sábado, 27 de fevereiro de 2010

Budismo

A LIBERDADE É UM DESAFIO
Quando o monge budista Bodhidharma (1) chegou à China, no século VI, foi se apresentar na corte do Imperador Wu (Ryo no Butei). O Imperador Wu levou o monge então a grande salão onde havia vários guerreiros treinando lentamente Tai-chi Chuan, levitando pesadas bolas de metal entre as mãos.

E disse: “Esses são nossos guerreiros; através do controle da energia eles podem vencer qualquer um que ataque a China”.

Depois, o Imperador foi a outro salão em que vários médicos curavam as pessoas através de técnicas de imposição das mãos nos canais de energias do corpo (Shiatzu e Do-in) e de pequenas agulhas esquentadas no fogo (acumputura e mosha). Outros faziam poções e chás, davam banhos e compressas nos doentes.

E disse: “Esses são nossos curadores; eles recuperam e revigoram a vida do povo”.

E finalmente, o Imperador Wu levou Bodhidharma a um terceiro salão, onde vários sábios estudavam o I Ching – o livro das transmutações – e faziam previsões através das rachaduras de cascos de tartaruga.

E disse: “Esses sãos nossos aprendizes dos mestres do Destino, que estudam o tempo e profetizam nosso futuro”.

Ante a falta de interesse do monge, o Imperador então colocou:

- Este é o taoísmo, o tesouro espiritual da cultura chinesa. E você, indiano, qual é o ensinamento sagrado que trouxe para nos ensinar?

- Nada sagrado, apenas um grande vazio (2) – respondeu humildemente Bodhidharma e se retirou do palácio para as montanhas Shaolin.



O Grande Vazio

Sempre me fascinou o fato das religiões se fundarem em belas idéias filosóficas: o Cristianismo se funda nos dois princípios éticos do amor ao Pai (eixo vertical e dialético) e ao próximo (eixo horizontal e dialógico); o Islã se baseia na entrega absoluta ao universal Alá e na submissão incondicional a seu profeta e mensageiro; o Budismo (ou os budismos) se baseia(m) na crença de que tudo é ilusão (maia) e que a iluminação (ou nirvana) consiste da transcendência de todo desejo pela consciência.

O Budismo é um sistema de crença que acredita que está acima dos demais sistemas de crenças. Por isso, se diz que ele não é mais uma religião e sim uma filosofia transcendental. Nas versões mais ortodoxas e antigas, a filosofia budista é um empirismo absoluto formatado pela observação e pela experiência mística. Porém, assim como o Cristianismo ou Islamismo, o Budismo tem também uma idéia/crença central: o ‘grande vazio’.

Na verdade, há vários budismos. Hoje, há três escolas principais com várias ramificações (3). Há mais antiga é a Theravada (do páli thera, "anciãos" e vada, "palavra, doutrina", "Doutrina dos Anciãos"). É predominante em: Sri Lanka, Tailândia, Mianmar, Laos, Camboja, Bangladesh, Vietnã e Malásia. E o maior no Ocidente também. Atualmente o número de budistas desta escola em todo o mundo excede 100 milhões de pessoas.

Em segundo lugar, em antiguidade e em tamanho, é o Zenbudismo. Zen é o nome japonês da tradição Ch'an, surgida na China, por volta do século II. Cultivado sobretudo na China, Japão, Vietnã e Coréia. Alguns estudiosos consideram estas escolas como uma linhagem Mahayana. Outros, no entanto, dizem que, pela ênfase ser diferente, e pelo Zen/Chan ser "descendentes" também do Taoísmo, devem ser considerados uma escola à parte.

E, finalmente, a Vajrayana é a mais recente das principais escolas budistas. O Budismo tibetano, também chamado de lamaísmo, por ser o mais numeroso nessa categoria, tem suas práticas de meditação na forma de elaborados rituais, com leitura de saddhanas (textos litúrgicos), visualizações e instrumentos musicais. Possui uma tradição nas artes, como pinturas e esculturas, e também tradição em ordens monásticas, com ênfase no relacionamento alunos e lamas. Apesar de não se organizar como uma instituição, tem sua representação maior na figura do Dalai Lama. As principais escolas são nyingma, kagyu, gelug e sakya.

Neste sentido, o Budismo tântrico tibetano (Vajrayana) é filosoficamente superior tanto ao Zen-Budismo e quanto a antiga escola Theravada porque tem uma visão fenomenológica de si, admitindo que haja um conjunto de idéias (crenças) - ou 'juízos sintéticos a priori', para usar meu Kant - que formatam a experiência da vida budista.

