“O kambô circula no coração. Nosso pajé disse que quando tomamos kambô, ele faz o coração se movimentar da maneira correta, fazendo com que as coisas fluam, trazendo coisas boas para a pessoa. É como se houvesse uma nuvem sobre a pessoa, impedindo as coisas boas de chegar, então, quando ela toma o kambô, vem uma ‘luz verde’ que abre seus caminhos, facilitando as coisas" [1]
Conta uma lenda Kaxinawá que os índios da aldeia estavam muito doentes e de tudo havia feito o Pajé Kampu para curá-los. Todas as ervas medicinais que conhecia foram usadas, mas nenhuma livrara seu povo da agonia. Kampu então se entrou na floresta e, sobre o efeito da Ayahuasca, recebeu a visita do grande Deus. Este trazia nas mãos uma rã, da qual tirou uma secreção esbranquiçada, cuja aplicação nos enfermos ensinou como deveria ser feita. Voltando à tribo e seguindo as orientações que havia recebido, o Pajé Kampu pode curar seus irmãos índios. Depois, com sua morte, o espírito do Kampu passou a habitar no sapo e os índios passaram a utilizar a sua secreção para se manter ativos e saudáveis[2].
A rã verde - Phyllomedusa bicolor, apelidada de sapo Kambô [3], é a maior espécie do gênero da família Hylidae, encontrada no sul da Amazônia e em todo o território do Acre, podendo ser encontrado também em quase todos os países amazônicos. Por extensão, também se chama de Kambô a resina retirada desse sapo e à sua aplicação medicinal: “Vamos tomar Kambô”.
Esta resina contém substâncias peptídeas analgésicas (a dermorfina[4] e a deltorfina[5]) e de fortalecimento do sistema imunológico que provocam a destruição de microorganismos patogênicos. As substâncias da secreção do sapo também possuem propriedades antibióticas, de fortalecimento do sistema imunológico através da produção de anticorpos pelo organismo contra o veneno, e ainda revelaram grande poder no tratamento do mal de Parkinson, AIDS, câncer, depressão e outras doenças. A Deltorfina e Dermorfina hoje estão sendo produzidos de forma sintética pelos laboratórios farmacêuticos. [6]
Há também, devido ao seu efeito purgante, um evidente processo de desintoxicação do fígado (geralmente vomita-se bílis amarga), do intestino (através de evacuações) e do todo sistema digestivo. Os katukina usam-no também como antídoto em caso de picada de cobra, medicamento para males diversos, fortificante e purgatório.
Mas, para os índios, a principal causa de tomar Kambô é combater a ‘panema’. A panema é a tristeza, a falta de sorte, a irritação: “o baixo astral” – como alguém certa vez bem traduziu. A pessoa está com “panema” quando nada dá certo e nada está bom. A finalidade básica do kambo é "tirar a panema" para atrair a caça e as mulheres. E esse, por mais difícil que seja aceitar para o pensamento ocidental, é o principal efeito do Kambô: ele estabelece um ‘choque de gestão’ espiritual na vida das pessoas, “um realinhamento dos chackras”, um marco de reorganização orgânica e psicológica a partir do qual a pessoa muda de atitude e altera seus padrões futuros de saúde.
Das 53 etnias indígenas brasileiras de lá que usavam a vacina, hoje existem apenas 13. Três delas grandes, com reservas na região do Alto Juruá: os Kaxinawás, os Ashaninkas e os Katukinas. Existem variações nos rituais e nomes dados ao sapo verde. Os Katukinas, no entanto, tem maior afinidade com o Kambô, tomando seu veneno mais vezes que as outras etnias e têm sua identidade marcada diretamente por essa prática[7].
A terapeuta floral e acupunturista Sonia Maria Valença Menezes[8] é a grande responsável pela divulgação dos procedimentos Katukina com o Kambô, mantendo um escritório em São Paulo em conjunto com a tribo – para ministrar aplicações – e promovendo viagens terapêuticas para a reserva no Alto Juruá.
