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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Kambô, O Espírito do Pajé


“O kambô circula no coração. Nosso pajé disse que quando tomamos kambô, ele faz o coração se movimentar da maneira correta, fazendo com que as coisas fluam, trazendo coisas boas para a pessoa. É como se houvesse uma nuvem sobre a pessoa, impedindo as coisas boas de chegar, então, quando ela toma o kambô, vem uma ‘luz verde’ que abre seus caminhos, facilitando as coisas" [1]

Conta uma lenda Kaxinawá que os índios da aldeia estavam muito doentes e de tudo havia feito o Pajé Kampu para curá-los. Todas as ervas medicinais que conhecia foram usadas, mas nenhuma livrara seu povo da agonia. Kampu então se entrou na floresta e, sobre o efeito da Ayahuasca, recebeu a visita do grande Deus. Este trazia nas mãos uma rã, da qual tirou uma secreção esbranquiçada, cuja aplicação nos enfermos ensinou como deveria ser feita. Voltando à tribo e seguindo as orientações que havia recebido, o Pajé Kampu pode curar seus irmãos índios. Depois, com sua morte, o espírito do Kampu passou a habitar no sapo e os índios passaram a utilizar a sua secreção para se manter ativos e saudáveis[2].

A rã verde - Phyllomedusa bicolor, apelidada de sapo Kambô [3], é a maior espécie do gênero da família Hylidae, encontrada no sul da Amazônia e em todo o território do Acre, podendo ser encontrado também em quase todos os países amazônicos. Por extensão, também se chama de Kambô a resina retirada desse sapo e à sua aplicação medicinal: “Vamos tomar Kambô”.

Esta resina contém substâncias peptídeas analgésicas (a dermorfina[4] e a deltorfina[5]) e de fortalecimento do sistema imunológico que provocam a destruição de microorganismos patogênicos. As substâncias da secreção do sapo também possuem propriedades antibióticas, de fortalecimento do sistema imunológico através da produção de anticorpos pelo organismo contra o veneno, e ainda revelaram grande poder no tratamento do mal de Parkinson, AIDS, câncer, depressão e outras doenças. A Deltorfina e Dermorfina hoje estão sendo produzidos de forma sintética pelos laboratórios farmacêuticos. [6]

Há também, devido ao seu efeito purgante, um evidente processo de desintoxicação do fígado (geralmente vomita-se bílis amarga), do intestino (através de evacuações) e do todo sistema digestivo. Os katukina usam-no também como antídoto em caso de picada de cobra, medicamento para males diversos, fortificante e purgatório.

Mas, para os índios, a principal causa de tomar Kambô é combater a ‘panema’. A panema é a tristeza, a falta de sorte, a irritação: “o baixo astral” – como alguém certa vez bem traduziu. A pessoa está com “panema” quando nada dá certo e nada está bom. A finalidade básica do kambo é "tirar a panema" para atrair a caça e as mulheres. E esse, por mais difícil que seja aceitar para o pensamento ocidental, é o principal efeito do Kambô: ele estabelece um ‘choque de gestão’ espiritual na vida das pessoas, “um realinhamento dos chackras”, um marco de reorganização orgânica e psicológica a partir do qual a pessoa muda de atitude e altera seus padrões futuros de saúde.

Das 53 etnias indígenas brasileiras de lá que usavam a vacina, hoje existem apenas 13. Três delas grandes, com reservas na região do Alto Juruá: os Kaxinawás, os Ashaninkas e os Katukinas. Existem variações nos rituais e nomes dados ao sapo verde. Os Katukinas, no entanto, tem maior afinidade com o Kambô, tomando seu veneno mais vezes que as outras etnias e têm sua identidade marcada diretamente por essa prática[7].

A terapeuta floral e acupunturista Sonia Maria Valença Menezes[8] é a grande responsável pela divulgação dos procedimentos Katukina com o Kambô, mantendo um escritório em São Paulo em conjunto com a tribo – para ministrar aplicações – e promovendo viagens terapêuticas para a reserva no Alto Juruá.

Há alguns anos surgiu também um uso caboclo do Kambô. Seringueiros acreanos aprenderam estes conhecimentos com os índios e começaram a aplicar kambô em brancos, nas cidades de Cruzeiro do Sul e Rio Branco. O principal deles foi Francisco Gomes (ou Shiban) de Cruzeiro do Sul, que conviveu anos com os índios da região e aprendeu a arte do Kambô. Genildo Gomes, filho de Francisco Gomes, continuou seu trabalho de difusão do Kambô e criou, em 2002, a Associação Juruaense de Recursos Extrativistas e Medicina Alternativa, AJUREMA, principal centro de irradiação do Kambô.

Embora difícil de achar (confunde-se com as folhas), os sapos Kambôs podem ser encontrados nas proximidades dos igarapés, quando cantam anunciando chuva. Os índios geralmente os ‘colhem’ ao amanhecer, também cantando. Em algumas tradições, apenas o pajé ‘colhe’ o sapo; em outras todos os que ouvem seu chamado à noite. Os sapos são extremamente venenosos e não reagem à captura. Nem se mexem, como se não tivessem predadores. Aparentemente, são intragáveis - as cobras, espécimes quase sempre cegos, que se orientam pelo calor das presas, os cospem, desesperadas, quando os abocanham. A técnica de extração do veneno é tão antiga quanto simples. Amarra-se o bicho pelos pés, em forma de "X" e cospe-se nele três a quatro vezes, para irritá-lo. Liberada a secreção, basta raspá-la com um pedaço de pau. A secreção (parece espuma) cristaliza-se rapidamente, podendo ser utilizada a qualquer hora.

Não há segredo na aplicação do kambô: com um pedaço de cipó em brasa, queima-se p braço várias vezes, abrindo pequenos furos na epiderme (chamados de pontos). A aplicação da resina diluída em água é realizada sobre a pele e transportada rapidamente para todo o corpo pelos vasos linfáticos. A quantidade de pontos (geralmente em número impar) pelos quais o veneno será introduzido em seguida (com uma espátula de madeira) depende da estatura física, do número de vezes que já tenha utilizado o kambô, do motivo da aplicação e da avaliação do aplicador, baseada nos seus conhecimentos.

Há diferentes filosofias entre os aplicadores, principalmente entre os katukinas e os caboclos que o utilizam nas cidades. Para os caboclos, há contra-indicação no caso de mulheres grávidas, lactantes e no ciclo menstrual, já que pode causar hemorragias, devido à dilatação dos vasos sangüíneos, assim como em crianças menores de dez anos e os idosos com problemas cardíacos e de pressão alta. Para os Katukinas, não há essas restrições e as crianças começam a tomar kambô a partir dos dois anos, quando acaba o período de amamentação. Os Katukinas tomam até 100 pontos em uma única aplicação e se aplicam em diferentes épocas do ano, durante toda a vida.

No uso caboclo, o tratamento básico é de três doses, em intervalos de tempo que variam segundo o nível de desenvolvimento da pessoa com o kambô. O primeiro tratamento é de três meses, são três doses crescentes (por exemplo: 5, 7 e 9 pontos) de 28 em 28 dias, de preferência das luas nova e minguante. Em seguida, após pelos menos seis meses da última aplicação do primeiro tratamento, pode-se fazer um segundo, agora de 15 em 15 dias, com doses crescentes menores (por exemplo: 3, 5 e 7). Também se fazem tratamentos de 7 dias (todas as luas menos a cheia) e de 3 dias seguidos, combinadas com mudanças alimentares (dieta sem sólidos e sem sal) e o uso da ayahuasca. O importante é que o intervalo máximo entre duas aplicações é uma lua, 28 dias. “Se passa mais tempo que isso entre uma dose e outra, o kambô vai ter que trabalhar tudo que havia trabalhado antes novamente”.[9]

De acordo com Davi de Paula Nunes, filho de seringueiro e um dos principais terapeutas amazônicos, não há qualquer obrigatoriedade em tomar em três vezes consecutivas e alerta: “O Kambô é uma vacina e como tal não deve ser usada em baixa dosagem de forma seguida para que o corpo não se acostume às substâncias e perca seu efeito”. Os homens geralmente aplicam nos braços ou no peito. Se for mulher, a aplicação dos pontos é na perna. No caso, dos Katukinas, na parte de frente da perna. Os caboclos costumam, por motivos estéticos, aplicar na batata da perna. Para os índios, a marca dos pontos na pele é motivo de orgulho e não deve ser escondida ou colocada na parte detrás do corpo. Outra diferença interessante: tanto os Katukinas como os caboclos pedem que se faça uma dieta de sólidos e de sal de pelo menos 12 horas. Mas, enquanto os índios ingerem uma grande quantidade (3 a 5 litros) de caiçuma de milho durante a noite, antes de tomar kambô; os caboclos prescrevem apenas 2 litros de água pura poucos minutos antes da aplicação.

A reação da vacina dura cinco minutos. Nesse tempo, o coração dispara, o sangue corre acelerado nas veias, a pressão cai ou sobe muito, a pessoa fica tonta ou nauseada. Algumas pessoas vêem tudo branco, como se o mundo estivesse coberto por uma névoa difusa, ou caem no chão, sem forças. Há também relatos de sensação de correntes elétricas epidérmicas formigando pelo corpo. Muitos usuários incham, ficando com a aparência semelhante a um sapo. Então, de repente, o organismo reage ao mal-estar e põe tudo para fora. Vômito forte e diarréia são as respostas mais comuns. Só então, aos poucos, os sentidos voltam ao normal. A pessoa se sente leve, limpa, disposta, de bem com a vida. Depois de 30 minutos da aplicação, a pessoa já está apta para suas atividades normais.

Minha experiência pessoal indica que a água desempenha um papel fundamental em todo processo, não apenas em sua ingestão pelo paciente, mas, sobretudo, na diluição do veneno pelo aplicador. Ao que parece um número maior de pontos com pequenas quantidades bem diluídas (perspectiva homeopática) faz mais efeito (e tem menos riscos de envenenamento) que aplicações com poucos pontos com quantidades maiores de secreção. A água é ainda prescrita na forma de um banho posterior a diminuição dos efeitos, não somente como uma forma de limpar o corpo dos excessos provados pelo mal-estar (suor, vómitos, feses), mas também, no sentido simbólico, como um complemento do processo da cura do Kambô.

As pesquisadoras Edilene Coffaci de Lima (UFPR) e Beatriz Caiuby Labate (UNICAMP) estudam a difusão do Kambô nos centros urbanos, analisando, sobretudo, o discurso que esses diversos aplicadores (índios, ex-seringueiros, terapeutas holísticos e médicos) têm elaborado sobre o uso da secreção. Para elas, as “falas são pendulares, ora inclinam-se para uma explicação espiritualista, ora para uma interpretação cientificista ou médica das doenças”. Passa-se da panacéia universal (da cura de todos os males) ao placebo (a cura por indução psicológica). E muitas vezes essas oscilações escondem algumas simplificações. A palavra ‘panema’, por exemplo, é re-interpretada como ‘depressão’ pelos terapeutas urbanos. Ou ainda como uma energia negativa capaz de gerar um amplo espectro de doenças. Por outro lado, as pesquisadoras entendem que a produção e comercialização das substâncias retiram da aplicação do Kambo a parte mais impactante de seu efeito. Que o remédio da ciência é indissociável do remédio da alma (LIMA; LABATE, 2007).