E quais são os juízos sintéticos a priori do Budismo?

São as Quatro Nobres Verdades (4): tudo que vivemos é sofrimento; a ignorância, o desejo e a aversão são as causas do sofrimento; acabando com a ignorância, com o desejo e com a aversão, o sofrimento também acaba; e, finalmente, para acabar com as causas do sofrimento é necessário seguir o Nobre Caminho Óctuplo (5). Enquanto as Nobres Verdades são um diagnóstico, o Nobre Caminho é o remédio.

E este, por sua vez, é formado por oito preceitos: o entendimento correto (do sofrimento e suas causas); o pensamento correto (que reflita a realidade das coisas, sem distorções subjetivas); a linguagem correta (não mentir, caluniar, distorcer os fatos ou exagerar, não ferir ou ofender, não falar inutilmente); a ação correta (não matar, não roubar, não ter má conduta sexual, comer, beber e consumir apropriadamente); o modo de vida correto (encontrar uma forma honesta de viver, um ambiente que propicie a realização dos demais preceitos); o esforço correto (redirecionar a energia, não alimentando mais desejos e aversões em nossa consciência e, em contrapartida, emanar o amor e a compaixão a todos os seres); a atenção correta (desenvolver a capacidade de focar a atenção e de se observar) e, finalmente, a concentração correta (a capacidade de permanecer profundamente absorto no aqui-e-agora por períodos de tempo cada vez mais longos).

Outra forma tradicional de apresentar a doutrina budista é dividi-la em três: a Moral (sila), a Meditação (samadhi) e a Sabedoria (prajña). Sendo que a moral corresponde aos preceitos 3, 4 e 5; a meditação aos preceitos 6, 7 e 8; e a sabedoria aos preceitos 1 e 2 do Nobre Caminho. Todos os preceitos estão inter-relacionados.

E, de todas as formas, o ponto de partida do Budismo é sempre a percepção de que o desejo causa inevitavelmente o sofrimento. Deve-se eliminar o desejo para se eliminar a dor e, assim, atingir a paz interior ou felicidade. O objetivo é o fim do ciclo de sofrimento, Samsara, despertando no praticante o entendimento da realidade última - o Nirvana. Para tanto, o praticante deve apenas evitar o mal, fazer o bem e cultivar a própria mente.

Como foi dito: para maioria das escolas budistas a doutrina budista é resultado da meditação e da observação dos que se iluminaram. Apenas as escolas mais recentes admitem que as Nobres Verdades e o Nobre Caminho são estruturas metafísicas anteriores à experiência que formatam mentalmente a observação. Há ainda muitos outros conceitos secundários, que as diferentes escolas enfatizam ou omitem.

Mas, há, sobretudo, alguns conceitos que são muito mais importantes do que a doutrina budista declarada, pois realmente caracterizam a singularidade do Budismo em relação a outros sistemas de crença.

- a Impermanência (Anicca). Todas as coisas são impermanentes. Tudo muda o tempo todo sem parar. Este é um ponto em comum entre o Budismo e a filosofia de Heraclito e do Taoísmo. “Nunca um mesmo homem se banha em um mesmo rio.” O que nos faz sofrer não é a impermanência em si, mas o nosso desejo de que as coisas sejam permanentes enquanto elas não o são.

- o Não-eu (Anatta). Nada que existe tem existência em si mesmo, separada e independente. Todos os fenômenos estão inter-relacionados. É a Unicidade. Cada coisa precisa estar ligada com todo o universo para poder existir. Não existe nada que é separado do resto, que possa existir de forma independente e definitiva. O ‘eu’ ou a alma (atma) é apenas uma ilusão.

- o Nirvana. Sidarta Gautama descreveu o Budismo como uma jangada que, após atravessar um rio, permite ao passageiro alcançar o Nirvana. Nirvana é a liberação total do sofrimento, um estado de paz inabalável e de indescritível felicidade. É um estado além de todos os conceitos. Nirvana é o estado de absoluta liberdade e de completo silêncio do coração, além de todos os conceitos. Literalmente nirvana significa “extinção”.

Para mim, a grande originalidade do Budismo em relação a outros credos está na concepção de mundo resultante desses três conceitos, que opera uma lógica inclusiva de desconstrução negativa, em que não há transcendência metafísica, comparada por Mircea Eliade ao pensamento neopositivista de Wittgeinstein (1999, 69).

