Apresentar o pensamento de Castaneda de forma analítica é, de certa forma, traí-lo, uma vez que sempre enfatiza o caráter prático e irracional do ensinamento tolteca. E uma enorme dificuldade inicial é caracterizar as idéias de Castaneda, uma vez que seu pensamento não é nem esotérico nem acadêmico, mas reúne elementos de ambos em conceitos sofisticados - como 'ponto de encaixe da percepção' ou 'seres inorgânicos' - sem apresentá-los de forma sistemática. Porém, em alguns raros momentos, é possível vislumbrar suas referências teóricas. Nos cadernos Lectores del Infinito - Un diario de Hermenéutica aplicada, por exemplo, Castaneda confessa sua admiração pela fenomenologia:
“Trató que la Fenomenología fuera un método de acercamiento a la experiencia de la vida tal como ocurre en el espacio y en el tiempo. Es una tentativa de describir directamente nuestra experiencia tal y como ocurre, sin detenerse a considerar sus orígenes o sus explicaciones causales.“
Também não se pode classificar o texto de Castaneda de literário ou de sub-literário (no sentido de um gênero comercial ou modismo), no entanto, é evidente que ele se utiliza artifícios literários autobiográficos para passar seus conceitos chaves de modo subliminar. Por exemplo, Castaneda passe imagem que é tolo e demasiadamente racional, levando seus leitores a subestimá-lo e a se imaginarem que seriam mais espertos como aprendizes de Don Juan. Por detrás desta manobra de desvalorização de sua intelectualidade atrapalhada, Castaneda, na verdade, coloca sorrateiramente sofisticados conceitos na boca de Don Juan. Ele oculta seu esforço teórico enfatizando o caráter pragmático, relativo e misterioso mundo da feitiçaria, mas, na verdade, cunha modos de vê-la e de entendê-la de modo bastante abstrato e preciso.
Outro artifício interessante é que Castaneda em praticamente todos os livros conta a mesma história, a história de seu aprendizado com Don Juan, mas a cada vez narra os mesmos acontecimentos com enquadramentos e sintaxes completamente diferentes. Dentro de seu propósito, tal fato se dá devido à lembrança posterior dos acontecimentos vividos em outro estado de consciência. Este também é um efeito literário interessante, uma vez que para entender a história, é preciso conhecer suas diferentes versões; e, ao mesmo tempo, um método de pesquisa da própria experiência de vida, em que há uma ampliação da sintaxe de sua memória e do seu modelo de interpretação da realidade.
Embora poucos cientistas reconheçam, Castaneda é um marco na antropologia. Aliás, esta poderia ser subdividida em três grandes estágios: o período evolucionista e etnocêntrico, em que os antropólogos consideravam os outros povos primitivos; o período funcionalista-estruturalista, em que Franz Boas e Levi-Strauss, entre outros, se descobriram iguais aos selvagens que estudavam; e o período etnoantropológico, em que, invertendo a perspectiva inicial, o antropólogo se conhece cultural e psicologicamente através de tradição que estuda. E neste sentido, o esforço teórico de Castaneda ainda é muito mal compreendido. Mas, além de ser um cientista social do novo paradigma de conhecimento, Castaneda também é "o novo nagual" (ou nagual das três pontas), iniciando uma nova linhagem de feiticeiros sem fetiches. E mais: sua interpretação teórica do xamanismo mexicano se deu em um ambiente globalizado, fazendo com que este saber se desterritorializasse, se espalhando pelo planeta em milhões de grupos sem nenhuma relação cultural ou física com as linhagens tradicionais. Entre as diferentes contradições geradas por esta situação destaca-se o fato de Castaneda ter se tornado uma ‘celebridade invisível’, isto é, um personagem público que apagou sua história pessoal (1). Armando Torres observa que devido a esta estratégia de se tornar invisível, Castaneda teve que reformular sua relação com as ‘plantas de poder’ (parte essencial do xamanismo mexicano), pois ela ameaçava sua imagem pública e colocava como secundário, o ensinamento que considerava essencial.
