domingo, 11 de novembro de 2018

A origem do Tai Chi Chuan



Para dinamizar o treinamento de seus filhos, na arte marcial do Kung Fu, no estilo espiritual da família Tang, o velho mandarim admitiu o filho de um de seus servos nas aulas que ministrava para seus dois filhos. Com passar do tempo, o filho do servo se desenvolveu mais do que os alunos principais, sendo excluído dos treinos.
O jovem servo começou então a treinar sozinho, observando as aulas escondido nas matas, e acabou se desenvolvendo ainda mais.
Após perceber seu erro e reintegrá-lo às aulas, o velho mandarim decidiu entregar ao servo sua espada no leito de morte (entregando na verdade seu Kung Fu, patrimônio espiritual da dinastia Tang).
Foi então que seus dois melhores amigos, os filhos legítimos do mandarim falecido, tornaram-se seus piores inimigos. Após derrota-los em combates mortais, o jovem servo fugiu, sendo caçado e desafio por todos os jovens nobres da antiga China, uma vez que ele era o único servo que lutava Kun Fu. As artes marciais eram um privilégio dos nobres.
Buscou abrigo em um templo taoísta, na encosta das montanhas Wudang. Lá, meditando com os monges, aprofundou o contato com a espiritualidade e passou a se chamar Chang San Feng. Certo dia, em um passeio casual, observou a luta entre uma cobra e um grou, elaborando um novo estilo de movimentos alternados yin e Yang. Decidiu, então, voltar às cidades apesar dos incontáveis inimigos que o desafiavam, inclusive a justiça pela morte dos herdeiros Tang. Porém, para evitar mais mortes, o servo passou a desenvolver um estilo defensivo e a treinar e dar aulas em praças públicas, logo formando um grande público entre os que não tinham acesso às artes marciais. E, assim, o Tai chi chuan representa uma democratização de um saber exclusivo das elites chineses, reelaborado para defesa pessoal. [1]


[1] A história é lendária, como todas as muitas histórias envolvendo o mítico mestre Chang San Feng (ou Zhang Sanfeng) e os muitos textos taoístas a ele atribuídos - que muitos acreditam ter conquistado a imortalidade.  Historicamente comprovado, o criador do tai chi chuan como prática foi Chen Wangting.

Encantaria Moderna

Princípios da Feitiçaria Midiática

(…) A magia em suas formas mais primitivas é normal­mente designada como “arte”. Acho que isso é bastante literal. Eu acredito que a magia é arte e que a arte, quer por escrito, música, escultura ou qualquer outro meio é literalmente mágica. A arte é, como mágica, a ciência de manipular símbolos, palavras ou imagens para realizar mudanças na consciência. Conjurar um encantamento é somente encantar, manipular palavras para mudar a consciência das pessoas. Então eu acho que um artista ou escritor é a coisa mais próxima que você vai ter de um xamã no mundo contemporâneo. (...) O fato de que agora esse poder mágico degenerou o nível de entretenimento barato e manipulação é uma tragédia. Atualmente, aqueles que utilizam xamanismo e magia a moldar a nossa cultura são os anunciantes. Ao invés de acordar as pessoas xamanismo é a droga usada para tranquilizar as pessoas, para torná-las mais mane­jáveis. A sua caixa mágica da televisão, com as palavras mágicas, seus slogans, pode fazer com que todos no país pensam nas mesmas palavras e tenham os mesmos pen­samentos banais exatamente ao mesmo tempo. The Alan Moore Mindscape (2003, 23:43 – 32:37).


Sem arrodeio: enuncia-se aqui a seguir quatro princípios da feitiçaria midiática, amplamente utilizados e escondidos pela publicidade contemporânea. Depois, explicamos melhor os fundamentos e as consequências desses princípios.

São eles:

1)      Princípio da Singularidade Artesanal. Em oposição à noção de reprodutividade técnica de Walter Benjamim, a dessacralização da arte pela produção em série promovida pela industrialização de todos os objetos da sociedade[2]; enuncia-se aqui o princípio da singularidade técnica, em que o objeto único e original, manualmente produzido sem cópias é uma forma de arte. Em uma sociedade industrial, todo objeto artesanal é culturalmente um talismã da diferença, um oásis cognitivo no deserto da uniformização serial da objetividade. O objeto mágico é aquele que não tem cópia.

