sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O Tarô como mapa cognitivo


"Segundo a tradição, quando os sacerdotes egípcios, herdeiros da sabedoria Atlante, eram ainda guardiões dos Mistérios Sagrados, o Grande Hierofante, prevendo uma época de decaimento espiritual da humanidade e a perseguição ao ensinamento sagrado, convocou ao templo todos os sábios sacerdotes do Egito para que, juntos, pudessem achar um meio de preservar da destruição os ensinamentos iniciáticos, permitindo, assim, seu uso às gerações de um futuro distante. Muitas sugestões foram apresentadas, mas, o mais sábio entre os presentes disse que, devido ao declínio moral da humanidade, o vício iria prevalecer por toda parte e sugeriu então que as Verdades Eternas fossem perpetuadas através do vício, até a época em que novamente poderiam ser ensinadas. Assim foi feito e o grandioso sistema simbólico da Sabedoria Esotérica - o Tarô - foi dado à humanidade sob a forma de um baralho de 78 cartas, que, desde milhares de anos, servem para satisfazer a curiosidade humana a respeito do seu futuro ou para distrair-se e matar o tempo, jogando.” MEBES, G. ARCANOS MENORES DO TARÔ

· As Cartas e suas Origens
O baralho de 78 cartas denominado genericamente de “Tarô” é um método de autoconhecimento, que permite descobrir e localizar atitudes e posturas que condicionam nosso comportamento, identificando, em suas combinações, as situações existenciais recorrentes que entravam nosso desenvolvimento. As 78 imagens-conceitos funcionam como ‘eus’ ou identidades, que se organizam em determinados padrões simbólicos correspondentes às situações que vivemos. O Tarô é um espelho da alma, suas cartas são reflexos da vida interior que tomam forma e nos apresentam como os nossos vários ‘eus’ estão estruturados no inconsciente.

Costuma-se subdividir as 78 cartas do Tarô em dois grandes grupos distintos: os Arcanos Maiores (22 cartas alegóricas) e os Arcanos Menores (56 cartas de naipe). Nos manuais de cartomancia, afirma-se sempre que os Arcanos Menores enfocam a vida ‘objetiva’, feita de acontecimentos - tais como: viagens, doenças, filhos, dinheiro - enquanto os Arcanos Maiores seriam mais psicológicos ou ‘subjetivos’, representando em suas alegorias, estados de nossa vida interior. Autores esotéricos, com preocupações mais iniciáticas que divinatórias, como G. O. Mebes (1), ressaltam que “somente após estudar e compreender os vinte e dois Arcanos Maiores, pode o discípulo passar ao estudo dos Arcanos Menores, por serem mais profundos e abstratos” . De uma forma geral, podemos dizer que os dois grupos em que o Tarô se subdivide enfocam diferentes níveis do Inconsciente, os Maiores, abordando a biografia psíquica e os Menores especificando os detalhes e as relações mais profundas, precisando a configuração geral do destino em questão.

OS 22 ARCANOS MAIORES: O Mago, A Papisa, A Imperatriz, O Imperador, O Papa, O Enamorado, O Carro, A Justiça, O Eremita, A Roda da Fortuna, A Força, O Enforcado, A Morte, A Temperança, O Diabo, A Torre, A Estrela, A Lua, O Sol, O Julgamento, O Louco e O Mundo.

OS 56 ARCANOS MENORES: l4 cartas de Paus representando a atividade espiritual; l4 cartas de Copas simbolizando a atividade afetiva; l4 cartas de Espadas expressando a atividade mental; e l4 cartas de Ouros correspondendo à atividade material

A maioria dos especialistas (2), sejam autores esotéricos ou historiadores e colecionadores cépticos, é unânime em afirmar que as cartas do baralho, usadas para jogar, derivam do Tarô e não o contrário, como se poderia supor. Entretanto, admitindo a origem comum das duas práticas, como saber que a atividade divinatória antecedeu seu uso como divertimento e jogo de azar?