Primeiro porque ele é o único sistema de crenças que acredita na idéia de Liberdade, embora seja uma liberdade completamente subjetiva – como se verá adiante.

Karma e Reencarnação

Em segundo lugar porque (ao contrário do que pensa o leigo em geral) não há, no Budismo, uma alma imortal que se reencarna sucessivamente através das vidas. Para alguns budistas contemporâneos - como Ricardo Sasaki (6) e Luís Dantas (7) - não há reencarnação e sim renascimento.

A noção de Reencarnação, idéia central do Hinduísmo reinventada pelo espiritismo e da religiosidade esotérica contemporânea, é que uma parte do Ser (consciência, espírito ou alma) é capaz de subsistir à morte do corpo e de ligar-se sucessivamente a diversos outros corpos para a consecução de um fim específico, como o auto-aperfeiçoamento moral e/ou a anulação do karma.

Já Karma ou karma (do sânscrito Karmam, e em pali, Kamma, “ação”) é um termo usado para expressar um conjunto de ações dos homens e suas conseqüências. Para o Hinduísmo, karma é a dívida que transportamos de uma vida para outra. O Budismo usa a palavra karma no sentido de “conjunto de deméritos acumulados”, mas não no sentido de transmissão de responsabilidade de almas entre organismos diferentes; preferindo falar de renascimento à reencarnação, pois não aceita a idéia de um ‘eu’ permanente que passe de uma vida a outra (8).

A reencarnação e o karma são crenças fundamentais do espiritismo kardecista e de vários outros tipos esoterismos modernos (teosofia, rosacruz, etc), porém dentro de um quadro de referências culturais bem diferentes: o tempo histórico (e as noções de progresso material e evolução espiritual); o paradigma pseudo-científico, cartesiano e mecanicista, em que os eventos são determinados como “uma lei de causa e efeito”; e, sobretudo, o contexto cultural pós-moderno, ao mesmo tempo, desencantado e supersticioso.

Já no Hinduísmo e em outras tradições, o tempo não é contínuo, progressivo e histórico; e sim simultâneo, complexo e circular, com breves ciclos de duração dentro de ciclos mais longos e até infinitos; e não há ênfase na causalidade na vida individual, mas sim nos acontecimentos coletivos. Os karmas eram grupais e a reencarnação estava inserida em um contexto de retorno dos ancestrais e também das divindades.

Ou seja: há uma grande diferença entre as crenças modernas e antigas de reencarnação e karma diferença entre as concepções de tempo histórico e mítico nas culturas tradicionais e moderna. E para universalizar o valor de suas crenças, os esotéricos atuais tendem a vê-las em todos os lugares e épocas - até aonde eles efetivamente não existem (9).

Há ainda, atualmente, vários cientistas adeptos da idéia da reencarnação como fenômeno objetivo e “não como uma crença religiosa” (10). A ciência, no entanto, também é um sistema de crença empirista (como o Budismo, o espiritismo kardecista e até vários o xamanismos) ‘acredita’ ter sido forjado apenas a partir da experiência pura, ignorando que a experiência é pré-enquadrada em um quadro de referências interpretativas. Então, não adianta tentar convencer o budista, o cientista ou o espírita que as coisas não são como eles pensam, pois eles geralmente sustentam suas opiniões em experiências práticas vividas (e interpretadas pela tradição que sustentam). E embora ‘os fatos’ pareçam ter um valor universal, muitas vezes as diferenças de contexto dão significados bem distintos aos acontecimentos semelhantes.

Não bastasse essa grande diferença cultural entre o passado e o presente (sobretudo a idéia de karma posta de forma mais probabilística que determinística), há também diferentes compreensões do termo entre as religiões tradicionais, que influenciaram a concepção reencarnacionista moderna de forma desigual. O Budismo compreende o karma como uma dívida (como uma contabilidade moral de méritos e deméritos durante a vida) a ser saldada, passivamente, por ações meritórias e pela não-reação à violência; enquanto o Hinduísmo tem no Karma Yoga um sistema voltado para ação. No Bhagavadgita, Krishna instrui Arjuna como guerrear sem adquirir karma – como se verá adiante.

A crença na Liberdade

Trata-se aqui da crença na Liberdade. E não do conceito de Liberdade, tarefa legítima da filosofia analítica (11), ou do mito da Liberdade, como querem os que não acreditam nela (12). Na perspectiva de uma arqueologia dos credos, a crença da liberdade é, universalmente, oposta às outras crenças. Porém, enquanto alguns enfatizam a liberdade como um desemaranhar do karma; outros (como o pensador esotérico brasileiro Trigueirinho, por exemplo) afirmam que o livre-arbítrio é típico de seres espiritualmente atrasados como o homem, ou seja: se fossemos inteiramente crédulos e não duvidássemos, seríamos mais sábios.

