítico como um acontecimento ao mesmo tempo real e fabuloso. Esta característica de ver no mito um ‘valor sagrado’ transhistórico, aproxima bastante o pensamento de Mircea Eliade de Jung, uma vez que ambos utilizam a palavra ‘arquétipo’, em um sentido universal e simbólico. No entanto, na ‘Provação do Labirinto’ (9), Eliade faz uma distinção importante.

“Arrisquei-me a ser confundido com a terminologia de Jung. Para ele, os arquétipos são estruturas do inconsciente coletivo. Eu emprego esta palavra por referência a Platão e a Santo Agostinho: dou-lhe o sentido de ‘modelo exemplar’ - revelado no Mito e que é reatualizado pelo Rito.”

Procurando definir melhor esta distinção conceitual, Gilbert Durand (10) acentuou o critério da ambivalência para diferenciar os arquétipos dos símbolos e caracterizá-los ainda mais como estruturas paradigmáticas do imaginário.

“O que diferencia precisamente o arquétipo do simples símbolo é, geralmente, a sua falta de ambivalência, a sua constante universalidade e a sua adequação ao esquema: a roda, por exemplo, é o grande arquétipo do esquema cíclico, pois não vemos que outra significação imaginária lhe poderia dar, enquanto a serpente não é senão o símbolo do ciclo, símbolo bastante polivalente.”

Para nós, tanto o símbolo quanto o arquétipo são ambivalentes e polissêmicos; enquanto os signos e paradigmas é que representam o aspecto lógico da linguagem. Tanto a polissemia característica dos símbolos e arquétipos quanto a paráfrase típica dos signos e paradigmas são apenas faces de uma mesma moeda: a distinção metodológica em diferentes níveis de decifração só se justifica a partir de uma visão de conjunto que não admita fissuras, divisões e cortes epistemológicos definitivos ou estruturais.

Não basta apenas integrar o simbólico ao método científico, mas também, aplicar o rigor lógico da ciência ao conhecimento cognitivo dos símbolos. As noções de arquétipo e paradigmas nada mais são que uma reduplicação epistemológica da contradição cognitiva entre as funções reflexiva e simbólica da linguagem: o paradigmático é o que há de institucional no selvagem e o arquetípico é o que há de ideal no real, o que há de modelo universo no acontecimento em particular. Perceber claramente estes quatro níveis interdependentes da linguagem sem perder a noção de sua totalidade indivisível. Este é, creio, o desafio metodológico contemporâneo.

Três diálogos e um monólogo

Como vimos, a hermenêutica nasceu com a antiga arte divinatória, foi ofuscada durante séculos de desenvolvimento pelo pensamento científico, mas retornou agora como um modelo adequado para a descrição, interpretação e análise dos discursos, particularmente útil para a pesquisa arqueológica e histórica das mentalidades, mas também pode ser aplicado a diferentes disciplinas em que a decifração do sentido encontre as barreiras cognitivas e epistemológicas dos conflitos paradigmáticos.

No âmbito das ‘ciências do outro’ (a etnologia, a psicanálise, a pedagogia), ou seja, nas formas epistemológicas que tomam por objeto um sujeito falante, é que os erros de interpretação são mais visíveis em seus contornos paradigmáticos. A professora Maria da Conceição Moura, ao estudar minuciosamente a produção antropológica brasileira durante dez anos (75 a 85), aponta os principais entraves epistemológicos da pesquisa a partir do incipiente diálogo entre ciência e tradição: o empirismo relativista, as interpretações paradigmatizadas e, por último, a incapacidade epistemológica de desenvolver uma integração criativa dos saberes que aponte para uma ética de reencantamento consciente do mundo.

No empirismo relativista, o pesquisador se limita a uma descrição exaustiva da realidade estudada, especificada em todas as suas particularidades, sem nenhuma relação com o drama universal do ser humano. Tal atitude adicionada a tendência de especialização do saber, leva necessariamente a uma visão parcial e fragmentada da realidade. Assim, não só as descrições que desprezam a problematização, mas também os discursos especializados que não se enquadram em um contexto geral são resultantes desta atitude pretensiosa em que o pesquisador se apropria de um determinado aspecto dos discursos pesquisados em detrimento de outros, para ‘conservá-los’ em suas especificidades.

Nas interpretações paradigmatizadas, as teorias são utilizadas para explicar a realidade: seja reforçando diretamente a lógica da dominação, seja pela aparente crítica ao sistema que, no entanto, reifica a ruptura entre ciência e tradição. O marxismo ortodoxo, por exemplo, que lê o contexto a partir das categorias de modo de produção, luta de classes, capitalismo, excluindo de seu universo interpretativo o simbolismo genuíno dos discursos míticos, vistos sempre como representações ideológicas. Aqui, ao inverso do emprirismo relativista, é o universal que é utilizado para mutilar o particular, a generalidade que serve para encobrir o específico.