2)      Princípio da Propagação da Singularidade. O objeto mágico é artesanal e único, mas sua imagem pode ser reproduzida ao infinito pela indústria cultural, aumentando significativamente seu poder. Todos o desejam, mas ele é apenas um. O encantamento do amuleto se propaga. Da união da cobiça das massas com a singularidade do objeto desejado forma-se uma assimetria unilateral daquele conceito com um público não presencial, uma “intimidade não-recíproca a distância” (THOMPSON, 1998). A midiatização da singularidade universaliza a imagem do objeto no espaço e no tempo. O objeto mágico tem uma imagem icônica multiplicada ao infinito.

3)      Princípio da Associação Narrativa O objeto artesanal artificialmente propagado precisa ainda ser alimentado por imagens, sentimentos, alimentos e energia. O objeto mágico se nutre de narrativas simbólicas e factuais. E seu poder deriva diretamente de sua presença nessas narrativas. Aliás, o objeto torna-se mágico através de uma narrativa, associando-o a uma ideia indicando a superação simbólica de vários opostos geralmente irreconciliáveis: sujeito/objeto, natureza/sociedade, vida/morte. O objeto mágico é também um índice, uma associação narrativa entre contradições simbólicas e acontecimentos.

4)      Princípio da Identificação Absoluta: A ubiquidade: não há mais diferença entre o objeto mágico e sua imagem serializada e propagada ao infinito. É o próprio objeto que está presente (e não sua reprodução ou cópia) em todos os lugares e tempos. É a fusão entre ator e personagem, entre jogador e avatar, entre médium e orixá. O objeto mágico é um deus encarnado em nosso universo. E a identidade de contexto e o universo narrativo através do qual o observador se observa: o paradigma. A imagem invertida do universo dentro de cada um.
Por um lado, como ninguém sabe ao certo os nomes do autor e do texto, os antropólogos procuram, em vão, outras explicações para a etimologia dessas palavras (PIRES, 2009) e suas curiosas interpretações. Por outro, a própria origem das palavras (do latim facticius: “artificial, fictício”) sugere um engodo, em que uma realidade só se sustenta enquanto houver crença em sua veracidade. Há mistério e encantamento nos próprios termos e em sua história.
Segundo o Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha, [...]
[...] “depois de ter contribuído, portanto, para a criação da palavra francesa fetiche, o português recorre ao francês para tomar-lhe emprestado o termo fetiche, que tem traços semânticos que a aproximam de feitiço, mas desta se diferencia por necessidade de especialização semântica”. (1986, pág. 623)
O feitiço é, geralmente, um termo acusatório (algo reprovável feito por outros); enquanto o fetiche é uma espécie de obsessão pessoal por alguma coisa, uma situação, pessoa, ou parte da pessoa, uma atração ou fixação incontrolável que dá origem a um prazer intenso (nem sempre sexual). Por extensão também há equivalências e diferenças semelhantes entre os termos ‘fetichismo’ e ‘feitiçaria’. Feitiçaria era, para Inquisição, a religião do Diabo. O fetichismo, por sua vez, era, para os primeiros cientistas sociais, o sistema de crenças mágico, anterior às religiões institucionalizadas. Outras definições pensam a feitiçaria como um conjunto de práticas mágicas utilitárias (a mandinga); e o fetichismo como a crença em objetos-deuses.  
Já o feitiçaria ...
Acho importante ter em conta três aspectos do problema do feitiço, todos eles revelando a sua ambiguidade. Primeiro, a ambiguidade entre construção e verdade: o feitiço poder ser falsificação e engano, mas existe a suspeita de que esse artifício, essa ficção, de fato seja verdadeira, que funcione, ou ainda, que tenha um “segredo”, um “fundamento” que o acusador não conhece. Segundo, ambiguidade entre acusador e acusado: o feitiço sempre é antes uma acusação do que uma prática auto definida; mas se reconhecendo como tal, o feiticeiro pode adquirir paradoxalmente poder sobre o acusador, o poder oculto da feitiçaria. Terceiro, e último, a ambiguidade entre sujeito e objeto do feitiço: a feitiçaria é uma arte da sedução e da sujeição, através da qual as pessoas se tornam objetos, ou, pelo contrário, os objetos podem ser vistos como pessoas. A feitiçaria é uma trama, que embrulha acusado e acusador, pessoas e objetos, verdade e ficção. (SANZI, 2009, pág. 128)
A feitiçaria, para os colonizadores portugueses, não era africana, arcaica ou tradicional; mas uma prática ordinária, universal, contemporânea e comum. Enquanto, o fetichismo é uma palavra europeia para designar uma prática religiosa africana.
Hoje as palavras fetiche e fetichismo têm pelo menos quatro significados: a) o sentido psicanalítico (parte do corpo ou objeto que desperta excitação sexual); b) o sentido marxista (o mecanismo ideológico que transforma tudo em mercadoria); c) o sentido xamânico (um objeto enfeitiçado, amuleto ou ídolo; e d) o sentido figurado, o fetiche pode representar uma pessoa admirada por outra, que é seguida e cujas ordens são obedecidas cegamente.
Na verdade, cada sentido da palavra fetiche corresponde a um dos princípios midiáticos apresentados no começo. O fetiche sexual da psicanálise se explica pela áurea da singularidade. O fetiche marxista é baseado na reprodução em série de condições de produção que excluem a maioria. O fetiche xamânico corresponde ao ‘assentamento’ do candomblé. E o sentido figurado (“fulano tem um fetiche por sicrano” – por exemplo) é análogo ao princípio da identidade.
No âmbito da psicanálise, o termo fetichismo é utilizado para definir o desvio do interesse sexual para algumas partes do corpo do parceiro, para alguma função fisiológica, para cenários ou locais inusitados, para fantasias de simulação ou para roupas e adornos.