Pesquisas científicas internacionais, nas áreas química e farmacêutica, são realizadas sobre as propriedades do Kambô desde a década de 80. Pesquisadores italianos, franceses e israelitas Já entraram com pedidos de patente sobre a dermorfina. Mais recente, a Universidade de Kentucky (EUA) está pesquisando (e patenteando) a deltorfina em colaboração com a empresa farmacêutica Zymogenetics. Diversos laboratórios internacionais já estão interessados no veneno do kambô para desenvolver um medicamento que pode levar à cura do câncer[10].

Em 2003, alguns katukina de Cruzeiro do Sul procuraram o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) para denunciar o mau uso do kambô. Pediram providências contra o pirateamento do kambô por urbanos; estavam preocupados, também, com seus direitos intelectuais no caso de remédios derivados da substância. Vale lembrar que uma patente pode demorar muitos anos até chegar a eventualmente virar um remédio.

Em 29 de abril de 2004, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), proibiu qualquer propaganda das virtudes terapêuticas e medicinais do kambô[11]. A ministra Marina Silva decidiu tratar esse caso como um caso-modelo. Para isso, designou um grupo de trabalho do Ministério do Meio Ambiente para uma ação conjunta. O grupo, que vem se reunindo desde 2004, congrega representantes de etnias indígenas, antropólogos, indigenistas, herpetólogos (biólogos que estudam sapo), biólogos moleculares e médicos.

Mas o Kambô é, como vimos, um objeto complexo e escorregadio, irredutível aos diferentes discursos científicos (clínico alternativo, fármaco-químico, antropológico, etc) e dificilmente será regulamentado ou reduzido sem antes uma redefinição das perspectivas com as quais ele é descrito até o momento. Quando se fala de Kambô e de sua definição, alguns se preocupam com o manejo florestal do sapo, outros com a patente das substâncias químicas, outros ainda com as possibilidades terapêuticas da prática de sua aplicação, mas, para os índios, a explicação é mais simples: o Kambô é o espírito do Pajé Kampu cumprindo sua missão de defender a saúde dos defensores das florestas.[12]


LIMA &; LABATE, Edilene Coffaci de, Beatriz Caiuby. “Remédio da Ciência” e “Remédio da Alma”: os usos da secreção do kambô (Phyllomedusa bicolor) nas cidades. Campos - Revista de Antropologia Social v. 8, n. 1 (2007). http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/campos/article/view/9553/6626>

NOTAS

[1] Sonia Maria Valença Menezes é terapeuta e acupunturista.

[2] LABATE, Bia. O pajé que virou sapo e depois promessa de remédio patenteado, Comunidade Virtual de Antropologia, n 27, São Paulo, 2005.

[3] Existem vários nomes: kampu, wapapatsi, Kembo.

[4] A dermorfina é um opiácio que atua como analgésico 300 vezes mais potente que a morfina. Além do sapo phyllomedusa bicolor, essa substância só é encontrada na urina de crianças autistas.

[5] Deltorfina pode ser aplicada no tratamento da Ischemia - um tipo de falta de circulação sanguínea e falta de oxigênio, que pode causar derrames.

[6]CAMURÇA, Denizar Missawa. Estudo sobre a atividade edematogênica, pró-inflamatória, antibacteriana e perfil eletroforético da secreção cutânea de Phyllomedusa bicolor (Boddaert, 1772) (Anura, Hylidae, Phyllomedusinae). Trabalho de Conclusão de Curso de Bacharelado em Ciências Biológicas. Universidade Guarulhos, 2006. Neste trabalho, foram realizadas análises do perfil eletroforético (SDS-PAGE) das proteínas constituintes da secreção da Phyllomedusa bicolor coletada em 2004 e 2006 e da atividade antibacteriana das amostras da secreção. Foram feitas análises in vivo para avaliar o efeito local da inoculação como: formação de edema e presença de infiltrado inflamatório; e alterações sistêmicas como: contagem total e diferencial de leucócitos sangüíneos. A atividade antibacteriana da secreção foi constatada, entretanto não superou a atividade dos antibióticos utilizados no experimento.

[7]Para estudar os Katukinas, v. verbete sobre os katukina, por Lima, Instituto Socioambiental:

[8]Palestra apresentada 16/03/2005 no I Encontro Brasileiro de Xamanismo.

[9] Ni-í da Associação Katukina do Campinas (AKAC), no I Encontro de Brasileiro Xamanismo.

[10]Para acompanhar a situação da patente do kambô, bem como a das patentes da ayahuasca, da copaíba, da andiroba e de outras plantas amazônicas piratiadas para o exterior, veja o site da Amazonlink, ONG que ficou conhecida mundialmente pela campanha "o cupuaçu é nosso", http://www.amazonlink.org/biopirataria/index.htm

[11] Resolução da Anvisa http://www.abpvs.com.br/resolucoes/resolucao08.htm

[12] Outros aportes sobre a Phyllomedusa bicolor, http://www.erowid.org/archive/sonoran_desert_toad/bicolor.htm

lenda Kashinawá da Ayahuasca


Na mitologia dos índios Kashinawá, no Alto do Bode, subindo o Rio Jordão, no Acre, a origem do cipó Runipan (Ayawaska) tem um destaque especial, sua narrativa é rica em detalhes, onde os animais se transformam em gente e vice-versa.

Yo buié Nawa Tarani, um antepassado Kashinawá, foi à mata um dia procurar genipapo para pintar o corpo de seu filho recém-nascido. Na beira do lago, ele encontrou um genipapeiro coberto de frutas. Subiu na árvore carregada e começou a sacudir para fazer cair as frutas. De repente, ele ouviu um barulho debaixo dele. Viu então uma anta a roer as frutas do chão. Divertindo-se, ele ficou quietinho em cima da árvore, só olhando.

Ora, tudo começou a ficar estranho quando a anta, após ter roído algumas frutas, começou a jogar elas no meio do lago, gritando:

- Toma aqui esses genipapos do meu roçado!

Após alguns minutos, uma jovem saiu do fundo da água, carregando um tibungo cheio de caiçuma de banana. A anta estava escondida atrás do tronco de uma árvore. A jovem mulher se aproximou, tomou pé na terra e chamou:

- Amigo, onde está você? Aonde se escondeu?
Saindo do seu esconderijo, a anta disse:

- Tô aqui! E então bebeu da bebida que a mulher ofereceu.
Em seguida, a linda mulher se entregou à anta e eles se amaram. Do seu esconderijo, Yo buié Nawa Tarani não podia acreditar no que via.

A mulher voltou para o fundo do lago e a anta para a mata. Yo Buié Tarani desceu da árvore, juntou ainda algumas frutas caídas e voltou para sua aldeia. Chegando em casa, deu as frutas para sua mulher, sem contar nada. Não quis comer a comida oferecida por ela. Em seguida, deitou em sua rede, onde ficou por muito tempo com os olhos abertos e perdidos. Ele não podia esquecer o que havia visto no lago. Como se estivesse enfeitiçado. Sua mulher ficou preocupada, mas ele disse estar um pouco doente.

No dia seguinte bem cedo, Yo Buié juntou suas armas como se fosse caçar, e saiu na direção do lago. Passando debaixo do genipapeiro, ele juntou algumas frutas, roeu elas com os dentes e jogou no lago dizendo:

- Toma aqui os genipapos do meu roçado!

Depois correu e se escondeu atrás de uma árvore. E aconteceu que a linda mulher apareceu, como na véspera, com seu tibungo de caiçuma. Saiu for a da água, colocou o tibungo na terra e chamou:

- Amigo, onde está você? Aonde se esconde?

- Estou aqui, respondeu Yo Buié, e jogou-se sobre ela, tentando pegar à força. Mas ela se defendeu e eles rolaram pela terra até derrubarem a bebida.

De repente, a mulher se transformou numa cobra e enrolou-se no corpo dele. Mas ele não se deixou pegar. Ela tentou ainda escapar de Yo Buié, transformando-se num cipó espinhoso. Mas ele não a soltava de jeito nenhum. Então ela se transformou em aranha, serpente, fogo, mas sem nenhum resultado. Yo Buié não largava dela. E na confusão dessas mudanças, a cabeça da mulher reapareceu e perguntou:

- Quem é você? E o que deseja de mim?

Mas ele não respondeu, pois estava segurando a presa com os dentes.

A mulher então voltou a sua forma humana até os peitos, mas continuou sem ter a resposta de Yo Buié.

Resolveu então tomar forma inteiramente humana, da cabeça aos pés.

- Bem, disse. Agora diga-me o que quer de mim. Por que não me solta para conversarmos feito gente?
Yo Buié explicou então que tinha visto ela e a anta fazendo amor e que a partir daí passou a desejar ela para mulher.

- Por que pegou-me pela força em vez de falar claro comigo? Olhe, você me fez derramar toda a caiçuma.

Então ela pegou o que restava dentro do tibungo e fez ele beber, enquanto carinhosamente livrava-se dele. Depois eles repousaram um pouco e acariciando Yo, a mulher perguntou:

- Quem é você? Tem mulher e filhos?

- Não, mentiu ele. Não tenho família.

- Então, por que você não fica comigo? Eu serei sua mulher e teremos muitos filhos. Levarei você comigo para minha casa.

Ela colheu em seguida todos os tipos de ervas e fez delas um suco. Depois derramou nos olhos, orelhas e em todas as juntas do corpo de Yo buié Nawa Tarani.

Então a mulher disse: Segure nos meus cabelos!

E os dois mergulharam no lago. Chegando lá no fundo, encontraram uma roça de bananeiras e uma casa onde a mulher vivia com seus parentes. Eram as cobras e serpentes, habitantes do lago.

Porém, antes de entrar na aldeia, a mulher disse a Yo Buié:

- Esconda-se aqui e espere-me, que eu vou prevenir meus parentes de sua chegada e explicar a eles que você é meu marido. Não tenho medo que voltarei logo.

O homem ficou só, ouvindo os barulhos estranhos e assustadores que saíam das águas do lago. Eram as cobras gigantes agitando-se ao redor da mulher. Rapidamente ela apareceu, tomou Yo Buié pela mão e apresentou-o como seu marido na grande casa dos habitantes do lago. E deste dia em diante Yo Buié e a mulher-cobra passaram a viver juntos como marido e mulher.

Algum tempo depois, as cobras e serpentes do lago resolveram tomar cipó. Yo Buié perguntou a sua mulher se ela também iria tomar cipó.

- É claro, disse ela.

- E eu, poderei também?

- Não, por que você terá muito medo. Você verá cobras e serpentes e pensará que elas querem te devorar. Então você gritará como um louco. Não se meta com isso. São nossos costumes e não os seus.