Há alguns anos surgiu também um uso caboclo do Kambô. Seringueiros acreanos aprenderam estes conhecimentos com os índios e começaram a aplicar kambô em brancos, nas cidades de Cruzeiro do Sul e Rio Branco. O principal deles foi Francisco Gomes (ou Shiban) de Cruzeiro do Sul, que conviveu anos com os índios da região e aprendeu a arte do Kambô. Genildo Gomes, filho de Francisco Gomes, continuou seu trabalho de difusão do Kambô e criou, em 2002, a Associação Juruaense de Recursos Extrativistas e Medicina Alternativa, AJUREMA, principal centro de irradiação do Kambô.
Embora difícil de achar (confunde-se com as folhas), os sapos Kambôs podem ser encontrados nas proximidades dos igarapés, quando cantam anunciando chuva. Os índios geralmente os ‘colhem’ ao amanhecer, também cantando. Em algumas tradições, apenas o pajé ‘colhe’ o sapo; em outras todos os que ouvem seu chamado à noite. Os sapos são extremamente venenosos e não reagem à captura. Nem se mexem, como se não tivessem predadores. Aparentemente, são intragáveis - as cobras, espécimes quase sempre cegos, que se orientam pelo calor das presas, os cospem, desesperadas, quando os abocanham. A técnica de extração do veneno é tão antiga quanto simples. Amarra-se o bicho pelos pés, em forma de "X" e cospe-se nele três a quatro vezes, para irritá-lo. Liberada a secreção, basta raspá-la com um pedaço de pau. A secreção (parece espuma) cristaliza-se rapidamente, podendo ser utilizada a qualquer hora.
Não há segredo na aplicação do kambô: com um pedaço de cipó em brasa, queima-se p braço várias vezes, abrindo pequenos furos na epiderme (chamados de pontos). A aplicação da resina diluída em água é realizada sobre a pele e transportada rapidamente para todo o corpo pelos vasos linfáticos. A quantidade de pontos (geralmente em número impar) pelos quais o veneno será introduzido em seguida (com uma espátula de madeira) depende da estatura física, do número de vezes que já tenha utilizado o kambô, do motivo da aplicação e da avaliação do aplicador, baseada nos seus conhecimentos.
Há diferentes filosofias entre os aplicadores, principalmente entre os katukinas e os caboclos que o utilizam nas cidades. Para os caboclos, há contra-indicação no caso de mulheres grávidas, lactantes e no ciclo menstrual, já que pode causar hemorragias, devido à dilatação dos vasos sangüíneos, assim como em crianças menores de dez anos e os idosos com problemas cardíacos e de pressão alta. Para os Katukinas, não há essas restrições e as crianças começam a tomar kambô a partir dos dois anos, quando acaba o período de amamentação. Os Katukinas tomam até 100 pontos em uma única aplicação e se aplicam em diferentes épocas do ano, durante toda a vida.