O desencantamento do mundo. Ainda segundo Moura, ‘a nostalgia de um passado próspero das sociedades tradicionais em contraste com o presente atual de pobreza e exploração’ resume a grande maioria dos trabalhos antropológicos contemporâneos, pois mesmo quando esses não descambam para o empirismo relativista ou para as superinterpretações, eles continuam prisioneiros paradigmáticos da instituição científica, incapazes de sonhar um futuro alternativo para as sociedades que estuda. Ora, esses três equívocos interpretativos são os mesmos que os do general espartanos e podem ser evitados através da utilização da hermenêutica e de seus princípios dialógicos. O método hermenêutico é uma parte da fenomenologia que se destina ao estudo da linguagem. Ele consiste em quatro leituras complementares de um mesmo fenômeno: uma primeira objetiva e impessoal para observar e descrever o acontecimento; uma segunda interpretação dos referentes subjetivos e pessoais; uma terceira intersubjetiva e interpessoal, onde levamos em conta diversas outras leituras; e, finalmente, uma quarta e última leitura transpessoal e transubjetiva.

São assim três leituras determinísticas e uma última leitura prospectiva resultante da transformação criativa da situação determinada pelas três primeiras leituras em uma nova possibilidade relacional. Pode-se recorrer ao método hermenêutico sempre que é preciso ‘experienciar’ a linguagem para decifrar o sentido. Por exemplo, para decifrar a intenção de um olhar ou de um sorriso é preciso interagir com ele. Não basta observá-lo, interpretá-lo ou analisá-lo; para compreendê-lo é preciso senti-lo, imitá-lo, revivê-lo. Ou melhor: uma investigação criminal, onde seja necessária decifrar, a partir da reconstituição de detalhes involuntários e pistas ocultas, as intenções e os motivos dos acontecimentos.

Tomemos por exemplo os discursos verbais de uma transmissão de um jogo de futebol pela TV: a primeira leitura seria a do locutor - imparcial e redundante em relação a imagem. Antigamente, imitava-se o ‘speaker’ do rádio. A segunda seria a dos comentaristas e dos repórteres de campo. Hoje em dia esse discurso é propositadamente subjetivo, com os jornalistas torcendo abertamente para os times. A terceira leitura seria a dos diferentes especialistas (ex-juízes, ex-técnicos e ex-jogadores) chamados a esclarecer aspectos da sua área de capacitação. Já a última leitura seria a realizada pelas estatísticas de jogo e pela simulação holográfica das jogadas realizada via computação gráfica. Somente esta última leitura nos permitirá visualizar o jogo de um modo transpessoal e arquetípico em suas formas mais abstratas. Um time, assim, estaria ‘nervoso’ (muitas faltas e passes errados); enquanto o outro jogou ‘disperso’ e sem objetividade (poucos chutes a gol, muitos passes laterais).

Entretanto, esta última leitura só será realmente completa se for direcionada para correção dos arquétipos para ‘o segundo tempo da partida’. E esta última e decisiva leitura é o que separa a hermenêutica da teoria crítica de Haberman e das diversas versões de uma sociologia compreensiva pós-weberiana que problematizam o intersubjetivo sem nenhuma responsabilidade com o reencantamento do mundo. Mais que um conjunto de leituras e procedimentos técnicos sobre decifração de códigos, a hermenêutica é um método de compreensão de si e dos outros, que estuda as relações humanas a partir de sua experiência précognitiva. Aplicado ao universo das ciências humanas, este método de leitura quádrupla a hermenêutica seria a solução para os três principais equívocos de interpretação.

O arquétipo do pai e o complexo de Édipo, para retomar o exemplo inicial, é simultaneamente uma imposição, uma válvula de escape e um modelo estruturante para quem se coloca na posição de filho. Porém, apenas assumindo a posição de pai de outros é que vivemos o arquétipo e o transformamos. No caso, sendo um pai que reinventa o recalque, a sublimação e o exemplo a que foi submetido.

Poderíamos resumir a tarefa desta nova metodologia hermenêutica como uma arte de três diálogos e um monólogo. O diálogo interdisciplinar entre as ciências humanas em torno de uma única realidade empírica como forma de combate a fragmentação do saber. O diálogo intradisciplinar entre as ciências de forma a evitar interpretações paradigmatizadas. E, por fim, o diálogo extradisciplinar entre ciência e tradição - onde nos permitiríamos sonhar um futuro para o homem.

Não se trata, repitamos, de recortar, dividir ou separar. Muito pelo contrário: os três diálogos são eixos de uma única metamorfose do saber, são as possibilidades de intercâmbio que o discurso científico tem para sobreviver. Eles serão insuficientes caso não sejam resignificados por uma última, solitária e definitiva leitura reunificadora, um monólogo arquetípico, onde reencontrará seu espírito em uma consciência científica de si. Pois não se trata de voltar a uma situação cognitiva pré-moderna, nem de interpretar cientificamente os paradigmas tradicionais, mas de estabelecer as bases de um novo saber em que não haverá espaço para as atuais distinções epistemológicas.

