1. Gaston Bachelard
Para Gaston Bachelard, o instante
poético (e, consequentemente, o momento de criação artística em geral ou
insight criativo) é uma verticalização do tempo, que se torna mais simultâneo e
menos contínuo, comparada ao transe místico e à experiência do sagrado.
Bachelard é um pensador duplo: tem textos diurnos dedicados à epistemologia da
ciência e textos noturnos sobre o universo simbólico da poesia. Nos textos
noturnos, ele adota uma perspectiva junguiana, em que o inconsciente é coletivo
e habitado por arquétipos, formas transculturais recorrentes nos sonhos e nas
artes. Há ainda, na estética bachelardiana, uma experiência cognitiva visual
(ou a imaginação dos olhos) e uma experiência cognitiva material (ou a
imaginação das mãos). Para Bachelard, essa imaginação material e dinâmica,
expressa através dos padrões recorrentes dos quatro elementos alquímicos
(terra, água, ar e fogo), é a linguagem primária do inconsciente.
A psicanálise foi seu ponto de partida.
Durante sua fase diurna, de 1912 a 1938, Gaston Bachelard desejava estabelecer,
em sintonia com as novas teorias relativistas desenvolvidas pela física
teórica, um novo espírito científico (1990c). Nesta perspectiva, a verdade
objetiva era sempre o desmascarar de uma ilusão aparente, era sempre a crítica
do senso comum e da ideologia. A alquimia baseada nos quatro elementos era uma
forma de conhecimento ideológica; quando se descobriu número atômico e a tabela
periódica dos elementos químicos então se passou ao conhecimento científico. A
essa ruptura com as ilusões subjetivas ideológicas que revela a objetividade
científica, Bachelard chamou ‘corte epistemológico’. Nessa época, ele utilizava
a psicanálise para exorcizar a imaginação, considerada como um ‘obstáculo
epistemológico a superar’.
É curioso que a passagem do Bachelard
diurno (em que a crítica racional desvenda a imaginação) para o Bachelard
noturno (que investiga a poesia através da imaginação) se deu sem grandes
cortes nem rupturas radicais.
2. Fogo no divã
O livro A Psicanálise do Fogo (1990b) pode ser considerado uma transição
inicial, mas houve um longo processo gradual, cumulativo e contínuo de
construção do projeto de uma poética elementar da imaginação. Neste livro,
escrito em 1939, a intenção de Bachelard é desmistificar o fogo, elucidando os
diferentes 'complexos subjetivos' que impedem a compreensão do objeto. Seu alvo
é a permanência secreta de uma idolatria do fogo, uma vez que até cientistas
recorrem a imagens primitivas para explicá-lo. Os complexos são organizados em
referência a diferentes narrativas míticas sobre o fogo: o complexo de
Prometeu, o desejo de possuir o fogo contra a vontade dos deuses (1999b, 11-19; 1990b, 89-112); o
complexo de Empédocles, o desejo irracional de se deixar
consumir pelo fogo (1999b,
21-31; 1990b, 113-142); o complexo de Novalis, o fogo associado ao
amor correspondido (1999b,
33-63), o complexo da dissociação entre o fogo sagrado, a luz divina; e as
chamas que queimam nos infernos, o sexo (1999b, 24).
Bachelard,
após psicanalisar as imagens do fogo, chega a uma conclusão curiosa: não aceita
que a descoberta do fogo pelos povos primitivos tenha sido causada pela fricção
de dois pedaços de madeira ao acaso. Para ele, "o amor é a primeira
hipótese científica para a reprodução objetiva do fogo" (1999b, 47);
"uma criação do desejo e não uma criação da necessidade" (1999b, 24).
No final da vida,
após escrever livros sobre a água, o ar e a terra, Bachelard escreveu ainda
mais dois livros sobre o elemento fogo: Fragmentos
de uma poética do fogo (1999b), deixado inacabado; e A chama de uma vela (1989), em que trabalha com imagens-lembranças
de sua própria vida e com as relações entre a imaginação poética e a memória. O
fogo, nesses livros, se confunde com a vida, combustível que move os corpos, os
aquece e traz recordações sobre si mesmo.
3. Mergulho nos sonhos
Já em A água e os sonhos (1998),
segundo livro da série escrito em 1942, não se trata mais de desmistificar as
ilusões em torno do elemento, mas sim de imaginar, devanear através de imagens,
a partir da água. Há também complexos de imagens aquáticas, como o complexo de
Ofélia ou o complexo de Caronte (1998, 73), mas esses são formados pelo
recalcamento e sublimação dos arquétipos (no caso, dos arquétipos da água e da
morte), e não mais por ilusões subjetivas que precisam ser decifradas.