A origem das cartas é desconhecida, sendo que seu surgimento no cenário europeu data do final do século passado - pelo menos é deste período os baralhos mais antigos que chegaram aos nossos dias. O primeiro registro sobre o Tarô, no entanto, data de l377. Trata-se da correspondência de um tal frei João, um monge suíço que narra, surpreso, “um jogo de cartas o qual indica, pelas figuras, o atual estado do mundo”. Existe ainda outro registro, de l392, que menciona uma encomenda de três baralhos ao artista Jacquemin Gringonneur por ordem de Carlos VI, Rei da França, destinados a distrair o soberano durante suas crises de loucura. Este segundo registro é considerado por muitos pesquisadores como o mais importante, uma vez que descreve como as cartas deveriam ser pintadas, tomando como base versões mais antigas e misteriosas. Como há também um decreto francês de l369 proibindo jogos de azar que não faz nenhuma menção às cartas, podemos deduzir que elas ‘apareceram’ entre l370 e l380.

Entre os possíveis introdutores do Tarô no Ocidente encontram-se os ciganos, os cruzados e os sarracenos. Porém, enquanto autores esotéricos se dividem entre lendas maçônicas, os pesquisadores mais acadêmicos preferem a hipótese de que foram os sarracenos que introduziram as cartas na Europa. Todavia, embora seja mais verossímil, não há provas historiográficas de que esta hipótese seja a verdadeira. (3) O certo é que ninguém acredita que o Tarô seja uma criação européia medieval e que todos concordam que as cartas têm uma origem bem mais remota do que se registra, muito embora não se explique sua procedência mais recente ou seu súbito reaparecimento no curto período de dez anos.

Na verdade, o consenso sobre esses dois pontos - a primazia do uso divinatório e uma origem anterior à antigüidade clássica - revela a universalidade da linguagem do Tarô, cujos elementos aparecem em diferentes culturas. Assim, hindus, caldeus, chineses, atlantes, anjos e até extraterrestres são apontados como os criadores originais das cartas. Porém, por ser mais difundida e contar com um grande número de adeptos, a hipótese de origem egípcia das cartas se notabilizou e passou a ser considerada verdadeira.
Muito contribuiu para isso o fato dos dois primeiros pesquisadores modernos do Tarô, A. Court de Gebelin e Etteilla, terem abraçado apaixonadamente esta hipótese (4). Antoine Court de Gebelin nasceu em Nimes, em l725, e, morreu em Paris no dia l0 de maio de l784. Gebelin foi apaixonado estudioso de mitologia antiga. Envolvendo-se no estudo de religiões do ponto de vista lingüístico, ele procurou “redescobrir a língua primitiva, cuja escrita hieroglífica explicaria as várias mitologias conhecidas, que refletem, em símbolos diferentes, as mesmas verdades reveladas” . A primeira pessoa a fazer uso dessa descoberta foi o peruqueiro de nome Alliette, que nas horas vagas vendia amuletos mágicos, praticava quiromancia, interpretava sonhos e fazia horóscopos. Sob o pseudônimo de Etteilla - seu nome de trás para frente - Alliette enriqueceu e tornou-se famoso em sua época. Ele foi o primeiro cartomante moderno, ou pelo menos, o primeiro a utilizar o Tarô para adivinhação individual com fins comerciais de que se tem notícia.

· A Cabala e o Ocultismo
Enquanto Gebelin e Etteilla procuravam zelosamente provar a origem egípcia das cartas do Tarô, Eliphas Levi acreditava que elas fossem um alfabeto sagrado e universal, presente nas culturas grega, egípcia e hebraica. Eliphas Levi, pseudônimo do padre Alfonsé Louis Constant, interessou-se pelo Tarô em l856 e associou os Arcanos Maiores às 22 letras do alfabeto hebraico. Além disso, Levi associou também os quatro naipes aos quatro mundos cabalísticos, relacionando as suas dezesseis cartas de figura ao Tetragrama Sagrado - o ‘IHVH’- e as suas 40 cartas numeradas às 10 Sephiroth de Deus, expressos na Árvore da Vida.