Para Marx, o fetichismo é a lógica da mercadoria, um regime em que os homens tornam-se objetos (mercadorias) e as coisas (os produtos) se comportam como pessoas. O fetichismo é uma relação social entre pessoas mediada por coisas, com a aparência de uma relação direta entre as coisas e não entre as pessoas. Disso resulta que a mercadoria (ou o mercado) parece determinar a vontade do produtor e não o contrário. O ‘fetichismo da mercadoria’ seria então a magia do capitalismo.
Após Marx, outros autores retomaram a noção marxista de fetichismo, como Adorno em relação à música e cinema; e Guy Debord (2000) mostrando que o fetiche de mercadoria e a coisificação do mundo, foi levado a um nível de objetividade muito além do que Marx imaginou.
A história do fetichismo no sentido xamânico foi pesquisada por William Pietz, numa série de artigos titulados The Problem of the Fetish (1985, 1987, 1988 APUD SANZI, 2009). Nesta perspectiva, o objeto mágico é uma associação entre narrativas simbólicas e acontecimentos. Por exemplo: um fato natural (a chuva) em sincronia com acontecimento social (a alegria das plantas e pessoas do deserto) é uma narrativa que associa mudanças meteorológicas à comunidade de supostos sentimentos entre humanos e vegetais – tornando essa correspondência de interpretação universalmente verdadeira. O encantado é sempre uma associação entre o natural e o social, entre o sujeito e o objeto, entre o vivente e o extraordinário. E a associação narrativa é sempre feita de coincidências crescentes e repetidos. A narrativa cria o encantamento, em uma história de origem, mas o encanto pode se multiplicar em outras narrativas.
Para Michael Taussig (1993) e Bruno Latour (2002), antropólogos contemporâneos leitores de Pietz, apesar da feitiçaria e do fetichismo terem sido descritos como parte das tradições pré-modernas em oposição à objetividade científica, na verdade, a objetividade da cultura moderna ocidental também é, em última instância, mágica e fetichista. A modernidade é um encantamento macabro de identidade: a ilusão do observador externo.
Durante a modernidade (esta imagem objetiva e coisificada que fazemos de nós mesmos), fomos prisioneiros da própria ilusão, forçados a sobreviver em mundo violento e sem sentido, jogados em um universo frio e sem alma, não passamos, aos olhos da ciência objetiva, de mamíferos tecno degenerados da crosta orgânica de uma bola de pedra girando em torno de uma bola de fogo.
Por outro lado, também não se pode retroceder, considerar os astros como são deuses e recolocar o observador como sujeito no centro do universo, como se fez antes da modernidade. É preciso perceber que universo é vibracional, constituído de energia e de relações entre diferentes estados de ser. Não há um único universo objetivo, mas vários universos virtuais (microcósmico, astrofísico, subatômico, etc).
E, apesar da ciência contemporânea (a mecânica quântica, por exemplo) não ter mais objetos, ainda vivemos no mundo fetichista das coisas e não no universo reencantado das relações entre energias.
E o que os feiticeiros pensam?
Para Carlos Castaneda/don Juan Mathus, a Feitiçaria pode ser definida como a “arte de acumular e redistribuir energia com o propósito de escapar à segunda morte”. A “antiga arte” seria um sistema mágico-cognitivo meta religioso, cético de todas as crenças, pragmático em relação à experiência empírica na mudança dos estados de percepção e terminantemente avesso a transcendências metafísicas ou representações das divindades. A feitiçaria nessa definição é o oposto complementar do fetichismo, responsável pela organização do mundo ordinário e ilusório das coisas, sob o qual se percebe o reino das energias. Os fetiches (e a ilusão de que o mundo é formado por objetos) seriam formas de aprisionamento da atenção (e da energia) das pessoas para alguns aspectos da realidade em detrimentos de outros.
Para don Miguel Ruiz (2005), há dois sonhos coletivos em desenvolvimento: o sonho que chamamos de realidade – “o tonal, a primeira atenção ou sonho do inferno” – e o sonho dos guerreiros, um sonho alternativo de realidade - “o nagual, o sonho da segunda atenção”[3]. Para Ruiz, o sistema de crenças é uma estrutura parasita de energia. Sonhamos um sonho coletivo que nos aliena da vida e nos mantêm em uma realidade virtual, uma ‘Matrix’ formada por nossas crenças e valores.
Enquanto Ruiz gnóstico sonha em salvar a terra e a humanidade, Castaneda intenta antes salvar-se do destino da humanidade de ser absorvido pela terra.
Ruiz entende a tarefa do xamã em uma dimensão social: o sonho coletivo do medo só poderá ser transformado com grande número de sonhadores que desejem a liberdade pessoal. Ruiz acredita poder romper com o sonho social de medo tecendo um novo sonho. Segundo ele, é libertar nosso sonho pessoal do sonho coletivo do medo de exclusão, do sonho de domesticação social engendrado pela sociedade; e, em conjunto com outros sonhadores conscientes, transformar esse sonho social de destruição planetária, induzindo toda humanidade a um salto quântico evolutivo.
Para Castaneda, o tonal é uma ilha (ou bolha da percepção) e o nagual a um oceano-universo que o engloba: o mar escuro da consciência. A vida orgânica (o tonal) é uma gota em um universo inorgânico. A tarefa do feiticeiro é sair individualmente do seu ovo tonal e viver em um universo nagual.
Antes a palavra fetiche resgatava a dignidade dos cultos africanos diante das acusações da Inquisição de feitiços. Hoje, a feitiçaria tornou-se libertária e deseja desencantar a modernidade fetichista. Confirma-se assim o dito que os feitiços se voltam contra os feiticeiros.