(1) ELIADE, M. Tratado Histórico das Religiões .São Paulo:Martins Fontes, 1993.
(2) ALLEAU, R. A Ciência dos Símbolos. Pg. 125. Portugual: Edições 70, 1982.
(3) WILHELM, R. I Ching - o livro das mutações. São Paulo: Pensamento, 1987.
(4) VON FRANZ, M. L. Adivinhação e sincronicidade. São Paulo: Pensamento, 1990.
(5) ZOHAR, D. Através da Barreira do Tempo - um estudo sobre a precognição e a física moderna. São Paulo: Pensamento, 1982.
(6) ATLAN, H.; Entre o cristal e a fumaça - Ensaio sobre a organização do ser vivo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992
(7) TRYON, R. A Cabala e a Tradição Judaica. Pág. 243. Lisboa: Edições 70, 1979.
(8) ALLEAU, R. A Ciência dos Símbolos. Pg. 125. Portugual: Edições 70, 1982.
(9) ORCQUET, CH. Mircea Eliade - A Provação do Labirinto Pág. 120. Lisboa: Dom Quixote, 1987.
(10) DURAND, G. Estruturas Antrológicas do Imaginário. Pág. 35 Lisboa:Presença, 1992.

O Tarô como mapa cognitivo


"Segundo a tradição, quando os sacerdotes egípcios, herdeiros da sabedoria Atlante, eram ainda guardiões dos Mistérios Sagrados, o Grande Hierofante, prevendo uma época de decaimento espiritual da humanidade e a perseguição ao ensinamento sagrado, convocou ao templo todos os sábios sacerdotes do Egito para que, juntos, pudessem achar um meio de preservar da destruição os ensinamentos iniciáticos, permitindo, assim, seu uso às gerações de um futuro distante. Muitas sugestões foram apresentadas, mas, o mais sábio entre os presentes disse que, devido ao declínio moral da humanidade, o vício iria prevalecer por toda parte e sugeriu então que as Verdades Eternas fossem perpetuadas através do vício, até a época em que novamente poderiam ser ensinadas. Assim foi feito e o grandioso sistema simbólico da Sabedoria Esotérica - o Tarô - foi dado à humanidade sob a forma de um baralho de 78 cartas, que, desde milhares de anos, servem para satisfazer a curiosidade humana a respeito do seu futuro ou para distrair-se e matar o tempo, jogando.” MEBES, G. ARCANOS MENORES DO TARÔ

· As Cartas e suas Origens
O baralho de 78 cartas denominado genericamente de “Tarô” é um método de autoconhecimento, que permite descobrir e localizar atitudes e posturas que condicionam nosso comportamento, identificando, em suas combinações, as situações existenciais recorrentes que entravam nosso desenvolvimento. As 78 imagens-conceitos funcionam como ‘eus’ ou identidades, que se organizam em determinados padrões simbólicos correspondentes às situações que vivemos. O Tarô é um espelho da alma, suas cartas são reflexos da vida interior que tomam forma e nos apresentam como os nossos vários ‘eus’ estão estruturados no inconsciente.

Costuma-se subdividir as 78 cartas do Tarô em dois grandes grupos distintos: os Arcanos Maiores (22 cartas alegóricas) e os Arcanos Menores (56 cartas de naipe). Nos manuais de cartomancia, afirma-se sempre que os Arcanos Menores enfocam a vida ‘objetiva’, feita de acontecimentos - tais como: viagens, doenças, filhos, dinheiro - enquanto os Arcanos Maiores seriam mais psicológicos ou ‘subjetivos’, representando em suas alegorias, estados de nossa vida interior. Autores esotéricos, com preocupações mais iniciáticas que divinatórias, como G. O. Mebes (1), ressaltam que “somente após estudar e compreender os vinte e dois Arcanos Maiores, pode o discípulo passar ao estudo dos Arcanos Menores, por serem mais profundos e abstratos” . De uma forma geral, podemos dizer que os dois grupos em que o Tarô se subdivide enfocam diferentes níveis do Inconsciente, os Maiores, abordando a biografia psíquica e os Menores especificando os detalhes e as relações mais profundas, precisando a configuração geral do destino em questão.

OS 22 ARCANOS MAIORES: O Mago, A Papisa, A Imperatriz, O Imperador, O Papa, O Enamorado, O Carro, A Justiça, O Eremita, A Roda da Fortuna, A Força, O Enforcado, A Morte, A Temperança, O Diabo, A Torre, A Estrela, A Lua, O Sol, O Julgamento, O Louco e O Mundo.

OS 56 ARCANOS MENORES: l4 cartas de Paus representando a atividade espiritual; l4 cartas de Copas simbolizando a atividade afetiva; l4 cartas de Espadas expressando a atividade mental; e l4 cartas de Ouros correspondendo à atividade material

A maioria dos especialistas (2), sejam autores esotéricos ou historiadores e colecionadores cépticos, é unânime em afirmar que as cartas do baralho, usadas para jogar, derivam do Tarô e não o contrário, como se poderia supor. Entretanto, admitindo a origem comum das duas práticas, como saber que a atividade divinatória antecedeu seu uso como divertimento e jogo de azar?

