Equívocos de Interpretação Dialógica
Por ocasião da segunda invasão dos persas à Grécia, o general Leônidas, rei de Esparta, foi até o Oráculo de Delfos perguntar sobre a possibilidade do exército espartano, de apenas 300 homens, enfrentar sozinho cinco mil persas no desfiladeiro das Termópilas. A pitonisa psicografou o seguinte: “Vais. Vencerás. Não morrerás lá”. E o general Leônidas, então, foi para a guerra e morreu junto com seus 300 espartanos. Seu filho, que também se chamava Leônidas, foi a Delfos cobrar a sentença do oráculo. Quando mostrou o papel psicografado, a pitonisa do templo leu: “Vais. Vencerás? Não. Morrerás lá”.
As Linguagens Simbólicas
Na estória do general Leônidas (originalmente contada por Heródoto, adaptamos a estória a partir de uma versão recriada por Monteiro Lobato, na Gramática da Emília), considerada por muitos como um desrespeito ao oráculo de Apolo, encontram-se muitos elementos valiosos para esclarecer alguns equívocos paradigmáticos muito freqüentes não apenas na arte divinatória, mas também em outras formas de investigação que a sucederam na intenção de desvendar o futuro e evitar a adversidade. Os mesmos equívocos epistemológicos cometidos na interpretação do oráculo pelo general espartano podem ser encontrados em discursos religiosos, filosóficos e até científicos.
O principal erro de Leônidas foi transferir a responsabilidade de seu destino para o oráculo, contrariando, assim, a célebre frase de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”. Infelizmente, a maioria das pessoas que freqüentam médiuns e cartomantes tem a mesma atitude do general espartano, pois, ao invés de um esforço sincero para se conhecerem melhor e tomarem suas decisões, elas querem saber de antemão o que vai acontecer.
A verdade, entretanto, é que não existem destinos fatais ou características pré-determinadas. Tanto na antiga arte divinatória como nas atuais ciências sociais, não são nem o ‘Destino’ nem o contexto social que determinam a consciência, mas o desenvolvimento moral e psicológico da consciência que liberta os homens de seu destino provável resultante do condicionamento social.
E, quanto mais o ser humano estiver consciente de si, a menos influências involuntárias estará submetido. Este era a intenção original da adivinhação: que os indivíduos percebessem a ação destas influências do inconsciente sobre si e alterassem o rumo de suas vidas através de sua liberdade.
Para tomar suas decisões mais importantes, os antigos chineses consultavam as rachaduras de um casco de tartaruga, exposto ritualmente a um ferro em brasa; os etruscos obedeciam aos deuses através do estudo dos relâmpagos; os caldeus reconheciam o universo nas vísceras de animais mortos. As técnicas e métodos primitivos de leitura do inconsciente estão sempre ligados a duas idéias fundamentais: a idéia de correspondência universal, segundo a qual pode-se conhecer o todo através de sua imagem em um fragmento; e a idéia de quebra da linearidade do tempo, da transcendência da duração contínua entre passado, presente e futuro - geralmente provocada pelo transe ou pela mudança do estado de consciência do adivinho. Os jogos de adivinhação são as associações e correspondências a que o homem chegou através da experiência da sincronicidade - a percepção da simultaneidade absoluta de todos os eventos. Com o tempo, a codificação dos sinais decifrados em transe estruturou o que chamamos de Linguagens Simbólicas do Inconsciente. Essas linguagens seriam formadas pela imagem arquetípica dos aspectos da natureza e ainda hoje estariam em permanente desenvolvimento.
Porém, com a progressiva dessacralização das culturas ancestrais - iniciada por volta de 1.500 a.C., com o aparecimento da vida sedentária nas primeiras cidades e da Escrita de codificação gráfico-fonética; sedimentada pelo pensamento filosófico desencadeado por Sócrates e Platão; e, concluída pela industrialização generalizada de todos os objetos e pelo desenvolvimento do pensamento científico - a antiga arte divinatória e suas linguagens simbólicas foram destronadas pela filosofia da objetividade e relegadas à condição de superstição e de crendice. Nas sociedades tradicionais, sem subjetividade individual nem objetividade uniforme, as artes divinatórias representavam a síntese hermenêutica do conhecimento humano; na modernidade, elas foram rebaixadas pelo pensamento científico a uma mistura vulgar de sugestão hipnótica com “sub-psicanálise”, as diversas ‘mancias’: a cartomancia, a geomancia, a quiromancia.
Sabe-se que, nos primórdios da História, o nômade paleolítico caçava durante a lua cheia e, em sua caverna na lua nova, dedicava parte da caça ao ‘senhor das feras’, como forma de agradecimento e pedido de sucesso em novas empreitadas. Segundo Mircea Eliade (1), as imagens desenhadas nas cavernas tinham um caráter mnemônico, ou seja, eram objeto de culto e invocações durante os rituais sangrentos da lua nova. Elas eram um meio mágico pelo qual o homem arcaico simbolizava seus desejos.
Certo dia, no entanto, o caçador nômade desejou ‘caçar’ uma mulher ou derrotar um inimigo e acabou desenvolvendo um panteão para manipular as forças de seu universo cosmológico. Assim, para conquistar uma fêmea, ele deveria sacrificar determinados animais, vegetais e objetos com características comuns, a uma deusa aquática, como a deusa grega Afrodite, a Venús latina ou a deusa nagô Oxum dos afro-americanos. Já se o desejo era o de derrotar seus inimigos, ele invoca um deus guerreiro do fogo, como Ares, Marte ou Ogum, ou mesmo um demônio protetor do seu clã. Este panteão primitivo, que encarnava diferentes aspectos da natureza mesclados com o culto aos antepassados, foi, não apenas a primeira manifestação religiosa de que se tem notícia, mas também, o mais antigos registro da cultura humana.
A própria palavra ‘adivinhar’ significa literalmente ‘falar com os deuses’ e por isto a atividade passou a ser exercida exclusivamente por membros da classe sacerdotal ou por suas diferentes variações xamânicas e místicas. Porém, com o aparecimento das primeiras cidades e da vida sedentária, o homem evoluiu do estágio lunar-maternal para uma nova estrutura social e para um novo paradigma de representação. Enquanto o aparecimento da escrita fundou um novo tipo de cultura, o advento da agricultura impôs deuses e calendários solares e o poder político se ‘masculinizou’ em torno da imagem de reis freqüentemente considerados filhos ou descendentes das divindades solares.
Neste novo contexto, as linguagens simbólicas se tornaram mais probabilísticas e menos mágicas. Tratava-se então de prever os acontecimentos e não de controlá-los; de conhecer antecipadamente o destino a longo prazo e não de satisfazer às necessidades imediatas. Neste sentido, a arte divinatória incluía conhecimentos de medicina, meteorologia, administração pública e estratégia militar - além do necessário conhecimento psicológico do transe e dos elementos cognitivos que estruturavam a linguagem dos dogmas religiosos.
Os ‘deuses’ não eram mais simples personificações de forças naturais, mas também representavam simultaneamente lugares, vocações, dramas arquetípicos que fundavam costumes e tradições - estavam, portanto, muito longe da representação dos ‘tipos psicológicos’ modernos, como os atuais signos astrológicos e os orixás. Na Antigüidade não havia o que chamamos de ‘adivinhação individual’. Até mesmo os oráculos dos reis não se referiam a eles como pessoas mas como instituições. Nas artes divinatórias primitivas o que importava era a interpretação e a manipulação das forças naturais e não o destino individual dos consulentes. Ao contrário: a idéia de destino individual era constantemente ‘sacrificada’ em nome da harmonia cósmica.Muitos autores associam o aparecimento dos primeiros alfabetos a esta ‘racionalização solar’ dos símbolos arcaicos da adivinhação primitiva, ou pelo menos, que várias escritas ideográficas anteriores ao predomínio dos idiomas Indo-europeus (de codificação gráfico-fonética) foram marcadamente influenciados por técnicas divinatórias, tais como o chinês, o sânscrito, o hebraico antigo, os alfabetos rúnicos e os hieróglifos egípcios.
Jean Nougayrol (2), por exemplo, estudou a evolução dos sinais da auruspicia mesopotâmica nas culturas assírica e babilônica. O vocabulário técnico desta modalidade de adivinhação, em um primeiro período, contava com cerca de seis mil sinais de tipo funcional, sendo comparável à nossa toponímia cerebral. Havia uma relação direta entre cada símbolo e o objeto ou ação concreta representada. Com o passar do tempo, segundo Nougayrol, os sinais - que representavam diretamente as idéias mnemônicas do universo primitivo - foram sendo gradativamente agrupados e reduzidos, no sentido de representarem o panteão astrológico, passando a associar sons, fonemas a elementos da mitologia. Assim, os sinais da escrita cuniforme são o resultado de um longo processo histórico de simplificação dos símbolos arcaicos da auruspicia e de sua utilização de seus oráculos nas genealogias reais e nos calendários. É importante ressaltar que esta ‘racionalização’ dos sinais mnemônicos seguiu a evolução dos dogmas religiosos dos caldeus, os primeiros a apresentarem um panteão astrológico-solar completo, formado por uma trindade cósmica, sete divindades planetárias e doze entidades zodiacais. O fato de alguns alfabetos, como o hebreu, possuírem 22 letras (3+7+12) levou a maioria dos ocultistas modernos a sustentarem que as imagens das cartas de Tarô derivariam de uma linguagem universal, ou dos sinais das escritas ideográficas.
Hoje este modelo astrológico não nos serve mais de paradigma de observação científica dos céus mas continua válido como ‘Themata’ ou paradigma simbólico . Assim, no paradigma objetivo da astronomia, sabemos que a Terra gira em torno do Sol; no entanto, continuamos dependendo simbolicamente do paradigma subjetivo da astrologia, que como uma linguagem do inconsciente, condiciona atitudes e comportamentos, através da associação de determinadas características psicológicas aos meses do ano, por exemplo. A ciência e o pensamento objetivo superaram apenas parcialmente o antigo paradigma de representação e esta ‘superação’ é uma questão muito relativa: ao contrário do que pensam os historiadores da ciência, a idéia de um sistema geocêntrico não significa que Ptolomeu acreditasse que o Sol girasse em torno da Terra, mas sim que ele colocava a questão da representação objetiva do universo em um segundo plano diante da idéia de decifração do destino através da observação especular das estrelas. Devido ao movimento de precessão do eixo da terra, os céus astrológico e astronômico não coincidem mais. Tal fato, paradigmático da relação geral entre cosmologia científica e cosmogonia simbólica, divide atualmente os astrólogos em dois grandes grupos: os defensores de uma atualização do simbolismo ao céu real e os que dissociam completamente a linguagem astrológica da realidade astronômica.
Hoje, quando vemos no cinema as imagens de heróis como o agente 007 ou de estrelas Elizabeth Taylor não estamos distantes dos arquétipos marcianos e venusianos adorados nas cavernas. As linguagens simbólicas do inconsciente continuam na base do processo cognitivo, formando um importante patrimônio cultural coletivo com o qual não cessamos de interagir.