Dito isto, resta ainda explicar que aqui, mais do que uma exposição sistemática ou crítica do pensamento de Carlos Castaneda, nosso objetivo aqui é utilizar suas idéias para reler outros pensadores e formular algo bastante diferente do que ele pensou e escreveu. Minha intenção não é confirmar ou criticar, mas sim avançar criativamente no desenvolvimento de um novo saber, em que ciência e tradição dialoguem.
Há uma grande diferença de enfoque entre o esoterismo da nova era (ou nova gnose) e o ensinamento de Castaneda e D. Juan: para esses últimos não existe transcendência, platonismo ou imagens-idéias permanentes – de modo semelhante aos autores pós-modernos. Não existe nada além deste mundo (arquétipos, espíritos ou dimensões) e a realidade é apenas uma descrição (na verdade, um inventário) feita pela mente.
Castaneda nega a reencarnação e a lei do karma? Não. Ele as considera irrelevantes para seus objetivos espirituais estratégicos. Ele também não nega a criação de uma alma imortal, simplesmente se percebe com um conglomerado de eu’s que lutam para se unificar. Alias, acho que essa espiritualidade ‘sem telos’ existe em vários autores contemporâneos (incorretamente apontados como tendo sido influenciados pelo budismo e pelo pensamento oriental) (2). Pode-se até dizer que esses autores desconsideram a dimensão transpessoal da psique, que, para eles, ela é apenas ilusão ou ideologia das religiões institucionalizadas.
Por outro lado, nos livros de Armando Torres (discípulo de Castaneda) e de Merlyn Tunnshende (do grupo do D. Juan), os personagens de Genaro e Soledad são bem diferentes. Um trabalha com cura e a outra é cartomante - algo inconcebível para ética do guerreiro de Castaneda. A ênfase da luta contra a autopiedade e a importância pessoal levou a uma concepção pouco generosa. E muitos acusam Castaneda de ter reinterpretado a tradição tolteca de uma forma muito ... ‘pós-moderna’ (3).
O livro mais chocante é o de Amy Wallace, filha do famoso escritor Irving Wallace. O livro, ao contrário dos outros, não trata de feitiçaria, mas sim do desenvolvimento de sua relação amorosa com Castaneda, apresentado-o como uma pessoa indisciplinada e imatura afetivamente, mulherengo, um líder dominador e cruel. Além de desmascarar várias mentiras (4), o livro traz uma cópia de atestado de óbito de Castaneda, para provar que ele morreu de câncer no fígado (uma morte vergonhosa para um guerreiro) e não se transformou em uma bola de fogo, dando um salto para o infinito, como alguns de seus seguidores passaram a propagar. Amy acha também que as três bruxas que seguiam o nagual – Carol Tiggs, Taisha Abelar e Florinda Donner – se suicidaram. Alguns dos leitores dos livros de Castaneda e de suas ajudantes (5) não acreditam na narrativa de Amy Wallace. Aliás, consideram inclusive que ela pode estar deliberadamente mentindo para esconder o verdadeiro destino de Castaneda e das bruxas – o que certamente combina com suas idéias e sua estratégia de guerreiro.
Para nós, no entanto, nada disso importa. Relevantes são as idéias abstratas que pretendemos analisar e não as fofocas de ex-namoradas ou as crenças de seus admiradores. Porém, não há como negar o papel que a contra-informação desempenha em relação a tudo que envolve Castaneda. É como se ele trabalhasse seus conceitos de forma tão discreta, como se sugerisse suas noções de forma tão delicada, que no final ficasse a dúvida: “Bom talvez esse cara não exista mesmo, seja apenas um truque do mercado editorial americano, mas quem será que pensou tudo isso?”
Os conceitos de Tonal e Nagual, por exemplo, representam por tanto princípios e campos perceptivos opostos e complementares, em que o primeiro é a ordem, o racional, o conhecido; e o último, o caos, o irracional e o desconhecido. O tonal é nossa percepção ordinária (sensorial-mental) do mundo como algo formado por objetos concretos, pessoas e coisas sólidas. O nagual é quando percebemos que estamos em um universo de relações, que tudo é feito de energia em diferentes níveis de organização e de adaptação.