Referências Bibliográficas
BENJAMIM, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutividade técnica. Obras Escolhidas (trad. S.P. Rouanet). São Paulo: Brasiliense, 1985.
DEBORD, G. Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.
FETICHE. In: FERREIRA, A.B. H. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 623.
LATOUR, Bruno. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Florianópolis: Editora Edusc, 2002.
MOORE, Alan. The Mindscape of Alan Moore. Directed by DeZ Vylenz, Starring Alan Moore. Music by Drew Richards; RZA Distributed by Shadowsnake Films Release dates October 24, 2003 (San Francisco World Film Festival). Language English.
PEREZ, Clotilde. Mascotes Semiótica da vida Imaginária. São Paulo: Cengage Learning. 2010: 144.
PIRES, Rogério Brittes Wanderley. O Conceito Antropológico de Fetiche: Objetos Africanos, Olhares Europeus. Dissertação (mestrado) – Orientador: Márcio Goldman. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu Nacional, 2009- Rio de Janeiro, PPGAS-MN/UFRJ, 2009.
SANSI, Roger. Feitiço e fetiche no Atlântico moderno. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 51, n. 1, p. 123-153, jan. 2008. ISSN 1678-9857. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/27303>. Acesso em: 15 dec. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-77012008000100005.
TAUSSIG, Michael - Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem - Um Estudo Sobre o Terror e a Cera. Paz e Terra, 1993.
THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.
RUIZ, Miguel. Os Quatro compromissos. Rio de Janeiro: Best Seller, 2005.



[1] Professor-pesquisador do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN.
[2] A Obra de Arte na era de sua reprodutividade técnica (1983, 5-28) Benjamin ressalta o impacto que a produção em série de objetos pela indústria teve sobre a percepção. A obra de arte era única no tempo e no espaço e isso lhe conferia uma áurea, uma presença sagrada. Hoje praticamente tudo é reproduzido de modo idêntico.  A arte, então, deixou de ser sagrada, 'objeto de culto' para se tornar expressiva dos sentimentos e crítica da injustiça social.
[3] Os conceitos de Tonal Nagual representam campos perceptivos opostos e complementares, em que o primeiro é nossa percepção ordinária (sensorial-mental) do mundo como algo formado por objetos concretos e coisas sólidas; e o último é a percepção de que estamos em um universo de relações, em que tudo é feito de energia em diferentes níveis de organização e de adaptação.