Também em inúmeras lendas e mitos, a liberdade aparece como um castigo ou como resultado de uma desobediência da humanidade em relação aos deuses. Em algumas narrativas, a liberdade é dada ao Homem por outros seres, como no mito de Prometeu, em que o fogo dos deuses é roubado para que o homem conquiste a própria liberdade; em outras, é a consciência que, mascarada por diferentes símbolos, é engendrada por conflitos entre deuses, ou seres de outra ordem evolutiva, em que alguns são favoráveis e outros contrários ao desenvolvimento da humanidade.

Entre todos os credos tradicionais, no entanto, apenas o Budismo apresenta a Liberdade como objetivo espiritual a ser alcançado – o que influenciou bastante não apenas a espiritualidade atual, mas também a filosofia contemporânea, que se comporta com se fosse a sua proprietária exclusiva.

Mas, de que liberdade estamos falando?

Como é falastrão e dá opiniões muito subjetivas e contraditórias sobre diferentes temas, há uma imagem muito negativa de Osho (Bhagwan Shree Rajneesh) nos meios acadêmicos. A verdade, no entanto, é que ele em muitos momentos é um pensador sofisticado, inclusive re-pensando o Budismo por dentro. Osho reinventa o Budismo sem negá-lo, procedendo a uma re-interpretação de vários importantes conceitos budistas: a felicidade, a compaixão e a aceitação – como demonstra adiante, a partir da página 67.

Em relação ao tema filosófico da Liberdade, que é o que nos interessa agora, Osho faz uma interessante releitura do Assim falou Zaratrusta de Nietzsche: o camelo (a ‘liberdade para’ fazermos algo), o leão (a ‘liberdade de’ fazer o que quiser) e a criança (a liberdade do silêncio ou intransitiva). Ou ainda: a liberdade política e objetiva, isto é: a ‘liberdade do não’ da autonomia de decidir o que ser e fazer e não o que os outros querem; a liberdade psicológica e subjetiva, ou seja: a ‘liberdade do sim’ da aceitação da vida; e, finalmente, a liberdade espiritual da criatividade. Para Osho, são esses diferentes tipos de liberdade que temos durante a vida, segundo o grau de maturidade e de compreensão espiritual.

1. Em um primeiro estágio da luta pela liberdade, lutamos contra as regras e contra a autoridade. É a liberdade do não. Mas, de nada adianta a ‘liberdade para’ (cantar, por exemplo) senão temos a liberdade de (a capacidade de cantar, a alegria de cantar).

2. Então, o segundo estágio de luta pela liberdade é contra o próprio condicionamento que absorvemos, é o aperfeiçoamento interior para se conseguir usufruir da liberdade exterior. É a liberdade do sim.

3. Em seguida, chega-se ao terceiro estágio da luta pela liberdade, que consiste em libertar os outros através do exercício criativo da própria liberdade (quando, cantando, mudamos sentimentos e situações). É a liberdade do talvez.

Osho observa ainda que apenas recentemente uma pequena parte da humanidade passou a conhecer a liberdade política plena, isto é: viver sem ser escravizado para sobreviver (incluindo aí o trabalho assalariado).

É claro que a crença na Liberdade é uma só, mas a distinção de três dimensões ou profundidades também é muito útil para contextualizar seus diferentes adeptos. Como a liberdade também tem uma dimensão individual e outra coletiva, pode-se utilizar a metodologia dos quadrantes proposta por Ken Wilber (2007) para obter um quadro de referências ainda mais amplo.


 


SUJETIVO


OBJETIVO


INDIVIDUAL


Liberdade Psicológica


Liberdade Política


COLETIVO


Liberdade Cultural


Liberdade Biológica


 
4º quadrante (coletivo/objetivo) - Em uma perspectiva sistêmica, estritamente objetiva, a Liberdade coletiva é a capacidade de autodeterminação da espécie, representando o mínimo de dependência do sistema (ou meio ambiente) e de seus outros elementos (outras espécies). Se uma organização tem um único fornecedor (entrada) ou um único cliente (saída) ficará dependendo dele. E quanto mais diversificar seus insumos e produtos, mais autonomia ela terá em relação às oscilações ambientais e à interferência de outros agentes.

