sábado, 27 de fevereiro de 2010

Rudolf Steiner

AUTOBIOGRAFIA E SUBJETIVIDADE


Este texto (1) pretende discutir parâmetros e procedimentos metodológicos para organização de biografias e para o estudo histórico da subjetividade individual através da hermenêutica, a teoria geral da interpretação. Geralmente, a hermenêutica é aplicada para explicar e para compreender outras teorias científicas, obras de arte, discursos políticos; aqui, pretende-se utiliza-la para também entender não apenas o percurso das vidas humanas, mas o sentido da própria existência.

O estudo biográfico nas Ciências Social (ou a relação Indivíduo-Sociedade) tem uma longa história, tendo sido utilizado de diferentes modos em diferentes momentos (FERRAROTTI In: NÓVOA & FINGER; 1988. p. 17-34). A partir dos anos 80, a abordagem chamada de “história de vida” – em que há uma distinção entre ‘estória de vida’ (a autobiografia oral) e ‘história da vida’ (a subjetividade objetivada por documentos e pela narrativa externa do pesquisador) - ganhou destaque na pesquisa antropológica.

E, recentemente, esta técnica passou a ser aplicada a grupos sociais específicos, muitas vezes de forma autobiográfica, como os professores e alunos (BUENO, 2002). Os atores coletivos das Ciências Sociais (classes, partidos, estados, organizações, etc) são, na verdade, formados por pessoas. Aqui, no entanto, não se trata de utilizar o enfoque biográfico para re-constituir a memória histórica, mas sim de chegar ao vértice cognitivo da ação social. Nesta perspectiva, a verdadeira práxis histórica é aquela que responde criativamente às seus condicionamentos estruturais, transformando as condições que a formaram.

Afinal, “são os homens que, sem saber, fazem a própria história”. Porém, embora existam muitos cientistas sociais conscientes do peso das estruturas coletivas e do papel da práxis individual como principal fator de transformação social, a tarefa de escrever biografias sempre foi deixada aos jornalistas e escritores, que, por força do hábito, geralmente exageram no poder da personalidade biografado sobre seu contexto histórico. O mesmo pode ser dito das biografias de inspiração psicanalítica e literária. E o foco da pesquisa biográfica não pode nem minimizar nem supervalorizar a subjetividade individual em relação à dimensão coletiva.

Esta exigência de um enquadramento realista do individuo na sociedade torna-se ainda maior e mais complexa quando se trata de uma autobiografia, em que a subjetividade do sujeito pesquisador é a mesma que a do objeto pesquisado. Quando a pesquisa torna-se sujeito, verbo e objeto do discurso, quando a investigação sobre a vida se confunde com a própria vida, é preciso definir parâmetros para manter alguma objetividade.

Assim, o primeiro passo da pesquisa biográfica é contextualizar a vida individual estudada em relação aos diferentes cenários em que está inserido.

ESTRUTURA SOCIAL

FATORES
CONDICIONANTES


Cenário
geográfico

País, região, cidade, local de vida.

Cenário histórico

Século, décadas, fatos relevantes.

Cenário familiar

Pais, irmãos e parentes próximos.

Cenário educacional

Escolas, professores, amigos.

Cenário econômico

Modo de produção, classe social
Porém, de nada servem a contextualização social e histórica da vida individual se não se observa também à dimensão psicológica do estudo biográfico, tanto no que diz respeito à formação, aos conflitos e à transformação da personalidade do biografado como no que se refere a nossa própria subjetividade. Vivemos vidas parcialmente já vividas e transformadas em paradigmas e modelos. Mimetiza-se, involuntariamente, comportamentos estruturados antes de nós por semelhantes em uma situação recorrente. Neste sentido, o estudo das biografias das personalidades históricas pode nos revelar padrões inconscientes, permitindo novas opções e escolhas diferentes. Mas, além de pesquisar a biografia das personalidades, o estudo biográfico aqui proposto implica ainda em discutir um método autobiográfico voltado para o estudo compreensivo da subjetividade. Para tanto, além de uma contextualização sociológica objetiva, é preciso também compreender a contribuição da psicanálise no ao estudo de duas outras dimensões:

• Subjetividade, com destaque para a idéia de que os eventos traumáticos de uma biografia ficam recalcados no inconsciente, gerando neuroses e compulsões na Personalidade;

• Intersubjetividade, principalmente ao dispositivo dialógico de transferência e contra-transferência analítica, isto é, ao processo de projeção analógica de semelhanças e diferenças culturais entre o Pesquisador e o Biografado.