O matador de Dragões




Conta-se que na floresta negra do antigo reino da Cracóvia havia um dragão. E, em virtude de uma maldição, todos os finais de ano, o dragão exigia que a cidade lhe desse uma jovem virgem para sua ceia de Natal. Caso a jovem não fosse entregue, o dragão prometia incendiar a cidade e todas as casas da redondeza.

Com o passar dos anos, organizou-se um sorteio anual para a escolha da vítima, fazendo assim que uma vida pagasse por muitas. Até o ano em que a sorteada foi a princesa Cristina, filha única e herdeira do rei da Cracóvia. O rei quis fazer outro sorteio, mas Cristina disse que era sua responsabilidade como princesa: aceitar o resultado e se sacrificar, como exemplo.

Inconformado, o rei ofereceu uma recompensa para o cavaleiro que vencesse o dragão: seu trono e a mão de sua filha em casamento. Vários cavaleiros vieram de diferentes partes do mundo e enfrentaram o dragão, mas todos foram derrotados. 

Foi, então, que um pobre camponês de origem judaica, Bolshevaw, teve uma ideia: cobriu um barril de pólvora com a pele de uma de suas ovelhas, colocou-a em campo aberto e se escondeu por trás das matas. Levou consigo seu arco, flechas com pontas de pano e uma lamparina cheia e acesa. Quando o dragão foi devorar a falsa ovelha, engolindo o barril de pólvora, Bolshevaw explodiu a cabeça da fera com suas flechas em chamas.

E o pastor judeu, então, salvou a princesa Cristina, casou-se com ela, herdando o trono da Cracóvia e depois se transformando em Bolshevaw I, o primeiro imperador da Polônia.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

A vítima e o juiz

"(Os toltecas) comparam o Juiz, a vítima e o sistema de crenças a um parasita que invade a mente humana. Do ponto de vista tolteca, todos os seres humanos domesticados são doentes. São doentes porque existe um parasita que controla a mente e controla o cérebro. A comida, para o parasita, são as emoções negativas produzidas pelo medo. Se repararmos na definição de "parasita", descobrimos que um parasita é um ser vivo que vive de outros seres vivos, sugando sua energia sem nenhuma contribuição útil em troca e machucando o hospedeiro pouco a pouco. O Juiz, a Vítima e o Sistema de Crenças se encaixam bem nessa descrição. (...) Os toltecas acreditam que os parasitas - o Juiz, a Vítima e o Sistema de Crenças - controlam sua mente; controlam seu sonho pessoal. Os parasitas sonham pela sua mente e vivem sua vida por intermédio de seu corpo. Sobrevivem nas emoções que têm do medo, e se alegram com o drama e o sofrimento." (Miguel Ruiz, Os quatro compromissos, 36-40)

segunda-feira, 13 de abril de 2015

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Aforismos Elementais

Devaneios de Investigação Metamítica



1. Gaston Bachelard
2. Fogo no Divã
3. Mergulho nos sonhos
4. Os movimentos do Ar
5. Força e Repouso
6. Colecionador de ecos
1. O cru e o cozido
2. Ciência + Tradição
3. Relacionando os elementos
4. Arranjos simbólicos Conceituais
1. O Vinho do Espírito
2. Inveja do Útero
3. Matriarcado Arcaico
1. Mito + Realidade
2. O Dilúvio
3. Do mito ao tipo
4. Édipo tupiniquim
5. O desequilíbrio do Fogo