Mas Yo Buié insistiu tanto que terminaram por aceitar ele no círculo de cobras para tomar o cipó.

Logo nas primeiras mirações, Yo Buié se pôs a gritar “Socorro, as cobras querem me engolir!”

Na mesma hora sua mulher se transformou em cobra, enrolou-se carinhosamente nele, aproximou a cabeça de sua orelha direita e cantou docemente. A sua sogra aproximou-se e fez o mesmo, cantando em sua orelha esquerda. Enfim, seu sogro se enrolou nos três e, balançando seu rosto na frente de Yo Buié, acompanhou também a canção.

Um dia quando eles repousavam em suas redes, as frutas do genipapo roídas começaram a cair dentro do lago e a anta estava de volta.

Como a jovem mulher não respondeu a seus apelos, a anta entrou na água, mergulhou e permaneceu debaixo da água muito tempo, como aliás faz até hoje. Assim mergulhada, a anta chegou bem perto da roça. A sogra de Yo Buié foi então a seu encontro explicar que sua filha não era mais livre. Pediu para a anta parar de procurar sua filha, e a anta não insistiu mais.

A vida seguiu muito feliz debaixo das águas. Os esposos tiveram quatro filhos: dois meninos e duas meninas.
Neste mesmo lago vivia Iskin, um pequeno peixe encouraçado. Um dia, Iskin foi nadando até um igarapé formado pelas águas do lago e encontrou na margem a antiga mulher de Yo Buié. Esta acreditava estar viúva e não parava de reclamar a falta de seu marido. Com tantos filhos para criar, ela sobrevivia com a ajuda de seus parentes e amigos da aldeia.

Nesse dia ela tinha ido ao igarapé para tentar pegar algum peixe com as mãos, como fazem as mulheres. E enquanto pescava, chorava alto, contando detalhe por detalhe de sua desgraça. Nisso, ela quase pegou Iskin pela barbatana de couro que protégé sua cabeça.

Ah! Gritou Iskin, jogando seu corpo para trás. E se ele conseguiu escapar da mulher, foi com o preço de deixar sua barbatana presa entre os dedos dela.

Quando ela se afastou, Iskin voltou ao lago. Ele não estava nada satisfeito com o que tinha ouvido. Foi direto onde estava Yo Buié para jogar sua raiva sobre ele.

- O que é que você está fazendo aqui no lago? Gritou Iskin. Você nunca nos falou de sua outra família que está morrendo de fome na terra. Eu encontrei sua mulher. E foi ela quem arrancou minha barbatana! E talvez você nem saiba, mas ela e seus filhos da terra estão todos morrendo de fome, vivendo com a ajuda dos amigos. E você aqui, dando de comer às pessoas que não são nem da sua espécie.

Yo Buié então abaixou a cabeça e compreendeu todo o mal que tinha feito à sua família da terra.

Mas como farei para sair daqui? Suspirou ele. Se eu não posso nem mais viver ao ar livre?

- Eu vou te ajudar, disse Iskin. Mas prometa para mim que não dirá nada a ninguém.

- Prometo, disse Yobuié.

Então Iskin colheu muitas ervas e jogou suco nas orelhas, olhos e em todas as juntas do corpo de Yobuié. Depois, levou ele até as margens do lago. Em seguida, Iskin abandonou o lago e foi viver no leito de um rio.
Quando Yobuié chegou à sua aldeia, foi logo recebido com espanto de alegria por todos. ”Eu pensava que você estava morto há muito tempo!” Disse sua mulher.

- Não, eu não estava morto. Foram as cobras que me raptaram e me prenderam entre elas. Hoje é que consegui fugir. Esconda-me porque tenho medo delas virem me buscar.

Yobuié pendurou sua rede no ponto mais alto da casa e foi dormir meio assustado.Então as águas do lago começaram a se agitar e transbordaram em ondas que iam uma a uma inundando a aldeia.

As cobras apareceram na superfície para chamar Yobuié. Como ele não aparecia, sua família do lago terminou por voltar para o fundo das águas que por fim baixaram ao nível normal.

Era a família das cobras que desta vez estava triste e com dificuldades, sentindo a falta de Yobuié.

Depois de algum tempo escondido lá em cima em sua rede, Yobuié resolveu ir caçar para ajudar a sua família da terra, que sentia fome. Pegou seu arco e flecha e se arrumou para sair. Sua mulher, com medo, fez todo o esforço para ele desistir da idéia.

- Não tenha medo, dizia Yobuié.

E ele partiu para caçar. A primeira caça que avistou foi um pássaro de crista vermelha.

Atirou uma flecha, mas o pássaro voou. A flecha foi então cair na água a dois metros da margem do lago. E Yobuié resolveu ir buscar de qualquer maneira.Logo que pôs os pés na água, deu de cara com uma de suas filhas cobras ”Você aqui?”Mas sua filha não respondeu. E com muita raiva perguntou “por que você abandonou minha mãe, meus outros irmãos, meus avós e eu?”

E como seu pai, de cabeça baixa, não deu resposta, ela gritou:

- Já que é assim, nós vamos comer você todinho, papai.

E a filha cobra atacou o pé de Yobuié, mas como era muito pequena ainda, não conseguiu comer mais que o dedão. Seu pai ficou paralisado de dor. Ela então chamou seus irmãos para ajudar a comer seu pai.

E ferozmente eles tentaram comer Yobuié, mas não conseguiram nem mesmo engolir metade de seu pé com suas gargantas pequeninas de filhotes.

Chegou então sua mulher, que conseguiu, cheia de raiva, devorar Yobuié até a metade das pernas.

Então deu lugar à sua sogra, cobra gigante, que num só bote devorou seu genro até a cintura. Quando o sogro chegou, antes de começar a comer seu genro, fez as devidas reprovações ao gesto de Yobuié. Este não conseguiu responder e, envergonhado, ficou de cabeça baixa.

Foi então que chegaram seus parentes da terra, preocupados com sua demora. Como fazer para livrar Yobuié? Pensaram eles. Se atirarmos flechas nas cobras, acabaremos por matar ele também.

- Ah, já sei, disse um deles. Vamos esmagar o rabo da cobra, ela acabará por abandonar Yobuié.

E assim foi feito. A cobra ferida fugiu e os homens puderam ainda salvar Yobuié e levar ele para a aldeia. Mas daquele dia em diante, ele ficou paralítico dos ombros para baixo.

Pouco tempo depois, sentindo-se enfraquecido e próximo da morte, Yobuié reuniu em redor seus parentes e amigos.

- Enquanto eu estava debaixo das águas, as cobras me ensinaram a preparar e tomar esta bebida que é o cipó. Eu não quero morrer sem passar para vocês o meu segredo:

- Corram à mata e juntem todos os cipós que encontrarem.

E todos partiram, e quando voltaram, vinham carregados de muitas espécies de cipós.Yobuié examinou cada cipó, dizendo “Não é este!” Até que por fim ele gritou ”É esse aqui!” Por sorte haviam encontrado um pedaço do verdadeiro cipó.Yobuié disse ainda: “Isto não é suficiente. Tragam-me agora as folhas de todas as árvores pequenas que vocês encontrarem na mata.”

E a busca recomeçou. O doente examinava com muita paciência todas as folhas que eram trazidas e suspirava: “Não, ainda não é esta!”

Até que um dia ele gritou: “É esta aqui!” E ele mostrou a folha do arbusto que chamamos Cauá (ou chacrona).

Nosso antepassado amassou então os talos do cipó, meteu-os numa panela com água e juntou as folhas e pôs os dois para ferver.

Após o cozimento, era coado e posto para esfriar. À noite,eles se reuniram todos, beberam a bebida e tiveram muitas mirações!

Ao saírem daquele estado provocado pela bebida, Yobuié disse:

- Eu tive a miração da minha morte bem próxima.

E três dias depois Yobuié morreu.

FRÓES, Vera. Santo Daime. Cultura amazônica. História do povo Juramidã. Manaus: SUFRAMA, 1986.

O Espelho de Oxum

Conta à lenda que, em um tempo imemorial, o rei Xangô, orixá escolhido por Oxalá para governar a terra e os outros deuses, tinha diversas esposas. As duas mais importantes eram Yansã, a Senhora das Tempestades, e Oxum, cujo domínio se estendia pelos rios, lagos e cachoeiras.

Certo dia, enciumada da preferência de Xangô pela sua adversária; Yansã decidiu vingar-se de Oxum e, em um raio intempestivo de cólera, investiu contra a mãe das águas doces, quando esta se banhava nua às margens de um grande lago, tendo apenas um espelho entre as mãos. Devido ao fato de não ser uma guerreira, mas uma mulher dócil e vaidosa, afeita apenas aos expedientes da Sedução e da Dissimulação para se defender; Oxum viu-se completamente indefesa frente à ira arrebatadora da Rainha dos Raios. Oxum, então, rezou a Oxalá e, em um instante mágico, percebeu que o Sol brilhava forte nas costas de sua agressora. Rapidamente, ela utilizou seu espelho para refletir os raios solares de forma a cegar Yansã.

Ao saber da vitória de Oxum, o rei Xangô reafirmou sua preferência pela Senhora das Águas, que além de mais bela e delicada, provou ser também mais poderosa que a Senhora das Tempestades.

Um Objeto Singular

O espelho aparece em inúmeros mitos e ‘reflete’ um sentido claramente universal porque tem um valor cognitivo e epistemológico. Ele é um símbolo da consciência. Consciência entendida não apenas como ‘auto-imagem social ou profissional’, mas, sobretudo como identidade psíquica profunda, a verdadeira face sob as máscara do ego, a centelha luminosa, o reflexo interior do Fiat Lux. Platão e Plotino o comparavam à alma, metáfora que em seguida foi adotada por Santo Atanásio e Gregório Niseno. Mas é com São Paulo que o Espelho se torna um valioso símbolo de transformação, um duplo instrumento para o conhecimento antropomórfico de Deus e para o conhecimento cosmológico do Homem.

"E nós todos que, com a face descoberta, refletimos como em um espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente, pela ação do Senhor, que é o Espírito. (...) Agora vemos em espelho e de maneira confusa, mas, depois, veremos face a face. Agora o meu conhecimento é limitado, mas, depois, conhecerei como sou conhecido.” (1)

Mas se o Espelho é símbolo do auto-conhecimento místico, da imagem e semelhança onde o Homem e Deus se refletem, ele também aparece constantemente como metáfora da ilusão narcísica, como confidente da beleza egóica, como um reflexo invertido da realidade. O símbolo da verdade é, ao mesmo tempo, signo da falsidade e da ilusão. E certamente foi este caráter paradoxal e contraditório que criou ‘O fascínio dos Espelhos’.

Das inúmeras narrativas onde este fascínio se manifesta escolhemos o mito nagô do Espelho de Oxum, originariamente recolhida por Pierre Verger na África (2), pois ele apresenta vários elementos simbólicos importantes para caracterizar o funcionamento arquetípico dos mitos que constituem o dispositivo especular e sua estratégia epistemológica. Antes, porém, de analisar os diversos aspectos simbólicos desta lenda mítica, vamos estudar como o tema do espelho se manifesta em outras narrativas de diferentes culturas, procurando identificar suas relações com um arquétipo único, que possa esclarecer o papel universal que o Espelho desempenha na lenda nagô.