Ou seja: o discurso analítico sobre o Outro é também uma compreensão pessoal de Si mesmo. Assim o segundo passo da pesquisa biográfica aqui proposta é observar as relações da subjetividade do Pesquisador com a subjetividade do Biografado. Entre as várias técnicas dialógicas e esquemas de entrevistas para pensar a situação de transferência e contra-transferências analíticas, há um diagrama simples de organização destas relações.

 


PESQUISADOR


BIOGRAFADO


SEMELHANÇAS


Interseção


Contradição


DIFERENÇAS


Contraste


Ambientação

• Interseção: O que motiva a pesquisa? Por exemplo, somos jornalistas e nos interessamos em pesquisar a atividade jornalística de fulano de tal porque nos identificamos com ela. Aqui se delimita o universo temático da pesquisa.

• Contradição: Dentro do universo temático comum ao Pesquisador e o Biografado existem diferenças e semelhanças ‘internas’, há uma pergunta a ser respondida, um conflito a ser mediado. No exemplo da biografia do jornalista fulano de tal é necessário explicitar quais as suas características específicas e quais dificuldades e vantagens resultantes deste perfil.

• Contraste: Mas fulano de tal teve uma vida cuja identidade ultrapassa nossa projeção inicial: ele não só foi romancista, teatrólogo, professor do ponto de vista profissional, mas também amigo, pai, aluno, irmão, marido, filho, amante, cidadão e muitas outras facetas. Aqui se especifica o que fica no ‘fundo’ em relação à figura de um retrato.

• Ambientação: Seguindo a metáfora, neste ponto detalha-se o lugar que o retrato ocupa em nosso ambiente. Ou o que se aprende com a história de fulano de tal? Qual a importância desta biografia em nossa vida (na vida do pesquisador e na do seu leitor)?

No caso de estudos autobiográficos, em que o pesquisador e biografado são a mesma pessoa, pode-se utilizar o mesmo esquema, mas é necessário um interlocutor. Este interlocutor deve ter alguma experiência em escuta analítica e de forma alguma interferir ou dirigir o processo autobiográfico, se limitando a elaborar perguntas que facilitem a emergência das relações de identidade (“você quer falar em nome de sua geração?” ou “o que sente o brasileiro quando conhece o exterior?”). A conhecida tendência de só querer mostrar os momentos aspectos positivos da vida, varrendo para debaixo do tapete do inconsciente os tempos difíceis e os erros cometidos, seja por bajulação do biógrafo seja por vaidade do biografado, deve ser exorcizada por ambos desde o início do processo e é, não havendo técnica ou procedimento metodológico que garanta a ética, uma questão de consciência.

Além desta contextualização intersubjetiva do recorte que o pesquisador faz do seu objeto, a dimensão psicológica da subjetividade implica ainda no estudo biográfico do desenvolvimento da personalidade. Para elaborar mapas e procedimentos para tabulação destas informações, lançamos mão aqui de uma abordagem teórica diferente e heterodoxa: a psicologia biográfica.

A psicologia biográfica, estruturada no sistema de desenvolvimento baseado em ciclos de sete anos no desenvolvimento do ser humano em estágios de sete em sete anos, é um dos ramos da Antroposofia, elaborado pelo pensador alemão Rudof Steiner. Seu método foi detalhadamente aplicado tanto no estudo de biografias como em práticas pedagógicas e terapêuticas e tem ampla comprovação empírica. Por exemplo, com base nesses princípios de desenvolvimento biográfico organizou-se a pedagogia Waldorf (que tem escolas em todo mundo); uma metodologia de estratégias etárias para recursos humanos adotada por várias empresas e uma abordagem médica que leva em conta a etapa da vida das pessoas.