A Liberdade é assim, nas palavras da biologia da complexidade (Umberto Maturana), Autopoesis, ou a capacidade de produzir a si próprio, criativamente, e de centralizar trocas com um número extenso de parceiros diversificados.

3º Quadrante (coletivo/subjetivo) - Essa liberdade da espécie frente ao meio ambiente, no entanto, é mais desfrutada por alguns indivíduos do que outros por razões de ordem cultural. E a verdadeira liberdade interpessoal não reside nem no desregramento pela vontade (“fazer tudo que quiser: é a única lei” – Alesteir Crowley) nem em sua limitação ontológica pela alteridade (“sua liberdade termina onde a do outro começa”), mas na sua habilidade de perceber a realidade e de sua capacidade de re-interpretar o mundo.

Teoricamente para que se considere uma cultura democrática é preciso que seus membros desempenhem papéis reversíveis do processo decisório coletivo (isto é: que não apenas mandem ou obedeçam) e que as regras sejam flexíveis frentes às necessidades. Na prática, no entanto, não se trata de regras ou de papéis e sim da capacidade de se colocar no lugar do outro, simulando/antecipando reações e agindo de modo consensual. A liberdade interpessoal é agir sem imposição ou oposição.

Nesse quadrante em especial, a liberdade é uma crença. E ela sempre anda de mãos dadas com as crenças culturais na objetividade (e da perspectiva de um observador onisciente) e na história (e do tempo contínuo que acumula informação). E como já foi dito, a liberdade é uma crença oposta à maioria dos sistemas de crenças religiosas tradicionais e, por isso mesmo, desempenha também um papel especial em relação aos sistemas de idéias filosóficas e de organização política das sociedades ocidentais. O que nos leva ao próximo quadrante.

2º Quadrante (individual/objetivo) – Pode-se entender a objetividade da liberdade individual de duas formas: a filosófica e a jurídica. A primeira nos remete às três idéias da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade) e estruturam a modernidade e seu funcionamento ideológico e institucional. Como princípio filosófico abstrato a liberdade individual (oposta à igualdade e temperada pela fraternidade) passou a ser um dos valores democráticos fundamentais nas sociedades atuais.

Já a liberdade jurídica, concretização deste principio, tem segundo o filósofo político Norberto Bobbio duas versões distintas: a liberdade liberal (ou a não-restritiva) e a liberdade democrática (ou auto-organização). Para concepção liberal, a liberdade “é a faculdade de cumprir ou não certas ações sem impedimentos”; e, para concepção democrática, ela é “o poder de não obedecer a outras normas que não as que se propõem”. Montesquieu será o grande defensor da liberdade liberal: “liberdade é o direito de fazer tudo aquilo que as leis permitem” (Espírito das Leis, Cap. II, livro XII). Rousseau, por sua vez, é o advogado da liberdade democrática: “A obediência à lei que nos mesmos prescrevemos, é liberdade” (Contrato Social, Cap. VIII, livro I).

Tanto a liberdade política filosófica, quanto a que se constitui como direito individual, são conquistas históricas que formalizam e garantem a liberdade existencial de fato.

O que inclui também sua dimensão psicológica.

1º Quadrante (individual/subjetivo) – Quando se fala de liberdade individual subjetiva não trata apenas das escolhas individuais, e sim de como cada individuo enfrentar seu destino, lutando para construir alternativas de vida.

Por exemplo: a feminista que defende o aborto porque crê que a liberdade pessoal da mulher está acima do Direito à vida. Aliás, os chamados ‘crimes contra a vida’ (o aborto, o suicídio, a eutanásia), considerados pela Igreja Católica como pecados imperdoáveis (13) são excelentes exemplos das fronteiras entre a liberdade política e a pessoal: a morte.

A liberdade política vive à sombra das ameaças do Poder, já a liberdade pessoal morre pelo seu desafio, ou melhor, faz da morte uma importante aliada no seu aperfeiçoamento ético. A ‘liberdade para’, objetiva, é uma concessão provisória; a ‘liberdade de’, subjetiva, é uma conquista permanente.

Este talvez seja o verdadeiro sentido dos versos do grande poeta português: “navegar é preciso, viver não é preciso”. Não se trata tão somente de diminuir a importância das necessidades da vida em função da liberdade da viagem, mas sim de aceitar a imprecisão da vida (viver não é preciso, é incerto) diante da precisão exigida pela crença na Liberdade, entendida agora como um exercício de autodisciplina diante do destino ou ‘responsabilidade’.