As dez Sephiroth - plural de Sephirah - são esferas de energia em que a manifestação se desenvolve. Cada Sephirath está contida na anterior e contém, em si, a possibilidade da próxima Sephirath. Assim, todo universo repousa em latência em Kether, e dentro dele emana outro círculo, Chokmah, que apesar de contido no primeiro, se opõe a ele, gerando um terceiro, Binah, que está contido nos dois anteriores. Temos, portanto, uma série de círculos concêntricos, uns dentro dos outros, mantendo uma relação de polaridade em função à esfera anterior que o engloba e em função à que contém em seguida.

A Árvore da Vida

Kether - A Coroa, onde o Incognicível se manifesta como uma luz extática e apolar, a chama eterna da vida, o centro de todos os círculos. O ponto.

Chokmah - A Sabedoria, corresponde à luz que entra em movimento e se torna uma força cinética. É representado geometricamente pela reta ou pelo círculo.

Binah - A Inteligência, onde a força encontra resistência ao seu movimento e gera a forma, representada pelo triângulo ou pelo prisma.

Cheseed - A Bondade, esfera onde, equilibrando as restrições impostas pela forma, a manifestação se realiza através da misericórdia divina. Essa esfera é simbolizada pelos deuses jupiterianos, como Zeus e Xangô.

Geburah - A Severidade, esfera onde a força, seja física ou moral, se manifesta com energia e impetuosidade. É simbolizado pela Espada e pelos deuses guerreiros, como Ares e Ogum.

Tiphareh - A Beleza, esfera que harmoniza a contradição ética entre a severidade e a clemência. Ela é geralmente representada pelos deuses solares e redentores, que se sacrificam em benefício ao Todo.

Netzach - A Eternidade, esfera que representa os sentimentos e os instintos, o fogo sexual, a segunda luz, o planeta Vênus e, microcosmicamente, o corpo astral, reflexo do mundo da criação.

Hod - A Reverberação, esfera que representa o pensamento consciente e a mente concreta, o planeta mercúrio, e é um reflexo microcósmico do mundo da formação.

Yesod - O Fundamento, esfera que representa a Lua e a essência da vida orgânica, o duplo-etéreo, o reflexo do mundo arquetípico.

Malkuth - O Reino, esfera que representa a essência inorgânica da materialidade, a imagem sensorial da realidade, o planeta Terra, o corpo físico concebido dentro do mundo material.

Enquanto as três primeiras Sephiroth - Kether, Chokmah e Binah - formam um conjunto denominado macroprosopos, formada pelas Três Causas Primárias; as outras sete Sephiroth, por sua vez, formam o microprosopos e expressam as Sete Causas Secundárias. Imaginemos que desejamos fazer um bolo. Este motivo, quando vem à mente, eqüivale à primeira tríade, onde Kether representa o desejo, Chokmah, à idéia, e Binah, a sua imagem formal. Porém, o bolo só sairá da imaginação para a realidade se cruzar o abismo, chegando ao sétimo nível de materialização: Cheseed corresponderá à escolha dos ingredientes; Geburah, ao esforço necessário à preparação da massa; Tiphareh, ao equilíbrio entre a quantidade dos ingredientes e sua correta preparação; Netzach, ao toque artístico necessário e à intuição; Hod, às instruções técnicas da receita; Yesod, ao cozimento no forno; e, finalmente, Malkuth, à forma final do bolo, à sua materialidade. Os cabalistas analisavam todos os fenômenos à luz destes critérios, reduzindo-os sempre aos mesmos elementos, as esferas da manifestação.

Além destes processos descendentes e materializantes que baixam da luz ketheriana para concretude de Malkuth, a que se chama criativos; existem os processos evolutivos, que partem da matéria em busca de uma realidade mais sutil. A serpente kundalínica da Árvore da Vida representa este duplo circuito dos processos criativos e evolutivos. As Sephiroth ou esferas de manifestação funcionam como ‘transistores’ deste circuito, unidades que recebem e emitem energia transformando suas características. Outras versões associam a Árvore à imagem do Adão Kadmo, onde cada Sephiroth corresponde a uma parte do corpo, estabelecendo uma relação entre o micro e o macrocosmo. A tríade formada por Kether, Chokmah e Binah, por exemplo, corresponde à cabeça. Em seguida, formando um triângulo invertido, Geburah, Cheseed e Tiphareh representam os dois braços e o plexo solar. As pernas, o sexo e o centro de gravidade, por sua vez, são associados as Sephiroth Netzach, Hod, Yesod e Malkuth.