E mais: apesar das inúmeras diferenças epistemológicas dos modus operandi entre o conhecimento científico e o saber tradicional, ambos têm um único objetivo: evitar o infortúnio e a adversidade, procurando antecipar os acontecimentos para controlá-los. Infelizmente, as tentativas de fazer uma aproximação entre os dois saberes foram, até o momento, muito modestas. É claro que muitos trabalhos já enfatizaram a importância da imagem e do arquétipo em diferentes domínios epistemológicos (publicidade, psicologia, educação). Entretanto, ainda são escassas as iniciativas que pesquisam os efeitos e os limites do papel que os arquétipos desempenham na própria interpretação. Em seu prefácio a tradução alemã do Livro das Mutações (3), Jung esbouça pela primeira vez uma explicação científica sobre o fenômeno da adivinhação a partir de suas teorias da sincronicidade e do inconsciente coletivo. Este trabalho é retomado e desenvolvido por Marie-Louise Von Franz (4), que estuda diferentes gêneros de adivinhação à luz das categorias junguianas. Tornou-se lugar comum dizer atualmente que o tempo é a quarta dimensão do espaço físico e que ‘o passado e o futuro só existem no presente’. Os jogos de adivinhação procuram saber como as causas passadas e as possibilidades futuras condicionam o presente, como estes dados estão estruturados no inconsciente. Quando jogamos as cartas do Tarô, por exemplo, cada combinação particular espelha a situação alma do consulente, sua vida interior, para que ele tome consciência de como seu passado e seu futuro estão ‘organizados dentro de si’.
No entanto, a verdade é que levamos algum tempo para compreender a real natureza do tempo e os limites epistemológicos da previsibilidade. Recentemente, sob o nome de ‘experiência pré-cognitiva’, Danah Zohar (5) atualizou e ampliou a discussão iniciada por Jung sobre adivinhação e sua relação com a física contemporânea. É que, para escapar a concepção newtoniana de tempo linear e contínuo válido para todos os elementos de uma determinada totalidade, concepção universal e historicista (que no âmbito das ciências humanas poderiam ser representados por Marx e Max Weber); Jung e Von Franz incorreram em uma concepção einstiniana de um tempo relativista e sincrônico: a duração intrínseca do espaço físico.
Atualmente, graças aos teóricos da complexidade (Prigogine, Atlan, Morin), a descontinuidade e a sincronicidade de nossas memórias não são mais avessas à história e a irreversibilidade da vida. Ao contrário: agora elas se completam em uma visão que quer religar o universal ao particular, o global ao específico, o passado ao futuro. Trata-se agora de encontrar um equilíbrio entre um ‘querer involuntário’ formado pelo conjunto de fatores históricos determinantes e uma ‘consciência cognitiva’ forjada na seleção sincrônica das possibilidades. Esta nova concepção corresponde a noção de ‘múltiplos tempos simultâneos compreendidos dentro de um único tempo irreversível’ proveniente da mecânica quântica e oferece um novo paradigma de representação onde a previsibilidade de um evento dependerá, ao mesmo tempo, do simbólico e do científico, de uma leitura simbólica do inconsciente e do rigor crítico da sua interpretação (6).
“Vencer e voltar vivo” - era o desejo oculto no inconsciente do general espartano. Derrotar o exército persa com apenas 300 homens faria de Leônidas um herói nacional e daria a Esparta a hegemonia sobre toda Grécia. E este foi o segundo erro do rei espartano: movido pela vaidade e pela ambição política, Leônidas acreditou que seu desejo refletido pelo oráculo era a verdade.
Através de alguns simples procedimentos de sugestão hipnótica, qualquer cartomante pode induzir o consulente a escolher alguns desdobramentos do seu presente mediato, trabalhando suas perspectivas sociais e suas expectativas de desenvolvimento. Pelo reforço hipnótico dos desejos e projeções do consulente, o cartomante poderá até dizer fatos que realmente acontecerão. Mas isto não será uma previsão e sim uma manipulação psíquica, em que são reforçadas algumas possibilidades de desenvolvimento existencial em detrimento de outras. A grande maioria das pessoas procura na adivinhação apenas um reforço para seus desejos de ascensão social e/ou realização afetiva: uns desejam dinheiro, fama; outros querem viajar ou simplesmente casar e ter filhos.
“Qual é o perfil de sua felicidade?”- é a pergunta que o oráculo silenciosamente formula a cada inconsciente. Um adivinho experiente não reforça nem frustra os desejos das pessoas que procuram o oráculo, ele apenas faz com estas pessoas tomem consciência de como seus desejos estão estruturados no presente. Durante o processo de adivinhação, o consulente projeta seus conteúdos psíquicos dentro de uma determinada configuração, que representa sua situação existencial. O futuro é uma das possibilidades de desenvolvimento do presente. E a opção consciente por uma possibilidade determinada já significa uma transformação das condições do destino, porque altera substancialmente a situação imediata.
Por isso, a leitura do inconsciente não deve nunca se limitar à simples constatação da situação existencial do consulente, mas sim permitir uma reorganização psicológica de todos os elementos discursivos apresentados, deve promover uma transformação na situação enfocada. E para garantir essa intenção, deve-se sempre dividir o processo divinatório em duas etapas distintas, permitindo assim um autoconhecimento dinâmico, uma reflexão simbólica sobre a vida.
“Quais os elementos recorrentes e as tendências que condicionam sua presente situação existencial?” - será sempre a pergunta obrigatória da primeira metade de uma leitura do inconsciente, enquanto a segunda parte do processo deverá sempre romper com os fatores determinantes que se manifestaram, com a quebra do ciclo de repetição dos condicionamentos, representando a escolha de uma das alternativas de desenvolvimento apresentados. Dessa forma, a segunda parte do processo significará, então, a construção do seu próprio destino, transformando a ordem e o sentido dos arquétipos que antes condicionavam a situação.
A) Primeira parte: A SITUAÇÃO-PROBLEMA
§ Passado - principais recorrências biográficas e seus ciclos de repetição;
§ Futuro - principais tendências involuntárias e seus possíveis resultados;
§ Presente - situação existencial, contradição atual que impede o desenvolvimento e a auto-organização da pessoa.
B) Segunda parte: A ATITUDE-SOLUCÃO
§ Reorganização dos fatores condicionantes que formavam a situação anterior em um novo presente, adicionam ou retirando uma variável.
§ Escolha crítica de uma das alternativas possíveis do Destino.
§ Restruturação dos objetivos prioritários e da estratégia para realizá-los.
Assim, na primeira parte, o hermeneuta deve se prender à causalidade e buscar o mesmo rigor lógico e objetivo que um cientista na ‘verificação de uma hipótese’, observando a inter-relação da multiplicidade das condições e dos fatores determinantes de uma situação existencial. Já em um segundo momento, deve-se procurar se ater às possibilidades, às alternativas, às ‘hipóteses paralelas’, procurando se colocar do ponto de vista da sincronicidade, onde a coincidência dos fatores aponta sempre para uma transformação.
Dessa forma, os jogos de adivinhação, além de propiciarem um “diagnóstico”, também reprogramam o inconsciente, ajudando o consulente a modificar a situação em que se encontra. A adivinhação não é apenas a arte de decifrar problemas, mas também, sobretudo, a arte de descobrir alternativas: ajudar a escolher um futuro melhor dentre os diversos possíveis - eis o que deveria ser o papel legítimo dos oráculos!
E este foi o terceiro erro do general espartano: após delegar a responsabilidade de suas decisões ao oráculo e de se identificar acriticamente com seus desejos mais secretos, Leônidas não se preocupou em discutir alternativas. Entregou-se inconscientemente ao seu destino fatalmente determinado por si mesmo. Para não repetir os mesmos erros do general espartano, portanto, deve-se tomar algumas precauções em processos de leitura do inconsciente:
1) Ao contrário da cartomancia, onde o consulente pergunta e o oráculo responde, o decifrado deve colaborar com o decifrador, expondo de antemão o motivo da leitura e todos os problemas da situação a ser estudada. Deve ficar bem claro para ambos que a leitura do inconsciente é uma responsabilidade dos dois.
2) Não se deixar enganar pelas próprias ilusões. O desejo de casar com uma linda mulher é diferente do destino de casar com uma linda mulher, e se os leitores não estiverem preparados para distinguir esta sutil diferença, serão presas da própria ilusão.
3) Deve-se sempre estar aberto para novas alternativas. Na verdade, o objetivo da leitura deve ser a busca de alternativas ao destino. Quem não quer mudanças pessoais não deve procurar processos oraculares, pois, de saída, já se entrega como vítima das forças do inconsciente. Daí a necessidade de uma análise compreensiva das possibilidades de mudança.
Os Quatro Níveis da Linguagem
Mas o que o general espartano e seus equívocos têm a nos ensinar? O que as ciências humanas podem aprender com a hermenêutica simbólica do Tarô? É que esses três erros de interpretação na leitura do inconsciente correspondem aos princípios metodológicos básicos da decifração hermenêutica: a observação descritiva, a interpretação dialógica e a análise compreensiva. Entretanto, só chegamos à raiz última do sentido de um discurso quando o revivêssemos - e é isso que desejamos demonstrar. Por exemplo: “Adão viu os animais”.
Sentido Literal: Um homem, chamado Adão, viu seres de outras espécies.
Sentido Alegórico: Adão reconheceu seus instintos e paixões.
Sentido Tradicional: O primeiro dos homens tomou consciência de sua singularidade ontológica em relação a outros seres.
Sentido Místico: (ritualizacão do texto) Eu, Adão, o primeiro ser humano, vejo os animais e observo que eles são, ao mesmo tempo, seres reais e sentimentos meus.
Segundo o Zohar (7), há quatro níveis de decifração hermenêutica no estudo das Sagradas Escrituras: PESCHAT ou sentido literal; REMEZ ou sentido alegórico; DERASCHÁ ou sentido tradicional; e SOD ou sentido místico. Porém, este método de extração do sentido através de quatro leituras sucessivas é bem mais antigo. Ele já era utilizado por Filon de Alexandria, por volta do ano zero. Podemos, usando critérios semelhantes, observar diferentes ‘profundidades’ do sentido na linguagem e estabelecer quatro níveis de significação para todos os discursos: o Sígnico, o Simbólico, o Paradigmático e o Arquetípico.
O Nível Sígnico e a Observação Descritiva
No primeiro nível, tratamos a linguagem como objeto: como uma ‘realidade-concreta’, como algo tátil, material, que produz uma sensação, que tem um peso e uma quantidade, como algo que tem um cheiro. É a linguagem em suas dimensões física e biológica. O processo de produção de uma linguagem está claramente refletido no aspecto material de seus discursos. Por isso, neste primeiro momento, deve-se esquecer o conteúdo e medir as formas destes discursos de um ponto de vista quantitativo.
Também neste primeiro nível devemos observar o que o discurso quer dizer literalmente, o que ele significa do ponto de vista de quem o proferiu, ou seja, como ele foi ‘codificado’. Neste nível de decifração, estuda-se, portanto, o aspecto material e o aspecto de significação intencional-consciente de uma linguagem determinada: O QUE e COMO os discursos se realizam, ou ainda, o léxico e suas gramáticas.