Pelo fato de não emanarem luz própria, mas de refleti-la, os espelhos foram associados à Lua durante toda Antiguidade. Desta associação chave, sobrepuseram-se as que relacionam o Espelho ao feminino e à sua beleza. O simbolismo lunar do Espelho, no entanto, não se limita às mulheres e aos poetas que lhes cantam a beleza, mas encontra lugar também entre os feiticeiros e mágicos, que utilizavam as superfícies espelhadas para entrar em transe, como é o caso dos xamãs siberianos.

Possivelmente, a tradição de utilização mágica do espelho tenha tido sua origem no fato de ele ter sido usado na astronomia/astrologia para determinar o movimento das estrelas no céu. Não é sem motivo que o verbo especular, operação mental, procede do latim especulum, que originariamente significava observar o céu, admirar e estudar suas constelações. Como os estudiosos da ciência dos astros desta época, invariavelmente, eram também magos, os espelhos foram, gradativamente, interiorizados. ”De modo que” - comenta o cabalista Mario Satz (3) - “o espelho não somente está fora de nós, como um artifício metálico, disco polido entrevisto no toucador ou no harém, mas se encontra também entre os hemisférios cerebrais, que invertem o contemplado transladando o esquerdo ao direito e vice-versa.” É curioso observar que este duplo processo de representação da realidade através de espelhos se desenvolveu paralelamente em diversas culturas antigas - na China, na Índia, no Oriente Médio e no Mediterrâneo - gerando diferentes mitologias astrológicas, mas uma única concepção universal de representação.

A contemplação deste ‘espelho interior’ é particularmente rica entre os místicos sufis, que o entendem em um sentido semelhante ao de São Paulo, como a imagem de Deus e do Homem. “Deus é, pois” - escreveu Ibn Árabi de Múrcia (4) - “o espelho no qual tu mesmo te vês; do mesmo modo que tú és seu espelho em que Ele contempla seus nomes”. Outro místico sufi, Shabistari, é ainda mais específico em seu Jardim do Mistério

“O não-ser é um espelho, o mundo uma imagem, o homem é o olho dessa imagem, e Ele a luz do olho. Quem alguma vez viu o olho através do qual todas as coisas são vistas? O mundo se tornou homem, e o homem, mundo; não há explicação mais clara que essa. Quando olhas atentamente no coração da matéria, Ele é ao mesmo tempo a visão, o olho, a coisa olhada. A Santa Tradição nos legou isto, e sem olho nem ouvido o demonstrou”. (5)

Também o Zohar, recomenda que, para que o homem possa conhecer a Glória, utilize-se de um espelho, observando-a indiretamente para não ser cego por sua luminosidade resplandecente. Ou seja, o tema do Espelho é uma unanimidade entre os místicos, sejam judeus, cristãos ou mulçumanos. Este curioso consenso talvez explique a crença, também universal, de que quebrar um espelho acarreta em um longo período de azar ou má-sorte. Também a crença de que as ‘criaturas sem alma sob a forma humana’, como os vampiros e os zumbis, não têm suas imagens refletidas no Espelho; deve ter sua origem na associação universal dos espelhos à imagem holográfica de Deus no Homem, feita em diversas épocas por diferentes religiões.

Adiante, quando analisarmos a lenda de Oxum, veremos como, devido a sua associação universal com a Lua, o Espelho guarda uma relação direta com o simbolismo aquático, mas dele se diferencia por refletir a luz do fogo elementar. Agora, o importante é que se entenda que quando se fala do simbolismo do Espelho não se trata apenas da mitológica ilusão de Narciso ou ainda da fútil vaidade feminina, mas também da contemplação mística à luz de um limbo transcendente.

Mas se o Espelho serve para que as donzelas e cortesãs reforcem seus egos e para que os sábios místicos se desvencilhem dos seus, ele também é uma poderosa arma de guerra, utilizada para atear fogo gerar à distância através de raios luminosos, como no célebre episódio atribuído a Arquimedes de Siracusa, que com um gigantesco espelho catóptrico incendiava os navios que tentavam invadir a antiga ilha da Sicília.

De todas as lendas envolvendo espelhos como arma a mais conhecida é, sem sombra de dúvida, a luta de Kadmo contra a Medusa, narrada por Platão no Timeu. Nesta narrativa, o herói vence a terrível górgona, cuja o olhar tem o poder de transformar seus oponentes em pedra, com a ajuda de um espelho preso ao seu escudo. Kadmo fez com que a Medusa visualizasse sua própria imagem refletida no espelho e tivesse o mesmo destino de suas vítimas, petrificando-se para sempre. Ou seja, o espelho é uma arma capaz de fazer com que o outro se reconheça, com que o adversário tome consciência de si e de suas projeções. O mal reconhecendo a si mesmo como tal, perde toda a sua eficácia e sucumbe a sua própria consciência.

Talvez por isso, em seu livro De Natura Deorum, Cícero lembra que o Espelho é uma invenção de Esculápio, o deus da medicina; e os antigos sacerdotes nahuas do México costumavam levar um espelho pendurado no peito para que os “demais (homens) descobrissem seu verdadeiro rosto e ser corrigissem”(6). Pena que este expediente simbólico não tenha funcionado com os conquistadores espanhóis. Estes, aliás, realizaram boa parte da conquista das Américas a custa da sedução de miçangas e dos espelhos, presenteando-os aos indígenas, para que enquanto eles se distraíssem com seus reflexos, não percebessem o que se tramava às suas costas. Caberia ainda lembrar que a sobreposição de temas aparentemente contrários fez do Símbolo do Espelho uma metáfora do paradigma epistemológico pré-científico e, posteriormente, devido a sua reflexibilidade passiva frente ao pensamento consciente, o Espelho passou a ser comparado com o próprio inconsciente - como detalhamos a seguir sobre as relações do dispositivo especular com as ciências humanas.

A Porta do Inconsciente.

‘Espelho, espelho meu, existe algum intelectual mais sabido do que eu?’ Num primeiro nível, a reflexão sobre o espelho sempre será um questionamento do ego sobre si mesmo. Mas o espelho nunca responde, ou melhor, nunca discorda, ao contrário, seu silêncio eternamente cúmplice se faz íntimo das mais desmesuradas comparações.

Entretanto, é este primeiro momento de reflexão, embora sempre reafirme a identidade, que revela a objetividade do subjetivo, pois permite que o observador se observe, imaginando como será visto pelos outros. E desta reflexão primeira da consciênca é que (re)surgem as grandes idéias e os grandes empreendimentos. “Realidade ou alucinação, os mundos ordenados com estes instrumentos de precisão revelam a reversibilidade de todas as coisas: a certeza do aparente, a incerteza do existente.”(7) Aqui o Espelho é comparada a um grande lago de águas límpidas e cristalinas, como um campo projetivo da experiência humana, onde o homem pensa e repensa sua identidade.

Rompendo com esta primeira perspectiva estética, o tema de entrar através do Espelho em um mundo imaginário, presente, por exemplo, em Alice de Lewis Carroll, tornou-se lugar comum na atualidade, principalmente em Vídeo-Clips de bandas de rock e filmes de ficção cientifíca. Interessante é observar que este ‘mergulho no inconsciente’ sempre parece demarcar os limites a realidade virtual e a vida cotidiana, para a qual o protagonista sempre volta ao final da narrativa. É uma fuga do ego para fantasia e seu invariável retorno. Em muitos casos, o tema do espelho se confunde com o símbolo do Sósia, do Outro, do Duplo. (8)

É como se contemplar no espelho:
A forma e o reflexo se observam.
Tu não és o reflexo,
Mas, o reflexo és tú.

O reflexo, no entanto, não é apenas uma sombra: em algumas narrativas, o duplo se rebela contra sua matriz; em outras, o Sósia se liberta de uma dimensão paralela existente através do Espelho. Em todas podemos observar a idéia de porta dimensional e em boa parte a idéia da imagem refletida, do duplo como um veículo do Eu para viagens imaginárias, um ‘corpo astral ou sonhador’. Mesmo nas estórias onde o Sósia se rebela contra o protagonista e adquire vontade própria, existe esta relação, pois o Outro se revolta contra sua função original que é a de representar a forma no mundo dos reflexos, de duplicar o ego em uma imagem que possibilita o autoconhecimento. Porém, os espelhos guardam ainda um sentido mais profundo.

Entre os tibetanos, a Sabedoria do Grande Espelho ensina o segredo supremo: que o mundo das formas que ali se reflete não é mais que um aspecto do sunyata, da vacuidade. Patanjali (9) chamou esse conhecimento de ‘fluxo imóvel’ e não são raros relatos semelhantes dos místicos de diferentes tradições. Para eles, o Espelho é símbolo da transcendência temporal, da a-historicidade, da superação da continuidade da percepção sensorial pelos lampejos da eternidade.

Poderíamos, então, concluir que os mitos do Espelho simbolizam a própria representação, não se constituindo ou representando um único arquétipo, mas a própria noção de ‘inconsciente coletivo’ ou de unidade fundamental da experiência simbólica. Representando a própria representação, os espelhos são símbolos da realidade simbólica, são, assim, imagem paradigmática ou um dispositivo complexo, cuja a ambivalência expressa sempre um paradoxo: verdade absoluta e ilusão passageira, beleza superficial e profunda sabedoria, arma e remédio, alienação social e reintegração psíquica, etc,

Mas se vemos no Espelho este emblema de alma coletiva, ou pelo menos, se encontramos nele um símbolo da cultura ou a metáfora mais abstrata e paradigmática da linguagem, podemos comparar seus reflexos sintagmáticos aos arquétipos, pois enquanto o dispositivo especular enfatiza a diferença, seus espectros sempre reafirmam a identidade simbólica. Em si, os reflexos nunca são ambivalentes, eles são apenas imagens duplicadas. Já o Espelho não é uma simples estrutura duplicadora porque contextualiza e até transforma a realidade, uma vez que remete o observador a uma contemplação do conjunto da representação.

Enquanto os reflexos nos encantam e nos enganam como identidades arquetípicas, o Espelho representa a consciência de que essas identidades são passageiras e parciais. O Espelho é um convite à eternidade, como, aliás, sugerem as muitas lendas que o associam à longitividade e à manutenção da beleza por meios sobrenaturais, das quais O Retrato de Dorian Gray é certamente a mais conhecida.

Muito ainda poderia ser dito sobre os espelhos e sua vastíssima simbologia, porém já reunimos os elementos necessários a análise da lenda nagô a que nos propomos inicialmente. Voltemos agora, portanto, ao mito do Espelho de Oxum.