A Árvore da Vida é um diagrama da estrutura do universo, um eixo sobre o qual se organizam os diversos níveis da manifestação. A árvore, no entanto, não forma um sistema fechado; ela é um método ou uma chave analógica para decifrar outros sistemas simbólicos. Suas correspondências, no entanto, além de infinitas, muitas vezes são contraditórias, uma vez que permite diferentes associações e analogias incompatíveis entre si, mas ‘verdadeiras’ do ponto de vista psicológico. O principal benefício da proposta do padre-ocultista foi a instituição da árvore como um ‘centro’, um eixo vertical de associações de todos os arquétipos. Segundo esta lógica, as cartas-letras correspondem aos 22 caminhos que interligam as dez esferas de manifestação da Árvore, representando todas as experiências subjetivas possíveis. Além disso, Levi discutiu exaustivamente o símbolo quaternário e sua relação com a estrutura decimal. Para ele, as quarenta cartas numeradas representam a involução do Universo como um processo de quatro fases e dez agentes. O Universo está se desenvolvendo em quatro ‘níveis de densidade’ da manifestação, em quatro estágios progressivos de materialização do sutil no denso. Em cada nível, há dez ‘degraus’ ou agentes. Assim, além da árvore principal dos 22 caminhos, Levi propôs a existência de mais quatro: a árvore das dez emanações arquetípicas, a árvore dos dez arcanjos, a árvore das dez falanges angélicas e a árvore dos dez astros do sistema solar.

· O pensamento ocultista
No entanto, cabe observar que, embora desde Levi os ocultistas nunca mais tenham deixado de admitir a interdependência entre o Tarô e a Cabala, a verdade é que, além de um não se encaixar perfeitamente ao outro, não existem quaisquer provas históricas desta ligação. O fato é que não existe um consenso sobre a correspondência entre as duas linguagens simbólicas e que, adicionando-se as associações com a astrologia, a discussão dos ocultistas se transformou em uma verdadeira babel de imagens sem que nenhum autor tenha conseguido o ‘feito’ de estabelecer um sistema de analogia perfeito. Pode-se distinguir duas grandes correntes do ocultismo que defendem associações diferentes entre o Tarô, a Cabala e a Astrologia: os seguidores de Eliphas Levi, também conhecidos como ocultistas continentais, e os adeptos do sistema desenvolvido pela ordem Golden Dawn e aperfeiçoado por Aleister Crowley, também chamados de ocultistas anglo-saxãos.

O primeiro grupo - que conta com os nomes de Oswald Wirth, Stanislau Guaita, Gerald Encausse (Papus) e G. O. Mebes - se caracteriza pela associação da carta do Louco à letra hebraica Shin e ao trigésimo primeiro caminho da Árvore da Vida. O pensamento deste grupo foi hegemônico até o final do século passado. Neste século, no entanto, o Tarô se desenvolveu e popularizou bastante devido ao surgimento da ordem ocultista Golden Dawn, fundada por McGregor Master e W. Wynn Westcott. A principal característica deste grupo é a associação do Arcano do Louco à letra Aleph e ao décimo primeiro caminho da árvore. Seguindo este princípio, Sir Charles Waite e Aleister Crowley, os dois maiores expoentes da ordem, foram responsáveis por belos tarôs e por uma vasta obra teórica (5).

Crowley, talvez o mais polêmico ocultista de todos os tempos, ampliou bastante as correspondências simbólicas do Tarô e da Cabala com outros sistemas como a Astrologia, o I Ching, perfumes, cores, objetos mágicos, lançando as bases da feitiçaria moderna. Mesmo discordando de seus rituais e do seu comportamento excêntrico e macabro, a maioria dos pensadores que sucederam Crowley adotaram seus sistema de correspondência, expressas no seu livro ‘777’. Este grupo de autores é predominante atualmente e conta com nomes como os Dion Fortune, Allan Watts, Gareth Knigth, Israel Regardie e Robert Wang, entre outros. Além desses dois grandes grupos de ocultistas, também existem autores independentes que defendem seus próprios sistemas de associação, como Paul Foster Case e o misterioso ‘Zain’ do Templo da Luz, que adota o critério cromático em seu sistema.