O Nível Simbólico e a Interpretação Dialógica
No segundo nível, a linguagem é vista como um sujeito, como a expressão de uma consciência humana. Assim, o segundo passo de nossa pesquisa é discutir o conteúdo dos discursos. O QUEM e O PORQUÊ da comunicação, os interlocutores e a ‘causalidade’ da linguagem. Situar-se em um universo de perpétua transformação exige do ser humano uma constante adaptação ao meio ambiente e a transmissão desta experiência entre grupos e gerações.
Assim, neste nível de decifração da linguagem não se trata mais de duplicar reflexivamente a realidade, mas sim de transmitir experiência existencial, ‘fazer comum’ sentimentos e desejos, comunicar um modo subjetivo de compreender a informação. A transcendência do sentido - através do qual ‘a expressão dos sentimentos’ ganha uma profundidade significativa e um caráter abstrato e genérico - se deve à Função Simbólica da Linguagem, que desempenha um papel dialógico e interativa, fazendo uma representação final do mundo mais significativa que a mera reprodução da realidade que lhe deu origem.
O homem é o único animal auto-eco-organizador porque sua cultura não apenas reproduz o real, mas também porque ela é uma mensagem sobre a vida e suas dificuldades.
Enquanto no nível sígnico, há um sujeito impessoal que acredita descrever cientificamente ‘seu objeto’; no simbólico, é o ‘objeto’ que diz ‘algo’ a respeito do ‘sujeito’. E este ‘algo’ revela um novo patamar para o sentido, que não só reflete o mundo, mas também o modifica simbolicamente, interpretando-o através de sensações, sentimentos e idéias valorativas.
Como vimos na primeira parte da dissertação: o real, a coisa, o referente são representados por uma imagem holográfica estruturada pela percepção com base nas experiências anteriores e rapidamente arquivada na memória. Quando, em um segundo momento, formos transmitir informações sobre aquele objeto ou realidade, a consciência reconstituirá a imagem da percepção arquivada segundo critérios coletivos, determinados pela linguagem particular do seu grupo.
Assim, distinguimos metodologicamente duas instâncias nesse processo cognitivo: a primeira representação da consciência é analógica, involuntária e organizada pela experiência; na segunda a representação é motivada e codificada segundo fatores sociais. A consciência interpreta a percepção dos sinais dentro de um quadro de referências analógico ditada pela experiência e as transmite segundo normas e regras coletivas. O signo é uma relação arbitrária entre um conteúdo mental e uma imagem acústica. Os signos tratam de como interiorizamos, sem perceber, as regras da consciência social. O símbolo, ao inverso, é uma experiência direta da percepção individual com o inconsciente coletivo.
Interpretar é ler o inconsciente alheio, é inferir os motivos políticos inconfessáveis e as intenções psicológicas que muitas vezes o próprio sujeito do discurso desconhece. Mas, é preciso ter cuidado, porque se nesse nível toda linguagem é uma representação involuntária, os discursos não são meras metáforas da realidade, mas sim a própria realidade discursiva a ser decifrada. Para se interpretar um discurso ‘dialogicamente’ é preciso revivê-lo, vivenciando-o ‘por dentro’. E para tanto, é preciso uma análise compreensiva, comparando seus valores como os do enunciador do discurso. O importante seria ressaltar que a hermenêutica é uma interpretação duplamente dialógica, pois além de interpretar a linguagem ‘por dentro’, lendo os signos através de seu conteúdo simbólico; ela sempre leva em conta o conflito complementar entre duas diferentes estratégias cognitivas: a arqueológica e a teleológica. Uma engendrada pela representação sígnica quer construir uma explicação causal e determinista de nosso universo, e a outra, instigada pela imaginação simbólica quer libertar o homem de suas necessidades, enfatizando o mundo das possibilidades em que os sonhos coletivos transformam-se em paradigmas da realidade.
O Nível Paradigmático e a Análise Compreensiva
No terceiro nível, trata-se de observar os dogmas e rituais que perpetuam a linguagem. É o discurso reduzido a seus verbos, às suas paixões, à ação histórica e suas ressonâncias intersubjetivas. Ocultas pelas realidades física e subjetiva dos discursos, surgem aqui as estruturas inconscientes de repetição da linguagem. A relação entre a forma imposta pela transmissão e os múltiplos conteúdos percebidos do discurso, entre o aspecto físico e o psicológico da linguagem, é sempre histórica e faz parte de uma tradição determinada socialmente. Assim, o terceiro passo de nossa pesquisa consiste em determinar o ONDE e o QUANDO dos discursos, em localizar e entender o discurso estudado dentro do quadro histórico em que ele está inserido.
Mas para localizar um discurso no tempo/espaço é preciso situar-se também. Porque estamos, nós também, sujeitos à projeção, à transferência e às analogias deste ‘efeito simbólico’ em que os ‘sentidos ocultos’ se escondem. Assim, se na interpretação dialógica, o sentido simbólico é produto de uma leitura do inconsciente do enunciador e do conflito dos interlocutores no interior do discurso; na análise compreensiva, o sentido implica que analisemos também a nossa própria subjetividade e nos perguntemos em que o discurso nos sensibiliza e afeta emocionalmente.
Neste nível, portanto, não basta tomar o próprio inconsciente individual como objeto, enunciando-se como ‘meta-sujeito’. É preciso colocar em xeque toda nossa cultura. E a análise compreensiva é justamente essa comparação mito\lógica dos valores éticos e culturais, histórica e socialmente produzidos, que nos permite reconstituir as relações aproximadas entre o sentido originalmente enunciado e suas possíveis leituras. A analogia dos mitos, sensibilidades, gestos, nos revela uma nova função da linguagem, responsável não apenas por estruturar comportamentos, mas também por permitir compreendê-los. Apenas consciente das próprias intenções e limites, o hermeneuta compreenderá o enunciador e decifrará o sentido de seus sentimentos e de suas paixões.
A linguagem, portanto, além de reflexiva e de comunicativa, é também paradigmática, funcionando como um modelo estruturante da realidade - que não apenas contextualiza o discurso, mas está inscrito em um sentido mais profundo e polêmico do que os do signo e do símbolo: o sentido compreensivo, em que os valores éticos e os mitos de diferentes culturas se confrontam diante do pesquisador que souber reconhecer a natureza inconsciente dos afetos e aversões frente ao discurso que estuda. Assim a linguagem ‘funciona’ simultaneamente como um espelho da realidade objetiva, como uma mensagem inconsciente (ou uma memória coletiva de nossa subjetividade involuntária), e, finalmente, como um modelo estruturante e compreensivo das relações do EU com o OUTRO - em que o sentido é reconstruído paradigmaticamente dentro do quadro de referências subjetivas em que foi originalmente concebido.
De forma que na análise compreensiva há sempre um conflito intersubjetivo entre múltiplas formas de representar a realidade. Porém, essas ‘diferenças’ apenas ressaltam a afinidade transcultural dos mitos e valores simbólicos através dos quais pode-se compreender alguns traços universais do imaginário e, assim, conhecer melhor a nós mesmos e a nossa relação com a linguagem. Quando falamos de ‘diferenças’ epistemológicas e cognitivas é preciso deixar claro que entendemos a linguagem como um campo integral e homogêneo, que não comporta cortes ou marcos definitivos. Apesar disso, é nesta inevitável comparação entre os nossos valores e os do discurso em que se encontram os mais desconcertantes elementos simbólicos comuns a diferentes paradigmas; pois é nesta analogia ética que se revela a existência de uma última instância cognitiva mais profunda e abrangente, formada por imagens psíquicas universalmente associadas a temas e idéias transculturais, a que chamamos de arquétipos.
Os arquétipos não têm uma única função específica e são sempre ambivalentes e paradoxais. Eles expressam contradições meta-racionais que se perpetuam em diversos paradigmas, em diferentes culturas. Às vezes extremamente simples (o Pai, a Mãe, o Outro-Sexo), às vezes complexos (a Justiça, o Mal, o Sacrifício), eles representam dispositivos psicológicos universais. Podemos caracterizá-los como o que há de universal na linguagem, o seu aspecto espiritual. Chegamos, assim, a um derradeiro nível da linguagem - lá onde ela não é mais decifrável, mas sim, reatualizada/ritualizada.
O nível arquetípico
A lenda conta que quatro grandes rabis (Akiva, Ben Zoma, Ben Azai e Aher), no século II, se dedicaram a estudos esotéricos e “entraram no paraíso” (8). A estória afirma que “um deles viu e morreu; o segundo viu e perdeu a razão; o terceiro viu e corrompeu-se. Só rabi Akiva entrou e saiu em paz”. Poderíamos, parodiando a lenda, dizer que a palavra mata, o símbolo enlouquece, o exemplo perverte e apenas o arquétipo realmente explica a linguagem - pois ao comparar o real ao ideal, revela como a realidade extrapola seus modelos.
Mas decifrar o sentido não basta. De nada adianta a crítica das ideologias e dos discursos, se isto nos leva apenas à desmistificacão dos fetiches, à destruição niilista do sentido, à polissemia. Restituir o sentido à linguagem não é apenas revivê-la, mas recriá-la, reinventá-la, atualizando sua significação. No quarto nível de leitura, a linguagem vive no espírito dos seus discursos, na experiência existencial que eles transmitem, nas suas diferentes respirações frente à morte.
O sentido aqui é nietzschianamente trágico, não-reativo, para além da representação: um sentido que apesar de partilhar o drama não encena seu sofrimento. Neste nível de leitura da linguagem, os advérbios de intensidade e duração interrogam sobre o ritmo, a respiração e, sobre a consciência que o discurso tem de si. Acima de todas as formas, além de todas as idéias e paixões, os discursos têm um significado existencial, um sentido revivido pela experiência humana cravada nas profundezas inconscientes da linguagem: a morte e a relação com o sobrenatural.
O exemplo de arquétipo mais citado é o das diversas deusas mitológicas que formam o arquétipo da ‘grande mãe’. Mas existem também casos mais complexos em que formas culturais diferentes expressam um mesmo mecanismo psíquico universal. Palas Atenas, o Júpiter latino e o orixá Xangô, por exemplo, são diferentes representações históricas do arquétipo da justiça, que tem suas raízes em um dispositivo psicológico que equilibra transgressão e culpa.
Das diferentes abordagens que usam o termo, a do historiador Mircea Eliade é que melhor consegue caracterizar o significado do ‘sagrado’ como um apriori epistemológico, definindo o fenômeno mítico como um acontecimento ao mesmo tempo real e fabuloso. Esta característica de ver no mito um ‘valor sagrado’ transhistórico, aproxima bastante o pensamento de Mircea Eliade de Jung, uma vez que ambos utilizam a palavra ‘arquétipo’, em um sentido universal e simbólico. No entanto, na ‘Provação do Labirinto’ (9), Eliade faz uma distinção importante.
“Arrisquei-me a ser confundido com a terminologia de Jung. Para ele, os arquétipos são estruturas do inconsciente coletivo. Eu emprego esta palavra por referência a Platão e a Santo Agostinho: dou-lhe o sentido de ‘modelo exemplar’ - revelado no Mito e que é reatualizado pelo Rito.”