Ofélia é uma personagem da peça Hamlet,
de Shakespeare, que se suicida por se sentir rejeitada pelo protagonista. Os
psicanalistas em geral a consideram como um símbolo da mulher submissa, uma
contraparte feminina do complexo de Édipo encarnado por Hamlet. Para Bachelard,
esse complexo se expressa na ondulação da água nas pedras de um riacho,
formando uma imagem semelhante aos cabelos de uma mulher afogada. Já Caronte é
o barqueiro de Hades, que, na mitologia grega, leva os mortos de balsa aos
infernos. Para Bachelard, Caronte é o guardião do limiar, não apenas da morte,
mas também dos sonhos profundos das águas pesadas.
Há uma diferença entre a noção de
arquétipo de C. G. Jung e os complexos de imagens simbólicas dos elementos de
Bachelard. Para Jung, o arquétipo se refere às representações coletivas e
primordiais do Inconsciente coletivo, formando um modelo básico de
comportamento instintivo. Já as imagens poéticas que Bachelard estuda são
sublimações individuais dos arquétipos coletivos e dependem da subjetividade do
sonhador:
“é
essa contribuição pessoal que torna os arquétipos vivos; cada sonhador repõe os
sonhos antigos em uma situação pessoal. Assim se explica porque um símbolo
onírico não pode receber, em psicanálise, um sentido único” (BACHELARD, 1990a,
174).
Para Bachelard, o arquétipo da água se
confunde com a própria imaginação, com o quase-substrato da imaginação
material, o plasma onde ela acontece. A água é, ao mesmo tempo, fluída,
solvente, homogênea e coesa; representando o ideal alquímico Solve e Coagula, a imaginação do concreto
sublimado e a materialização do imaginário.
Assim, a água ocupa, na meta poética do
devaneio de Bachelard, um lugar intermediário entre o sólido e o gasoso, entre
a materialidade compacta da terra e a suave leveza do ar (BACHELARD, 1998, 7).
Também com a água, surge a distinção
entre imaginação material (ou das mãos) e formal (ou dos olhos).
Expressando-nos
filosoficamente desde já, poderíamos distinguir duas imaginações: uma
imaginação que dá vida à causa formal e uma imaginação que dá vida à causa
material; ou, mais brevemente, a imaginação formal e a imaginação material.
(BACHELARD, 1998, 1)
A imaginação formal valoriza o modelo
teórico matemático e a formalização lógico-empírica da tradição aristotélica,
cartesiana e positivista das ciências naturais. Centrada no sentido
da visão, ela resulta no exercício constante da abstração. O homem é um
espectador passivo e ocioso em relação ao mundo que o rodeia.
Já a imaginação material, o homem é um
agente ativo em conflito com os elementos da matéria; é uma filosofia ativa das
mãos, provocada e provocante por um universo sólido e concreto. É a imaginação
dos trabalhadores-artistas que modelam o mundo através de suas vontades de
poder.
Nesse sentido, aproxima-se de
Nietzsche, que pensa a marteladas, a quem considera um pensador aéreo
(BACHELARD, 2001c, 127-162), em virtude de suas imagens vertiginosas e
abissais.
4. Movimentos no Ar
Com o elemento ar, surgem as noções de
imaginação dinâmica[1],
de poética do movimento, de verticalização do tempo e de psicologia
ascensional. Enquanto a imaginação material refere-se à materialização do
imaginário, a imaginação dinâmica, no polo oposto, e à volatização quântica dos
objetos concretos.
“A
imaginação dinâmica ganha então a dianteira sobre a imaginação material. O
movimento imaginado, desacelerando-se, cria o ser terrestre; o movimento
imaginado, acelerando-se, cria o ser aéreo” (BACHELARD, 2001c, 109).
Em segundo momento, no entanto,
Bachelard considera uma imaginação dinâmica dos movimentos (associada a esse
efeito desmaterializante do elemento Ar) e uma imaginação dinâmica das forças - que é desenvolvida no livro A terra e os devaneios da vontade (2001b). E nesse novo esquema, a
imaginação material vai se opor, como complemento e polo oposto, às duas
imaginações dinâmicas (do movimento desmaterializante e das forças em combate
contra a dureza e solidez do mundo material).
E, em um terceiro momento, a imaginação
material corresponderá aos devaneios de repouso e as imagens da intimidade -
que são estudadas no livro A terra e os devaneios
do repouso (1990a)[2].
O livro O Ar e os Sonhos (2001c) é dedicado à imaginação dinâmica do
movimento. Bachelard recolhe imagens aéreas: horizontes sem fim, vacuidades,
espaços abertos, imensidões celestes, sonhos em voo e de queda, árvores
gigantescas, mas principalmente do movimento desmaterializante e das imagens de
verticalização do tempo: os lampejos da eternidade, os instantes absolutos em
que o mundo para, o insight poético, o momento de sincronicidade em que
elementos diversos e até contrários formam uma unidade. Nas imagens aéreas de
movimento, o mundo dos objetos se torna um universo de relações, de frequências
vibracionais – e isso faz Bachelard sonhar, no final do livro, com uma ‘nova
fenomenologia’, em que o tempo seja uma dimensão do espacial, considerando a
duração e a intensidade dos eventos e em que o pensamento se reconcilie com a
imaginação.
Mas, essa ideia logo irá cair por terra
...