As hipóteses sobre a origem da Cabala adotadas pelos ocultistas não são menos delirantes que as do Tarô. Para uns, ela foi ensinada pelos anjos aos homens para que eles conseguissem voltar ao Paraíso Primordial. Para outros, ela foi recebida por Set, o terceiro filho de Eva, ou Enoch, Abraaão e Melkisedk. Há também versões de que ela diretamente ditada por Jeová a Moisés, durante sua permanência, por quarenta dias, no monte Sinai.

Do ponto de vista historiográfico, no entanto, sabemos que a Cabala, como tradição oral do misticismo hebraico, data da época do segundo cativeiro babilônico, sendo uma espécie de adaptação do simbolismo astrológico dos caldeus ao monoteísmo judaico. Podemos inclusive desconfiar de que a Árvore da Vida é uma interpretação axial do símbolo do Eneagrama mesopotânico. Por muitos séculos, a Cabala foi transmitida oralmente como um tipo de exegese mística do Torah até que, por volta do ano 100 d.C., surgiram o Sepher Yetzirah e o Zohar. Desde então, a Cabala teve vários ciclos distintos dentro da tradição judaica, com características bastantes diferentes (o ciclo mágico da Floresta Negra, o ciclo filosófico-especulativo da Espanha no Século XII, o ciclo monástico de Safed dirigido por Isaac Luria), mas só se popularizou quando foi apropriada e deformada pelo pensamento ocultista.

Diante desta popularização distorcida promovida pelos movimentos ocultistas, nada mais normal do que os estudiosos da Cabala ligados ao judaísmo protestassem com veemência. Para a maior autoridade historiagráfica da Cabala Hebraica neste século, Gershom Scholem, por exemplo:

(...) “as atividades dos ocultistas franceses e ingleses foram inúteis e serviram apenas para gerar uma grande confusão entre os ensinamentos da Cabala e suas próprias invenções, tais como a suposta origem cabalística das cartas do Tarô”. (6)

Tentando salvaguardar a associação das duas linguagens simbólicas, Robert Wang tentou responder às objeções de Scholem, afirmando que há uma Cabala Hebraica e outra Esotérica, fundada por Pico de Miranbola. Mas a verdade é que, se os esotéricos beberam na tradição hebraica para elaborar sua própria Cabala, o misticismo judaico também se reciclou e influenciou com a abordagem ocultista e, mais recentemente, com o desenvolvimento da psicologia analítica. Um exemplo contemporâneo desta recíproca é o trabalho de Z’ev Ben Shimom Halevi (7), onde encontramos uma Cabala genuinamente hebraica fortemente influenciada pelo esoterismo.

· A Psicologia Analítica e Estrutura Simbólica
Com sua origem misteriosa e seus diversos enfoques, o Tarô é um múltiplo quebra-cabeça de referências, seja na sua técnica ou na sua história. Estudá-lo é, sobretudo, estudar-se. Os livros, apesar de importantes, são absolutamente secundários. O principal é entrar em contato direto com os arquétipos, é utilizá-los mentalmente como conceitos e sentir sua força viva na realidade quotidiana. Porém, para iniciar seus estudos teóricos é aconselhável começar a ler os trabalhos de psicólogos e pensadores acadêmicos, que recentemente passaram a se interessar pelos arquétipos das cartas, ao invés de enfrentar os complicados clássicos do ocultismo.

Neste sentido, ‘Jung e o Tarô’, da já citada Sallie Nichols, e ‘A meditação dos Guias Interiores’ são obras bastantes proveitosas (8). O enfoque de Nichols é particularmente recomendável pois escapa do emaranhado teórico das intermináveis discussões sobre a associação das cartas com outros sistemas simbólicos em que os ocultistas se perderam e apresenta uma série de referências culturais e literárias para caracterizar cada arquétipo. Em contrapartida, sua principal desvantagem é que ela acaba caindo involuntariamente em um dos sistemas de correspondência, quando diviniza O Louco e vê O Mago como um ‘embusteiro mercuriano’ e não como o arquétipo do Pai e da Unidade Primordial. Associando o Tarô à técnica da imaginação criativa e ao psicodrama, a meditação dos Guias Interiores é um método simples e fascinante de transformação dos diferentes aspectos arquetípicos da personalidade, deduzidos a partir das quadraturas e oposições astrológicas do mapa natal. Infelizmente Steinbrecher também apresenta a mesma deficiência de Nichols, pois utiliza as correspondências crowleyianas em detrimento de outras possibilidades.