Segundo os chineses, em uma vida “há 20 anos para crescer/aprender, 20 anos para lutar e 20 anos para alcançar a sabedoria”. A psicologia biográfica subscreve esta afirmação e ainda subdivide em setênios cada uma destas três grandes fases. Na primeira fase, do nascimento até os 21 anos, observa-se a formação do corpo e da personalidade em três etapas: até os 7 anos, dos 8 aos 14 e daí a maturidade.

FASE


SETENIO


CRISE


FORMAÇÃO

0 -21


0 –7


Crise de Socialização


8 – 14


Crise de Crise de Identidade


15 – 21


Crise de Sexualidade


PLENITUDE

22 -42


21 – 28


A alma da sensação


29 – 35


A alma do intelecto


36 – 42


A alma da consciência


DECLÍNIO BIOLÓGICO

43 -63


43 – 49


Segunda crise de sexualidade


50 – 56


Segunda crise de Identidade


57 – 63


Segunda crise de
socialização


Cada uma dessas etapas de sete anos corresponde a um determinado estágio de desenvolvimento do corpo e da personalidade e a passagem de uma etapa para outra implica em uma crise e uma adaptação. Ao final do sete anos, a criança vive uma crise de socialização; aos quatorze, a crise da sexualidade; e aos vinte a crise de identidade. Da mesma forma, a psicologia biográfica subdivide a fase adulta (21-42) e fase madura (42-63) em três etapas de 7 anos cada, com crises de transição. Enquanto nos primeiros três setênios da vida o indivíduo vive um predomínio dos fatores biológicos sobre os subjetivos, ele terá também um período igual em que há um equilíbrio e um período de decadência biológica e oportunidade espiritual a partir dos 42 anos de idade. Neste último período, há um predomínio dos fatores subjetivos sobre os biológicos e as crises (ou mudanças cognitivas) são simétricas aos setênios da juventude. Dos 43 os 49, retornamos aos 14-21; dos 50 aos 56 de volta aos 7-14; e, finalmente, dos 57 aos 63, o período dos zero aos sete anos.

Vejamos agora cada um dos setênio e as perguntas correspondentes a cada etapa, desenvolvidas pela Dra. Gudrun Burkhard, no livro Tomar a Vida nas próprias mãos (2000), a grande codificadora da teoria biográfica.

De zero aos sete anos, no 1º setênio, é a fase de estruturação biológica da pessoa. A relação com os pais e com a família é fundamental nessa fase. Por isso é importante determinar como era a casa, o lar, o ambiente e as pessoas do lugar onde você morava nessa época.

“Qual era a sua relação com pai, mãe, irmãos, avós, tias? Moravam todos na mesma casa que você? Definido o ambiente humano em geral, estabeleça também as rotinas de sua vida no período. Quais eram seus brinquedos prediletos? Quais eram suas atividades preferidas?” (BURKHARD, 2000, 73-74).

Geralmente a primeira lembrança que se tem é próxima do advento das primeiras palavras. As memórias anteriores à fala são mais difíceis de acessar. A propósito, a capacidade discursiva desempenha um papel fundamental na organização da memória e a imagem que se faz de si mesmo (diante da mãe) antes de seu aparecimento da fala permanece inconsciente para o resto da vida, como um padrão de apego nos relacionamentos. Na Antroposofia, é período de construção do corpo vital ou duplo etéreo.

De 7 a 14 anos, no 2º setênio, o foco do desenvolvimento se desloca da família para escola, dos pais para os amigos. É preciso perguntar com que idade se ingressou na escola, como foi alfabetização, quais os professores e das matérias preferidas.

“Quais foram os conceitos, normas e costumes que recebeu naquela época? Como foi sua educação religiosa? E quais foram suas atividades artísticas?” (2000, 74).