A origem das cartas é desconhecida, sendo que seu surgimento no cenário europeu data do final do século passado - pelo menos é deste período os baralhos mais antigos que chegaram aos nossos dias. O primeiro registro sobre o Tarô, no entanto, data de l377. Trata-se da correspondência de um tal frei João, um monge suíço que narra, surpreso, “um jogo de cartas o qual indica, pelas figuras, o atual estado do mundo”. Existe ainda outro registro, de l392, que menciona uma encomenda de três baralhos ao artista Jacquemin Gringonneur por ordem de Carlos VI, Rei da França, destinados a distrair o soberano durante suas crises de loucura. Este segundo registro é considerado por muitos pesquisadores como o mais importante, uma vez que descreve como as cartas deveriam ser pintadas, tomando como base versões mais antigas e misteriosas. Como há também um decreto francês de l369 proibindo jogos de azar que não faz nenhuma menção às cartas, podemos deduzir que elas ‘apareceram’ entre l370 e l380.

Entre os possíveis introdutores do Tarô no Ocidente encontram-se os ciganos, os cruzados e os sarracenos. Porém, enquanto autores esotéricos se dividem entre lendas maçônicas, os pesquisadores mais acadêmicos preferem a hipótese de que foram os sarracenos que introduziram as cartas na Europa. Todavia, embora seja mais verossímil, não há provas historiográficas de que esta hipótese seja a verdadeira. (3) O certo é que ninguém acredita que o Tarô seja uma criação européia medieval e que todos concordam que as cartas têm uma origem bem mais remota do que se registra, muito embora não se explique sua procedência mais recente ou seu súbito reaparecimento no curto período de dez anos.

Na verdade, o consenso sobre esses dois pontos - a primazia do uso divinatório e uma origem anterior à antigüidade clássica - revela a universalidade da linguagem do Tarô, cujos elementos aparecem em diferentes culturas. Assim, hindus, caldeus, chineses, atlantes, anjos e até extraterrestres são apontados como os criadores originais das cartas. Porém, por ser mais difundida e contar com um grande número de adeptos, a hipótese de origem egípcia das cartas se notabilizou e passou a ser considerada verdadeira.
Muito contribuiu para isso o fato dos dois primeiros pesquisadores modernos do Tarô, A. Court de Gebelin e Etteilla, terem abraçado apaixonadamente esta hipótese (4). Antoine Court de Gebelin nasceu em Nimes, em l725, e, morreu em Paris no dia l0 de maio de l784. Gebelin foi apaixonado estudioso de mitologia antiga. Envolvendo-se no estudo de religiões do ponto de vista lingüístico, ele procurou “redescobrir a língua primitiva, cuja escrita hieroglífica explicaria as várias mitologias conhecidas, que refletem, em símbolos diferentes, as mesmas verdades reveladas” . A primeira pessoa a fazer uso dessa descoberta foi o peruqueiro de nome Alliette, que nas horas vagas vendia amuletos mágicos, praticava quiromancia, interpretava sonhos e fazia horóscopos. Sob o pseudônimo de Etteilla - seu nome de trás para frente - Alliette enriqueceu e tornou-se famoso em sua época. Ele foi o primeiro cartomante moderno, ou pelo menos, o primeiro a utilizar o Tarô para adivinhação individual com fins comerciais de que se tem notícia.

· A Cabala e o Ocultismo
Enquanto Gebelin e Etteilla procuravam zelosamente provar a origem egípcia das cartas do Tarô, Eliphas Levi acreditava que elas fossem um alfabeto sagrado e universal, presente nas culturas grega, egípcia e hebraica. Eliphas Levi, pseudônimo do padre Alfonsé Louis Constant, interessou-se pelo Tarô em l856 e associou os Arcanos Maiores às 22 letras do alfabeto hebraico. Além disso, Levi associou também os quatro naipes aos quatro mundos cabalísticos, relacionando as suas dezesseis cartas de figura ao Tetragrama Sagrado - o ‘IHVH’- e as suas 40 cartas numeradas às 10 Sephiroth de Deus, expressos na Árvore da Vida.

As dez Sephiroth - plural de Sephirah - são esferas de energia em que a manifestação se desenvolve. Cada Sephirath está contida na anterior e contém, em si, a possibilidade da próxima Sephirath. Assim, todo universo repousa em latência em Kether, e dentro dele emana outro círculo, Chokmah, que apesar de contido no primeiro, se opõe a ele, gerando um terceiro, Binah, que está contido nos dois anteriores. Temos, portanto, uma série de círculos concêntricos, uns dentro dos outros, mantendo uma relação de polaridade em função à esfera anterior que o engloba e em função à que contém em seguida.

A Árvore da Vida

Kether - A Coroa, onde o Incognicível se manifesta como uma luz extática e apolar, a chama eterna da vida, o centro de todos os círculos. O ponto.

Chokmah - A Sabedoria, corresponde à luz que entra em movimento e se torna uma força cinética. É representado geometricamente pela reta ou pelo círculo.