Na verdade, há três posições perceptivas: o conhecido (tonal ou primeira atenção), o desconhecido (nagual ou segunda atenção) e o incognoscível ou terceira atenção, ou Intento. Atenção aqui entendida como a capacidade de enfocar o que desejamos perceber.
Três mil anos atrás havia um ser humano, que vivia perto de uma cidade cercada de montanhas. (...) Um dia, enquanto dormia numa caverna, sonhou que viu o próprio corpo dormindo. Saiu da caverna numa noite de lua nova. O céu estava claro e ele enxergou milhares de estrelas. (...) Olhou para suas mãos, sentiu seu corpo e escutou sua própria voz dizendo: “Sou feito de luz; sou feito de estrelas.” Olhou novamente para o alto e percebeu que não eram as estrelas que criavam a luz, mas sim a luz que criava as estrelas. “Tudo é feito de luz”, acrescentou ele, “e o espaço no meio não é vazio.” (...) Então, ele compreendeu que, embora fosse feito de estrelas, ele não era essas estrelas. “Sou o que existe entre elas”, pensou. Assim, chamou as estrelas de tonal e o espaço entre os dois nagual, e percebeu que a harmonia e o espaço entre os dois eram criados pela Vida ou Intento. RUIZ, Miguel; 2005: p. 13 e 14.
Em muitos textos o tonal é comparado a uma ilha (ou bolha da percepção) e o nagual a um oceano-universo que o engloba: o mar escuro da consciência. Neste contexto, o sonhar é a base de toda experiência cognitiva: estamos sonhando o tempo todo, seja dormindo ou quando estamos acordados. A diferença é o enquadramento mental-sensorial no estado de vigília (ou tonal) da percepção da energia sem realidade sensorial dos estados alterados de consciência (ou nagual). Aliás, enquanto campos perceptivos podem-se inclusive comparar a relação entre Tonal e Nagual às de consciência algorítmica e consciência quântica, em voga entre os neurocientistas.
Também se chama de Nagual ao líder de um grupo de guerreiros na tradição xamânica mexicana. Nos grupos, os guerreiros se subdividem em sonhadores e espreitadores; e o nagual é o único que tem a mestria nas duas artes. Ele é o líder porque tem seu segundo eu enraizado no campo nagual e tem energia suficiente para desferir o "golpe do nagual", isto é, uma descarga de energia no meio das omoplatas dos guerreiros, onde fica o ponto de aglutinação dos guerreiros, deslocando sua percepção para o nagual e tornando irreversível seu desenvolvimento posterior. O ‘golpe’ também pode ser um acontecimento (a morte de um parente próximo ou um acidente fatal com a própria pessoa) que faça o desconhecido emergir na vida do golpeado, deslocando a sua percepção de tempo e de seu propósito de vida.
Há ainda a ‘regra do Nagual’, mais que um conjunto de normas da tradição oral, uma determinada configuração energética das linhagens xamânicas que regula as relações entre o líder e o grupo de dezesseis guerreiros, com dois espreitadores e dois sonhadores para cada ponto cardeal. Alguns praticantes chamam de Nagualismo ao conjunto de práticas e idéias associadas a esta tradição.
Aliás, os termos 'xamanismo tolteca' - nome mais associado às práticas anteriores a Castaneda e a outros grupos paralelos ao de D. Juan, como os de Miguel Ruiz - e 'tensegridade' (este termo mais associado às suas sucessoras, Florinda Donner, Carol Tiggs e Taisha Abelar) nunca pareceram nos seus livros. O ensinamento professado pelo Sr. Carlos Castaneda é a Arte da Feitiçaria, redefinida como a arte de acumular e redistribuir energia com o propósito de escapar à segunda morte - independente dos sistemas de crenças, das tradições ou das práticas mágicas. E a feitiçaria se subdivide em duas grandes partes: a Espreita e o Ensonhar.