Procurando definir melhor esta distinção conceitual, Gilbert Durand (10) acentuou o critério da ambivalência para diferenciar os arquétipos dos símbolos e caracterizá-los ainda mais como estruturas paradigmáticas do imaginário.
“O que diferencia precisamente o arquétipo do simples símbolo é, geralmente, a sua falta de ambivalência, a sua constante universalidade e a sua adequação ao esquema: a roda, por exemplo, é o grande arquétipo do esquema cíclico, pois não vemos que outra significação imaginária lhe poderia dar, enquanto a serpente não é senão o símbolo do ciclo, símbolo bastante polivalente.”
Para nós, tanto o símbolo quanto o arquétipo são ambivalentes e polissêmicos; enquanto os signos e paradigmas é que representam o aspecto lógico da linguagem. Tanto a polissemia característica dos símbolos e arquétipos quanto a paráfrase típica dos signos e paradigmas são apenas faces de uma mesma moeda: a distinção metodológica em diferentes níveis de decifração só se justifica a partir de uma visão de conjunto que não admita fissuras, divisões e cortes epistemológicos definitivos ou estruturais.
Não basta apenas integrar o simbólico ao método científico, mas também, aplicar o rigor lógico da ciência ao conhecimento cognitivo dos símbolos. As noções de arquétipo e paradigmas nada mais são que uma reduplicação epistemológica da contradição cognitiva entre as funções reflexiva e simbólica da linguagem: o paradigmático é o que há de institucional no selvagem e o arquetípico é o que há de ideal no real, o que há de modelo universo no acontecimento em particular. Perceber claramente estes quatro níveis interdependentes da linguagem sem perder a noção de sua totalidade indivisível. Este é, creio, o desafio metodológico contemporâneo.
Três diálogos e um monólogo
Como vimos, a hermenêutica nasceu com a antiga arte divinatória, foi ofuscada durante séculos de desenvolvimento pelo pensamento científico, mas retornou agora como um modelo adequado para a descrição, interpretação e análise dos discursos, particularmente útil para a pesquisa arqueológica e histórica das mentalidades, mas também pode ser aplicado a diferentes disciplinas em que a decifração do sentido encontre as barreiras cognitivas e epistemológicas dos conflitos paradigmáticos.
No âmbito das ‘ciências do outro’ (a etnologia, a psicanálise, a pedagogia), ou seja, nas formas epistemológicas que tomam por objeto um sujeito falante, é que os erros de interpretação são mais visíveis em seus contornos paradigmáticos. A professora Maria da Conceição Moura, ao estudar minuciosamente a produção antropológica brasileira durante dez anos (75 a 85), aponta os principais entraves epistemológicos da pesquisa a partir do incipiente diálogo entre ciência e tradição: o empirismo relativista, as interpretações paradigmatizadas e, por último, a incapacidade epistemológica de desenvolver uma integração criativa dos saberes que aponte para uma ética de reencantamento consciente do mundo.
No empirismo relativista, o pesquisador se limita a uma descrição exaustiva da realidade estudada, especificada em todas as suas particularidades, sem nenhuma relação com o drama universal do ser humano. Tal atitude adicionada a tendência de especialização do saber, leva necessariamente a uma visão parcial e fragmentada da realidade. Assim, não só as descrições que desprezam a problematização, mas também os discursos especializados que não se enquadram em um contexto geral são resultantes desta atitude pretensiosa em que o pesquisador se apropria de um determinado aspecto dos discursos pesquisados em detrimento de outros, para ‘conservá-los’ em suas especificidades.
Nas interpretações paradigmatizadas, as teorias são utilizadas para explicar a realidade: seja reforçando diretamente a lógica da dominação, seja pela aparente crítica ao sistema que, no entanto, reifica a ruptura entre ciência e tradição. O marxismo ortodoxo, por exemplo, que lê o contexto a partir das categorias de modo de produção, luta de classes, capitalismo, excluindo de seu universo interpretativo o simbolismo genuíno dos discursos míticos, vistos sempre como representações ideológicas. Aqui, ao inverso do emprirismo relativista, é o universal que é utilizado para mutilar o particular, a generalidade que serve para encobrir o específico.
O desencantamento do mundo. Ainda segundo Moura, ‘a nostalgia de um passado próspero das sociedades tradicionais em contraste com o presente atual de pobreza e exploração’ resume a grande maioria dos trabalhos antropológicos contemporâneos, pois mesmo quando esses não descambam para o empirismo relativista ou para as superinterpretações, eles continuam prisioneiros paradigmáticos da instituição científica, incapazes de sonhar um futuro alternativo para as sociedades que estuda. Ora, esses três equívocos interpretativos são os mesmos que os do general espartanos e podem ser evitados através da utilização da hermenêutica e de seus princípios dialógicos. O método hermenêutico é uma parte da fenomenologia que se destina ao estudo da linguagem. Ele consiste em quatro leituras complementares de um mesmo fenômeno: uma primeira objetiva e impessoal para observar e descrever o acontecimento; uma segunda interpretação dos referentes subjetivos e pessoais; uma terceira intersubjetiva e interpessoal, onde levamos em conta diversas outras leituras; e, finalmente, uma quarta e última leitura transpessoal e transubjetiva.
São assim três leituras determinísticas e uma última leitura prospectiva resultante da transformação criativa da situação determinada pelas três primeiras leituras em uma nova possibilidade relacional. Pode-se recorrer ao método hermenêutico sempre que é preciso ‘experienciar’ a linguagem para decifrar o sentido. Por exemplo, para decifrar a intenção de um olhar ou de um sorriso é preciso interagir com ele. Não basta observá-lo, interpretá-lo ou analisá-lo; para compreendê-lo é preciso senti-lo, imitá-lo, revivê-lo. Ou melhor: uma investigação criminal, onde seja necessária decifrar, a partir da reconstituição de detalhes involuntários e pistas ocultas, as intenções e os motivos dos acontecimentos.
Tomemos por exemplo os discursos verbais de uma transmissão de um jogo de futebol pela TV: a primeira leitura seria a do locutor - imparcial e redundante em relação a imagem. Antigamente, imitava-se o ‘speaker’ do rádio. A segunda seria a dos comentaristas e dos repórteres de campo. Hoje em dia esse discurso é propositadamente subjetivo, com os jornalistas torcendo abertamente para os times. A terceira leitura seria a dos diferentes especialistas (ex-juízes, ex-técnicos e ex-jogadores) chamados a esclarecer aspectos da sua área de capacitação. Já a última leitura seria a realizada pelas estatísticas de jogo e pela simulação holográfica das jogadas realizada via computação gráfica. Somente esta última leitura nos permitirá visualizar o jogo de um modo transpessoal e arquetípico em suas formas mais abstratas. Um time, assim, estaria ‘nervoso’ (muitas faltas e passes errados); enquanto o outro jogou ‘disperso’ e sem objetividade (poucos chutes a gol, muitos passes laterais).
Entretanto, esta última leitura só será realmente completa se for direcionada para correção dos arquétipos para ‘o segundo tempo da partida’. E esta última e decisiva leitura é o que separa a hermenêutica da teoria crítica de Haberman e das diversas versões de uma sociologia compreensiva pós-weberiana que problematizam o intersubjetivo sem nenhuma responsabilidade com o reencantamento do mundo. Mais que um conjunto de leituras e procedimentos técnicos sobre decifração de códigos, a hermenêutica é um método de compreensão de si e dos outros, que estuda as relações humanas a partir de sua experiência précognitiva. Aplicado ao universo das ciências humanas, este método de leitura quádrupla a hermenêutica seria a solução para os três principais equívocos de interpretação.
O arquétipo do pai e o complexo de Édipo, para retomar o exemplo inicial, é simultaneamente uma imposição, uma válvula de escape e um modelo estruturante para quem se coloca na posição de filho. Porém, apenas assumindo a posição de pai de outros é que vivemos o arquétipo e o transformamos. No caso, sendo um pai que reinventa o recalque, a sublimação e o exemplo a que foi submetido.
Poderíamos resumir a tarefa desta nova metodologia hermenêutica como uma arte de três diálogos e um monólogo. O diálogo interdisciplinar entre as ciências humanas em torno de uma única realidade empírica como forma de combate a fragmentação do saber. O diálogo intradisciplinar entre as ciências de forma a evitar interpretações paradigmatizadas. E, por fim, o diálogo extradisciplinar entre ciência e tradição - onde nos permitiríamos sonhar um futuro para o homem.
Não se trata, repitamos, de recortar, dividir ou separar. Muito pelo contrário: os três diálogos são eixos de uma única metamorfose do saber, são as possibilidades de intercâmbio que o discurso científico tem para sobreviver. Eles serão insuficientes caso não sejam resignificados por uma última, solitária e definitiva leitura reunificadora, um monólogo arquetípico, onde reencontrará seu espírito em uma consciência científica de si. Pois não se trata de voltar a uma situação cognitiva pré-moderna, nem de interpretar cientificamente os paradigmas tradicionais, mas de estabelecer as bases de um novo saber em que não haverá espaço para as atuais distinções epistemológicas.
(1) ELIADE, M. Tratado Histórico das Religiões .São Paulo:Martins Fontes, 1993.
(2) ALLEAU, R. A Ciência dos Símbolos. Pg. 125. Portugual: Edições 70, 1982.
(3) WILHELM, R. I Ching - o livro das mutações. São Paulo: Pensamento, 1987.
(4) VON FRANZ, M. L. Adivinhação e sincronicidade. São Paulo: Pensamento, 1990.
(5) ZOHAR, D. Através da Barreira do Tempo - um estudo sobre a precognição e a física moderna. São Paulo: Pensamento, 1982.
(6) ATLAN, H.; Entre o cristal e a fumaça - Ensaio sobre a organização do ser vivo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992
(7) TRYON, R. A Cabala e a Tradição Judaica. Pág. 243. Lisboa: Edições 70, 1979.
(8) ALLEAU, R. A Ciência dos Símbolos. Pg. 125. Portugual: Edições 70, 1982.
(9) ORCQUET, CH. Mircea Eliade - A Provação do Labirinto Pág. 120. Lisboa: Dom Quixote, 1987.
(10) DURAND, G. Estruturas Antrológicas do Imaginário. Pág. 35 Lisboa:Presença, 1992.
Por ocasião da segunda invasão dos persas à Grécia, o general Leônidas, rei de Esparta, foi até o Oráculo de Delfos perguntar sobre a possibilidade do exército espartano, de apenas 300 homens, enfrentar sozinho cinco mil persas no desfiladeiro das Termópilas. A pitonisa psicografou o seguinte: “Vais. Vencerás. Não morrerás lá”. E o general Leônidas, então, foi para a guerra e morreu junto com seus 300 espartanos. Seu filho, que também se chamava Leônidas, foi a Delfos cobrar a sentença do oráculo. Quando mostrou o papel psicografado, a pitonisa do templo leu: “Vais. Vencerás? Não. Morrerás lá”.