Binah - A Inteligência, onde a força encontra resistência ao seu movimento e gera a forma, representada pelo triângulo ou pelo prisma.

Cheseed - A Bondade, esfera onde, equilibrando as restrições impostas pela forma, a manifestação se realiza através da misericórdia divina. Essa esfera é simbolizada pelos deuses jupiterianos, como Zeus e Xangô.

Geburah - A Severidade, esfera onde a força, seja física ou moral, se manifesta com energia e impetuosidade. É simbolizado pela Espada e pelos deuses guerreiros, como Ares e Ogum.

Tiphareh - A Beleza, esfera que harmoniza a contradição ética entre a severidade e a clemência. Ela é geralmente representada pelos deuses solares e redentores, que se sacrificam em benefício ao Todo.

Netzach - A Eternidade, esfera que representa os sentimentos e os instintos, o fogo sexual, a segunda luz, o planeta Vênus e, microcosmicamente, o corpo astral, reflexo do mundo da criação.

Hod - A Reverberação, esfera que representa o pensamento consciente e a mente concreta, o planeta mercúrio, e é um reflexo microcósmico do mundo da formação.

Yesod - O Fundamento, esfera que representa a Lua e a essência da vida orgânica, o duplo-etéreo, o reflexo do mundo arquetípico.

Malkuth - O Reino, esfera que representa a essência inorgânica da materialidade, a imagem sensorial da realidade, o planeta Terra, o corpo físico concebido dentro do mundo material.

Enquanto as três primeiras Sephiroth - Kether, Chokmah e Binah - formam um conjunto denominado macroprosopos, formada pelas Três Causas Primárias; as outras sete Sephiroth, por sua vez, formam o microprosopos e expressam as Sete Causas Secundárias. Imaginemos que desejamos fazer um bolo. Este motivo, quando vem à mente, eqüivale à primeira tríade, onde Kether representa o desejo, Chokmah, à idéia, e Binah, a sua imagem formal. Porém, o bolo só sairá da imaginação para a realidade se cruzar o abismo, chegando ao sétimo nível de materialização: Cheseed corresponderá à escolha dos ingredientes; Geburah, ao esforço necessário à preparação da massa; Tiphareh, ao equilíbrio entre a quantidade dos ingredientes e sua correta preparação; Netzach, ao toque artístico necessário e à intuição; Hod, às instruções técnicas da receita; Yesod, ao cozimento no forno; e, finalmente, Malkuth, à forma final do bolo, à sua materialidade. Os cabalistas analisavam todos os fenômenos à luz destes critérios, reduzindo-os sempre aos mesmos elementos, as esferas da manifestação.

Além destes processos descendentes e materializantes que baixam da luz ketheriana para concretude de Malkuth, a que se chama criativos; existem os processos evolutivos, que partem da matéria em busca de uma realidade mais sutil. A serpente kundalínica da Árvore da Vida representa este duplo circuito dos processos criativos e evolutivos. As Sephiroth ou esferas de manifestação funcionam como ‘transistores’ deste circuito, unidades que recebem e emitem energia transformando suas características. Outras versões associam a Árvore à imagem do Adão Kadmo, onde cada Sephiroth corresponde a uma parte do corpo, estabelecendo uma relação entre o micro e o macrocosmo. A tríade formada por Kether, Chokmah e Binah, por exemplo, corresponde à cabeça. Em seguida, formando um triângulo invertido, Geburah, Cheseed e Tiphareh representam os dois braços e o plexo solar. As pernas, o sexo e o centro de gravidade, por sua vez, são associados as Sephiroth Netzach, Hod, Yesod e Malkuth.

A Árvore da Vida é um diagrama da estrutura do universo, um eixo sobre o qual se organizam os diversos níveis da manifestação. A árvore, no entanto, não forma um sistema fechado; ela é um método ou uma chave analógica para decifrar outros sistemas simbólicos. Suas correspondências, no entanto, além de infinitas, muitas vezes são contraditórias, uma vez que permite diferentes associações e analogias incompatíveis entre si, mas ‘verdadeiras’ do ponto de vista psicológico. O principal benefício da proposta do padre-ocultista foi a instituição da árvore como um ‘centro’, um eixo vertical de associações de todos os arquétipos. Segundo esta lógica, as cartas-letras correspondem aos 22 caminhos que interligam as dez esferas de manifestação da Árvore, representando todas as experiências subjetivas possíveis. Além disso, Levi discutiu exaustivamente o símbolo quaternário e sua relação com a estrutura decimal. Para ele, as quarenta cartas numeradas representam a involução do Universo como um processo de quatro fases e dez agentes. O Universo está se desenvolvendo em quatro ‘níveis de densidade’ da manifestação, em quatro estágios progressivos de materialização do sutil no denso. Em cada nível, há dez ‘degraus’ ou agentes. Assim, além da árvore principal dos 22 caminhos, Levi propôs a existência de mais quatro: a árvore das dez emanações arquetípicas, a árvore dos dez arcanjos, a árvore das dez falanges angélicas e a árvore dos dez astros do sistema solar.