No uso caboclo, o tratamento básico é de três doses, em intervalos de tempo que variam segundo o nível de desenvolvimento da pessoa com o kambô. O primeiro tratamento é de três meses, são três doses crescentes (por exemplo: 5, 7 e 9 pontos) de 28 em 28 dias, de preferência das luas nova e minguante. Em seguida, após pelos menos seis meses da última aplicação do primeiro tratamento, pode-se fazer um segundo, agora de 15 em 15 dias, com doses crescentes menores (por exemplo: 3, 5 e 7). Também se fazem tratamentos de 7 dias (todas as luas menos a cheia) e de 3 dias seguidos, combinadas com mudanças alimentares (dieta sem sólidos e sem sal) e o uso da ayahuasca. O importante é que o intervalo máximo entre duas aplicações é uma lua, 28 dias. “Se passa mais tempo que isso entre uma dose e outra, o kambô vai ter que trabalhar tudo que havia trabalhado antes novamente”.[9]
De acordo com Davi de Paula Nunes, filho de seringueiro e um dos principais terapeutas amazônicos, não há qualquer obrigatoriedade em tomar em três vezes consecutivas e alerta: “O Kambô é uma vacina e como tal não deve ser usada em baixa dosagem de forma seguida para que o corpo não se acostume às substâncias e perca seu efeito”. Os homens geralmente aplicam nos braços ou no peito. Se for mulher, a aplicação dos pontos é na perna. No caso, dos Katukinas, na parte de frente da perna. Os caboclos costumam, por motivos estéticos, aplicar na batata da perna. Para os índios, a marca dos pontos na pele é motivo de orgulho e não deve ser escondida ou colocada na parte detrás do corpo. Outra diferença interessante: tanto os Katukinas como os caboclos pedem que se faça uma dieta de sólidos e de sal de pelo menos 12 horas. Mas, enquanto os índios ingerem uma grande quantidade (3 a 5 litros) de caiçuma de milho durante a noite, antes de tomar kambô; os caboclos prescrevem apenas 2 litros de água pura poucos minutos antes da aplicação.
A reação da vacina dura cinco minutos. Nesse tempo, o coração dispara, o sangue corre acelerado nas veias, a pressão cai ou sobe muito, a pessoa fica tonta ou nauseada. Algumas pessoas vêem tudo branco, como se o mundo estivesse coberto por uma névoa difusa, ou caem no chão, sem forças. Há também relatos de sensação de correntes elétricas epidérmicas formigando pelo corpo. Muitos usuários incham, ficando com a aparência semelhante a um sapo. Então, de repente, o organismo reage ao mal-estar e põe tudo para fora. Vômito forte e diarréia são as respostas mais comuns. Só então, aos poucos, os sentidos voltam ao normal. A pessoa se sente leve, limpa, disposta, de bem com a vida. Depois de 30 minutos da aplicação, a pessoa já está apta para suas atividades normais.
Minha experiência pessoal indica que a água desempenha um papel fundamental em todo processo, não apenas em sua ingestão pelo paciente, mas, sobretudo, na diluição do veneno pelo aplicador. Ao que parece um número maior de pontos com pequenas quantidades bem diluídas (perspectiva homeopática) faz mais efeito (e tem menos riscos de envenenamento) que aplicações com poucos pontos com quantidades maiores de secreção. A água é ainda prescrita na forma de um banho posterior a diminuição dos efeitos, não somente como uma forma de limpar o corpo dos excessos provados pelo mal-estar (suor, vómitos, feses), mas também, no sentido simbólico, como um complemento do processo da cura do Kambô.
As pesquisadoras Edilene Coffaci de Lima (UFPR) e Beatriz Caiuby Labate (UNICAMP) estudam a difusão do Kambô nos centros urbanos, analisando, sobretudo, o discurso que esses diversos aplicadores (índios, ex-seringueiros, terapeutas holísticos e médicos) têm elaborado sobre o uso da secreção. Para elas, as “falas são pendulares, ora inclinam-se para uma explicação espiritualista, ora para uma interpretação cientificista ou médica das doenças”. Passa-se da panacéia universal (da cura de todos os males) ao placebo (a cura por indução psicológica). E muitas vezes essas oscilações escondem algumas simplificações. A palavra ‘panema’, por exemplo, é re-interpretada como ‘depressão’ pelos terapeutas urbanos. Ou ainda como uma energia negativa capaz de gerar um amplo espectro de doenças. Por outro lado, as pesquisadoras entendem que a produção e comercialização das substâncias retiram da aplicação do Kambo a parte mais impactante de seu efeito. Que o remédio da ciência é indissociável do remédio da alma (LIMA; LABATE, 2007).