Também é importante se lembrar de como eram as férias do período escolar. Se havia oportunidade de praticar algum esporte, fazer excursões, ter contato com a natureza. Os amigos passam a desempenhar um papel fundamental, principalmente, os do sexo oposto, embora nessa fase as crianças aparentem desinteresse e até mesmo aversão pelos comportamentos do outro sexo. E quando entrou na puberdade, como você lidou com as mudanças corpóreas? Como foi o primeiro beijo? E a primeira experiência sexual, como você descobriu a sexualidade.

No 3º Setênio, de 14 a 21anos, entramos na adolescência, período em que geralmente nos rebelamos contra a família e as outras instituições que regulam nossa vida. Também é importante definir se precisou trabalhar ou pode investir em sua formação profissional. Aliás, como aconteceu sua escolha profissional?

“Quais eram seus ideais? Que pessoas influenciaram você positiva ou negativamente na época? Como era seu relacionamento com seus pais? Como eram seus relacionamentos com o sexo oposto?” (2000, 74-75 ).

De 21 a 28 anos, no 4º setênio, começa a segunda parte de nossas vidas. Já não se trata mais de crescer, de aprender; agora, trata-se de lutar, de conquistar espaço. Nesse período, ao mesmo tempo em que há uma continuidade das condições do setênio anterior há também uma reflexão sobre os excessos, bem como um amadurecimento e uma consolidação da personalidade formada na adolescência, da mente desenvolvida no período escolar e do ego construído em casa. Muitos insistem (em vão) na adolescência! A grande maioria de jovens trabalhadores se pergunta se escolheu a profissão certa, se teve oportunidade de conhecer várias situações de trabalho. E com relação à vida pessoal, também existem dúvidas e inseguranças. Muitas vezes, esse é um período de novos começos, não só na vida profissional, mas também na vida pessoal.

Como escolho meus parceiros? Há algum padrão em comum nas pessoas que escolho para me relacionar? Que papeis assumi? Quais mais me pesaram? E mais: consegui uma boa relação com o mundo, com a organização de trabalho, com a família e comigo mesmo? Consegui colocar meus ideais em prática? Quais talentos e aptidões eu deixei para trás? Quais minhas reais habilidades técnicas?” (2000, 100).

De 28 a 35 anos, no 5º Setênio, a ‘crise dos talentos’ potencializa ainda mais a dúvidas sobre ser vencedor ou perdedor (uma avaliação sempre precoce, é claro) em relação aos objetivos traçados na adolescência. Espera-se que a pessoa tenha encontrado a missão de sua vida. Nesse ponto, a pessoa questiona sobre se encontrou e aceitou a questão básica de vida, seu propósito estratégico.

“Minha individualidade pode desenvolver-se bem? Pode se expressar? Eu me senti oprimido ou oprimi alguém? Encontrei meu lugar de atuação? Sentia-me valorizado? Em que sentia minha valorização?” (2000, 111).

O 6º Setênio, de 35 a 42 anos, é o ápice da biografia. Momento de equilíbrio entre o aspecto biológico e psicológico, bem como de maior capacidade física e mental. Nesse contexto, a pessoa faz um balanço de seu desempenho e de sua imagem com mais propriedade.

“Como os outros me vêem? Como vejo a mim mesmo? Que ilusões sobre mim mesmo eu tive que de desmantelar?” (2000, 120).

Com 7º setênio, de 42 a 48 anos, começa o declínio biológico e a terceira fase da vida. Agora, a pessoa deve se preparar para velhice com saúde e para o desenvolvimento de sua subjetividade e de sua sabedoria. Mudam os valores de comparação, muda a perspectiva, mudam também os objetivos de vida. Mas, nem sempre essa passagem se dá consciente e voluntariamente. A andropausa (e a menopausa, para mulheres) e a chamada crise de meia-idade, a idade do lobo, é resultante de um retorno imaginário à adolescência, o 3º setênio é simétrico ao 7º - ambos tratam da sexualidade e do aparelho reprodutor.

“O que deixei para trás em aptidões, potenciais e talentos que agora quero resgatar? Em meu trabalho, estou preocupado com sucessores? Tenho conseguido doar meus frutos maduros? A quem? Como está meu casamento? Meu relacionamento? A relação com meus filhos? Desenvolvi atividades em que haja empregado habilidades conceituais?” (2000, 133).