É a porta de entrada na liberdade espiritual. Mas também pode descambar para o individualismo e tem seus exageros: a libertinagem perversa do Marques de Sade, o existencialismo melancólico e egocêntrico de Jean Paul Sartre e o pensamento neoliberal da Haydke. Nesses casos, a liberdade não se sobrepõe à vida, mas sim ao Outro, visto como uma limitação estrutural.

A liberdade é um paradoxo: dever (obrigação) e direito (permissão), um presente roubado dos deuses e um desafio de desenvolvimento, consciência e sonho.

Moral budista e ética guerreira

O Bhagavadgita, a sublime canção, foi introduzido nos Vedas no século II d.C. (ELIADE, 1999, 178). O nascimento de Sidarta Gautama foi entre 600 e 400 aC. É possível que o Gita seja uma resposta do Hinduísmo à doutrina budista do karma, vista como uma dívida a ser paga através da ‘não-reação’. O Gítã é a conclusão de uma grande epopéia mítica, o Mahabarata ou o combate dos irmãos Pandavas com seus primos, os kauravas, pelo reino de Bharata. Enganados no jogo de dados, os Pandavas são exilados, passando dez anos vagando pelos reinos mágicos da Índia. Quando voltam para casa, são impedidos de entrar pelos primos e anuncia-se uma grande batalha. O Gítã narra o momento que antecede a luta, em que Arjuna se recusa a combater, para não matar seus antigos mestres e amigos e assim aumentar seu karma. Então surge Krisna e diz que se Arjuna não cumprir seu destino e derrotar o inimigo, o mundo estará entregue a maldade.

Krisna instrui a Arjuna nas três modalidades de ioga: Jnana para mente, Bhakti devocional, e a karma ioga, ou a arte da ação guerreira sem adquirir karma. Não é a ação em si que gera o karma, mas o sentimento agregado a ela. Assim, para o Hinduísmo, o karma é a ação e não o resultado de sua reação, como no Budismo. Aliás, essa é a idéia essencial no Hinduísmo: a instrução de Karma Ioga (ioga da ação) que Krisna ensina ao guerreiro Arjuna no Bhagavad-Gítã (14).

Para entender as diferenças entre as concepções religiosas é preciso comparar seus propósitos específicos. O objetivo teleológico coletivo dos judeus e dos cristãos é o retorno do messias e o advento da cidade santa no fim dos tempos. O propósito do espírita é a evolução espiritual através de sucessivas reencarnações. E a meta do budista é a iluminação ou a libertação do desejo e do sofrimento. Os credos antigos tinham objetivos coletivos; os modernos, metas individuais. Porém, sempre é o propósito espiritual que dá sentido a todas as práticas e à filosofia das religiões. E o mínimo que se pode dizer do Budismo é que ele tem um foco mais ‘preciso’ que as outras religiões.

Por outro lado, o fato desse foco estar centrado na vida interior, aliena o praticante de sua vida social. O nirvana substitui a utopia social, isto é, o ideal de construção de uma sociedade justa e a favor do desenvolvimento equilibrado.

Na doutrina budista não há espaço para transcendência, imagens ou idéias permanentes. Não existe nada de valor além deste mundo (arquétipos, espíritos ou dimensões) e a realidade é apenas uma descrição feita pela mente. E essa ênfase na imanência espiritual (um anti-platonismo radical e a ausência de um telos coletivo transcendental) é a principal característica do Budismo, influência com uma longa lista de adeptos, com destaque para os filósofos Spinoza e Schopenhauer, e mais recentemente, para os autores esotéricos contemporâneos, como Krisnahmurti, Gurjieff, Osho, e Castaneda – que enfatizam mais o descondicionamento da consciência cotidiana do que à adesão aos sistemas de crenças tradicionais.

Também em relação à reencarnação (considero que) o Budismo está parcialmente correto. A cada vida somos um conjunto de seres que se dispersam após a morte. Apenas os que conseguem realmente evoluir espiritualmente conquistam alguma unicidade a partir dos seus Eus Superiores. Essa posição é explicitamente defendida por vários autores atuais, que simplesmente se percebem com um conglomerado de eu’s que lutam para se unificar, enfatizam a identificação progressiva com o Eu Superior (e da depuração do karma dos diversos agregados psíquicos). Nessas concepções, o conceito de karma é compreendido de forma semelhante ao conceito budista: o destino já está determinado, mas temos plena liberdade de decidir como vamos realizá-lo.