Distantes da discussão esotérica travada entre os ocultistas continentais e anglo-saxões sobre se a unidade primordial da força uraniana deve ser representado pelo número um ou pelo zero, muitas outras contribuições vêm enriquecendo o estudo do Tarô no campo da psicologia analítica, algumas bem práticas (9), outras ‘amplificando’ o enfoque junguiano com as diferentes associações ocultistas, como é o caso do excelente livro da Dra. Irene Gad (10) - lançado há pouco tempo no Brasil. Talvez a principal contribuição indireta da Psicologia Analítica ao estudo simbólico do Tarô seja do próprio Jung, principalmente na sua Interpretação psicológica do dogma da Trindade, onde se tetêm sobre o papel desempenhado pela Virgem Maria em relação à simbologia cristã. Neste trabalho, Jung apresenta pela primeira vez a noção de que a estrutura quaternária é universal e funciona como um símbolo estruturante da psiquê e do inconscinete coletivo. No Brasil, destaca-se também o trabalho desenvolvido pelo psicólogo Carlos Byington (11), que durante muitos anos problematizou a questão do quaternário como símbolo estruturante, aplicando-o `a história e à psicoterapia .

Como vimos Eliphas Levi e Aleister Crowley, encabeçando os dois maiores movimentos ocultistas modernos, propuseram diferentes associações entre as linguagens simbólicas do Tarô, da Cabala e da Astrologia. Porém, ambos sistemas de associações se basearam na semelhança genérico de seus elementos ou nas mesmas correspondências estruturais:

1 - A equivalência dos 22 Arcanos Maiores às letras hebraicas e aos caminhos da Árvore da Vida. Segundo os ocultistas estes arquétipos surgiram devido à “queda” da Humanidade, entendendo por ‘queda’, não apenas a expulsão de Adão e Eva do Éden ou o fim catastrófico das civilização de Atlântida e Lemúria, mas sobretudo “uma deterioração de um estado superior de convivência entre homens dotados de poderes psíquicos para as sociedades mais instintivas e para a percepção meramente sensorial da realidade”. Assim, o sonho de uma Utopia Social, uma forma de organização social perfeita, sem os conflitos, os desejos e as desigualdades caracterizados pelos arquétipos dos Arcanos Maiores, é um retorno a este estado de consciência coletivo da Humanidade, ao ‘nirvana coletivo’ primordial. Este sentimento de unidade que ultrapassa a simples harmonização das relações sociais e o equilíbrio político entre os diversos grupos que formam uma sociedade para introjetar psicologicamente em cada indivíduo como uma necessidade de comunhão universal, como um desafio de reconquista do paraíso perdido, como um Desejo de União.

2 - A identidade das l6 cartas de figura às relações do quaternário elevado ao quadrado, ao Tetragrama Sagrado, o ‘IHVH’, símbolo estrutural do universo. Aqui o Desejo de União ultrapassa os problemas do mundo para se consolidar como um casamento de pólos simbólicos opostos e como uma busca de uma identidade mais profunda, de um nível de autoconhecimento que permita o reencontro com à Alma Gêmea. Na tradição judaico cristã, este reencontro aparece no Cântico dos cânticos, onde a noiva (Israel) espera pelo noivo, o Messias; nas Epístolas Paulíneas, a noiva é a Igreja e o noivo, o Cristo; já na poesia mística de San Juan de La Cruz, o noivo é o espírito e a noiva, a alma e o corpo. Para os ocultistas, as dezesseis cartas de figura representam as relações entre os quatro mundos cabalísticos (Ouros, Espadas, Copas e Paus) e os quatro corpos do Eu Inferior (Rei, Dama, Cavaleiro e Valete). Para os cartomantes, as cartas de figura representam relações interpessoais nos quatro níveis de atividade: material, mental, emocional e espiritual.