· O pensamento ocultista
No entanto, cabe observar que, embora desde Levi os ocultistas nunca mais tenham deixado de admitir a interdependência entre o Tarô e a Cabala, a verdade é que, além de um não se encaixar perfeitamente ao outro, não existem quaisquer provas históricas desta ligação. O fato é que não existe um consenso sobre a correspondência entre as duas linguagens simbólicas e que, adicionando-se as associações com a astrologia, a discussão dos ocultistas se transformou em uma verdadeira babel de imagens sem que nenhum autor tenha conseguido o ‘feito’ de estabelecer um sistema de analogia perfeito. Pode-se distinguir duas grandes correntes do ocultismo que defendem associações diferentes entre o Tarô, a Cabala e a Astrologia: os seguidores de Eliphas Levi, também conhecidos como ocultistas continentais, e os adeptos do sistema desenvolvido pela ordem Golden Dawn e aperfeiçoado por Aleister Crowley, também chamados de ocultistas anglo-saxãos.

O primeiro grupo - que conta com os nomes de Oswald Wirth, Stanislau Guaita, Gerald Encausse (Papus) e G. O. Mebes - se caracteriza pela associação da carta do Louco à letra hebraica Shin e ao trigésimo primeiro caminho da Árvore da Vida. O pensamento deste grupo foi hegemônico até o final do século passado. Neste século, no entanto, o Tarô se desenvolveu e popularizou bastante devido ao surgimento da ordem ocultista Golden Dawn, fundada por McGregor Master e W. Wynn Westcott. A principal característica deste grupo é a associação do Arcano do Louco à letra Aleph e ao décimo primeiro caminho da árvore. Seguindo este princípio, Sir Charles Waite e Aleister Crowley, os dois maiores expoentes da ordem, foram responsáveis por belos tarôs e por uma vasta obra teórica (5).

Crowley, talvez o mais polêmico ocultista de todos os tempos, ampliou bastante as correspondências simbólicas do Tarô e da Cabala com outros sistemas como a Astrologia, o I Ching, perfumes, cores, objetos mágicos, lançando as bases da feitiçaria moderna. Mesmo discordando de seus rituais e do seu comportamento excêntrico e macabro, a maioria dos pensadores que sucederam Crowley adotaram seus sistema de correspondência, expressas no seu livro ‘777’. Este grupo de autores é predominante atualmente e conta com nomes como os Dion Fortune, Allan Watts, Gareth Knigth, Israel Regardie e Robert Wang, entre outros. Além desses dois grandes grupos de ocultistas, também existem autores independentes que defendem seus próprios sistemas de associação, como Paul Foster Case e o misterioso ‘Zain’ do Templo da Luz, que adota o critério cromático em seu sistema.

As hipóteses sobre a origem da Cabala adotadas pelos ocultistas não são menos delirantes que as do Tarô. Para uns, ela foi ensinada pelos anjos aos homens para que eles conseguissem voltar ao Paraíso Primordial. Para outros, ela foi recebida por Set, o terceiro filho de Eva, ou Enoch, Abraaão e Melkisedk. Há também versões de que ela diretamente ditada por Jeová a Moisés, durante sua permanência, por quarenta dias, no monte Sinai.

Do ponto de vista historiográfico, no entanto, sabemos que a Cabala, como tradição oral do misticismo hebraico, data da época do segundo cativeiro babilônico, sendo uma espécie de adaptação do simbolismo astrológico dos caldeus ao monoteísmo judaico. Podemos inclusive desconfiar de que a Árvore da Vida é uma interpretação axial do símbolo do Eneagrama mesopotânico. Por muitos séculos, a Cabala foi transmitida oralmente como um tipo de exegese mística do Torah até que, por volta do ano 100 d.C., surgiram o Sepher Yetzirah e o Zohar. Desde então, a Cabala teve vários ciclos distintos dentro da tradição judaica, com características bastantes diferentes (o ciclo mágico da Floresta Negra, o ciclo filosófico-especulativo da Espanha no Século XII, o ciclo monástico de Safed dirigido por Isaac Luria), mas só se popularizou quando foi apropriada e deformada pelo pensamento ocultista.

Diante desta popularização distorcida promovida pelos movimentos ocultistas, nada mais normal do que os estudiosos da Cabala ligados ao judaísmo protestassem com veemência. Para a maior autoridade historiagráfica da Cabala Hebraica neste século, Gershom Scholem, por exemplo:

(...) “as atividades dos ocultistas franceses e ingleses foram inúteis e serviram apenas para gerar uma grande confusão entre os ensinamentos da Cabala e suas próprias invenções, tais como a suposta origem cabalística das cartas do Tarô”. (6)

Tentando salvaguardar a associação das duas linguagens simbólicas, Robert Wang tentou responder às objeções de Scholem, afirmando que há uma Cabala Hebraica e outra Esotérica, fundada por Pico de Miranbola. Mas a verdade é que, se os esotéricos beberam na tradição hebraica para elaborar sua própria Cabala, o misticismo judaico também se reciclou e influenciou com a abordagem ocultista e, mais recentemente, com o desenvolvimento da psicologia analítica. Um exemplo contemporâneo desta recíproca é o trabalho de Z’ev Ben Shimom Halevi (7), onde encontramos uma Cabala genuinamente hebraica fortemente influenciada pelo esoterismo.