Pesquisas científicas internacionais, nas áreas química e farmacêutica, são realizadas sobre as propriedades do Kambô desde a década de 80. Pesquisadores italianos, franceses e israelitas Já entraram com pedidos de patente sobre a dermorfina. Mais recente, a Universidade de Kentucky (EUA) está pesquisando (e patenteando) a deltorfina em colaboração com a empresa farmacêutica Zymogenetics. Diversos laboratórios internacionais já estão interessados no veneno do kambô para desenvolver um medicamento que pode levar à cura do câncer[10].
Em 2003, alguns katukina de Cruzeiro do Sul procuraram o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) para denunciar o mau uso do kambô. Pediram providências contra o pirateamento do kambô por urbanos; estavam preocupados, também, com seus direitos intelectuais no caso de remédios derivados da substância. Vale lembrar que uma patente pode demorar muitos anos até chegar a eventualmente virar um remédio.
Em 29 de abril de 2004, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), proibiu qualquer propaganda das virtudes terapêuticas e medicinais do kambô[11]. A ministra Marina Silva decidiu tratar esse caso como um caso-modelo. Para isso, designou um grupo de trabalho do Ministério do Meio Ambiente para uma ação conjunta. O grupo, que vem se reunindo desde 2004, congrega representantes de etnias indígenas, antropólogos, indigenistas, herpetólogos (biólogos que estudam sapo), biólogos moleculares e médicos.
Mas o Kambô é, como vimos, um objeto complexo e escorregadio, irredutível aos diferentes discursos científicos (clínico alternativo, fármaco-químico, antropológico, etc) e dificilmente será regulamentado ou reduzido sem antes uma redefinição das perspectivas com as quais ele é descrito até o momento. Quando se fala de Kambô e de sua definição, alguns se preocupam com o manejo florestal do sapo, outros com a patente das substâncias químicas, outros ainda com as possibilidades terapêuticas da prática de sua aplicação, mas, para os índios, a explicação é mais simples: o Kambô é o espírito do Pajé Kampu cumprindo sua missão de defender a saúde dos defensores das florestas.[12]
Conta uma lenda Kaxinawá que os índios da aldeia estavam muito doentes e de tudo havia feito o Pajé Kampu para curá-los. Todas as ervas medicinais que conhecia foram usadas, mas nenhuma livrara seu povo da agonia. Kampu então se entrou na floresta e, sobre o efeito da Ayahuasca, recebeu a visita do grande Deus. Este trazia nas mãos uma rã, da qual tirou uma secreção esbranquiçada, cuja aplicação nos enfermos ensinou como deveria ser feita. Voltando à tribo e seguindo as orientações que havia recebido, o Pajé Kampu pode curar seus irmãos índios. Depois, com sua morte, o espírito do Kampu passou a habitar no sapo e os índios passaram a utilizar a sua secreção para se manter ativos e saudáveis[2].
A rã verde - Phyllomedusa bicolor, apelidada de sapo Kambô [3], é a maior espécie do gênero da família Hylidae, encontrada no sul da Amazônia e em todo o território do Acre, podendo ser encontrado também em quase todos os países amazônicos. Por extensão, também se chama de Kambô a resina retirada desse sapo e à sua aplicação medicinal: “Vamos tomar Kambô”.
Esta resina contém substâncias peptídeas analgésicas (a dermorfina[4] e a deltorfina[5]) e de fortalecimento do sistema imunológico que provocam a destruição de microorganismos patogênicos. As substâncias da secreção do sapo também possuem propriedades antibióticas, de fortalecimento do sistema imunológico através da produção de anticorpos pelo organismo contra o veneno, e ainda revelaram grande poder no tratamento do mal de Parkinson, AIDS, câncer, depressão e outras doenças. A Deltorfina e Dermorfina hoje estão sendo produzidos de forma sintética pelos laboratórios farmacêuticos. [6]
Há também, devido ao seu efeito purgante, um evidente processo de desintoxicação do fígado (geralmente vomita-se bílis amarga), do intestino (através de evacuações) e do todo sistema digestivo. Os katukina usam-no também como antídoto em caso de picada de cobra, medicamento para males diversos, fortificante e purgatório.