O 8º setênio, de 48 a 56 anos, por sua vez, consiste em um retorno ao período de aprendizado. Ele é simétrico ao 2º setênio e representa uma oportunidade para se rever os valores e os conceitos que norteiam a vida.

Consegui encontrar um novo ritmo de vida? Como está meu ritmo anual, mensal, semanal e diário? Quais são os galhos secos de minha árvore, quais têm de ser cortados para que novos brotos possam aparecer? (2000, 143).

De 56 a 63 anos, no 9º setênio, há um período de retorno a infância, ao primeiro setênio e aos mecanismos de formação do ego. A família volta a ser o foco central de desenvolvimento e de reflexão. A saúde do corpo e a morte iminente também passam a fazer parte do cotidiano da pessoa durante esse período.

O que consegui realizar? Há ainda tarefas que eu gostaria de completar, ou há outras para realizar? Como eu lido com minhas limitações? Estou cuidando do corpo, da memória, dos órgãos dos sentidos? Existem relacionamentos que não foram absorvidos, onde tenham ficado questões em aberto? Como está a questão dos meus bens? Como está a questão da aposentadoria? Tenho momentos de graça, sentimentos de gratidão e alegria? Sou capaz de perdoar? (2000, 151).

Não podemos detalhar aqui todo este sistema de desenvolvimento biográfico, que tem várias aplicações práticas e desdobramentos na própria Antroposofia. Para nós, ele é importante como parte de nossa estratégia de construção de parâmetros para elaboração de Mapas Biográficos da Subjetividade, em que se possa visualizar as crises e o desenvolvimento do biografado de 7 em 7 anos.

Então, recapitulemos: para evitar que o estudo (auto) biográfico da subjetividade caia no subjetivismo, prescrevemos inicialmente um mapa do contexto social da biografia, subdividido em cenários (histórico, familiar, geográfico, educacional, etc) com seus fatores condicionantes específicos. Esta primeira proposição corresponde a um enquadramento social objetivo, 1º nível de interpretação hermenêutica. Em seguida, para investigar a dimensão psicológica da subjetividade biografada propomos a adoção dos modelos oriundos das psicologias tipológica e biográfica, principalmente os mapas cronológicos por setênio. O objetivo deste procedimento é estabelecer parâmetros biológicos comuns, universais para todas as biografias, deixando assim ressaltadas as diferenças subjetivas no desenvolvimento da personalidade. Este procedimento corresponde ao 2º nível de interpretação hermenêutica, o simbólico.

E para estuda a intersubjetividade, 3º nível de interpretação hermenêutica, adotamos o mapa das relações dialógicas de identidade, e fizemos algumas considerações sobre o papel de interlocutor na organização de biografias. Na verdade invertemos a ordem do 2o e 3o procedimento para facilitar a apresentação das idéias, mas, na hermenêutica, ‘a ordem dos fatores não altera o produto’, uma vez que seus procedimentos servem tanto para compreender como para explicar e podem ser aplicados simultaneamente. E o quarto passo, o arquetípico e hipertextual, a que procedimento corresponde nesta metodologia de estudo da subjetividade biográfica? A Entrevista-performance e seu roteiro organizado a partir dos mapas anteriores.

Para Cremilda Medina (1986) entrevistar é mais arte que técnica. A entrevista seria um texto dialógico, um gênero literário escrito a dois, porque quando entrevistador e entrevistado entram em sinergia criativa, chegam a formulações em que seriam incapazes de elaborar sozinhos. A entrevista jornalística especificamente, ao contrário das entrevistas realizadas por sociólogos e/ou psicólogos, seria um texto escrito por três elementos, incluindo, além do entrevistador e do entrevistado, a categoria de ‘público’, a presença invisível de uma grande audiência anônima, distante e desterritorializada. Este terceiro elemento tem vários desdobramentos: ao contrário do caráter compreensivo da dialógica filosófica de Platão ou da dialógica clínica de Freud, o discurso da entrevista torna-se mais performático e espetacular; o aparecimento do ‘off’ (ou do que é dito sem a presença do público) e até de uma pré-entrevista (briefing) em que se combinam os limites da entrevista.