A arte da espreita é a capacidade de fixar conscientemente o ponto de aglutinação da percepção através do campo da cognição ordinária, também chamada de primeira atenção ou tonal. Esta arte apresenta diferentes técnicas e estágios (o não-fazer, o pequeno tirano, a arte da loucura controlada através de disfarces, a recapitulação) e torna o praticante liberto de sua auto-importância pessoal (ou do uso inadequado de seu ego) através de mudanças de comportamento que diminuam o desperdício de energia psíquica. A espreita implica em tomar tudo como presa, inclusive às próprias fraquezas, implica em agir de modo estratégico em relação ao próprio comportamento e à sua transformação permanente. “A arte da espreita está ligada ao coração, assim como a mestria da consciência está ligada à mente, e a mestria do intento ao espírito”. É uma batalha silenciosa para “conseguir os objetivos” da melhor forma em cada situação. A espreita pode ser aplicada a tudo, mas espreitar a si mesmo é a sua maior expressão.
Para espreitar é preciso ter um propósito, ser impecável, sair da auto-importância, banir hábitos e praticar a loucura controlada (fingir-se imerso na ação, mas sem se identificar, nem ser notado). A recapitulação é o ponto forte dos espreitadores, pois é uma forma especializada de espreitar as rotinas internas. É regida por sete princípios (6) e tem quatro passos de aprendizado (implacabilidade, esperteza, paciência e doçura).
A arte do ensonhar consiste na capacidade de deslocar deliberadamente o ponto de aglutinação da percepção através do campo da cognição extraordinária, também chamada de segunda atenção ou nagual. Através desta arte, o praticante deve construir um 'segundo eu' ou Duplo, que poderá tomar outras formas e subsistir ao seu desaparecimento físico. A esta experiência - de se reconhecer como um conglomerado de campos de energia - chama-se "perder a forma humana" e é considerado um passo irreversível no desenvolvimento dos sonhadores que passam então, a ver o universo como energia viva e perdem todos seus condicionamentos sociais.
Para Castaneda, percebemos apenas uma descrição consensual da realidade, a ilha tonal. Para ultrapassar os limites perceptivos desta ilha temos que aprender a nos ver como um campo energético, como um outro eu ou corpo sonhador, construído através do desenvolvimento da consciência e de diferentes estados de percepção.
Esta é a manobra dos feiticeiros, isto é, preparar o corpo sonhador para sobreviver à morte física e continuar existindo (de modo semelhante à alma penada do suicida, que fica presa no astral até o dia em que deveria realmente morrer, mas por tempo indeterminado e com poderes de materialização entre outros) até o momento de mergulhar do infinito e trocar a consciência pela liberdade.
Esta idéia é que certamente o que há de diferente e de mais polêmico neste ensinamento. Ao contrário do corpo astral, o duplo etéreo e os outros corpos percebidos (ou imaginados) no esoterismo tradicional, o corpo sonhador do nagualismo é uma entidade a ser construída. E a melhor forma de construir um corpo sonhador no sentido proposto com Castaneda e D. Juan é buscar se conhecer obsessivamente a si mesmo.
Na verdade, é preciso reconhecer que existe aí um ‘telos’, um universal, uma transcendência no sonhar. A verdade é que o judeu reza pela vinda do messias; o cristão deseja ser bom para antecipar a utopia social; o budista medita porque crê no nivarna e o tolteca intenta um corpo que sobreviva à morte e a formação de um grupo.
Todo mundo tem uma transcendência que dá sentido a sua vida, mesmo que não goste de admitir. Embora o budismo e o nagualismo tolteca acreditem que empíricos, a finalidade que dá sentido a vida das pessoas que seguem esses sistemas não é melhor do daqueles que acreditam na volta do messias ou na Jerusalém celeste.