Mas, para os índios, a principal causa de tomar Kambô é combater a ‘panema’. A panema é a tristeza, a falta de sorte, a irritação: “o baixo astral” – como alguém certa vez bem traduziu. A pessoa está com “panema” quando nada dá certo e nada está bom. A finalidade básica do kambo é "tirar a panema" para atrair a caça e as mulheres. E esse, por mais difícil que seja aceitar para o pensamento ocidental, é o principal efeito do Kambô: ele estabelece um ‘choque de gestão’ espiritual na vida das pessoas, “um realinhamento dos chackras”, um marco de reorganização orgânica e psicológica a partir do qual a pessoa muda de atitude e altera seus padrões futuros de saúde.
Das 53 etnias indígenas brasileiras de lá que usavam a vacina, hoje existem apenas 13. Três delas grandes, com reservas na região do Alto Juruá: os Kaxinawás, os Ashaninkas e os Katukinas. Existem variações nos rituais e nomes dados ao sapo verde. Os Katukinas, no entanto, tem maior afinidade com o Kambô, tomando seu veneno mais vezes que as outras etnias e têm sua identidade marcada diretamente por essa prática[7].
A terapeuta floral e acupunturista Sonia Maria Valença Menezes[8] é a grande responsável pela divulgação dos procedimentos Katukina com o Kambô, mantendo um escritório em São Paulo em conjunto com a tribo – para ministrar aplicações – e promovendo viagens terapêuticas para a reserva no Alto Juruá.
Há alguns anos surgiu também um uso caboclo do Kambô. Seringueiros acreanos aprenderam estes conhecimentos com os índios e começaram a aplicar kambô em brancos, nas cidades de Cruzeiro do Sul e Rio Branco. O principal deles foi Francisco Gomes (ou Shiban) de Cruzeiro do Sul, que conviveu anos com os índios da região e aprendeu a arte do Kambô. Genildo Gomes, filho de Francisco Gomes, continuou seu trabalho de difusão do Kambô e criou, em 2002, a Associação Juruaense de Recursos Extrativistas e Medicina Alternativa, AJUREMA, principal centro de irradiação do Kambô.
Embora difícil de achar (confunde-se com as folhas), os sapos Kambôs podem ser encontrados nas proximidades dos igarapés, quando cantam anunciando chuva. Os índios geralmente os ‘colhem’ ao amanhecer, também cantando. Em algumas tradições, apenas o pajé ‘colhe’ o sapo; em outras todos os que ouvem seu chamado à noite. Os sapos são extremamente venenosos e não reagem à captura. Nem se mexem, como se não tivessem predadores. Aparentemente, são intragáveis - as cobras, espécimes quase sempre cegos, que se orientam pelo calor das presas, os cospem, desesperadas, quando os abocanham. A técnica de extração do veneno é tão antiga quanto simples. Amarra-se o bicho pelos pés, em forma de "X" e cospe-se nele três a quatro vezes, para irritá-lo. Liberada a secreção, basta raspá-la com um pedaço de pau. A secreção (parece espuma) cristaliza-se rapidamente, podendo ser utilizada a qualquer hora.
Não há segredo na aplicação do kambô: com um pedaço de cipó em brasa, queima-se p braço várias vezes, abrindo pequenos furos na epiderme (chamados de pontos). A aplicação da resina diluída em água é realizada sobre a pele e transportada rapidamente para todo o corpo pelos vasos linfáticos. A quantidade de pontos (geralmente em número impar) pelos quais o veneno será introduzido em seguida (com uma espátula de madeira) depende da estatura física, do número de vezes que já tenha utilizado o kambô, do motivo da aplicação e da avaliação do aplicador, baseada nos seus conhecimentos.