· A Psicologia Analítica e Estrutura Simbólica
Com sua origem misteriosa e seus diversos enfoques, o Tarô é um múltiplo quebra-cabeça de referências, seja na sua técnica ou na sua história. Estudá-lo é, sobretudo, estudar-se. Os livros, apesar de importantes, são absolutamente secundários. O principal é entrar em contato direto com os arquétipos, é utilizá-los mentalmente como conceitos e sentir sua força viva na realidade quotidiana. Porém, para iniciar seus estudos teóricos é aconselhável começar a ler os trabalhos de psicólogos e pensadores acadêmicos, que recentemente passaram a se interessar pelos arquétipos das cartas, ao invés de enfrentar os complicados clássicos do ocultismo.

Neste sentido, ‘Jung e o Tarô’, da já citada Sallie Nichols, e ‘A meditação dos Guias Interiores’ são obras bastantes proveitosas (8). O enfoque de Nichols é particularmente recomendável pois escapa do emaranhado teórico das intermináveis discussões sobre a associação das cartas com outros sistemas simbólicos em que os ocultistas se perderam e apresenta uma série de referências culturais e literárias para caracterizar cada arquétipo. Em contrapartida, sua principal desvantagem é que ela acaba caindo involuntariamente em um dos sistemas de correspondência, quando diviniza O Louco e vê O Mago como um ‘embusteiro mercuriano’ e não como o arquétipo do Pai e da Unidade Primordial. Associando o Tarô à técnica da imaginação criativa e ao psicodrama, a meditação dos Guias Interiores é um método simples e fascinante de transformação dos diferentes aspectos arquetípicos da personalidade, deduzidos a partir das quadraturas e oposições astrológicas do mapa natal. Infelizmente Steinbrecher também apresenta a mesma deficiência de Nichols, pois utiliza as correspondências crowleyianas em detrimento de outras possibilidades.

Distantes da discussão esotérica travada entre os ocultistas continentais e anglo-saxões sobre se a unidade primordial da força uraniana deve ser representado pelo número um ou pelo zero, muitas outras contribuições vêm enriquecendo o estudo do Tarô no campo da psicologia analítica, algumas bem práticas (9), outras ‘amplificando’ o enfoque junguiano com as diferentes associações ocultistas, como é o caso do excelente livro da Dra. Irene Gad (10) - lançado há pouco tempo no Brasil. Talvez a principal contribuição indireta da Psicologia Analítica ao estudo simbólico do Tarô seja do próprio Jung, principalmente na sua Interpretação psicológica do dogma da Trindade, onde se tetêm sobre o papel desempenhado pela Virgem Maria em relação à simbologia cristã. Neste trabalho, Jung apresenta pela primeira vez a noção de que a estrutura quaternária é universal e funciona como um símbolo estruturante da psiquê e do inconscinete coletivo. No Brasil, destaca-se também o trabalho desenvolvido pelo psicólogo Carlos Byington (11), que durante muitos anos problematizou a questão do quaternário como símbolo estruturante, aplicando-o `a história e à psicoterapia .

Como vimos Eliphas Levi e Aleister Crowley, encabeçando os dois maiores movimentos ocultistas modernos, propuseram diferentes associações entre as linguagens simbólicas do Tarô, da Cabala e da Astrologia. Porém, ambos sistemas de associações se basearam na semelhança genérico de seus elementos ou nas mesmas correspondências estruturais:

1 - A equivalência dos 22 Arcanos Maiores às letras hebraicas e aos caminhos da Árvore da Vida. Segundo os ocultistas estes arquétipos surgiram devido à “queda” da Humanidade, entendendo por ‘queda’, não apenas a expulsão de Adão e Eva do Éden ou o fim catastrófico das civilização de Atlântida e Lemúria, mas sobretudo “uma deterioração de um estado superior de convivência entre homens dotados de poderes psíquicos para as sociedades mais instintivas e para a percepção meramente sensorial da realidade”. Assim, o sonho de uma Utopia Social, uma forma de organização social perfeita, sem os conflitos, os desejos e as desigualdades caracterizados pelos arquétipos dos Arcanos Maiores, é um retorno a este estado de consciência coletivo da Humanidade, ao ‘nirvana coletivo’ primordial. Este sentimento de unidade que ultrapassa a simples harmonização das relações sociais e o equilíbrio político entre os diversos grupos que formam uma sociedade para introjetar psicologicamente em cada indivíduo como uma necessidade de comunhão universal, como um desafio de reconquista do paraíso perdido, como um Desejo de União.