As Linguagens Simbólicas
Na estória do general Leônidas (originalmente contada por Heródoto, adaptamos a estória a partir de uma versão recriada por Monteiro Lobato, na Gramática da Emília), considerada por muitos como um desrespeito ao oráculo de Apolo, encontram-se muitos elementos valiosos para esclarecer alguns equívocos paradigmáticos muito freqüentes não apenas na arte divinatória, mas também em outras formas de investigação que a sucederam na intenção de desvendar o futuro e evitar a adversidade. Os mesmos equívocos epistemológicos cometidos na interpretação do oráculo pelo general espartano podem ser encontrados em discursos religiosos, filosóficos e até científicos.
O principal erro de Leônidas foi transferir a responsabilidade de seu destino para o oráculo, contrariando, assim, a célebre frase de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”. Infelizmente, a maioria das pessoas que freqüentam médiuns e cartomantes tem a mesma atitude do general espartano, pois, ao invés de um esforço sincero para se conhecerem melhor e tomarem suas decisões, elas querem saber de antemão o que vai acontecer.
A verdade, entretanto, é que não existem destinos fatais ou características pré-determinadas. Tanto na antiga arte divinatória como nas atuais ciências sociais, não são nem o ‘Destino’ nem o contexto social que determinam a consciência, mas o desenvolvimento moral e psicológico da consciência que liberta os homens de seu destino provável resultante do condicionamento social.
E, quanto mais o ser humano estiver consciente de si, a menos influências involuntárias estará submetido. Este era a intenção original da adivinhação: que os indivíduos percebessem a ação destas influências do inconsciente sobre si e alterassem o rumo de suas vidas através de sua liberdade.
Para tomar suas decisões mais importantes, os antigos chineses consultavam as rachaduras de um casco de tartaruga, exposto ritualmente a um ferro em brasa; os etruscos obedeciam aos deuses através do estudo dos relâmpagos; os caldeus reconheciam o universo nas vísceras de animais mortos. As técnicas e métodos primitivos de leitura do inconsciente estão sempre ligados a duas idéias fundamentais: a idéia de correspondência universal, segundo a qual pode-se conhecer o todo através de sua imagem em um fragmento; e a idéia de quebra da linearidade do tempo, da transcendência da duração contínua entre passado, presente e futuro - geralmente provocada pelo transe ou pela mudança do estado de consciência do adivinho. Os jogos de adivinhação são as associações e correspondências a que o homem chegou através da experiência da sincronicidade - a percepção da simultaneidade absoluta de todos os eventos. Com o tempo, a codificação dos sinais decifrados em transe estruturou o que chamamos de Linguagens Simbólicas do Inconsciente. Essas linguagens seriam formadas pela imagem arquetípica dos aspectos da natureza e ainda hoje estariam em permanente desenvolvimento.
Porém, com a progressiva dessacralização das culturas ancestrais - iniciada por volta de 1.500 a.C., com o aparecimento da vida sedentária nas primeiras cidades e da Escrita de codificação gráfico-fonética; sedimentada pelo pensamento filosófico desencadeado por Sócrates e Platão; e, concluída pela industrialização generalizada de todos os objetos e pelo desenvolvimento do pensamento científico - a antiga arte divinatória e suas linguagens simbólicas foram destronadas pela filosofia da objetividade e relegadas à condição de superstição e de crendice. Nas sociedades tradicionais, sem subjetividade individual nem objetividade uniforme, as artes divinatórias representavam a síntese hermenêutica do conhecimento humano; na modernidade, elas foram rebaixadas pelo pensamento científico a uma mistura vulgar de sugestão hipnótica com “sub-psicanálise”, as diversas ‘mancias’: a cartomancia, a geomancia, a quiromancia.
Sabe-se que, nos primórdios da História, o nômade paleolítico caçava durante a lua cheia e, em sua caverna na lua nova, dedicava parte da caça ao ‘senhor das feras’, como forma de agradecimento e pedido de sucesso em novas empreitadas. Segundo Mircea Eliade (1), as imagens desenhadas nas cavernas tinham um caráter mnemônico, ou seja, eram objeto de culto e invocações durante os rituais sangrentos da lua nova. Elas eram um meio mágico pelo qual o homem arcaico simbolizava seus desejos.
Certo dia, no entanto, o caçador nômade desejou ‘caçar’ uma mulher ou derrotar um inimigo e acabou desenvolvendo um panteão para manipular as forças de seu universo cosmológico. Assim, para conquistar uma fêmea, ele deveria sacrificar determinados animais, vegetais e objetos com características comuns, a uma deusa aquática, como a deusa grega Afrodite, a Venús latina ou a deusa nagô Oxum dos afro-americanos. Já se o desejo era o de derrotar seus inimigos, ele invoca um deus guerreiro do fogo, como Ares, Marte ou Ogum, ou mesmo um demônio protetor do seu clã. Este panteão primitivo, que encarnava diferentes aspectos da natureza mesclados com o culto aos antepassados, foi, não apenas a primeira manifestação religiosa de que se tem notícia, mas também, o mais antigos registro da cultura humana.
A própria palavra ‘adivinhar’ significa literalmente ‘falar com os deuses’ e por isto a atividade passou a ser exercida exclusivamente por membros da classe sacerdotal ou por suas diferentes variações xamânicas e místicas. Porém, com o aparecimento das primeiras cidades e da vida sedentária, o homem evoluiu do estágio lunar-maternal para uma nova estrutura social e para um novo paradigma de representação. Enquanto o aparecimento da escrita fundou um novo tipo de cultura, o advento da agricultura impôs deuses e calendários solares e o poder político se ‘masculinizou’ em torno da imagem de reis freqüentemente considerados filhos ou descendentes das divindades solares.
Neste novo contexto, as linguagens simbólicas se tornaram mais probabilísticas e menos mágicas. Tratava-se então de prever os acontecimentos e não de controlá-los; de conhecer antecipadamente o destino a longo prazo e não de satisfazer às necessidades imediatas. Neste sentido, a arte divinatória incluía conhecimentos de medicina, meteorologia, administração pública e estratégia militar - além do necessário conhecimento psicológico do transe e dos elementos cognitivos que estruturavam a linguagem dos dogmas religiosos.
Os ‘deuses’ não eram mais simples personificações de forças naturais, mas também representavam simultaneamente lugares, vocações, dramas arquetípicos que fundavam costumes e tradições - estavam, portanto, muito longe da representação dos ‘tipos psicológicos’ modernos, como os atuais signos astrológicos e os orixás. Na Antigüidade não havia o que chamamos de ‘adivinhação individual’. Até mesmo os oráculos dos reis não se referiam a eles como pessoas mas como instituições. Nas artes divinatórias primitivas o que importava era a interpretação e a manipulação das forças naturais e não o destino individual dos consulentes. Ao contrário: a idéia de destino individual era constantemente ‘sacrificada’ em nome da harmonia cósmica.Muitos autores associam o aparecimento dos primeiros alfabetos a esta ‘racionalização solar’ dos símbolos arcaicos da adivinhação primitiva, ou pelo menos, que várias escritas ideográficas anteriores ao predomínio dos idiomas Indo-europeus (de codificação gráfico-fonética) foram marcadamente influenciados por técnicas divinatórias, tais como o chinês, o sânscrito, o hebraico antigo, os alfabetos rúnicos e os hieróglifos egípcios.
Jean Nougayrol (2), por exemplo, estudou a evolução dos sinais da auruspicia mesopotâmica nas culturas assírica e babilônica. O vocabulário técnico desta modalidade de adivinhação, em um primeiro período, contava com cerca de seis mil sinais de tipo funcional, sendo comparável à nossa toponímia cerebral. Havia uma relação direta entre cada símbolo e o objeto ou ação concreta representada. Com o passar do tempo, segundo Nougayrol, os sinais - que representavam diretamente as idéias mnemônicas do universo primitivo - foram sendo gradativamente agrupados e reduzidos, no sentido de representarem o panteão astrológico, passando a associar sons, fonemas a elementos da mitologia. Assim, os sinais da escrita cuniforme são o resultado de um longo processo histórico de simplificação dos símbolos arcaicos da auruspicia e de sua utilização de seus oráculos nas genealogias reais e nos calendários. É importante ressaltar que esta ‘racionalização’ dos sinais mnemônicos seguiu a evolução dos dogmas religiosos dos caldeus, os primeiros a apresentarem um panteão astrológico-solar completo, formado por uma trindade cósmica, sete divindades planetárias e doze entidades zodiacais. O fato de alguns alfabetos, como o hebreu, possuírem 22 letras (3+7+12) levou a maioria dos ocultistas modernos a sustentarem que as imagens das cartas de Tarô derivariam de uma linguagem universal, ou dos sinais das escritas ideográficas.
Hoje este modelo astrológico não nos serve mais de paradigma de observação científica dos céus mas continua válido como ‘Themata’ ou paradigma simbólico . Assim, no paradigma objetivo da astronomia, sabemos que a Terra gira em torno do Sol; no entanto, continuamos dependendo simbolicamente do paradigma subjetivo da astrologia, que como uma linguagem do inconsciente, condiciona atitudes e comportamentos, através da associação de determinadas características psicológicas aos meses do ano, por exemplo. A ciência e o pensamento objetivo superaram apenas parcialmente o antigo paradigma de representação e esta ‘superação’ é uma questão muito relativa: ao contrário do que pensam os historiadores da ciência, a idéia de um sistema geocêntrico não significa que Ptolomeu acreditasse que o Sol girasse em torno da Terra, mas sim que ele colocava a questão da representação objetiva do universo em um segundo plano diante da idéia de decifração do destino através da observação especular das estrelas. Devido ao movimento de precessão do eixo da terra, os céus astrológico e astronômico não coincidem mais. Tal fato, paradigmático da relação geral entre cosmologia científica e cosmogonia simbólica, divide atualmente os astrólogos em dois grandes grupos: os defensores de uma atualização do simbolismo ao céu real e os que dissociam completamente a linguagem astrológica da realidade astronômica.
Hoje, quando vemos no cinema as imagens de heróis como o agente 007 ou de estrelas Elizabeth Taylor não estamos distantes dos arquétipos marcianos e venusianos adorados nas cavernas. As linguagens simbólicas do inconsciente continuam na base do processo cognitivo, formando um importante patrimônio cultural coletivo com o qual não cessamos de interagir.
E mais: apesar das inúmeras diferenças epistemológicas dos modus operandi entre o conhecimento científico e o saber tradicional, ambos têm um único objetivo: evitar o infortúnio e a adversidade, procurando antecipar os acontecimentos para controlá-los. Infelizmente, as tentativas de fazer uma aproximação entre os dois saberes foram, até o momento, muito modestas. É claro que muitos trabalhos já enfatizaram a importância da imagem e do arquétipo em diferentes domínios epistemológicos (publicidade, psicologia, educação). Entretanto, ainda são escassas as iniciativas que pesquisam os efeitos e os limites do papel que os arquétipos desempenham na própria interpretação. Em seu prefácio a tradução alemã do Livro das Mutações (3), Jung esbouça pela primeira vez uma explicação científica sobre o fenômeno da adivinhação a partir de suas teorias da sincronicidade e do inconsciente coletivo. Este trabalho é retomado e desenvolvido por Marie-Louise Von Franz (4), que estuda diferentes gêneros de adivinhação à luz das categorias junguianas. Tornou-se lugar comum dizer atualmente que o tempo é a quarta dimensão do espaço físico e que ‘o passado e o futuro só existem no presente’. Os jogos de adivinhação procuram saber como as causas passadas e as possibilidades futuras condicionam o presente, como estes dados estão estruturados no inconsciente. Quando jogamos as cartas do Tarô, por exemplo, cada combinação particular espelha a situação alma do consulente, sua vida interior, para que ele tome consciência de como seu passado e seu futuro estão ‘organizados dentro de si’.