Para sonhar ou espreitar, ou seja, deslocar o foco da consciência para diferentes pontos de fixação da percepção, o praticante viaja através de um horizonte vertical pelos diferentes aspectos de uma única realidade. Segundo Taisha Abelar (7) existem “nove formas de mover o ponto de aglutinação” que podem ser praticadas separadas ou em combinação umas com as outras: Tensegridade; Recapitulação; Não-Fazeres (‘Não fazer’ significa, essencialmente, não usar itens de nosso velho inventário); Pequenos Tiranos; Técnicas de observação; o Silêncio interior; Disciplina e ações impecáveis; Sonhar; e Espreita. As nove formas estão listadas em ordem ascendente, em relação à energia necessária para se conseguir praticar adequadamente. Assim, começa-se pelos passes, pela recapitulação e pelo inventário; em seguida, consegue-se enfrentar os desafios do poder; e, finalmente, chega-se ao patamar energético que permite atual o par espreita-sonhar. Na prática, para deslocar o ponto de encaixe da percepção é preciso reunir a energia necessária através de duas práticas simultâneas e constantes: a recapitulação e os passes mágicos.
Os passes mágicos são seqüências de gestos, movimentos e respirações para intensificar a consciência, como também dinamizar e redistribuir a energia do corpo físico e ajudar a construir o segundo eu. Os passes mágicos também são conhecidos por Tensegridade - outro conceito sofisticado de Castaneda importado da arquitetura e da biomecânica, onde é sinônimo de integridade tensional, uma propriedade presente em objetos cujos componentes usam a tração e a compressão de forma combinada, de forma a proporcionar-lhes estabilidade e resistência.
A Recapitulação é um tipo especial de passe mágico que consiste em revisar a própria vida com ajuda da respiração visando resgatar a energia presa no passado. Recapitular é resgatar e desembaraçar a energia gasta com as feridas emocionais do passado, permitindo reestruturar a memória, para que possamos nos servir energia excedente para sonhar. Este processo também é chamado, principalmente nos primeiros livros do nagual, de "apagando a história pessoal".
A recapitulação enquanto prática de re-organização da memória e expansão gradativa da consciência é mais detalhada nos livros de Taisha Abelar e Victor Sanches do que nos de Castaneda. O objetivo destas práticas (de ganho e redistribuição energética) e do desenvolvimento do Duplo e da mestria no deslocamento do ponto de aglutinação da percepção (na espreita e no ensonhar) é se capacitar para saltar para o infinito e entrar na terceira atenção, sobreviver à morte física.
Ao contrário do reencarnacionismo, Castaneda afirma que a morte pode ser o fim definitivo e que a grande maioria da humanidade, após ter sido sugada por toda vida através de Predadores de Energia, está fadada a servir de alimento aos Seres Inorgânicos - demônios ou espíritos da terra e da lua que se alimentam da vida orgânica em uma escala evolutiva paralela.
Assim, pode-se dizer que o pensamento de Castaneda é duplamente contrário à visão humanista e antropocêntrica do esoterismo, que sempre viu o Ser Humano com um pequeno deus, no ápice da evolução do universo, pois postula que além, da existência de outras criaturas que não são moralmente nem superiores nem inferiores ao homem, o objetivo de deixar de ser humano para não ser alimento destes seres. Alguns indivíduos, no entanto, após perderem a forma humana e forjarem corpos sonhadores ou Duplos, sobrevivem e recebem o Presente da Águia, a possibilidade de continuar se desenvolvendo e habitar em reinos inorgânicos em outra ordem evolutiva.
Uma das conseqüências diretas desta consciência permanente com a Morte (eterna, como fim da existência) é o Caminho do Guerreiro e sua luta pela impecabilidade. Mais do que um simples código de conduta comportamental, a ética do guerreiro é uma determinada configuração energética em que o praticante, através de seu propósito inflexível alinha-se ao Intento, uma energia inteligente que pode treiná-lo e guia-lo até seu salto para o infinito.
O Guerreiro deve aprender a agir por agir, sem esperança nem desespero, a dar o melhor de si sem esperar retribuição, a crer sem crer, a viver deliberadamente através de desafios constantes, a sempre escolher o caminho de seu coração, entre outros preceitos.