Por exemplo: estamos predestinados a um casamento ou a um acidente, mas a forma como vamos enfrentar esses eventos é de nossa inteira responsabilidade. Há, nos autores modernos, uma dialética entre karma (ou as causas do destino) e livre-arbítrio (ou o modo de vida), expressa na equação: Porque = karma; como = Liberdade.

O karma, assim visto, é uma espécie de inércia, uma tendência do vivente repetir as atitudes do passado diante de situações análogas às que já viveu. Esse processo de repetição aprisiona o homem, moldando um padrão e um destino provável, pois suas ações têm sempre a mesma inflexão e resultados semelhantes. É uma tendência recorrente, uma repetição constante de situações e tipos de pessoas, um mesmo padrão de ocorrência reincidente. Assim, “não há coincidências” e “o acaso não existe”. Assim, o destino é condicionado pelo passado/presente (ou determinado pelo conjunto de condições inerciais) e segue a lógica resultante de suas ações anteriores: “colhemos o que plantamos”.

Bem vistas esses aspectos marcantes positivos (a perspectiva e o foco imanente no auto desenvolvimento, a concepção não determinista de karma e de reencarnação, etc); então, quais os aspectos negativos do Budismo?

Bom, disse no começo que o Budismo é um sistema de crença que acredita que está acima dos demais sistemas de crenças. Ou seja: ele é uma concepção de mundo elitista, que se considera superior às outras concepções de mundo.

Por isso, ele é particularmente adotado pelas elites que não se identificam com suas tradições culturais. E isto não é vale só para as elites atuais de países periféricos em um mundo globalizado (como aqui no Brasil), mas também historicamente para China, o Japão e o sul da Ásia. O Budismo só não cresceu na Índia.

Um breve estudo da história do Budismo mostrará que ele floresce primeiro nas elites (embora, em um segundo momento, desenvolva ‘versões populares’ (15) como também mimetiza formas híbridas com outras religiosidades) através de um distanciamento das culturas locais, com um forte apelo para o individualismo. É como alguém disse: “um credo de ex-intelectuais irracionalistas”.

Sendo um sistema de crenças que não se reconhece enquanto tal, o Budismo apresenta várias incoerências e ambigüidades – em suas diferentes versões. Por exemplo, enquanto as versões mais refinadas afirmam ‘nada existe a ser feito ou realizado’, a ausência de objetivos é o que permite viver o momento e ser felizes aqui e agora; para outras (para maioria), o nirvana é o principal objetivo individual.

Some-se a isso que, no Budismo, a verdade é sempre subjetiva e relativa. Tradicionalmente é dito que o Buda, “em sua infinita compaixão”, ensinou 84.000 ensinamentos, adaptados a cada tipo de seres existentes. O que dá margem a englobar tudo e esconder bem as próprias contradições. Por exemplo: o Budismo não acredita na existência de Deus (ou de deuses), mas muitas versões populares transformam o(s) Buda(s) em uma entidade(s) semelhante(s). Os rituais tibetanos da Tara Vermelha e dos Cinco Budas – bastante conhecidos hoje no ocidente - utilizam-se de expedientes mágicos, associando visualizações, mantras, incensos, oferendas – da forma semelhante a outros cultos mágicos e devocionais - como o candomblé ou a cabala.

O elitismo cultural e a incoerência inclusiva, no entanto, não são o que há de mais nocivo. O mais grave é a conhecida confusão que se faz em torno da noção de Paz. O Budismo não consegue diferenciar aceitação da vida de conformismo social. A idéia budista de paz associa um estado de consciência de transe profundo a uma atitude política de não-reação à violência. E isto tem um apelo especial para a juventude ocidental, pois dá um sentido político à meditação e um sentido espiritual à vida política.

Talvez por isso, que no Kashimir, no Tibet e na Birmânia, o Budismo não consiga de defender contra as agressões de que é vítima, enquanto outras formas de espiritualidade encaram a violência colonial como desafio de desenvolvimento. Falta ao Budismo o sentido de aventura da vida. Mais que isso: mudar a si mesmo não modifica imediatamente o mundo em que se vive e o projeto coletivo de extinção do mal através da renúncia aos sentidos é uma estratégia autista. E é preciso se comportar de um modo diferente do que o Budismo em relação às tiranias do mundo.

Diante de filosofias guerreiras, afirmativas da vida, como a de Nietzsche, o Budismo é “uma religão que aspira ao Nada” (2002, 54). Mais realista que o Cristianismo, é verdade, mas igualmente decadente e submissa às injustiças, à mentira estrutural da representação social, e à ‘crueldade do mundo’.