No Universo dos deuses nagôs

A narrativa começa dizendo que Oxalá, ‘em um tempo imemoriável’, delegara o governo da terra e dos deuses a Xangô, se comportando como um ‘deus oticius’ ou uraniano, que cria o mundo e o entrega à administração de um de seus filhos, deuses menores. Por uma feliz coincidência, este conceito de ‘Deus-pai’ existente ‘para além dos céus’ foi estabelecido por Mircea Eliade (10) justamente estudando a cultura Iorubá, onde Olorum se retira entregando todo poder a Obatalá.

O início da narrativa expressa, portanto, um duplicação do mito cosmológico. Trata-se de um ‘tempo imemorial’, mas não de um tempo ‘primordial’. Poderiamos, fazendo uma analogia grosseira entre as mitologias grega e nagô, dizer que se Olorum corresponde a Urano, Obatalá/Oxalá, apesar de seu papel eminentemente solar na lenda analisada, seria a versão africana de Cronos/Saturno, e ainda que Xangô, terceira geração divina a ocupar o poder, corresponderia a Zeus/Júpiter.

Aliás, como já falamos de passagem, não são poucos e pequenos os elementos simbólicos comuns entre Xangô e o rei dos deuses gregos e romanos, pois ambos têm machados sagrados, lançam raios do alto de suas montanhas, representam o arquétipo da Justiça e, sobretudo, têm múltiplas relações amorosas hierogâmicas com diversas deusas que representam diferentes aspectos da Natureza, sempre feminina.

Em nossa estória, temos uma luta, não entre duas mulheres, mas entre dois destes aspectos femininos da natureza: Yansã, Rainha dos Raios, dos Ventos e das Tempestades, senhora dos eguns e do mundo dos mortos; e Oxum, Mãe das Águas Doces e senhora do jogo de adivinhação do Ifá. Oxum também é uma deusa do amor e da beleza, uma ‘Afrodite nagô’.

Os temperamentos das deusas são bastante opostos. Oxum exemplifica a mulher aparentemente submissa e dócil, mas, na verdade, sedutora e dissimulada. Yansã, ao contrário, encarna o ideal de uma mulher independente e sincera, mas de gênio irascível. É também a orixá feminina que tem mais relacionamentos amorosos com outros deuses, característica que, no entanto, não a fez menos ciumenta e possessiva. A Senhora das Águas nada podia contra a força dos ventos. Oxum não poderia se valer de suas armas habituais, a sedução e a mentira, mas para invocar o poder solar de Oxalá (o self), ela teve que transcender sua condição narcista e reflexiva. A superação desta vaidade inicial do espelho é que permite a Oxum usá-lo como uma arma real e não como um ‘instrumento psicanalítico’ feito o herói Kadmo diante da medusa. E este é um ponto chave desta lenda: apenas com a ajuda do elemento Fogo, a Mãe das Águas se torna também a Senhora do Espelho e vence Yansã. E assim conquista definitivamente a preferência de Xangô.

Pode-se também pensar o embate das duas deusas como uma luta entre um feminista militante contra uma dondoca. Mas essa forma de pôr as coisas não nos ajudará a entender o desfecho da lenda senão como uma advertência moralista de que o comportamento feminino mais adequado seja o da submissão dissimulada e não o da liberdade, autonomia e igualdade frente ao masculino. Entretanto, esta leitura é equivocada.

A mitologia nagô é amoral e não está preocupada em ditar modelos morais de comportamento. Na verdade, a vitória de Oxum tem dois significados para os Iorubás: representa, primeiro, do ponto de vista da agricultura, a preferência pelas chuvas moderadas atribuídas a Oxum como Orixá da Fertilidade do que pelas tempestades simbolizadas pelo casamento de Xangô com Yansã. E, no plano religioso, a vitória de Oxum representa a superioridade da atividade divinatória simbolizada pelo espelho (inconsciente coletivo) sobre a necromancia e o culto aos antepassados, representado pelo aspecto ctônico e intempestivo da Rainha dos Raios.

Mas esta tendência ocidental em ver uma espécie de ‘Eva’ em Oxum e uma ‘Lilith’ em Yansã tem uma razão de ser. Deixemos por hora esta questão e voltemos mais um vez ao tema do espelho, procurando agora observar como a lenda de Oxum é decisiva para sua compreensão.

A Caverna de Platão

De todas alegorias ou metáforas envolvendo o tema do espelho, a de maior significação epistemológica certamente é a da imagem paradigmática da Caverna descrita por Platão (11):

Acorrentados de costas para a luz em um cárcere subterrâneo, os prisioneiros só podem ver, dos homens, animais e figuras que passam pelo exterior, as sombras projetadas no fundo da Caverna. Quando um dos prisioneiros se liberta e retorna ao mundo exterior, é cego pela luminosidade do Sol e só aos poucos consegue se adaptar à nova realidade. Percebe, então, que o mundo no qual vivia era irreal e inconsciente, feita de sombras e reflexos das coisas. Porém, o prisioneiro correria sério risco de vida se, retornando ao interior da caverna, procurasse revelar aos seus antigos companheiros a irrealidade do mundo em que se encontram. Provavelmente, eles o matariam.

Nesta imagem genial, Platão não apenas resumiu sua concepção sobre a realidade e a linguagem, mas também nos trasmitiu sua experiência pessoal, mais precisamente, sua explicação filosófica para o trágico destino de seu mestre, Sócrates, forçado a beber veneno pelas autoridades atenienses em virtude de sua defesa intransigente de uma visão mais objetiva da realidade. E não foi o único. Giordano Bruno geralmente costuma encabeçar a longa lista dos mártires da ciência e do pensamento objetivo vitimados pela ignorância dos homens escravizados pelas representações subjetivas da realidade.

Entretanto, o desenvolvimento do pensamento científico não foi, como nos faz pensar o senso-comum, um gradual acumular de informações, mas, ao contrário, uma série de reviravoltas metodológicas, com sucessivas trocas de modelo. O próprio conceito de paradigma - ‘conjunto de estruturas cognitivas e epistemológicas’ - surgiu de uma longa discussão metodológica em torno das revoluções científicas (12).

Hoje, no entanto, vivemos um momento em que a racionalidade científica e sua visão objetiva do universo destroçaram a maioria das ilusões ideológicas das representações subjetivas. Poderíamos dizer, utilizando a imagem de Platão, que todos os homens se libertaram da caverna e do seu espelho, e que agora desprezam as imagens fantasmagóricas a que estavam acostumados no cativeiro. Neste novo contexto, as sombras tornaram-se símbolos do inconsciente - a que os ‘homens racionais’ negam, mas que voltam em seus sonhos e nas reflexões involuntárias de sua imaginação. Movidos pelo auto-conhecimento, os homens que atualmente decidem ‘voltar à caverna e ao seu velho espelho’ são considerados loucos ou excêntricos. Não se trata mais de conhecer a objetividade, mas de observar o desenvolvimento da consciência inter-subjetiva, de entender sua linguagem.

Assim, por exemplo, no paradigma científico da astronomia, sabemos que a Terra gira em torno do Sol; no entanto, continuamos dependendo simbolicamente do paradigma subjetivo da astrologia, que como uma linguagem do inconsciente, condiciona atitudes e comportamentos. Aliás, ao contrário do que pensam os historiadores da ciência, o sistema geocêntrico não significa que Ptolomeu acreditasse que o Sol girasse em torno da Terra, mas sim que ele colocava a questão da representação objetiva do universo em um segundo plano diante da idéia de decifração do destino através da observação especular das estrelas.

A tarefa metodológica que nos é contemporânea é estabelecer um terceiro paradigma de representação que concilie a objetividade científica com a função simbólica da linguagem desenvolvida pelo hemisfério esquerdo do celebro, que integre nosso conhecimento astronômico em uma nova simbologia astrológica, que relacione o espelho no fundo da caverna ao sol e ao mundo exterior.

Os ocultistas modernos estudiosos da Cabala hebraica (13) têm uma curiosa teoria a respeito de Deus, do Homem e da Mulher. Para eles, o fato do Homem ser a imagem e semelhança de Deus implica em que ambos jamais possam se ver frente a frente. Mas a mulher, devido ao fato de ter seu sistema neurológico invertido em relação ao masculino destro, pode ver Deus face a face. De acordo com este preceito, os homens nos rituais de magia e cerimônias religiosas deveriam se manter sempre de costas para o altar e de frente para participantes femininas - o que de fato acontece em diversas religiões.

Nesta proposição, enquanto o Homem é a imagem e semelhança de Deus, a Mulher é seu inverso simétrico, seu espelho. Assim, o Homem só pode ver a Deus através da mulher e Deus necessita dela para dar luz ao seu filho. Esta posição de ‘reflexo primordial’, de mediação entre o Criador e a criatura também tem um caráter universal entre as diversas deusas que representam a grande mãe cósmica. Assim, se ‘o universo é um sonho de Brahma’, se ‘o mundo foi criado para que Deus se reflita nele e conheça a Si próprio’, este espelho, segundo momento cosmogômico de muitas mitologias é sempre um elemento ‘feminino’.

Neste sentido geral e estritamente simbólico é que podemos associar Oxum à Eva e ao arquétipo feminino genuíno, enquanto Yansã, de costas para o sol, corresponderia ao arquétipo do feminino masculinizado. O significado central da narrativa está no fato de Oxum, devido à situação de perigo iminente, transcender a sua condição de mulher-objeto e se associar ao Sol, de abandonar o uso reflexivo tradicional de seu espelho e utilizá-lo de uma forma tecnológica, racional, solar; como uma arma laser. A lenda, desta maneira, representa a união cognitiva entre os hemisférios celebrais e a integração epistemológica dos paradigmas.

No Espelho, encontramos a interseção de duas formas de viver e de pensar o tempo: o transcorrer gradativo dos acontecimentos registrados pela memória e o eterno presente do mundo virtualizado das idéias. Ou, como dizia Santo Agostinho, “a memória das coisas dos homens e a memória das coisas de Deus”.

Chegamos ao final. Resta apenas a lembrança àqueles que não se reconheceram neste texto, que por mais que procurem um outro duplo com o qual se identifiquem, sempre encontrarão o sentimento de incompletude tão próprios dos espelhos e da instantaneidade dos seus múltiplos reflexos - dada à vastidão e à complexidade deste tema permanente.

Ou eterno?

NOTAS

(1) 2Coríntios 3,l8 e 1Coríntios l3,l2 - Novo Testamento, Bíblia. Edições Paulineas. l988.
(2) A Lenda foi reescrita a partir da versão da revista Planeta Especial - Os Orixás. Ed. Três. l982.
(3) SATZ, MARIO. O Dador Alegre. Ed. Ground. 1991.
(4) Ibdem.
(5) BALTRUSAITIS, JURGIS. El Espejo. Madri: Miraguano. 1988. Citado por Satz, M. Ibdem.
(6) Ibdem
(7) E. MEYEROVITCH. Les Songes et leur interpretation chez le Persans, Paris, 1959.
(8) MAESTRO TOZAN. Hokyo Zan Mai, Samadhi del Tesouro Ilusorio. Adiax, Barcelona. 1981.
(9) SATZ, MARIO. Ibdem.
(10) ELIADE, MIRCEA. Tratado Histórico das Religiões.
(11) Reescrito a partir da narrativa descrita no Timeu, Ed. Abril.
(12) KUNH, THOMAS. A Estrutura das Revoluções Científicas. Perspectiva.
(13) FORTUNE, DION. A Cabala Mística. Ed. Pensamento. 1986.