No entanto, a verdade é que levamos algum tempo para compreender a real natureza do tempo e os limites epistemológicos da previsibilidade. Recentemente, sob o nome de ‘experiência pré-cognitiva’, Danah Zohar (5) atualizou e ampliou a discussão iniciada por Jung sobre adivinhação e sua relação com a física contemporânea. É que, para escapar a concepção newtoniana de tempo linear e contínuo válido para todos os elementos de uma determinada totalidade, concepção universal e historicista (que no âmbito das ciências humanas poderiam ser representados por Marx e Max Weber); Jung e Von Franz incorreram em uma concepção einstiniana de um tempo relativista e sincrônico: a duração intrínseca do espaço físico.
Atualmente, graças aos teóricos da complexidade (Prigogine, Atlan, Morin), a descontinuidade e a sincronicidade de nossas memórias não são mais avessas à história e a irreversibilidade da vida. Ao contrário: agora elas se completam em uma visão que quer religar o universal ao particular, o global ao específico, o passado ao futuro. Trata-se agora de encontrar um equilíbrio entre um ‘querer involuntário’ formado pelo conjunto de fatores históricos determinantes e uma ‘consciência cognitiva’ forjada na seleção sincrônica das possibilidades. Esta nova concepção corresponde a noção de ‘múltiplos tempos simultâneos compreendidos dentro de um único tempo irreversível’ proveniente da mecânica quântica e oferece um novo paradigma de representação onde a previsibilidade de um evento dependerá, ao mesmo tempo, do simbólico e do científico, de uma leitura simbólica do inconsciente e do rigor crítico da sua interpretação (6).
“Vencer e voltar vivo” - era o desejo oculto no inconsciente do general espartano. Derrotar o exército persa com apenas 300 homens faria de Leônidas um herói nacional e daria a Esparta a hegemonia sobre toda Grécia. E este foi o segundo erro do rei espartano: movido pela vaidade e pela ambição política, Leônidas acreditou que seu desejo refletido pelo oráculo era a verdade.
Através de alguns simples procedimentos de sugestão hipnótica, qualquer cartomante pode induzir o consulente a escolher alguns desdobramentos do seu presente mediato, trabalhando suas perspectivas sociais e suas expectativas de desenvolvimento. Pelo reforço hipnótico dos desejos e projeções do consulente, o cartomante poderá até dizer fatos que realmente acontecerão. Mas isto não será uma previsão e sim uma manipulação psíquica, em que são reforçadas algumas possibilidades de desenvolvimento existencial em detrimento de outras. A grande maioria das pessoas procura na adivinhação apenas um reforço para seus desejos de ascensão social e/ou realização afetiva: uns desejam dinheiro, fama; outros querem viajar ou simplesmente casar e ter filhos.
“Qual é o perfil de sua felicidade?”- é a pergunta que o oráculo silenciosamente formula a cada inconsciente. Um adivinho experiente não reforça nem frustra os desejos das pessoas que procuram o oráculo, ele apenas faz com estas pessoas tomem consciência de como seus desejos estão estruturados no presente. Durante o processo de adivinhação, o consulente projeta seus conteúdos psíquicos dentro de uma determinada configuração, que representa sua situação existencial. O futuro é uma das possibilidades de desenvolvimento do presente. E a opção consciente por uma possibilidade determinada já significa uma transformação das condições do destino, porque altera substancialmente a situação imediata.
Por isso, a leitura do inconsciente não deve nunca se limitar à simples constatação da situação existencial do consulente, mas sim permitir uma reorganização psicológica de todos os elementos discursivos apresentados, deve promover uma transformação na situação enfocada. E para garantir essa intenção, deve-se sempre dividir o processo divinatório em duas etapas distintas, permitindo assim um autoconhecimento dinâmico, uma reflexão simbólica sobre a vida.
“Quais os elementos recorrentes e as tendências que condicionam sua presente situação existencial?” - será sempre a pergunta obrigatória da primeira metade de uma leitura do inconsciente, enquanto a segunda parte do processo deverá sempre romper com os fatores determinantes que se manifestaram, com a quebra do ciclo de repetição dos condicionamentos, representando a escolha de uma das alternativas de desenvolvimento apresentados. Dessa forma, a segunda parte do processo significará, então, a construção do seu próprio destino, transformando a ordem e o sentido dos arquétipos que antes condicionavam a situação.
A) Primeira parte: A SITUAÇÃO-PROBLEMA
§ Passado - principais recorrências biográficas e seus ciclos de repetição;
§ Futuro - principais tendências involuntárias e seus possíveis resultados;
§ Presente - situação existencial, contradição atual que impede o desenvolvimento e a auto-organização da pessoa.
B) Segunda parte: A ATITUDE-SOLUCÃO
§ Reorganização dos fatores condicionantes que formavam a situação anterior em um novo presente, adicionam ou retirando uma variável.
§ Escolha crítica de uma das alternativas possíveis do Destino.
§ Restruturação dos objetivos prioritários e da estratégia para realizá-los.
Assim, na primeira parte, o hermeneuta deve se prender à causalidade e buscar o mesmo rigor lógico e objetivo que um cientista na ‘verificação de uma hipótese’, observando a inter-relação da multiplicidade das condições e dos fatores determinantes de uma situação existencial. Já em um segundo momento, deve-se procurar se ater às possibilidades, às alternativas, às ‘hipóteses paralelas’, procurando se colocar do ponto de vista da sincronicidade, onde a coincidência dos fatores aponta sempre para uma transformação.
Dessa forma, os jogos de adivinhação, além de propiciarem um “diagnóstico”, também reprogramam o inconsciente, ajudando o consulente a modificar a situação em que se encontra. A adivinhação não é apenas a arte de decifrar problemas, mas também, sobretudo, a arte de descobrir alternativas: ajudar a escolher um futuro melhor dentre os diversos possíveis - eis o que deveria ser o papel legítimo dos oráculos!
E este foi o terceiro erro do general espartano: após delegar a responsabilidade de suas decisões ao oráculo e de se identificar acriticamente com seus desejos mais secretos, Leônidas não se preocupou em discutir alternativas. Entregou-se inconscientemente ao seu destino fatalmente determinado por si mesmo. Para não repetir os mesmos erros do general espartano, portanto, deve-se tomar algumas precauções em processos de leitura do inconsciente:
1) Ao contrário da cartomancia, onde o consulente pergunta e o oráculo responde, o decifrado deve colaborar com o decifrador, expondo de antemão o motivo da leitura e todos os problemas da situação a ser estudada. Deve ficar bem claro para ambos que a leitura do inconsciente é uma responsabilidade dos dois.
2) Não se deixar enganar pelas próprias ilusões. O desejo de casar com uma linda mulher é diferente do destino de casar com uma linda mulher, e se os leitores não estiverem preparados para distinguir esta sutil diferença, serão presas da própria ilusão.
3) Deve-se sempre estar aberto para novas alternativas. Na verdade, o objetivo da leitura deve ser a busca de alternativas ao destino. Quem não quer mudanças pessoais não deve procurar processos oraculares, pois, de saída, já se entrega como vítima das forças do inconsciente. Daí a necessidade de uma análise compreensiva das possibilidades de mudança.
Os Quatro Níveis da Linguagem
Mas o que o general espartano e seus equívocos têm a nos ensinar? O que as ciências humanas podem aprender com a hermenêutica simbólica do Tarô? É que esses três erros de interpretação na leitura do inconsciente correspondem aos princípios metodológicos básicos da decifração hermenêutica: a observação descritiva, a interpretação dialógica e a análise compreensiva. Entretanto, só chegamos à raiz última do sentido de um discurso quando o revivêssemos - e é isso que desejamos demonstrar. Por exemplo: “Adão viu os animais”.
Sentido Literal: Um homem, chamado Adão, viu seres de outras espécies.
Sentido Alegórico: Adão reconheceu seus instintos e paixões.
Sentido Tradicional: O primeiro dos homens tomou consciência de sua singularidade ontológica em relação a outros seres.
Sentido Místico: (ritualizacão do texto) Eu, Adão, o primeiro ser humano, vejo os animais e observo que eles são, ao mesmo tempo, seres reais e sentimentos meus.
Segundo o Zohar (7), há quatro níveis de decifração hermenêutica no estudo das Sagradas Escrituras: PESCHAT ou sentido literal; REMEZ ou sentido alegórico; DERASCHÁ ou sentido tradicional; e SOD ou sentido místico. Porém, este método de extração do sentido através de quatro leituras sucessivas é bem mais antigo. Ele já era utilizado por Filon de Alexandria, por volta do ano zero. Podemos, usando critérios semelhantes, observar diferentes ‘profundidades’ do sentido na linguagem e estabelecer quatro níveis de significação para todos os discursos: o Sígnico, o Simbólico, o Paradigmático e o Arquetípico.
O Nível Sígnico e a Observação Descritiva
No primeiro nível, tratamos a linguagem como objeto: como uma ‘realidade-concreta’, como algo tátil, material, que produz uma sensação, que tem um peso e uma quantidade, como algo que tem um cheiro. É a linguagem em suas dimensões física e biológica. O processo de produção de uma linguagem está claramente refletido no aspecto material de seus discursos. Por isso, neste primeiro momento, deve-se esquecer o conteúdo e medir as formas destes discursos de um ponto de vista quantitativo.
Também neste primeiro nível devemos observar o que o discurso quer dizer literalmente, o que ele significa do ponto de vista de quem o proferiu, ou seja, como ele foi ‘codificado’. Neste nível de decifração, estuda-se, portanto, o aspecto material e o aspecto de significação intencional-consciente de uma linguagem determinada: O QUE e COMO os discursos se realizam, ou ainda, o léxico e suas gramáticas.
A = A’
Temos, assim, uma primeira função da linguagem, a reflexiva, em que os discursos tentam reproduzir seus objetos, onde a linguagem (A’) tenta representar fielmente a sua realidade-referente (A). Dessa forma, por exemplo, a capital do Rio Grande do Norte é representada pelo signo ‘Natal’.
O Nível Simbólico e a Interpretação Dialógica
No segundo nível, a linguagem é vista como um sujeito, como a expressão de uma consciência humana. Assim, o segundo passo de nossa pesquisa é discutir o conteúdo dos discursos. O QUEM e O PORQUÊ da comunicação, os interlocutores e a ‘causalidade’ da linguagem. Situar-se em um universo de perpétua transformação exige do ser humano uma constante adaptação ao meio ambiente e a transmissão desta experiência entre grupos e gerações.