A capacidade de superar-se a si mesmo (e de transformar o mundo) - a vontade de potência, para usar as palavras do filósofo alemão - só se desenvolve através de desafios e de seus riscos. Espreitar a violência do mundo e a própria morte de modo a aprender com elas e se desenvolver ao máximo – eis em que a espiritualidade guerreira se distingue radicalmente do Budismo em suas diferentes e contraditórias versões.

NOTAS

(1) Bodhidharma (em japonês: Daruma ou Bodaidaruma) é o mestre indiano que levou o Budismo à China. É o primeiro patriarca do Budismo Zen e o 28º na linhagem do Budismo Indiano iniciada por Buda Shakyamuni (Sidarta Gotama). É ainda o introdutor do kung-fu nos templos Shaolin e o criador da cerimônia do chá.


(2) Em outras traduções: “Nada sagrado: espaços abertos”. Esse texto é uma livre adaptação minha do koan 29 do Denkoroku, Registro da Transmissão da Luz, de Keizan Jokin Zenji, reproduzido pelo site http://www.dharmanet.com.br/.

(3) Para uma visão panorâmica das escolas budistas, v.: A que escola pertenço? - um guia para quem está se interessando pelo Buddhismo de Ricardo Sasaki. < http://nalanda.org.br/pdf/aqep.pdf  >

(4) Dhammacakkapavattana Sutta (Samyutta Nikaya LVI.11)

(5) Magga-vibhanga Sutta (Samyutta Nikaya XLV.8)

(6) Segundo Sasaki, no ensinamento budista, há um ciclo de mortes e renascimentos para os seres vivos, mas não de reencarnações. O renascimento descrito pelo Budismo é em vez disso uma herança de agregados impermanentes, não de uma verdadeira identidade permanente. “Note-se que o conceito do não-eu (anatta) não significa que o indivíduo seja inexistente e sim que se deve renunciar ao apego, àquilo que psicologicamente se considera como “eu” e “meu”. Segundo o texto Anatta-lakkhana Sutta (SN 44.10), devemos nos desapegar dos agregados com os quais nos identificamos porque, sendo esses impermanentes, o apego nos leva à insatisfação (Dukkha).” < http://www.nalanda.org.br/sala/reenvibu.php >

(7) Já Dantas : (...) “na reencarnação ocorre sempre com a rigorosa transferência de méritos de um indivíduo específico para outro único indivíduo exclusivamente. Essa crença não pode ser considerada budista.” < http://www.dantas.com/budismo/reencarnacao.htm >

(8) Além disso, o Budismo incorpora a possibilidade de involução e de ‘voltar como’ plantas e/ou animais da metempsicose grega’.

(9) Diversos estudiosos defendem que a reencarnação era admitida pelo cristianismo, tendo sido proscrita pelo Segundo Concílio de Constantinopla, em 553 d.C.. É preciso dizer que essa informação é absolutamente falsa, nunca houve nenhuma menção à reencarnação no referido concílio e não há nenhuma prova da adesão do cristianismo primitivo às teses espíritas.

(10) Destaca-se o trabalho do Dr. Ian Stevenson, da Universidade de Virgínia, EUA, que recolheu dados sobre mais de 2.000 casos em todo o mundo que evidenciam a reencarnação.

(11) COSTA, C. F. Livre-arbítrio para compatibilistas < http://www.filosofia.cchla.ufrn.br/claudio/ >.

(12) SKINNER, B. F. O mito da liberdade. São Paulo: Summus, 1972.

(13) Interpretação atual para passagem evangélica em que Jesus afirma que não há perdão para os pecados cometidos contra o Espírito Santo. Mateus, 12, ver. 31,32; Marcos, 3, 28ss; Lucas 12, 10)

(14) O que levou a alguns comentadores ocidentais do texto a interpretar este diálogo como a relação pedagógica entre o Eu Superior e o Ego (Huberto Rohden, por exemplo). A tradição hinduísta, que considera Arjuna e Krisna como personagens históricos reais, desautoriza esta leitura de Nova Era.

(15) Como as escolas devocionais da Terra Pura (Jodo Shu) e Verdadeira Terra Pura (Jodo Shinshu), trazida para o Brasil pelos imigrantes japoneses.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ELIADE, M.; COULIANO, I. P. O Dicionário das Religiões. Tradução; Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

OSHO Liberdade – a coragem de ser você mesmo. Tradução Denise de C. Rocha Delela. Dicas para uma nova maneira de viver. São Paulo: Cultrix, 2006d.

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