Há diferentes filosofias entre os aplicadores, principalmente entre os katukinas e os caboclos que o utilizam nas cidades. Para os caboclos, há contra-indicação no caso de mulheres grávidas, lactantes e no ciclo menstrual, já que pode causar hemorragias, devido à dilatação dos vasos sangüíneos, assim como em crianças menores de dez anos e os idosos com problemas cardíacos e de pressão alta. Para os Katukinas, não há essas restrições e as crianças começam a tomar kambô a partir dos dois anos, quando acaba o período de amamentação. Os Katukinas tomam até 100 pontos em uma única aplicação e se aplicam em diferentes épocas do ano, durante toda a vida.
No uso caboclo, o tratamento básico é de três doses, em intervalos de tempo que variam segundo o nível de desenvolvimento da pessoa com o kambô. O primeiro tratamento é de três meses, são três doses crescentes (por exemplo: 5, 7 e 9 pontos) de 28 em 28 dias, de preferência das luas nova e minguante. Em seguida, após pelos menos seis meses da última aplicação do primeiro tratamento, pode-se fazer um segundo, agora de 15 em 15 dias, com doses crescentes menores (por exemplo: 3, 5 e 7). Também se fazem tratamentos de 7 dias (todas as luas menos a cheia) e de 3 dias seguidos, combinadas com mudanças alimentares (dieta sem sólidos e sem sal) e o uso da ayahuasca. O importante é que o intervalo máximo entre duas aplicações é uma lua, 28 dias. “Se passa mais tempo que isso entre uma dose e outra, o kambô vai ter que trabalhar tudo que havia trabalhado antes novamente”.[9]
De acordo com Davi de Paula Nunes, filho de seringueiro e um dos principais terapeutas amazônicos, não há qualquer obrigatoriedade em tomar em três vezes consecutivas e alerta: “O Kambô é uma vacina e como tal não deve ser usada em baixa dosagem de forma seguida para que o corpo não se acostume às substâncias e perca seu efeito”. Os homens geralmente aplicam nos braços ou no peito. Se for mulher, a aplicação dos pontos é na perna. No caso, dos Katukinas, na parte de frente da perna. Os caboclos costumam, por motivos estéticos, aplicar na batata da perna. Para os índios, a marca dos pontos na pele é motivo de orgulho e não deve ser escondida ou colocada na parte detrás do corpo. Outra diferença interessante: tanto os Katukinas como os caboclos pedem que se faça uma dieta de sólidos e de sal de pelo menos 12 horas. Mas, enquanto os índios ingerem uma grande quantidade (3 a 5 litros) de caiçuma de milho durante a noite, antes de tomar kambô; os caboclos prescrevem apenas 2 litros de água pura poucos minutos antes da aplicação.
A reação da vacina dura cinco minutos. Nesse tempo, o coração dispara, o sangue corre acelerado nas veias, a pressão cai ou sobe muito, a pessoa fica tonta ou nauseada. Algumas pessoas vêem tudo branco, como se o mundo estivesse coberto por uma névoa difusa, ou caem no chão, sem forças. Há também relatos de sensação de correntes elétricas epidérmicas formigando pelo corpo. Muitos usuários incham, ficando com a aparência semelhante a um sapo. Então, de repente, o organismo reage ao mal-estar e põe tudo para fora. Vômito forte e diarréia são as respostas mais comuns. Só então, aos poucos, os sentidos voltam ao normal. A pessoa se sente leve, limpa, disposta, de bem com a vida. Depois de 30 minutos da aplicação, a pessoa já está apta para suas atividades normais.
Minha experiência pessoal indica que a água desempenha um papel fundamental em todo processo, não apenas em sua ingestão pelo paciente, mas, sobretudo, na diluição do veneno pelo aplicador. Ao que parece um número maior de pontos com pequenas quantidades bem diluídas (perspectiva homeopática) faz mais efeito (e tem menos riscos de envenenamento) que aplicações com poucos pontos com quantidades maiores de secreção. A água é ainda prescrita na forma de um banho posterior a diminuição dos efeitos, não somente como uma forma de limpar o corpo dos excessos provados pelo mal-estar (suor, vómitos, feses), mas também, no sentido simbólico, como um complemento do processo da cura do Kambô.