Umbanda é caridade


Na sessão espírita do dia 15 de novembro de 1908, presidida por José de Souza, na sede da Federação Espírita de Niterói, Estado do Rio de Janeiro, uma série de fatos estranhos aconteceram: espíritos, que se diziam de escravos negros, índios e crianças incorporaram nos médiuns da casa, de forma que rompia com as práticas kardecistas: pedindo balas, fumo e bebidas. Esses espíritos foram, então, convidados a se retirarem do recinto pelo presidente dos trabalhos, advertidos do seu estado de atraso espiritual.

Foi então que o jovem Zélio Fernandino de Moraes, de apenas 17 anos, que pela primeira vez freqüentava um trabalho do gênero, foi dominado por uma força estranha, que fez com que ele falasse sem saber o que dizia. Era a voz do Caboclo Sete Encruzilhadas, que, em alto e bom tom, refutou a tese defendida pelo dirigente de que os mortos fossem atrasados espiritualmente devido à sua etnia ou à classe social a que pertenciam quando vivos.

Dia 17, na Rua Floriano Peixoto, número 30, em Neves, Zélio abriu o primeiro centro de Umbanda do Brasil: a casa Nossa Senhora da Piedade. Às 20 horas, como havia prometido em sua primeira aparição, o Caboclo Sete Encruzilhadas se manifestou em Zélio e declarou que se iniciava naquele momento, um novo culto em que os espíritos dos velhos africanos - que não encontravam campo de ação nem no kardecismo nem no Candomblé - e os índios nativos de nossa terra poderiam trabalhar em benefício dos seus irmãos encarnados, qualquer fosse a cor, a raça, o credo e a condição social.


Estava fundada a Umbanda!

O QUE É UMBANDA?

A Umbanda é um culto religioso-filosófico desenvolvido basicamente no Brasil, mesclando a mitologia africana do candomblé e algumas de suas práticas, mitos dos índios brasileiros e conceitos cristãos - tanto de influência católica como espírita kardecista. A Umbanda cultua os Orixás, mas com um status diferente do dado pelo Candomblé. Na primeira, os mediuns incorporam os 'guias', os espíritos dos mortos, que funcionam como mensageiros dos deuses, os orixás, os quais nunca entram em contato direto com os seres vivos. Já no Candomblé, a incorporação ritual é a do próprio Orixá sobre seu 'filho-de-santo', dispensando intermediação, não recomendando mesmo que qualquer vivo se deixe incorporar ou influenciar por espíritos de mortos.

Há ainda duas diferenças importantes. A primeira é que o Candomblé é bem anterior à Umbanda, pois trata-se de uma religião africana, trazida pelos escravos negros para o Brasil durante o Império e aqui cultuada com uma série de diferenças relativas às etnias e regiões em que floresceu (como detalharemos mais a frente). Já a Umbanda é genuinamente brasileira e surgiu, como vimos, no início do século XX, fruto do sincretismo do fetichismo africano dos Orixás com o Cristo e os Santos Católicos, e com várias práticas alimentares e medicinais indígenas. A outra diferença é que a Umbanda tem, em comum com o cristianismo, as noções morais de "Bem" e "Mal" e o conceito evolutivo-ético que deve nortear o comportamento social. Ou seja: ela só se presta a trabalhos que se enquadrem no conceito ocidental de 'bem', enquanto no Candomblé, fiel a uma tradição não-dicotomizada pela moral cristã, cultua deuses amorais, muitas vezes, partilhando, sem culpa, de suas principais características, fraquezas e paixões.

ENTRE A CRUZ E A ESPADA

Assim, há, na Umbanda atualmente, diversos graus de aproximação e distanciamento de dois pólos bastante antagônicos: o culto do Candomblé e o espiritismo kardecista. E, é claro, dentro desses limites extremos - a 'mesa' e a 'nação' - o movimento umbandista é extremamente cosmopolita e antropofágico: existem as umbandas esotéricas, influenciadas pelo ocultismo, pelas religiões orientais, pelo astrologia e por várias práticas espiritual contemporânea. Segundo seus adeptos, a própria palavra "Umbanda" não tem origem africana mas deriva de mantras no idioma sanscrito 'Aum Bhandan'.


Porém, de uma forma geral, podemos dizer que a Umbanda se resume em cinco credos: a crença na existência de um Deus Único, Onipotente, Eterno e Incriado; a crença em entidades espirituais em plano superior de evolução - os orixás, anjos e santos - bem como em entidades ainda em evolução - exus, crianças, caboclos e pretos-velhos - que servem de intermediários entre as entidades superiores e o mundo dos vivos; a crença na reencarnação e na lei de causa e efeito (Karma): na crença de que o Homem é a síntese a miniatura do Universo; e, principalmente, na crença na prática mediúnica, sob as mais variadas formas, como maneira de aliviar o karma de si e dos outros. Por isso, como resume a poesia dos próprios cantos do culto, "Umbanda é caridade".

Identidade no Candomblé

A iniciação ritual no Candomblé é um processo de construção de uma identidade psicológica permanente entre o participante do culto e a entidade cultuada. Ao contrário do desenvolvimento mediúnico da concepção espírita - em que o médium renuncia temporariamente a sua própria subjetividade em favor da subjetividade de um desencarnado - o transe de incorporação no Candomblé tem por objetivo principal o auto-reconhecimento recíproco entre o ‘santo’ e seu ‘filho’, o reatamento simbólico e permanente do mundo dos homens (Ayé) com o mundo dos deuses (Orum).

Este processo de identificação simbólica entre os participantes e os Orixás não existe apenas no momento privilegiado do transe ritual; a identidade entre o iniciado e seu santo corresponde a incorporação psicológica permanente das características do orixá na personalidade de seus filhos. Esta identidade instaura-se não só através da iniciação e se desenvolve lenta e gradualmente nos transes, mas também é reforçado periodicamente nas obrigações sucessivas e renovada nas festa públicas dos santos, quando toda a comunidade presente se torna testemunha e fiadora desta aliança e dela se beneficia.

Os rituais do Candomblé consistem basicamente de um conjunto de temas arquetípicos - a representação\incorporação de forças naturais personificadas em comportamentos e estórias - que se sucedem durante a cerimônia. Cada entidade se manifesta através de um transe característico, produzido por imagens, sons, cheiros, gostos, danças, ritmos, cores, trajes e adereços específicos. Invocados através de danças extáticas e de três tambores cerimoniais (rum, rumpi e lé), os deuses africanos incorporam em seus ‘filhos’, fazendo-os re-dramatizar os grandes feitos míticos e lendas: a luta dos irmãos Ogum e Xangô pelo amor de Oxum, a viagem de Oxalufã ao encontro de seu filho Xangô, as aventuras amorosas de Yansã ... As entidades são, ao mesmo tempo, fundamentos psíquicos de comportamentos humanos e forças místicas da Natureza; e são representadas nos rituais como identidades sagradas que se manifestam dentro de uma estrutura mítico-litúrgica de interpretação do mundo.

NAÇÃO 
LÍNGUA
ENTIDADES
‘TOQUES’
NAGÔ (KETO) Iorubá Os Orixás  Ajicá, Aguerê, Opanijé, Darô, Alujá e Ibi
JEJE-fON EweOs Voduns  Arramunha, Bravum e Sató
ANGOLA e CONGO Banto e Português Os Inkices Barravento, Cabula e Congo

Não se trata, portanto, de uma encenação teatral ou de uma catarse histérica: neste psicodrama mítico há uma ‘economia energética’, onde forças espirituais são manipuladas e manipulam os corpos dos participantes, em um espetáculo coreográfico que associa imagens-tema a ritmos determinados. Essas associações audiovisuais são produto e instrumento de um processo de construção de uma identidade simbólica, que vai de acordo com a tradição cultural de cada Nação do Candomblé e com a força-entidade invocada.




KETO-NAGÔ (ORIXÁ) JEJE-FON (VOODUM) ANGOLA-CONGO (INQUICE)
Olorum ou Olodumaré Mavu Lissa Zambi ou Zania pombo
OxaláOlissaLembá ou Lembarenganga
OgumGú Sumbo Mucumbe
Oxossi -Mutalambô ou Tauamim
Omulú Sapatá Burumgunço ou Cuquete
XangôSobó Cambaranguaje ou Zaze
Yansã Oiá Bamburucema ou Matamba
Oxum Aziri Tobossi Quicimbe ou Caiala
Yemanjá AbéBandalunda
OxumaréBessém e Dã Angorô
Ossaim Aguê Catende (Caipora)
Exú/IrokoLokoTempo
Nanã-Burukê Nanambiocô Querê-querê

O que se pode perceber em uma rápida comparação das três nações é que nos Voduns e nos Inquices estão não apenas as mesmas forças místicas que formam os Orixás nagôs, mas também outras forças e outros conceitos. No caso dos Jeje, existentes no Haiti, em Cuba e no estado brasileiro do Maranhão, os Voduns cultuados são em número maior que os orixás mais conhecidos habitualmente no culto Iorubá. Os Voduns podem ser divididos em homens e mulher; e, dentro destes, em moços e velhos, somando um total de quarenta entidades. Já no caso dos ritos bantos, há, devido a outra concepção acerca da ancestralidade, entidades provenientes da mitologia indígena e também a presença de diversos tipos de espíritos de mortos (caboclos, preto velhos, crianças, índias). 

Na África, as ‘nações’ eram identidades étnicas de diferentes grupos geográficos. Porém, o termo ‘nação’ no contexto do candomblé brasileiro significa um grupo cultural com tradições próprias intrínsecas de culto. Há, portanto, uma diferença acentuada entre a identidade étnica das ‘nações africanas’ e a identidade cultural das ‘nações do candomblé’ no Brasil. De uma forma geral, podemos dizer que o modelo ‘Jeje-Nagô’ é predominante no Candomblé brasileiro. Ele é o mais tradicional, o menos permeável a mudanças e influências culturais, o mais próximo do modelo africano original ainda hoje existente na Nigéria. Em oposição a esta tendência tradicionalista do modelo Jeje-Nagô, o grupo cultural dos Bantos (nações de Angola e Congo) foi o que mais se sincretizou. Os Bantos, mesmo depois de um primeiro momento de autonomia religiosa e embora conservassem o nome original de certas entidades de origem congolesas, viram seus rituais progressivamente desagregarem, para dar lugar ao sincretismo afro-ameríndio (Catimbó, Candomblé de Caboclo, a pajelança e o culto a entidades indígenas) e ao afro-espírita (Jurema, Umbanda) ou se adaptaram as regras ditadas pelos candomblés nagôs, não se distinguindo destes senão por seus cantos mesclarem o banto com o português em louvores a ‘Zambi’. 