Cremilda diz a entrevista jornalística oscila entre o pólo compreensivo e o espetacular segundo a maior ou menor presença do público dentro da entrevista. E argumento, no entanto, desconsidera que a existência da audiência estimula e, de certa forma, dirige os interlocutores de uma entrevista-desempenho. Dependo do tipo de público, diferentes aspectos ou modos de exposição de um mesmo fato surgem no diálogo entre pesquisador e biografado, levando a diferentes resultados. Em nosso caso deve-se inicialmente fazer tudo o possível para distanciar a idéia de público nas entrevistas biográficas. Mesmo que o trabalho vise a publicação ou outra forma de exposição do material pesquisado, é interessante, em um primeiro momento, que haja uma fase de pesquisa em que a divulgação não exerça nenhuma pressão sobre a produção de dados. Para tanto, utilizam-se os mapas (do contexto social da biografia; das relações dialógicas de identidade; e de biografia por setênio) como roteiro para entrevista preliminar, sem gravador ou câmera de vídeo. E, em um segundo momento, munido destes dados, também se pode fazer entrevistas gravadas (mais performáticas e menos compreensivas) em que a presença do público seja utilizada para descobrir algum momento dramático ou fato menos evidente nas entrevistas preliminares.

Neste modelo, os acontecimentos são organizados a partir do presente por área (casas, trabalhos & estudos e/ou amigos & amores), etapas (períodos) e eventos. Assim, de posse de toda informação biográfica levantada na entrevista preliminar, o pesquisador poderá desenvolver pelo menos três entrevistas performáticas retrospectivas referentes às residências, às ocupações e às relações pessoais do biografado. No caso de gravação em vídeo, podem-se editar essas três entrevistas performáticas (as casas, a vida profissional, a acadêmica e os relacionamentos pessoais) em uma única seqüência. O mesmo pode ser feito com texto ou áudio.

E então, como interpretar a própria vida? É claro que cada vida é única, aliás, a vida é um processo de singularização individual e de multiplicidade coletiva.

Traçamos aqui parâmetros e procedimentos construídos através da auto-observação e aplicados em várias biografias, tanto diretamente com entrevistas como também indiretamente através do estudo de personalidades históricas relevantes. No entanto, não cabe aqui apresentar estes resultados preliminares, mas apenas lançar as sementes para a organização futura de várias pesquisas autobiográficas segundo estes parâmetros.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABELAR, Taisha A Travessia das Feiticeiras. Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1995.

BUENO, Delmira Oliveira O método autobiográfico e os estudos com histórias de vida de professores: a questão da subjetividade. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 11-30, 2002.

BURKHARD, Gudrun. Tomar a vida nas próprias mãos - Como trabalhar a própria biografia o conhecimento das leis gerais do desenvolvimento humano. São Paulo: Editora Antroposófica, 2000.

______ Bases Antroposóficas da Metodologia Biográfica – a biografia diurna. São Paulo: Editora Antroposófica, 2002.

LANZ, Rudolf. A Pedagogia Waldorf: Caminho para um ensino mais humano. São Paulo: Editora Antroposófica, 1990.

LIEVEGOED, Bernard. Fases da Vida – crise e desenvolvimento da individualidade. São Paulo: Editora Antroposófica, 1994.

KÜGELGEN, Helmut von. A Educação Waldorf – Aspectos da Prática Pedagógica. São Paulo: Editora Antroposófica, 1984.

NÓVOA, António; FINGER, Matthias (Orgs.) O método (auto)biográfico e a formação. Lisboa: Ministério da Saúde; Departamento dos Recursos Humanos da Saúde/Centro de Formação e Aperfeiçoamento Profissional, 1988.

NOTAS

(1) Trabalho foi apresentado no III Congresso Internacional sobre Pesquisa (Auto) biográfica, 2008, Natal. III Congresso Internacional sobre Pesquisa (Auto) biográfica. Natal : Edfurn, 2008.

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