Assim, neste nível de decifração da linguagem não se trata mais de duplicar reflexivamente a realidade, mas sim de transmitir experiência existencial, ‘fazer comum’ sentimentos e desejos, comunicar um modo subjetivo de compreender a informação. A transcendência do sentido - através do qual ‘a expressão dos sentimentos’ ganha uma profundidade significativa e um caráter abstrato e genérico - se deve à Função Simbólica da Linguagem, que desempenha um papel dialógico e interativa, fazendo uma representação final do mundo mais significativa que a mera reprodução da realidade que lhe deu origem.
O homem é o único animal auto-eco-organizador porque sua cultura não apenas reproduz o real, mas também porque ela é uma mensagem sobre a vida e suas dificuldades.
Enquanto no nível sígnico, há um sujeito impessoal que acredita descrever cientificamente ‘seu objeto’; no simbólico, é o ‘objeto’ que diz ‘algo’ a respeito do ‘sujeito’. E este ‘algo’ revela um novo patamar para o sentido, que não só reflete o mundo, mas também o modifica simbolicamente, interpretando-o através de sensações, sentimentos e idéias valorativas.
A = B/C
Esta é a função dialógica ou simbólica da linguagem: a realidade (A) é referente da linguagem na razão direta de sua transmissão (B) e na razão inversa de sua percepção (C). Assim, a palavra ‘Natal’ tanto representa uma cidade como uma data do ano. Este duplo (ou múltiplo) sentido é que caracteriza o símbolo. No entanto, quanto mais sentidos uma representação comportar (polissemia), mais distante ela estará de reproduzir reflexivamente a realidade (paráfrase).
Como vimos na primeira parte da dissertação: o real, a coisa, o referente são representados por uma imagem holográfica estruturada pela percepção com base nas experiências anteriores e rapidamente arquivada na memória. Quando, em um segundo momento, formos transmitir informações sobre aquele objeto ou realidade, a consciência reconstituirá a imagem da percepção arquivada segundo critérios coletivos, determinados pela linguagem particular do seu grupo.
Assim, distinguimos metodologicamente duas instâncias nesse processo cognitivo: a primeira representação da consciência é analógica, involuntária e organizada pela experiência; na segunda a representação é motivada e codificada segundo fatores sociais. A consciência interpreta a percepção dos sinais dentro de um quadro de referências analógico ditada pela experiência e as transmite segundo normas e regras coletivas. O signo é uma relação arbitrária entre um conteúdo mental e uma imagem acústica. Os signos tratam de como interiorizamos, sem perceber, as regras da consciência social. O símbolo, ao inverso, é uma experiência direta da percepção individual com o inconsciente coletivo.
Interpretar é ler o inconsciente alheio, é inferir os motivos políticos inconfessáveis e as intenções psicológicas que muitas vezes o próprio sujeito do discurso desconhece. Mas, é preciso ter cuidado, porque se nesse nível toda linguagem é uma representação involuntária, os discursos não são meras metáforas da realidade, mas sim a própria realidade discursiva a ser decifrada. Para se interpretar um discurso ‘dialogicamente’ é preciso revivê-lo, vivenciando-o ‘por dentro’. E para tanto, é preciso uma análise compreensiva, comparando seus valores como os do enunciador do discurso. O importante seria ressaltar que a hermenêutica é uma interpretação duplamente dialógica, pois além de interpretar a linguagem ‘por dentro’, lendo os signos através de seu conteúdo simbólico; ela sempre leva em conta o conflito complementar entre duas diferentes estratégias cognitivas: a arqueológica e a teleológica. Uma engendrada pela representação sígnica quer construir uma explicação causal e determinista de nosso universo, e a outra, instigada pela imaginação simbólica quer libertar o homem de suas necessidades, enfatizando o mundo das possibilidades em que os sonhos coletivos transformam-se em paradigmas da realidade.
O Nível Paradigmático e a Análise Compreensiva
No terceiro nível, trata-se de observar os dogmas e rituais que perpetuam a linguagem. É o discurso reduzido a seus verbos, às suas paixões, à ação histórica e suas ressonâncias intersubjetivas. Ocultas pelas realidades física e subjetiva dos discursos, surgem aqui as estruturas inconscientes de repetição da linguagem. A relação entre a forma imposta pela transmissão e os múltiplos conteúdos percebidos do discurso, entre o aspecto físico e o psicológico da linguagem, é sempre histórica e faz parte de uma tradição determinada socialmente. Assim, o terceiro passo de nossa pesquisa consiste em determinar o ONDE e o QUANDO dos discursos, em localizar e entender o discurso estudado dentro do quadro histórico em que ele está inserido.
Mas para localizar um discurso no tempo/espaço é preciso situar-se também. Porque estamos, nós também, sujeitos à projeção, à transferência e às analogias deste ‘efeito simbólico’ em que os ‘sentidos ocultos’ se escondem. Assim, se na interpretação dialógica, o sentido simbólico é produto de uma leitura do inconsciente do enunciador e do conflito dos interlocutores no interior do discurso; na análise compreensiva, o sentido implica que analisemos também a nossa própria subjetividade e nos perguntemos em que o discurso nos sensibiliza e afeta emocionalmente.
D = C/B D = 1/A
Temos, portanto, neste nível de significação, a função compreensiva da linguagem: um paradigma ‘D’ é estruturante na razão direta de sua percepção ‘C’ e na razão inversa de sua transmissão ‘B’. Também podemos dizer que um paradigma ‘D’ é estruturante na razão inversa de sua realidade-referente ‘A’. Uma imagem serve de modelo a um objeto na medida em que não o conhecemos; e, inversamente, quanto mais conhecemos um objeto, menos o imaginamos. Ou seja: Quanto mais ideal for a imagem, mais distante ela será de seu modelo real. Entretanto, sempre haverá um motivo por detrás de uma associação analógica entre muitos sentidos e um único signo: a cidade de Natal foi descoberta no dia de natal - o que explica e desmistifica a imagem dos que não conhecem este lugar tropical e acalentavam uma impressão simbólica repleta de neve, renas e pinheiros.
Neste nível, portanto, não basta tomar o próprio inconsciente individual como objeto, enunciando-se como ‘meta-sujeito’. É preciso colocar em xeque toda nossa cultura. E a análise compreensiva é justamente essa comparação mito\lógica dos valores éticos e culturais, histórica e socialmente produzidos, que nos permite reconstituir as relações aproximadas entre o sentido originalmente enunciado e suas possíveis leituras. A analogia dos mitos, sensibilidades, gestos, nos revela uma nova função da linguagem, responsável não apenas por estruturar comportamentos, mas também por permitir compreendê-los. Apenas consciente das próprias intenções e limites, o hermeneuta compreenderá o enunciador e decifrará o sentido de seus sentimentos e de suas paixões.
A linguagem, portanto, além de reflexiva e de comunicativa, é também paradigmática, funcionando como um modelo estruturante da realidade - que não apenas contextualiza o discurso, mas está inscrito em um sentido mais profundo e polêmico do que os do signo e do símbolo: o sentido compreensivo, em que os valores éticos e os mitos de diferentes culturas se confrontam diante do pesquisador que souber reconhecer a natureza inconsciente dos afetos e aversões frente ao discurso que estuda. Assim a linguagem ‘funciona’ simultaneamente como um espelho da realidade objetiva, como uma mensagem inconsciente (ou uma memória coletiva de nossa subjetividade involuntária), e, finalmente, como um modelo estruturante e compreensivo das relações do EU com o OUTRO - em que o sentido é reconstruído paradigmaticamente dentro do quadro de referências subjetivas em que foi originalmente concebido.
De forma que na análise compreensiva há sempre um conflito intersubjetivo entre múltiplas formas de representar a realidade. Porém, essas ‘diferenças’ apenas ressaltam a afinidade transcultural dos mitos e valores simbólicos através dos quais pode-se compreender alguns traços universais do imaginário e, assim, conhecer melhor a nós mesmos e a nossa relação com a linguagem. Quando falamos de ‘diferenças’ epistemológicas e cognitivas é preciso deixar claro que entendemos a linguagem como um campo integral e homogêneo, que não comporta cortes ou marcos definitivos. Apesar disso, é nesta inevitável comparação entre os nossos valores e os do discurso em que se encontram os mais desconcertantes elementos simbólicos comuns a diferentes paradigmas; pois é nesta analogia ética que se revela a existência de uma última instância cognitiva mais profunda e abrangente, formada por imagens psíquicas universalmente associadas a temas e idéias transculturais, a que chamamos de arquétipos.
Os arquétipos não têm uma única função específica e são sempre ambivalentes e paradoxais. Eles expressam contradições meta-racionais que se perpetuam em diversos paradigmas, em diferentes culturas. Às vezes extremamente simples (o Pai, a Mãe, o Outro-Sexo), às vezes complexos (a Justiça, o Mal, o Sacrifício), eles representam dispositivos psicológicos universais. Podemos caracterizá-los como o que há de universal na linguagem, o seu aspecto espiritual. Chegamos, assim, a um derradeiro nível da linguagem - lá onde ela não é mais decifrável, mas sim, reatualizada/ritualizada.
O nível arquetípico
A lenda conta que quatro grandes rabis (Akiva, Ben Zoma, Ben Azai e Aher), no século II, se dedicaram a estudos esotéricos e “entraram no paraíso” (8). A estória afirma que “um deles viu e morreu; o segundo viu e perdeu a razão; o terceiro viu e corrompeu-se. Só rabi Akiva entrou e saiu em paz”. Poderíamos, parodiando a lenda, dizer que a palavra mata, o símbolo enlouquece, o exemplo perverte e apenas o arquétipo realmente explica a linguagem - pois ao comparar o real ao ideal, revela como a realidade extrapola seus modelos.
Mas decifrar o sentido não basta. De nada adianta a crítica das ideologias e dos discursos, se isto nos leva apenas à desmistificacão dos fetiches, à destruição niilista do sentido, à polissemia. Restituir o sentido à linguagem não é apenas revivê-la, mas recriá-la, reinventá-la, atualizando sua significação. No quarto nível de leitura, a linguagem vive no espírito dos seus discursos, na experiência existencial que eles transmitem, nas suas diferentes respirações frente à morte.
O sentido aqui é nietzschianamente trágico, não-reativo, para além da representação: um sentido que apesar de partilhar o drama não encena seu sofrimento. Neste nível de leitura da linguagem, os advérbios de intensidade e duração interrogam sobre o ritmo, a respiração e, sobre a consciência que o discurso tem de si. Acima de todas as formas, além de todas as idéias e paixões, os discursos têm um significado existencial, um sentido revivido pela experiência humana cravada nas profundezas inconscientes da linguagem: a morte e a relação com o sobrenatural.
O exemplo de arquétipo mais citado é o das diversas deusas mitológicas que formam o arquétipo da ‘grande mãe’. Mas existem também casos mais complexos em que formas culturais diferentes expressam um mesmo mecanismo psíquico universal. Palas Atenas, o Júpiter latino e o orixá Xangô, por exemplo, são diferentes representações históricas do arquétipo da justiça, que tem suas raízes em um dispositivo psicológico que equilibra transgressão e culpa.