3 - A Associação das 40 cartas numeradas aos quatro mundos cabalísticos e a estrutura decimal da Árvore da Vida. Já as quarenta cartas numeradas representam as relações transpessoais, aquelas que dizem respeito à compreensão que se tem do Universo e do seu desenvolvimento nos quatro planos de atividade. O número quarenta representa a totalidade da existência e da experiência humana. Os períodos medidos por este número são freqüentes na tradição judaico-cristã: os 40 dias do dilúvio de Noé, os 40 anos durante os quais os israelitas erraram pelo deserto, os 40 dias que Moisés passou no Sinai, os 40 dias do jejum de Cristo, entre outros. Todas essas experiências têm o mesmo significado: um período de reflexão sobre a totalidade da existência, a consciência exilada acima e além da manifestação. O Desejo de União neste nível não se refere a realização da Utopia Social ou da felicidade, mas sim à reintegração mística com Deus às viagens empreendidas por Dante, Enoch e pelos místicos sufis através dos palácios celestiais que antecedem o Trono do Altíssimo onde Criador e Criatura se encontrarão frente a frente. Podemos, portanto, dizer que o Tarô esbouça uma cartografia completa da psique humana, subdividindo suas cartas em 3 grupos distintos, representando 3 ‘profundidades’ do Inconsciente:

22 Arcanos Maiores - Relações Pessoais
16 Cartas de Figura - Relações Interpessoais
40 Cartas Numeradas - Relações Transpessoais

No livro-jogo A Estrada Iluminada desenvolvi e aprofundei a discussão sobre o significado destes três níveis do inconsciente, bem como do conteúdo simbólico de cada uma das 78 cartas do baralho tradicional. O leitor interessado em conhecer mais sobre o assunto encontrará nele um subsídio precioso para aprofundar seu domínio sobre a linguagem arquetípica.

Notas
(1) Mebes. G. O. Os Arcanos menores do Tarô. São Paulo: Pensamento, 1987.
(2) Kaplan, Stuart R. Tarô Clássico. São Paulo: Pensamento,1989.
(3) Nichols, Sallie. Jung e o Tarô. São Paulo: Cultrix, 1990. Nichols cita a ‘teoria dos trunfos’ da escritora Gertrude Moakley, segundo a qual os Arcanos Maiores “são simples adaptações de ilustrações de um livro dos sonetos de Petrarca a Laura” - o I Trionfi. O tema, comum na Idade Média européia, teria inúmeras versões e seria encenado teatralmente como sucessão de personagens como em um desfile.
(4) Kaplan, Stuart R. Idem
(5) Wang, Robert. O Tarô Cabalístico. São Paulo: Pensamento, 1993. Livro que reúne de forma mais compacta todo sistema da Golden Dawn, comparando os trabalhos de Master, Waite e Crowley. Possui uma bibliografia completa dos livros publicados pelos participantes da ordem, sendo um guia moderno e imparcial das idéias de seus expoentes.
(6) Wang, R. Idem
(7) Halevi, Z’ev Ben Shimon. Universo Kabbalístico. São Paulo: Ed. Siciliano, 1992.
(8) Steinbrecher, Edwin C. A Meditação dos Guias Interiores. São Paulo: Ed. Siciliano, 1990. Obra ainda pouco conhecida pelos brasileiros, mas que já é considerado um clássico no exterior. Explica a terapia elaborada a partir da combinação das cartas com a técnica da imaginação criativa segundo o mapa natal.
(9) Dickeman, Alexandra Collins. A Aventura da Autodescoberta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1992. Um excelente apanhado de exercícios psicológicos de auto-conhecimento baseado nos Arcanos Maiores.
(10) Gad, Irene. Tarô e Individuação - Correspondências com a cabala e a alquimia. São Paulo: Mandarim, 1996.
(11) Byington, C. Uma Teoria Simbólica da História, o Mito Cristão como Principal Símbolo Estruturante do Padrão de Alteridade Ocidental Revista Junguiana (SBPA), n.1 pág.120/177 Petropolis: Vozes, 1983.

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