domingo, 30 de novembro de 2014

A Metapoética dos Quatro Elementos



1. Gaston Bachelard
Para Gaston Bachelard, o instante poético (e, consequentemente, o momento de criação artística em geral ou insight criativo) é uma verticalização do tempo, que se torna mais simultâneo e menos contínuo, comparada ao transe místico e à experiência do sagrado. Bachelard é um pensador duplo: tem textos diurnos dedicados à epistemologia da ciência e textos noturnos sobre o universo simbólico da poesia. Nos textos noturnos, ele adota uma perspectiva junguiana, em que o inconsciente é coletivo e habitado por arquétipos, formas transculturais recorrentes nos sonhos e nas artes. Há ainda, na estética bachelardiana, uma experiência cognitiva visual (ou a imaginação dos olhos) e uma experiência cognitiva material (ou a imaginação das mãos). Para Bachelard, essa imaginação material e dinâmica, expressa através dos padrões recorrentes dos quatro elementos alquímicos (terra, água, ar e fogo), é a linguagem primária do inconsciente.
A psicanálise foi seu ponto de partida. Durante sua fase diurna, de 1912 a 1938, Gaston Bachelard desejava estabelecer, em sintonia com as novas teorias relativistas desenvolvidas pela física teórica, um novo espírito científico (1990c). Nesta perspectiva, a verdade objetiva era sempre o desmascarar de uma ilusão aparente, era sempre a crítica do senso comum e da ideologia. A alquimia baseada nos quatro elementos era uma forma de conhecimento ideológica; quando se descobriu número atômico e a tabela periódica dos elementos químicos então se passou ao conhecimento científico. A essa ruptura com as ilusões subjetivas ideológicas que revela a objetividade científica, Bachelard chamou ‘corte epistemológico’. Nessa época, ele utilizava a psicanálise para exorcizar a imaginação, considerada como um ‘obstáculo epistemológico a superar’.
É curioso que a passagem do Bachelard diurno (em que a crítica racional desvenda a imaginação) para o Bachelard noturno (que investiga a poesia através da imaginação) se deu sem grandes cortes nem rupturas radicais.
2. Fogo no divã
O livro A Psicanálise do Fogo (1990b) pode ser considerado uma transição inicial, mas houve um longo processo gradual, cumulativo e contínuo de construção do projeto de uma poética elementar da imaginação. Neste livro, escrito em 1939, a intenção de Bachelard é desmistificar o fogo, elucidando os diferentes 'complexos subjetivos' que impedem a compreensão do objeto. Seu alvo é a permanência secreta de uma idolatria do fogo, uma vez que até cientistas recorrem a imagens primitivas para explicá-lo. Os complexos são organizados em referência a diferentes narrativas míticas sobre o fogo: o complexo de Prometeu, o desejo de possuir o fogo contra a vontade dos deuses (1999b, 11-19; 1990b, 89-112); o complexo de Empédocles, o desejo irracional de se deixar consumir pelo fogo (1999b, 21-31; 1990b, 113-142); o complexo de Novalis, o fogo associado ao amor correspondido (1999b, 33-63), o complexo da dissociação entre o fogo sagrado, a luz divina; e as chamas que queimam nos infernos, o sexo (1999b, 24).
Bachelard, após psicanalisar as imagens do fogo, chega a uma conclusão curiosa: não aceita que a descoberta do fogo pelos povos primitivos tenha sido causada pela fricção de dois pedaços de madeira ao acaso. Para ele, "o amor é a primeira hipótese científica para a reprodução objetiva do fogo" (1999b, 47); "uma criação do desejo e não uma criação da necessidade" (1999b, 24).
No final da vida, após escrever livros sobre a água, o ar e a terra, Bachelard escreveu ainda mais dois livros sobre o elemento fogo: Fragmentos de uma poética do fogo (1999b), deixado inacabado; e A chama de uma vela (1989), em que trabalha com imagens-lembranças de sua própria vida e com as relações entre a imaginação poética e a memória. O fogo, nesses livros, se confunde com a vida, combustível que move os corpos, os aquece e traz recordações sobre si mesmo.
3. Mergulho nos sonhos
Já em A água e os sonhos (1998), segundo livro da série escrito em 1942, não se trata mais de desmistificar as ilusões em torno do elemento, mas sim de imaginar, devanear através de imagens, a partir da água. Há também complexos de imagens aquáticas, como o complexo de Ofélia ou o complexo de Caronte (1998, 73), mas esses são formados pelo recalcamento e sublimação dos arquétipos (no caso, dos arquétipos da água e da morte), e não mais por ilusões subjetivas que precisam ser decifradas.
Ofélia é uma personagem da peça Hamlet, de Shakespeare, que se suicida por se sentir rejeitada pelo protagonista. Os psicanalistas em geral a consideram como um símbolo da mulher submissa, uma contraparte feminina do complexo de Édipo encarnado por Hamlet. Para Bachelard, esse complexo se expressa na ondulação da água nas pedras de um riacho, formando uma imagem semelhante aos cabelos de uma mulher afogada. Já Caronte é o barqueiro de Hades, que, na mitologia grega, leva os mortos de balsa aos infernos. Para Bachelard, Caronte é o guardião do limiar, não apenas da morte, mas também dos sonhos profundos das águas pesadas.
Há uma diferença entre a noção de arquétipo de C. G. Jung e os complexos de imagens simbólicas dos elementos de Bachelard. Para Jung, o arquétipo se refere às representações coletivas e primordiais do Inconsciente coletivo, formando um modelo básico de comportamento instintivo. Já as imagens poéticas que Bachelard estuda são sublimações individuais dos arquétipos coletivos e dependem da subjetividade do sonhador:
“é essa contribuição pessoal que torna os arquétipos vivos; cada sonhador repõe os sonhos antigos em uma situação pessoal. Assim se explica porque um símbolo onírico não pode receber, em psicanálise, um sentido único” (BACHELARD, 1990a, 174).