Das diferentes abordagens que usam o termo, a do historiador Mircea Eliade é que melhor consegue caracterizar o significado do ‘sagrado’ como um apriori epistemológico, definindo o fenômeno mítico como um acontecimento ao mesmo tempo real e fabuloso. Esta característica de ver no mito um ‘valor sagrado’ transhistórico, aproxima bastante o pensamento de Mircea Eliade de Jung, uma vez que ambos utilizam a palavra ‘arquétipo’, em um sentido universal e simbólico. No entanto, na ‘Provação do Labirinto’ (9), Eliade faz uma distinção importante.
“Arrisquei-me a ser confundido com a terminologia de Jung. Para ele, os arquétipos são estruturas do inconsciente coletivo. Eu emprego esta palavra por referência a Platão e a Santo Agostinho: dou-lhe o sentido de ‘modelo exemplar’ - revelado no Mito e que é reatualizado pelo Rito.”
Procurando definir melhor esta distinção conceitual, Gilbert Durand (10) acentuou o critério da ambivalência para diferenciar os arquétipos dos símbolos e caracterizá-los ainda mais como estruturas paradigmáticas do imaginário.
“O que diferencia precisamente o arquétipo do simples símbolo é, geralmente, a sua falta de ambivalência, a sua constante universalidade e a sua adequação ao esquema: a roda, por exemplo, é o grande arquétipo do esquema cíclico, pois não vemos que outra significação imaginária lhe poderia dar, enquanto a serpente não é senão o símbolo do ciclo, símbolo bastante polivalente.”
Para nós, tanto o símbolo quanto o arquétipo são ambivalentes e polissêmicos; enquanto os signos e paradigmas é que representam o aspecto lógico da linguagem. Tanto a polissemia característica dos símbolos e arquétipos quanto a paráfrase típica dos signos e paradigmas são apenas faces de uma mesma moeda: a distinção metodológica em diferentes níveis de decifração só se justifica a partir de uma visão de conjunto que não admita fissuras, divisões e cortes epistemológicos definitivos ou estruturais.
Não basta apenas integrar o simbólico ao método científico, mas também, aplicar o rigor lógico da ciência ao conhecimento cognitivo dos símbolos. As noções de arquétipo e paradigmas nada mais são que uma reduplicação epistemológica da contradição cognitiva entre as funções reflexiva e simbólica da linguagem: o paradigmático é o que há de institucional no selvagem e o arquetípico é o que há de ideal no real, o que há de modelo universo no acontecimento em particular. Perceber claramente estes quatro níveis interdependentes da linguagem sem perder a noção de sua totalidade indivisível. Este é, creio, o desafio metodológico contemporâneo.
Três diálogos e um monólogo
Como vimos, a hermenêutica nasceu com a antiga arte divinatória, foi ofuscada durante séculos de desenvolvimento pelo pensamento científico, mas retornou agora como um modelo adequado para a descrição, interpretação e análise dos discursos, particularmente útil para a pesquisa arqueológica e histórica das mentalidades, mas também pode ser aplicado a diferentes disciplinas em que a decifração do sentido encontre as barreiras cognitivas e epistemológicas dos conflitos paradigmáticos.
No âmbito das ‘ciências do outro’ (a etnologia, a psicanálise, a pedagogia), ou seja, nas formas epistemológicas que tomam por objeto um sujeito falante, é que os erros de interpretação são mais visíveis em seus contornos paradigmáticos. A professora Maria da Conceição Moura, ao estudar minuciosamente a produção antropológica brasileira durante dez anos (75 a 85), aponta os principais entraves epistemológicos da pesquisa a partir do incipiente diálogo entre ciência e tradição: o empirismo relativista, as interpretações paradigmatizadas e, por último, a incapacidade epistemológica de desenvolver uma integração criativa dos saberes que aponte para uma ética de reencantamento consciente do mundo.
No empirismo relativista, o pesquisador se limita a uma descrição exaustiva da realidade estudada, especificada em todas as suas particularidades, sem nenhuma relação com o drama universal do ser humano. Tal atitude adicionada a tendência de especialização do saber, leva necessariamente a uma visão parcial e fragmentada da realidade. Assim, não só as descrições que desprezam a problematização, mas também os discursos especializados que não se enquadram em um contexto geral são resultantes desta atitude pretensiosa em que o pesquisador se apropria de um determinado aspecto dos discursos pesquisados em detrimento de outros, para ‘conservá-los’ em suas especificidades.
Nas interpretações paradigmatizadas, as teorias são utilizadas para explicar a realidade: seja reforçando diretamente a lógica da dominação, seja pela aparente crítica ao sistema que, no entanto, reifica a ruptura entre ciência e tradição. O marxismo ortodoxo, por exemplo, que lê o contexto a partir das categorias de modo de produção, luta de classes, capitalismo, excluindo de seu universo interpretativo o simbolismo genuíno dos discursos míticos, vistos sempre como representações ideológicas. Aqui, ao inverso do emprirismo relativista, é o universal que é utilizado para mutilar o particular, a generalidade que serve para encobrir o específico.
O desencantamento do mundo. Ainda segundo Moura, ‘a nostalgia de um passado próspero das sociedades tradicionais em contraste com o presente atual de pobreza e exploração’ resume a grande maioria dos trabalhos antropológicos contemporâneos, pois mesmo quando esses não descambam para o empirismo relativista ou para as superinterpretações, eles continuam prisioneiros paradigmáticos da instituição científica, incapazes de sonhar um futuro alternativo para as sociedades que estuda. Ora, esses três equívocos interpretativos são os mesmos que os do general espartanos e podem ser evitados através da utilização da hermenêutica e de seus princípios dialógicos. O método hermenêutico é uma parte da fenomenologia que se destina ao estudo da linguagem. Ele consiste em quatro leituras complementares de um mesmo fenômeno: uma primeira objetiva e impessoal para observar e descrever o acontecimento; uma segunda interpretação dos referentes subjetivos e pessoais; uma terceira intersubjetiva e interpessoal, onde levamos em conta diversas outras leituras; e, finalmente, uma quarta e última leitura transpessoal e transubjetiva.
São assim três leituras determinísticas e uma última leitura prospectiva resultante da transformação criativa da situação determinada pelas três primeiras leituras em uma nova possibilidade relacional. Pode-se recorrer ao método hermenêutico sempre que é preciso ‘experienciar’ a linguagem para decifrar o sentido. Por exemplo, para decifrar a intenção de um olhar ou de um sorriso é preciso interagir com ele. Não basta observá-lo, interpretá-lo ou analisá-lo; para compreendê-lo é preciso senti-lo, imitá-lo, revivê-lo. Ou melhor: uma investigação criminal, onde seja necessária decifrar, a partir da reconstituição de detalhes involuntários e pistas ocultas, as intenções e os motivos dos acontecimentos.
Tomemos por exemplo os discursos verbais de uma transmissão de um jogo de futebol pela TV: a primeira leitura seria a do locutor - imparcial e redundante em relação a imagem. Antigamente, imitava-se o ‘speaker’ do rádio. A segunda seria a dos comentaristas e dos repórteres de campo. Hoje em dia esse discurso é propositadamente subjetivo, com os jornalistas torcendo abertamente para os times. A terceira leitura seria a dos diferentes especialistas (ex-juízes, ex-técnicos e ex-jogadores) chamados a esclarecer aspectos da sua área de capacitação. Já a última leitura seria a realizada pelas estatísticas de jogo e pela simulação holográfica das jogadas realizada via computação gráfica. Somente esta última leitura nos permitirá visualizar o jogo de um modo transpessoal e arquetípico em suas formas mais abstratas. Um time, assim, estaria ‘nervoso’ (muitas faltas e passes errados); enquanto o outro jogou ‘disperso’ e sem objetividade (poucos chutes a gol, muitos passes laterais).
Entretanto, esta última leitura só será realmente completa se for direcionada para correção dos arquétipos para ‘o segundo tempo da partida’. E esta última e decisiva leitura é o que separa a hermenêutica da teoria crítica de Haberman e das diversas versões de uma sociologia compreensiva pós-weberiana que problematizam o intersubjetivo sem nenhuma responsabilidade com o reencantamento do mundo. Mais que um conjunto de leituras e procedimentos técnicos sobre decifração de códigos, a hermenêutica é um método de compreensão de si e dos outros, que estuda as relações humanas a partir de sua experiência précognitiva. Aplicado ao universo das ciências humanas, este método de leitura quádrupla a hermenêutica seria a solução para os três principais equívocos de interpretação.
O arquétipo do pai e o complexo de Édipo, para retomar o exemplo inicial, é simultaneamente uma imposição, uma válvula de escape e um modelo estruturante para quem se coloca na posição de filho. Porém, apenas assumindo a posição de pai de outros é que vivemos o arquétipo e o transformamos. No caso, sendo um pai que reinventa o recalque, a sublimação e o exemplo a que foi submetido.
Poderíamos resumir a tarefa desta nova metodologia hermenêutica como uma arte de três diálogos e um monólogo. O diálogo interdisciplinar entre as ciências humanas em torno de uma única realidade empírica como forma de combate a fragmentação do saber. O diálogo intradisciplinar entre as ciências de forma a evitar interpretações paradigmatizadas. E, por fim, o diálogo extradisciplinar entre ciência e tradição - onde nos permitiríamos sonhar um futuro para o homem.
Não se trata, repitamos, de recortar, dividir ou separar. Muito pelo contrário: os três diálogos são eixos de uma única metamorfose do saber, são as possibilidades de intercâmbio que o discurso científico tem para sobreviver. Eles serão insuficientes caso não sejam resignificados por uma última, solitária e definitiva leitura reunificadora, um monólogo arquetípico, onde reencontrará seu espírito em uma consciência científica de si. Pois não se trata de voltar a uma situação cognitiva pré-moderna, nem de interpretar cientificamente os paradigmas tradicionais, mas de estabelecer as bases de um novo saber em que não haverá espaço para as atuais distinções epistemológicas.
(1) ELIADE, M. Tratado Histórico das Religiões .São Paulo:Martins Fontes, 1993.
(2) ALLEAU, R. A Ciência dos Símbolos. Pg. 125. Portugual: Edições 70, 1982.
(3) WILHELM, R. I Ching - o livro das mutações. São Paulo: Pensamento, 1987.
(4) VON FRANZ, M. L. Adivinhação e sincronicidade. São Paulo: Pensamento, 1990.
(5) ZOHAR, D. Através da Barreira do Tempo - um estudo sobre a precognição e a física moderna. São Paulo: Pensamento, 1982.
(6) ATLAN, H.; Entre o cristal e a fumaça - Ensaio sobre a organização do ser vivo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992
(7) TRYON, R. A Cabala e a Tradição Judaica. Pág. 243. Lisboa: Edições 70, 1979.
(8) ALLEAU, R. A Ciência dos Símbolos. Pg. 125. Portugual: Edições 70, 1982.
(9) ORCQUET, CH. Mircea Eliade - A Provação do Labirinto Pág. 120. Lisboa: Dom Quixote, 1987.
(10) DURAND, G. Estruturas Antrológicas do Imaginário. Pág. 35 Lisboa:Presença, 1992.
Nenhum comentário:
Postar um comentário