Assim, se o Candomblé é uma manifestação da identidade cultural dos negros no Brasil, pode-se notar facilmente a existência de uma linha de desenvolvimento angolana em oposição a uma linha nagô. A primeira, incorporando a ancestralidade indígena e mestiça, é responsável por novas formas de identidade social dentro da realidade brasileira; e a segunda, ao contrário, procurando cada vez mais se africanizar, cultuando exclusivamente os orixás e mantendo as cerimônias com os espíritos dos mortos (ou antepassados) restritas aos ritos secretos da Sociedade dos Eguns Ilê Agbouça, na ilha de Itaparica (BA). 

Além dessas variações culturais das referências simbólicas segundo as nações - que, no Brasil, se diversificam em milhares de seitas e cultos multisincretizados sob a hegemonia Jeje-Nagô - há, ainda, uma variação simbólica referente a cada entidade dentro de um mesmo ritual, onde os referentes são organizados de modo a caracterizar a identidade de cada orixá. Cada ‘Santo’ tem sua cor, suas músicas, sua dança e, ao mesmo tempo, corresponde a um tipo de comportamento humano específico e a uma faixa vibratória da Natureza. Cada entidade é um feixe de referentes simbólicos. No Xireé, a ordem seqüencial de apresentação durante o ritual é quando melhor se observa como os Orixás formam as freqüências de rede do Candomblé enquanto linguagem simbólica: no início as vibrações mais densas e ctnônicas; no final, as mais desmaterializadas e distantes. Trata-se, como dissemos, de reunificar o Ayé (Mundo do preto e vermelho) ao Orum (universo luminoso do branco), passando por todo espectro de vibrações/entidade intermediárias.

O modelo Jeje-Nagô ou baiano apresenta, geralmente, dezesseis orixás principais: Exu, Ogum, Oxossi, Ossaim, Xangô, Iansã, Oxum, Obá, Nanã Burukê, Omulú, Oxumaré, Iroko, Ibeji, Logunedé, Yemanjá e Oxalá. Vejamos agora como se organizam os referentes simbólicos (alimentares e audiovisuais) dessas
dezesseis entidades no sistema divinatório do Ifá.  

Mesmo sendo um processo onde a identidade é produzida predominantemente por freqüências rítmicas e cromáticas, o Candomblé não é apenas um conjunto de referências audiovisuais, mas também, de referências degustativas, olfativas e táteis (as comidas, incensos e ervas). Na verdade, essas referências cinestésicas literalmente ‘alimentam’ as freqüências audiovisuais, através de oferendas e sacrifícios, as linguagens simbólicas necessitam ser nutridas de energia psíquica, o Axé.

Vejamos suas principais referências simbólicas.


ORIXÁ
SUA COR
SAUDAÇÃO
DOMÍNIO
ELEMENTO
Oxalá  Branco Axé Babá!A Criação O CÉU
Yemanjá  Branco e Prata Odoiá! A Maternidade O MAR
Iroko  Branco e Cinza Iroko i só! O Tempo GAMALEIRA (árvore)
Oxumaré Vermelho e AmareloArô Boboi! A Alternância dos Opostos  O ARCO-ÍRIS E A COBRA
Omulú Branco e Preto  Atotô! Sofrimento e dor  A DOENÇA
Nanã Burukê RoxoSalubá! A Morte LAMA, LODO PÂNTANOS
Ibeji Várias Cores Vivas  Bejê Orô! Os Jogos CRIANÇAS
Logunedé Amarelo e Azul Claro  Logum ou Oriki!A Caça e a Pesca  RIOS E FLORESTA
Obá  Amarelo e Vermelho  Obá Xireê! A Culinária CACHOEIRAS
Oxum  Amarelo  Ora ieiê!  Beleza ÁGUA DOCE
Iansã Marrom Avermelho Epahei! Os mortos  A TEMPESTADE
Xangô Vermelho e Branco  Kauô-Kabisselê! Raio e Trovão (Justiça)  PEDRAS E MONTES
Ossaim Azul e Vermelho  Ue-eô! Cura e Liturgia  FOLHAS
Oxossi  Verde e Azul ClaroOkê Arô! Animais da Floresta  MATAS
Ogum Azul Escuro Ogunhê! Caminhos e Guerra  FERRO
Exú Preto e Vermelho  Laroiê! Portas e Encruzilhadas  FOGO

Ao processo ritualístico pelo qual se liga um corpo material à energia de um determinado orixá, chama-se ‘assentamento’. Por redução, o termo é utilizado para designar objetos (pedras, amuletos, instrumentos ritualísticos) que representam cada orixá, depois de um ritual onde a energia mística da entidade seja concentrada nos seus corpos. O fetiche mais comum é o ‘otá’ (pedra). Ele fica mergulhado em líquidos e substâncias, guardadas em pequenos frascos (as quartinhas) vedadas com panos coloridos com símbolos bordados, dependendo do orixá. Os líquidos mais comuns são o mel, o azeite-de-dendê e a água macerada com ervas do santo. São utilizadas águas de diferentes procedências: água do mar, dos rios, da chuva, etc., Os líquidos ou ‘Abós’ são preparados ritualmente com algumas gotas de sangue animal e com cantos secretos que apenas os Babalorixás conhecem. Há casos, no entanto, como na água de Xangô, que é preparada a apartir de uma ‘pedra de raio’ (meteorito), em que o otá é que imanta o líquido da quartinha. 

Todos assentamentos são periodicamente alimentados por sacrifícios e oferendas características de cada entidade, de forma a re-energizá-lo do seu Axé específico. Tal energia é armazenada nos pontos centrais do terreiro e utilizada  para dinamizar novos objetos ritualísticos ou para a manifestação das entidades em seus filhos. Assim, por extensão, o termo ‘assentamento’ também se refere à pedra fundamental do terreiro (onde por ocasião da inauguração são enterrados diversos objetos referentes ao santo da casa) e ao processo de iniciação ritual de um filho no santo (ou Iaô), para designar o momento em que a força mística do orixá é fixada na cabeça de um participante do culto. Temos, portanto três tipos de assentamentos distintos e três esferas de realimentação energética.

 Todos candomblés tradicionais têm assentamentos da casa, aqueles pertencentes ao orixá a que o terreiro é dedicado. Estes assentamentos são enterrados por ocasião da cerimônia de inauguração do local, na pedra fundamental da casa ou sob o ‘Ixé’, um mastro central onde se asteia a bandeira com os símbolos gráficos do orixá padroeiro. Na entrada de todos terreiros, costuma existir uma Gameleira-Branca, árvore consagrada a Iroko (o Tempo), que é plantada segundo rituais prescritos e também deve ser considerada um assentamento da casa. Este orixá responde pelas mudanças climáticas e meteorológicas, é uma espécie de guardião do terreiro. Caso exista no local a presença de outras forças naturais (cachoeiras, rios, pedreiras, etc.) também podem haver assentamentos específicos para os orixás correspondentes.

De uma forma geral, estes assentamentos são alimentados Ossé anual - que é uma grande festa de limpeza do altar e de todo terreiro, quando são servidos alimentos ritualísticos especiais para todos os orixás - e nas festas públicas de cada um dos santos, conforme o calendário litúrgico tradicional.
DATA SANTO DO DIACELEBRAÇÃO
20 de janeiroSão Sebatião Festa de Omulú (BA) e Oxossi (RJ)
02 de fevereiro N. Sra. das Candeias  Festa de Yemanjá (BA)
23 de abrilSão Jorge Festa de Ogum (RJ) e Oxossi (BA)
13 de junhoSanto AntônioFesta de Ogum (BA)
24 de junhoSão João BatistaFesta de Xangô
29 de junhoS. Pedro e S. Paulo  Festa de Oxalá
26 de julhoN. Sra. de Sant’ana  Festa de Nanã Burukê
24 de agostoSão BartolomeuFesta de Oxumaré
27 de setembroCosme e Damião Festa dos Ibeji
30 de setembroSão JerônimoFesta de Xangô
02 de novembroFinados Festa de Todos os Santos
04 de dezembroSanta BárbaraFesta de Yansã
08 de dezembroVirgem da ConceiçãoFesta de Oxum



Apesar do caráter semi-matriarcal das culturas africanas, o calendário litúrgico original do candomblé era marcado pelo advento das quatro estações climáticas, com o solstício de inverno (junho) dedicado aos principais orixás masculinos (Ogum, Xangô, Oxalá) e o solstício de verão (dezembro) consagrado aos orixás femininos (Iansã, Oxum, Yemanjá). Nunca houve um único calendário para o culto dos orixás. no Brasil, a fiscalização que os feitores das fazendas onde trabalhavam os escravos africanos exerciam e a repressão em geral aos cultos do candomblé fizeram com que os negros se adaptassem, da maneira que puderam, suas festas às cerimônias católicas.  

 Existem ainda no âmbito do terreiro: a tronqueira, o assentamento do Exú protetor da casa, e o Ilê-Saim, a casa dos mortos (eguns) que ainda estão identificados à vida material. Esses assentamentos, que ficam sempre fora da área do terreiro consagrada aos orixás, não são alimentados anualmente, mas sim conforme o ciclo lunar de 28 dias e o ciclo diário das marés. No candomblé, o Exú é a entidade que apresenta a freqüência mais densa do espectro (vermelho e preto), a única capaz de estabelecer uma ligação entre os homens e os orixás. Por isso, ele é requisitado para iniciar todas operações rituais do culto. Cada orixá tem seus próprios exús, que funcionam como servos ou mensageiros, possibilitando o contato com as entidades. Portanto, antes de qualquer oferenda para os santos, também é sempre feito um sacrifício aos exús correspondentes. O objetivo deste sacrifícios é manter atuantes os axés dos assentamentos, as forças místicas dos orixás. O sangue, juntamente com o álcool e a sexualidade, são veículos materiais que emitem as vibrações indispensáveis aos exús e aos desencarnados em geral atuarem no plano material e também, no
sentido inverso, aos homens penetrarem em outros estados de percepção e consciência.


 O assentamento de um orixá em  um ser humano é realizada através de um processo cerimonial chamado de ‘iniciação’. Estes processos são alimentados por obrigações, oferendas individuais de cada iniciado aos seus orixás tutelares ou a uma entidade com a qual esteja momentaneamente desarmonizado. Além das cerimônias anuais do calendário litúrgico, existe um dia da semana consagrado a cada orixá, que pode ser usado para a entrega de obrigações individuais, feitas de comidas ofertadas e da realização de sacrifícios animais.

 As restrições alimentares também condicionam simbolicamente esta identidade permanente entre os homens e os deuses: as proibições consistem em não consumir as substâncias que vibram na mesma freqüência do santo a que se está identificado. Apenas no processo de iniciação estas substâncias são ritualmente ingeridas. Após este período, as comidas características de cada orixá são interditadas a seus filhos. Caso o indivíduo não obedeça a estas restrições alimentares a que se encontra submetido e realize uma ‘auto-antropofagia simbólica’, ele sofrerá as quizilas (sensação de nojo, mal-estar). Pelo mesmo motivo, a manutenção da identidade psíquica entre o Orixá e o iniciado, eram considerados incestuosos os casamentos entre os filhos de um mesmo santo. Na África, visto que os candomblés eram verdadeiras identidades étnicas e haverem laços reais de parentesco entre os grupos que cultuavam uma mesma entidade, esta proibição tinha um sentido genético, além de cultural e intersubjetivo.