Há ainda muitas várias outras práticas (o inventario de crenças, parando o diálogo interno ou o mundo) e outros conceitos (Silêncio Interior, O Brilho da Consciência, as Emanações da Águia). Não vamos detalhar todos aqui todos esses termos e etapas de desenvolvimento. Para nós, o importante é perceber que se, por um lado, há uma metafísica oculta no pragmatismo dos que se acreditam empiristas e amantes do concreto (a Iluminação é a escatologia do budismo e do Osho, a ‘regra do nagual’ é a teleologia da tradição tolteca); por outro lado, é preciso também reconhecer que há também, nos ensinamentos professados por Castaneda, uma nova sintaxe para percepção (8), ou pelo menos, uma nova forma de colocar as velhas questões.
Por exemplo, a diferença entre a projeção astral e o sonhar. Há uma única atividade cognitiva ou um estado de consciência que é interpretado por sistemas de pensamento diferentes. E do ponto de vista prático também surgem diferenças a partir dai. A primeira é que se pode sonhar acordado e a projeção geralmente acontece durante o sono. Na verdade, sonhamos o tempo todo, sendo que, na vigília, com um enquadramento sensorial. Sonhar juntos não é apenas se encontrar durante o sono, mas, sobretudo ter objetivos comuns de vida. O sonhar e a projeção astral são apenas formas diferentes de sonhar o sonho, diferentes interpretações sobre a abrangência do sonhar.
Outra diferença é que no sonhar de Castaneda há um outro eu com várias possibilidades (animais xamânicos, sonhar ser outra pessoa, se reconhecer como uma bola de energia); na projeção, há um outro corpo (o corpo astral) com o mesmo eu. Nas experiências ligadas à projeção astral há uma continuidade entre o eu da realidade ordinária e o eu projetado. O próprio termo projeção astral sugere uma continuidade, uma extensão. Já nas experiências do sonhar, há uma interrupção do eu ordinário e um tipo de consciência diferente da vida cotidiana.
Outro aspecto bastante relevante em relação aos ensinamentos de Castaneda, pelo menos em minha opinião, é o desafio de dosar autonomia radical (espreita individual) e sonhar junto. Quando várias pessoas têm um propósito comum - a transformação - a energia total é mais do que a energia individual de cada um. Esse ganho de energia propicia que cada um tenha mais energia para cumprir sua mudança do que se a tivesse intentado sozinho. A isso Castaneda chama 'massa crítica'. Por outro lado, se as pessoas se organizam em grupos e/ou em instituições, o ganho energético inicial acaba se tornando um capital coletivo e as pessoas passam a depender uma das outras, perdendo a autonomia e entrando na neurose.
Há uma passagem conhecida em que Castaneda se torna um corvo. Depois pergunta a Don Juan: “Realmente me tornei um corvo ou imaginei ter me tornado um?”. Ao que índio respondeu: “Qual a diferença?”. Como sabemos, toda objetividade é uma leitura subjetiva. Inconformado, Castaneda ainda perguntou: “E se houvesse comigo alguém do meu lado, ele me veria como corvo ou como um homem que imagina ser corvo?” E Don Juan explicou que o ponto de encaixe da percepção funciona por indução e que se alguém estivesse a seu lado provavelmente também teria seu ponto de encaixe deslocado para o mesmo ponto, e não só veria Castaneda como corvo mas também se veria como outro corvo.
Se você acredita que é um ovo luminoso, ou se o grupo de pessoas com que partilha uma forma alternativa de ver o mundo pensa isso, é possível que se vejam realmente como tal. Se partilharmos de imagens de animais xamânicos ou de outros arquétipos, é com elas que vamos nos reconhecer. Existe um pacto cognitivo que diz que somos homens. Pode-se propor um pacto alternativo dizendo que somos ovos ou bichos, mas sozinho, não tenho capacidade de dizer que sou nada. Depende-se sempre de uma energia de massa crítica para se definir como algo. Eis porque continuamos sempre e sempre acreditando apesar de não acreditarmos realmente em nada. Eis porque não conseguimos superar o sistema de crenças e sonhar um novo sonho, uma nova sintaxe.