5. Força e Repouso
As imagens que o elemento terra suscita em Bachelard ocorrem em dois
planos. O plano da extroversão que se refere à imaginação dinâmica e diz
respeito aos devaneios ativos que agem sobre a matéria; e o plano da
introversão, formado pelas imagens de intimidade. Dedicou a cada plano um
livro.
A
terra, com efeito, ao contrário dos outros três elementos, tem como primeira
característica uma resistência. Os outros elementos podem ser hostis, mas não
são sempre hostis. A resistência da matéria terrestre, pelo contrário, é
imediata e constante (BACHELARD, 2001b, 8).
Em A
terra e os devaneios da vontade (2001b), Bachelard imagina o impacto da
matéria sobre o impulso criador humano. O martelo (o metal) nos ensina a
disciplina da regularidade, a firmeza de propósito, a vitória gradativa sobre a
matéria. As vontades de poder aram a terra e são por ela formatadas. A
subjetividade também é forjada pela resistência material. A matéria resiste à
força humana e o corpo se adapta, muscularmente, às resistências da matéria.
E o livro A terra e os devaneios do
repouso (1999a), no contraponto do desenvolvimento dessas vontades em
confrontos com o mundo material, estuda as imagens da beleza íntima da matéria;
o espaço afetivo que há no interior das coisas; e principalmente a
tranquilidade que aí reside: a casa, o ventre e a gruta.
É
ao sonhar com essa intimidade que se sonha com o repouso do ser, com um repouso
enraizado, um repouso que tem intensidade e que não é apenas essa imobilidade
inteiramente externa reinante entre as coisas inertes. É sob a sedução deste
repouso íntimo e intenso que algumas almas definem o ser pelo repouso, pela
substância, em sentido oposto ao esforço que fizemos, em nossa obra anterior,
para definir o ser humano como emergência e dinamismo (BACHELARD, 1990a, 4).
Ao que parece, o combate (e o repouso)
da imaginação de Bachelard contra a matéria realmente o tornou mais sábio, uma
vez que nesses dois livros, e nos que se escreverá em seguida, ele abandona
qualquer pretensão científica e se limita devanear através das imagens.
6. O Sonhador
“Arauto da pós-modernidade” (ARAUJO, 2003), Bachelard abriu
caminho para as teorias contemporâneas do imaginário. Gilbert Durand, Mircea
Eliade e Paul Ricouer foram admiradores confessos de sua coragem e liberdade
poética e filosófica. Também foi alvo de várias críticas devido a sua falta de
sistematicidade. Porém, possivelmente, a verdade é que Bachelard queria apenas
devanear e provocar devaneios. Aliás, o elemento provoca o sonhador, cujo
devaneio nos provoca.
A meta poética bachelardiana é uma
relação dialógica entre o homem e a matéria, inspirada na alegoria materialista
alquímica. C.G. Jung (2003) já desconfiava que os alquimistas não
operassem apenas com metais, mas sim o próprio corpo, através do simbolismo
astrológico e elemental; e que o ideal alquímico de transformar chumbo em ouro,
nada mais era do que elevar a matéria densa para sutil dentro de si mesmo, como
um laboratório vivo.
Talvez Bachelard se sentisse culpado
(por que não psicanalisá-lo também?) com sua desconstrução da física
aristotélica dos quatro elementos através da epistemologia científica e
tentasse oferecer a compensação de inserir novamente os elementos em o que
muitos chamam de uma ‘metafísica’. Na verdade, uma protofísica, pois colocou as
imagens simbólicas dos elementos aquém e não além dos objetos representados.
Da mesma forma que é falsa a tentativa
classifica-lo como filósofo metafísico, também parece equivocado tentar
enquadrá-lo como crítico literário. Bachelard não analisa livros ou poemas
completos, mas apenas versos soltos; Edgar Alan Poe é o único poeta que é
estudado em profundidade (pois é um poeta da água). Mais do que um crítico
literário, Bachelard é um poeta se que utiliza de outros poetas, agregando a
eles sua poesia.
Daí porque preferirmos o nome de
‘metapoética’ para caracterizar seu trabalho, do que a metafísica ou crítica
literária. Porém, o essencial é que Bachelard encarna uma estética da
atividade, que nos incita a também devanear, que nos encoraja a também sonhar.
Por isso, a melhor crítica é também a melhor homenagem: aceitar o desafio e
também lutar, também lançar a imaginação ao devaneio metapoético.
[1] Freitas (2006) identifica cinco configurações
da imaginação poética nos devaneios dos quatro elementos de Bachelard: 1) a
imaginação material; 2) a imaginação dinâmica do movimento; 3) a imaginação
dinâmica das forças; 4) as imagens-lembrança; e 5) a imaginação
arquetipal. Para ele, essas
configurações se sobrepõem umas as outras ao longo do trabalho do
filósofo-poeta.
[2]
Os devaneios de repouso e as imagens de intimidade são retomados em A poética do espaço (2000), mas sem o
apelo simbólico aos elementos.
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