Para Bachelard, o arquétipo da água se confunde com a própria imaginação, com o quase-substrato da imaginação material, o plasma onde ela acontece. A água é, ao mesmo tempo, fluída, solvente, homogênea e coesa; representando o ideal alquímico Solve e Coagula, a imaginação do concreto sublimado e a materialização do imaginário.
Assim, a água ocupa, na meta poética do devaneio de Bachelard, um lugar intermediário entre o sólido e o gasoso, entre a materialidade compacta da terra e a suave leveza do ar (BACHELARD, 1998, 7).
Também com a água, surge a distinção entre imaginação material (ou das mãos) e formal (ou dos olhos).
Expressando-nos filosoficamente desde já, poderíamos distinguir duas imaginações: uma imaginação que dá vida à causa formal e uma imaginação que dá vida à causa material; ou, mais brevemente, a imaginação formal e a imaginação material. (BACHELARD, 1998, 1)

A imaginação formal valoriza o modelo teórico matemático e a formalização lógico-empírica da tradição aristotélica, cartesiana e positivista das ciências naturais. Centrada no sentido da visão, ela resulta no exercício constante da abstração. O homem é um espectador passivo e ocioso em relação ao mundo que o rodeia.
Já a imaginação material, o homem é um agente ativo em conflito com os elementos da matéria; é uma filosofia ativa das mãos, provocada e provocante por um universo sólido e concreto. É a imaginação dos trabalhadores-artistas que modelam o mundo através de suas vontades de poder.
Nesse sentido, aproxima-se de Nietzsche, que pensa a marteladas, a quem considera um pensador aéreo (BACHELARD, 2001c, 127-162), em virtude de suas imagens vertiginosas e abissais.
4. Movimentos no Ar
Com o elemento ar, surgem as noções de imaginação dinâmica[1], de poética do movimento, de verticalização do tempo e de psicologia ascensional. Enquanto a imaginação material refere-se à materialização do imaginário, a imaginação dinâmica, no polo oposto, e à volatização quântica dos objetos concretos.
“A imaginação dinâmica ganha então a dianteira sobre a imaginação material. O movimento imaginado, desacelerando-se, cria o ser terrestre; o movimento imaginado, acelerando-se, cria o ser aéreo” (BACHELARD,  2001c, 109).

Em segundo momento, no entanto, Bachelard considera uma imaginação dinâmica dos movimentos (associada a esse efeito desmaterializante do elemento Ar) e uma imaginação dinâmica das forças - que é desenvolvida no livro A terra e os devaneios da vontade (2001b). E nesse novo esquema, a imaginação material vai se opor, como complemento e polo oposto, às duas imaginações dinâmicas (do movimento desmaterializante e das forças em combate contra a dureza e solidez do mundo material).
E, em um terceiro momento, a imaginação material corresponderá aos devaneios de repouso e as imagens da intimidade - que são estudadas no livro A terra e os devaneios do repouso (1990a)[2].
O livro O Ar e os Sonhos (2001c) é dedicado à imaginação dinâmica do movimento. Bachelard recolhe imagens aéreas: horizontes sem fim, vacuidades, espaços abertos, imensidões celestes, sonhos em voo e de queda, árvores gigantescas, mas principalmente do movimento desmaterializante e das imagens de verticalização do tempo: os lampejos da eternidade, os instantes absolutos em que o mundo para, o insight poético, o momento de sincronicidade em que elementos diversos e até contrários formam uma unidade. Nas imagens aéreas de movimento, o mundo dos objetos se torna um universo de relações, de frequências vibracionais – e isso faz Bachelard sonhar, no final do livro, com uma ‘nova fenomenologia’, em que o tempo seja uma dimensão do espacial, considerando a duração e a intensidade dos eventos e em que o pensamento se reconcilie com a imaginação.
Mas, essa ideia logo irá cair por terra ...
5. Força e Repouso
As imagens que o elemento terra suscita em Bachelard ocorrem em dois planos. O plano da extroversão que se refere à imaginação dinâmica e diz respeito aos devaneios ativos que agem sobre a matéria; e o plano da introversão, formado pelas imagens de intimidade. Dedicou a cada plano um livro.
A terra, com efeito, ao contrário dos outros três elementos, tem como primeira característica uma resistência. Os outros elementos podem ser hostis, mas não são sempre hostis. A resistência da matéria terrestre, pelo contrário, é imediata e constante (BACHELARD, 2001b, 8).