Tentar sistematizar pensadores irracionalistas se parece com dar voltas em círculos, escrever sempre a mesma coisa sem conseguir concluir. Mas, se há alguma mensagem no ensinamento de Castaneda é que precisamos modificar nosso ponto de encaixe de percepção coletivo, temos mudar nosso sonho do planeta. Aliás, o período de ‘celebridade invisível’ e o súbito desaparecimento do nagual e do seu grupo fazem parte desta estratégia de aumentar a massa crítica em torno de suas idéias e, ao mesmo tempo, apagar sua história pessoal.
NOTAS
(1) Biografia e principais entrevistase em português: < http://www.consciencia.org/castaneda/castext.html >
(2) Na verdade, a ênfase na imanência espiritual no Ocidente (ou no anti-transcendentalismo platönico) tem uma longa lista de adeptos, com destaque para Spinoza e Nietzsche.
(3) Domigues Delgado, por exemplo, distingue a ‘toltequidade’ do penseamento casteniano < http://www.perceptica.com.mx/ >
(4) Uma das "mentiras" de Castaneda, e justamente a que mais polêmica causou, foi a história da Mulher Nagual (Carol Tiggs, na verdade era Muni Alexander, ou melhor Elizabeth Austin ou ainda Kathleen A. Pohlman), que teria desaparecido na "Segunda Atenção" durante 12 anos, de 1973 a 1985, quando ela ressurgiu. Mas, na verdade, ela estava matriculada em uma escola de acupuntura, era casada e se divorcia exatamente na mesma época. Para um balanço das contradições da cronologia biográfica de Castenda, veja: < http://jol28.vilabol.uol.com.br/cronolog.htm >
(5) Todos os livros podem ser adquiridos no link: < http://www.cleargreen.com/mirrors/portuguese/index.html >
(6) Eleger o campo de batalha, entrar em batalha apenas quando se saiba tudo o que se possa sobre o campo de luta. Eliminar todo o desnecessário. Estar disposto e pronto para entrar na última batalha, em qualquer hora e lugar. Não se apegar a si mesmo. Não temer a nada. Não se deixar levar pela corrente. Comprimir o tempo, tudo conta, cada segundo. Não desperdiçar nenhum instante. Jamais deixar ver o jogo, não se exponha.
(7) Palestra em seminário de Tensegridade, Maio de 1995. Instituto Omega. Transcrito das anotações de Rich Jennings.
(8) Sintaxe é a estrutura das palavras na frase e das frases no discurso. Nos dois casos, o termo sintaxe se refere à organização espacial da linguagem em padrões. Na lingüística contemporânea, sintaxe é o eixo analógico oposta ao repertório (ou ao léxico) na organização da linguagem. Foi daí que Castaneda tirou o termo sintaxe, dando um sentido mais abrangente ao termo: as regras do jogo da percepção. E trocando a palavra 'repertório' pela de 'inventário'.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABELAR, Taisha A Travessia das Feiticeiras. Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1995.
CASTANEDA, Carlos. Readers of Infinity: A Journal of Applied Hermeneutics - 1996 - Diários do trabalho de Castaneda com suas discípulas ainda não traduzido.
____ O Lado Ativo do Infinito (The Active Side of Infinity - 1999). Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 2000a.
_____ Roda do Tempo (The Wheel Of Time: The Shamans Of Mexico - 2000) - uma antologia de citações comentadas. Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 2000b.
DONNER, Florinda Donner: Sonhos Lúcidos. Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1993.
_______ Shabono. Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1994.
_______ A bruxa e a arte do sonhar. Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1998.
SANCHES, Victor. Os ensinamentos de Don Carlos – as aplicações práticas dos trabalhos de Carlos Castaneda. Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1997.
TORRES, Armando. Encontro com o Nagual. Tradução coletiva através da lista Ventania, 2003.
WALLACE, Amy. Aprendiz de Feiticeira – minha vida com Carlos Castaneda. São Paulo: Nova Era, 2007.
gratidao pelo texto!!
ResponderExcluirClaro e elucidativo, intento a todos!
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