 Mas não se deve pensar que os homens são prisioneiros de um comportamento estereotipado, meros instrumentos passivos dos deuses: “o santo também é possuído por seus filhos”, que têm um papel ativo, tecendo relações complexas entre os orixás e a comunidade, multiplicando as relações entre as próprias entidades. O discurso dos iniciados traduz esta reciprocidade claramente. Do mesmo modo que se fala do ‘seu’ santo, costuma-se comentar também que ‘se é o próprio santo’: “o Xangô de fulano é rebelde”; e inversamente: “Beltrano é um dos Ogum da casa”. Ou seja: ao mesmo tempo que os deuses são designados como propriedades dos seus filhos, os iniciados também são propriedades dos orixás com que estão identificados. Ocorre, assim, um jogo constante de trocas entre o indivíduo concreto e o princípio abstrato que ele manifesta. Há, portanto, uma reciprocidade simbólica muito dinâmica entre a entidade e a pessoa.

E é esta reciprocidade que se desenvolve simultaneamente em três níveis - o ciclo anual de ‘firmeza’ da casa, o ciclo mensal de realimentação energética dos fetiches e dos abôs, e o ciclo semanal das obrigações individuais decorrentes da iniciação. E este último ciclo, no entanto, acabou simplificando todo sistema múltiplo e selvagem do Ifá em um sistema de sete vibrações principais. 

Hoje as comidas e plantas não são mais classificadas segundo seus lugares no espaço/tempo mítico, mas sim em relação as faixas vibratórias de um corpo universalizado. A passagem do sistema múltiplo, selvagem e territorial dos Orixás no Candomblé para as sete linhas da Umbanda segue um caminho de enquadramento e síntese das freqüências no modelo de correspondência do Ocidente, como no caso dos sete dias da semana, em detrimento das datas locais e da  territorialidade. 
DIA DA SEMANA 
ORIXÁ 
SACRIFÍCIO
OFERENDAS
Segunda-Feira

Exú




Omulú




 Nanã
Frangos pretos, galinhas d’angola e bodes pretos




Bode, porco e galo




Cabra e galinha
Farofa de Dendê, mel e cachaça




Aberém (bolo de milho ou arroz, Doburú (pipoca sem sal) e Latipa (folhas de mostarda cozidas)




Anderê (vatapá de feijão fradinho) e também as comidas de Omulú, Iroko e Oxumaré
Terça-Feira
Ogum




Oxumaré




Iroko
Galo




Bode, galo ou galinha




Galo ou carneiro
Inhame assado, acarajé e feijoada com cerveja




Feijão com milho, Gururu, camarão com azeite e cebola




 Ajabó (quiabos picados com mel e milho branco com feijão
Quarta-Feira
Xangô




Iansã
Galo ou carneiro




Cabra e galinha
Amalá (caruru de quiabos), acarajé comprido e farofa de mandioca com feijão e arroz




Acarajé e Amalá com 14 quiabos



Quinta-Feira
Oxossi




Ossaim




Logunedé 
Bode, porco e galo




Bode e galo




Odá (bode castrado)
Feijão preto torrado, axoxó e inhame




Fumo, mel e farofa




Omolocum (pasta de feijão, camarão, ovos, cebola com dendê. Pratos de Oxum e Oxossi
Sexta-Feira
Oxalá
Cabra, pombos, galinhas
brancas 
Açaça de arroz com mel, ebó de
milho branco



Sábado
Yemanjá




Oxum
Patas, cabras e galinhas brancas




Cabra, galinhas e patas 
Ebó de milho branco, arroz, mel e angú




Omolocum, xinxins de galinhas, Adum e Ipeté.
Domingo
Ibeji 
Frangos de leite 
Carurú, vapatá, doces e balas


Assim toda estrutura litúrgica do culto aos orixás no candomblé pode ser resumida como o processo de, ritualisticamente, acumular, e em seguida transmitir, axé para os Iaôs em três níveis: o ciclo anual de ‘firmeza’ da casa, o ciclo mensal de realimentação energética dos fetiches e dos ebôs, e o ciclo diário das obrigações individuais decorrentes da iniciação.
No centro de todas essas relações que compõem a ‘economia energética’ do candomblé está Ifá, o Orixá do Destino. O jogo oracular mais comum é constituído por l6 búzios (pequenas conchas). O pai-no-santo agita os búzios nas mãos e lança-os dentro de um círculo, formado por colares de diversos orixás. O búzio pode cair ‘aberto’ ou ‘fechado’, ou seja, com sua face onde há uma fenda ou com o lado liso. Cada uma dessas ‘caídas’ é uma manifestação de um orixá e tem um significado próprio, já que, conforme a ordenação resultante, pode-se determinar qual deles está respondendo.
 Todos os aspectos da vida são suscetíveis de codificação por cada um dos orixás que se manifestam no jogo. Os deuses se tornam assim o princípio de classificação dos acontecimentos: cada um governa um acontecimento-tipo. Além da ordenação dos búzios (abertos e fechados), que determina a entidade que preside cada resposta, a configuração - ou o modo particular como os búzios se distribuíram no espaço geometricamente - também é fundamental para a leitura, pois corresponde à ‘organização energética’ do inconsciente do indivíduo frente a uma força matriz. O conjunto dos dois fatores, ordenação e configuração, chama-se odú ou sina. O Sistema de Ifá embora bastante contestada por pesquisadores posteriores, a relação recolhida e apresentada por Roger Bastide e Pierre Verger, hoje é utilizada e até citada por alguns cartomantes como sendo a tradicional. 

ENTIDADE BÚZIOS ENTIDADE BÚZIOS
Exú 01 abertos e 15 fechadosObá 15 abertos e 01 fechados
Ibeji 02 abertos e 14 fechadosOxumaré 14 abertos e 02 fechados
Ogum 03 abertos e 13 fechados Omulú 13 abertos e 03 fechados
Xangô 04 abertos e 12 fechadosOssaim 12 abertos e 04 fechados
Yemanjá  05 abertos e 11 fechados   Logunedé 11 abertos e 05 fechados
Yansã 06 abertos e 10 fechados Oxum 10 abertos e 06 fechados
Oxossi 07 abertos e 09 fechados Nanã 09 abertos e 07 fechados
Oxalá 08 abertos e 08 fechadosLance nulo 16 abertos ou fechados



Dessa forma, a ordenação aberto-fechado determina que orixá está falando e a configuração espacial dos búzios indica o que ele está dizendo. Através de sucessivas jogadas, chega-se , então, a uma espécie de inventário do que está acontecendo à pessoa, não apenas em relação aos seus orixás tutelares, ‘os donos de sua cabeça’, mas também como outras entidades estão influindo positiva ou negativamente em sua vida, quais são as suas tendências recorrentes e as possibilidades diante do destino. Geralmente são propostos trabalhos e obrigações para o re-equilíbrio energético.

 As respostas são decifradas através de lendas e das estórias dos deuses - que são transmitidas de geração em geração através da tradição oral. Por isso, ‘jogar búzios’ requer não somente bastante intuição para interpretar as diferentes configurações formadas pelas forças-matrizes, mas também um conhecimento oral do conjunto da tradição mítica dos orixás e do seu universo simbólico. O sacerdote de Ifá era, originariamente, chamado de Babalaô.  Eles eram os historiadores orais da cultura africana. Sua iniciação era muito mais complexas que as outras, pois não envolvia a identificação com um único arquétipo e o desenvolvimento de suas características na personalidade do iniciando, mas sim o aprendizado de séculos de conhecimento armazenado pelo culto. Hoje os zeladores de santo em geral manejam o oráculo.

Aliás, duas perspectivas contemporâneas hoje se desenvolvem: o resgate do patrimônio simbólico do candomblé e a reinvenção das tradições pela Umbanda. O resgate do simbolismo tradicional do candomblé, ganhou grande impulso nos anos 90, com trabalhos de pesquisa e reconstituição tanto de histórias e lendas míticas, mas principalmente do próprio sistema do Ifá. E é como vimos: no Xireé, a ordem seqüencial de apresentação durante o ritual, é quando melhor se observa como os Orixás formam as freqüências de rede do Candomblé enquanto linguagem simbólica: cada entidade é um feixe de referentes simbólicos, cada orixá tem sua cor, suas músicas, sua dança e, ao mesmo tempo, corresponde a um tipo de comportamento humano específico e a uma faixa vibratória da Natureza. 

A Umbanda, por sua vez, adota a escala musical séptupla e o espectro cromático da luz no arco-íris: as sete linha da umbanda, onde cabem, em diferentes patamares, todos os orixás, mensageiros, energias. Há uma virtualização das identidades simbólicas-genéticas em identidades simbólicas- culturais. É o sistema de classificação das referências alimentares e audiovisuais dos orixás (o Ifá) transformado em sistema de classificação de referências psicológicas da personalidade. O Axé foi personalizado e os orixás tornaram-se progressivamente 'máscaras', tipos de pessoas e/ou aspectos psicológicos da personalidade, não apenas dos vivos mas também dos mortos.

Mas há diferentes níveis de aplicação desses critérios. Em alguns centros que tanto trabalham com Umbanda quanto com Candomblé ('Nação'), costuma-se dizer que "Orixá não incorpora, irradia". Porém, ao se tratar do Orixá Ibeji e das 'crianças' da Umbanda a diferença é apenas conceitual. Aliás, muitas o 'estado de erê' é mais um estágio do transe do que uma freqüência específica. O mesmo também pode ser dito sobre os pretos-velhos e os orixás mais idosos Nanã, Oxaguiã, Omulú. Essas experiências de transe nos remetem mais aos arquétipos juguianos da 'criança interior' e do 'velho sábio' (elementos de dramatização dos diferentes momentos da vida) do que propriamente de diferentes combinações dos aspectos psicológicos da personalidade. Há também várias interpretações e analogias possíveis entre a linguagem astrológica e do Ifá, como a que compara o orixá de cabeça com o signo solar e adjunto como ascendente, ou aspecto secundário da personalidade. Outros preferem ler os orixás como planetas e os aspectos como relacionamentos míticos entre eles. 



OS ORIXÁS E OS SETE PLANETAS
OXALÁ
SOL
ESPIRITUALIDADE
YEMANJÁ
LUA
SENSIBILIDADE
OMULÚ
SATURNO
SEVERIDADE/LIMITES
XANGÔ
JÚPITER
GENEROSIDADE
OGUM
MARTE
AGRESSIVIDADE
OXUM
VÊNUS
SEXUALIDADE
EXU
MERCÚRIO
COMUNICAÇÃO/TRANSPORTE