2 - A identidade das l6 cartas de figura às relações do quaternário elevado ao quadrado, ao Tetragrama Sagrado, o ‘IHVH’, símbolo estrutural do universo. Aqui o Desejo de União ultrapassa os problemas do mundo para se consolidar como um casamento de pólos simbólicos opostos e como uma busca de uma identidade mais profunda, de um nível de autoconhecimento que permita o reencontro com à Alma Gêmea. Na tradição judaico cristã, este reencontro aparece no Cântico dos cânticos, onde a noiva (Israel) espera pelo noivo, o Messias; nas Epístolas Paulíneas, a noiva é a Igreja e o noivo, o Cristo; já na poesia mística de San Juan de La Cruz, o noivo é o espírito e a noiva, a alma e o corpo. Para os ocultistas, as dezesseis cartas de figura representam as relações entre os quatro mundos cabalísticos (Ouros, Espadas, Copas e Paus) e os quatro corpos do Eu Inferior (Rei, Dama, Cavaleiro e Valete). Para os cartomantes, as cartas de figura representam relações interpessoais nos quatro níveis de atividade: material, mental, emocional e espiritual.

3 - A Associação das 40 cartas numeradas aos quatro mundos cabalísticos e a estrutura decimal da Árvore da Vida. Já as quarenta cartas numeradas representam as relações transpessoais, aquelas que dizem respeito à compreensão que se tem do Universo e do seu desenvolvimento nos quatro planos de atividade. O número quarenta representa a totalidade da existência e da experiência humana. Os períodos medidos por este número são freqüentes na tradição judaico-cristã: os 40 dias do dilúvio de Noé, os 40 anos durante os quais os israelitas erraram pelo deserto, os 40 dias que Moisés passou no Sinai, os 40 dias do jejum de Cristo, entre outros. Todas essas experiências têm o mesmo significado: um período de reflexão sobre a totalidade da existência, a consciência exilada acima e além da manifestação. O Desejo de União neste nível não se refere a realização da Utopia Social ou da felicidade, mas sim à reintegração mística com Deus às viagens empreendidas por Dante, Enoch e pelos místicos sufis através dos palácios celestiais que antecedem o Trono do Altíssimo onde Criador e Criatura se encontrarão frente a frente. Podemos, portanto, dizer que o Tarô esbouça uma cartografia completa da psique humana, subdividindo suas cartas em 3 grupos distintos, representando 3 ‘profundidades’ do Inconsciente:

22 Arcanos Maiores - Relações Pessoais
16 Cartas de Figura - Relações Interpessoais
40 Cartas Numeradas - Relações Transpessoais

No livro-jogo A Estrada Iluminada desenvolvi e aprofundei a discussão sobre o significado destes três níveis do inconsciente, bem como do conteúdo simbólico de cada uma das 78 cartas do baralho tradicional. O leitor interessado em conhecer mais sobre o assunto encontrará nele um subsídio precioso para aprofundar seu domínio sobre a linguagem arquetípica.

Notas
(1) Mebes. G. O. Os Arcanos menores do Tarô. São Paulo: Pensamento, 1987.
(2) Kaplan, Stuart R. Tarô Clássico. São Paulo: Pensamento,1989.
(3) Nichols, Sallie. Jung e o Tarô. São Paulo: Cultrix, 1990. Nichols cita a ‘teoria dos trunfos’ da escritora Gertrude Moakley, segundo a qual os Arcanos Maiores “são simples adaptações de ilustrações de um livro dos sonetos de Petrarca a Laura” - o I Trionfi. O tema, comum na Idade Média européia, teria inúmeras versões e seria encenado teatralmente como sucessão de personagens como em um desfile.
(4) Kaplan, Stuart R. Idem
(5) Wang, Robert. O Tarô Cabalístico. São Paulo: Pensamento, 1993. Livro que reúne de forma mais compacta todo sistema da Golden Dawn, comparando os trabalhos de Master, Waite e Crowley. Possui uma bibliografia completa dos livros publicados pelos participantes da ordem, sendo um guia moderno e imparcial das idéias de seus expoentes.
(6) Wang, R. Idem
(7) Halevi, Z’ev Ben Shimon. Universo Kabbalístico. São Paulo: Ed. Siciliano, 1992.
(8) Steinbrecher, Edwin C. A Meditação dos Guias Interiores. São Paulo: Ed. Siciliano, 1990. Obra ainda pouco conhecida pelos brasileiros, mas que já é considerado um clássico no exterior. Explica a terapia elaborada a partir da combinação das cartas com a técnica da imaginação criativa segundo o mapa natal.
(9) Dickeman, Alexandra Collins. A Aventura da Autodescoberta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1992. Um excelente apanhado de exercícios psicológicos de auto-conhecimento baseado nos Arcanos Maiores.
(10) Gad, Irene. Tarô e Individuação - Correspondências com a cabala e a alquimia. São Paulo: Mandarim, 1996.
(11) Byington, C. Uma Teoria Simbólica da História, o Mito Cristão como Principal Símbolo Estruturante do Padrão de Alteridade Ocidental Revista Junguiana (SBPA), n.1 pág.120/177 Petropolis: Vozes, 1983.