Em A terra e os devaneios da vontade (2001b), Bachelard imagina o impacto da matéria sobre o impulso criador humano. O martelo (o metal) nos ensina a disciplina da regularidade, a firmeza de propósito, a vitória gradativa sobre a matéria. As vontades de poder aram a terra e são por ela formatadas. A subjetividade também é forjada pela resistência material. A matéria resiste à força humana e o corpo se adapta, muscularmente, às resistências da matéria.
E o livro A terra e os devaneios do repouso (1999a), no contraponto do desenvolvimento dessas vontades em confrontos com o mundo material, estuda as imagens da beleza íntima da matéria; o espaço afetivo que há no interior das coisas; e principalmente a tranquilidade que aí reside: a casa, o ventre e a gruta.
É ao sonhar com essa intimidade que se sonha com o repouso do ser, com um repouso enraizado, um repouso que tem intensidade e que não é apenas essa imobilidade inteiramente externa reinante entre as coisas inertes. É sob a sedução deste repouso íntimo e intenso que algumas almas definem o ser pelo repouso, pela substância, em sentido oposto ao esforço que fizemos, em nossa obra anterior, para definir o ser humano como emergência e dinamismo (BACHELARD, 1990a, 4).

Ao que parece, o combate (e o repouso) da imaginação de Bachelard contra a matéria realmente o tornou mais sábio, uma vez que nesses dois livros, e nos que se escreverá em seguida, ele abandona qualquer pretensão científica e se limita devanear através das imagens.
6. O Sonhador
“Arauto da pós-modernidade” (ARAUJO, 2003), Bachelard abriu caminho para as teorias contemporâneas do imaginário. Gilbert Durand, Mircea Eliade e Paul Ricouer foram admiradores confessos de sua coragem e liberdade poética e filosófica. Também foi alvo de várias críticas devido a sua falta de sistematicidade. Porém, possivelmente, a verdade é que Bachelard queria apenas devanear e provocar devaneios. Aliás, o elemento provoca o sonhador, cujo devaneio nos provoca.
A meta poética bachelardiana é uma relação dialógica entre o homem e a matéria, inspirada na alegoria materialista alquímica. C.G. Jung (2003) já desconfiava que os alquimistas não operassem apenas com metais, mas sim o próprio corpo, através do simbolismo astrológico e elemental; e que o ideal alquímico de transformar chumbo em ouro, nada mais era do que elevar a matéria densa para sutil dentro de si mesmo, como um laboratório vivo.
Talvez Bachelard se sentisse culpado (por que não psicanalisá-lo também?) com sua desconstrução da física aristotélica dos quatro elementos através da epistemologia científica e tentasse oferecer a compensação de inserir novamente os elementos em o que muitos chamam de uma ‘metafísica’. Na verdade, uma protofísica, pois colocou as imagens simbólicas dos elementos aquém e não além dos objetos representados.
Da mesma forma que é falsa a tentativa classifica-lo como filósofo metafísico, também parece equivocado tentar enquadrá-lo como crítico literário. Bachelard não analisa livros ou poemas completos, mas apenas versos soltos; Edgar Alan Poe é o único poeta que é estudado em profundidade (pois é um poeta da água). Mais do que um crítico literário, Bachelard é um poeta se que utiliza de outros poetas, agregando a eles sua poesia.
Daí porque preferirmos o nome de ‘metapoética’ para caracterizar seu trabalho, do que a metafísica ou crítica literária. Porém, o essencial é que Bachelard encarna uma estética da atividade, que nos incita a também devanear, que nos encoraja a também sonhar. Por isso, a melhor crítica é também a melhor homenagem: aceitar o desafio e também lutar, também lançar a imaginação ao devaneio metapoético.


[1]  Freitas (2006) identifica cinco configurações da imaginação poética nos devaneios dos quatro elementos de Bachelard: 1) a imaginação material; 2) a imaginação dinâmica do movimento; 3) a imaginação dinâmica das forças; 4) as imagens-lembrança; e 5) a imaginação arquetipal.  Para ele, essas configurações se sobrepõem umas as outras ao longo do trabalho do filósofo-poeta.
[2] Os devaneios de repouso e as imagens de intimidade são retomados em A poética do espaço (2000), mas sem o apelo simbólico aos elementos.