As pesquisadoras Edilene Coffaci de Lima (UFPR) e Beatriz Caiuby Labate (UNICAMP) estudam a difusão do Kambô nos centros urbanos, analisando, sobretudo, o discurso que esses diversos aplicadores (índios, ex-seringueiros, terapeutas holísticos e médicos) têm elaborado sobre o uso da secreção. Para elas, as “falas são pendulares, ora inclinam-se para uma explicação espiritualista, ora para uma interpretação cientificista ou médica das doenças”. Passa-se da panacéia universal (da cura de todos os males) ao placebo (a cura por indução psicológica). E muitas vezes essas oscilações escondem algumas simplificações. A palavra ‘panema’, por exemplo, é re-interpretada como ‘depressão’ pelos terapeutas urbanos. Ou ainda como uma energia negativa capaz de gerar um amplo espectro de doenças. Por outro lado, as pesquisadoras entendem que a produção e comercialização das substâncias retiram da aplicação do Kambo a parte mais impactante de seu efeito. Que o remédio da ciência é indissociável do remédio da alma (LIMA; LABATE, 2007).
Pesquisas científicas internacionais, nas áreas química e farmacêutica, são realizadas sobre as propriedades do Kambô desde a década de 80. Pesquisadores italianos, franceses e israelitas Já entraram com pedidos de patente sobre a dermorfina. Mais recente, a Universidade de Kentucky (EUA) está pesquisando (e patenteando) a deltorfina em colaboração com a empresa farmacêutica Zymogenetics. Diversos laboratórios internacionais já estão interessados no veneno do kambô para desenvolver um medicamento que pode levar à cura do câncer[10].
Em 2003, alguns katukina de Cruzeiro do Sul procuraram o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) para denunciar o mau uso do kambô. Pediram providências contra o pirateamento do kambô por urbanos; estavam preocupados, também, com seus direitos intelectuais no caso de remédios derivados da substância. Vale lembrar que uma patente pode demorar muitos anos até chegar a eventualmente virar um remédio.
Em 29 de abril de 2004, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), proibiu qualquer propaganda das virtudes terapêuticas e medicinais do kambô[11]. A ministra Marina Silva decidiu tratar esse caso como um caso-modelo. Para isso, designou um grupo de trabalho do Ministério do Meio Ambiente para uma ação conjunta. O grupo, que vem se reunindo desde 2004, congrega representantes de etnias indígenas, antropólogos, indigenistas, herpetólogos (biólogos que estudam sapo), biólogos moleculares e médicos.
Mas o Kambô é, como vimos, um objeto complexo e escorregadio, irredutível aos diferentes discursos científicos (clínico alternativo, fármaco-químico, antropológico, etc) e dificilmente será regulamentado ou reduzido sem antes uma redefinição das perspectivas com as quais ele é descrito até o momento. Quando se fala de Kambô e de sua definição, alguns se preocupam com o manejo florestal do sapo, outros com a patente das substâncias químicas, outros ainda com as possibilidades terapêuticas da prática de sua aplicação, mas, para os índios, a explicação é mais simples: o Kambô é o espírito do Pajé Kampu cumprindo sua missão de defender a saúde dos defensores das florestas.[12]
LIMA &; LABATE, Edilene Coffaci de, Beatriz Caiuby. “Remédio da Ciência” e “Remédio da Alma”: os usos da secreção do kambô (Phyllomedusa bicolor) nas cidades. Campos - Revista de Antropologia Social v. 8, n. 1 (2007). http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/campos/article/view/9553/6626>
NOTAS
[1] Sonia Maria Valença Menezes é terapeuta e acupunturista.
[2] LABATE, Bia. O pajé que virou sapo e depois promessa de remédio patenteado, Comunidade Virtual de Antropologia, n 27, São Paulo, 2005.
[3] Existem vários nomes: kampu, wapapatsi, Kembo.
[4] A dermorfina é um opiácio que atua como analgésico 300 vezes mais potente que a morfina. Além do sapo phyllomedusa bicolor, essa substância só é encontrada na urina de crianças autistas.
[5] Deltorfina pode ser aplicada no tratamento da Ischemia - um tipo de falta de circulação sanguínea e falta de oxigênio, que pode causar derrames.
[6]CAMURÇA, Denizar Missawa. Estudo sobre a atividade edematogênica, pró-inflamatória, antibacteriana e perfil eletroforético da secreção cutânea de Phyllomedusa bicolor (Boddaert, 1772) (Anura, Hylidae, Phyllomedusinae). Trabalho de Conclusão de Curso de Bacharelado em Ciências Biológicas. Universidade Guarulhos, 2006. Neste trabalho, foram realizadas análises do perfil eletroforético (SDS-PAGE) das proteínas constituintes da secreção da Phyllomedusa bicolor coletada em 2004 e 2006 e da atividade antibacteriana das amostras da secreção. Foram feitas análises in vivo para avaliar o efeito local da inoculação como: formação de edema e presença de infiltrado inflamatório; e alterações sistêmicas como: contagem total e diferencial de leucócitos sangüíneos. A atividade antibacteriana da secreção foi constatada, entretanto não superou a atividade dos antibióticos utilizados no experimento.
[7]Para estudar os Katukinas, v. verbete sobre os katukina, por Lima, Instituto Socioambiental:
[8]Palestra apresentada 16/03/2005 no I Encontro Brasileiro de Xamanismo.
[9] Ni-í da Associação Katukina do Campinas (AKAC), no I Encontro de Brasileiro Xamanismo.
[10]Para acompanhar a situação da patente do kambô, bem como a das patentes da ayahuasca, da copaíba, da andiroba e de outras plantas amazônicas piratiadas para o exterior, veja o site da Amazonlink, ONG que ficou conhecida mundialmente pela campanha "o cupuaçu é nosso", http://www.amazonlink.org/biopirataria/index.htm
[11] Resolução da Anvisa http://www.abpvs.com.br/resolucoes/resolucao08.htm
[12] Outros aportes sobre a Phyllomedusa bicolor, http://www.erowid.org/archive/sonoran_desert_toad/bicolor.htm
Marcelo, parabéns pela iniciativa da divulgação desse poderoso curador natural.
ResponderExcluirViva a Ayahuasca, o Sapo Kambô, enfim a Natureza; a Floresta tem ainda muito a ensinar a Humanidade, a preservar a Natureza, dos Rios, das matas é preservar a Vida na Terra!
ResponderExcluir(www.umbandaime.com.br)
muito bom o texto... seria interessante darem uma checada nos filmes etnográficos que fiz sobre o kambô:
ResponderExcluir(2012) Kambô... xamãs urbanos e
(2009) Kambô... a vacina do sapo
Considero muito importante a constatação de Giovanni Latanzi sobre a eficácia do kambô em dependentes químicos. Considero que o kambô deveria ser utilizado para esse fim de forma experimental no Brasil.
Gostei muito deste texto. Eu sou aplicador/divulgador dessa vacina aqui na Inglaterra e com resultados muito positivos nos tratamentos da panema, arthritis, stress, alegias e outras mais. Para mim kambô é a medicina do futuro, medicina essa que força o corpo a se curar.
ResponderExcluirOlá, Onde posso encontrar esta vacina? Sou de São Paulo - Capital
ResponderExcluirMoro em SP. Alguém tem um telefone de alguém de confiança que faz a aplicação? Pode ser a Sônia Maria Valença Menezes. No aguardo e obrigado
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