sábado, 27 de fevereiro de 2010

Rudolf Steiner

AUTOBIOGRAFIA E SUBJETIVIDADE


Este texto (1) pretende discutir parâmetros e procedimentos metodológicos para organização de biografias e para o estudo histórico da subjetividade individual através da hermenêutica, a teoria geral da interpretação. Geralmente, a hermenêutica é aplicada para explicar e para compreender outras teorias científicas, obras de arte, discursos políticos; aqui, pretende-se utiliza-la para também entender não apenas o percurso das vidas humanas, mas o sentido da própria existência.

O estudo biográfico nas Ciências Social (ou a relação Indivíduo-Sociedade) tem uma longa história, tendo sido utilizado de diferentes modos em diferentes momentos (FERRAROTTI In: NÓVOA & FINGER; 1988. p. 17-34). A partir dos anos 80, a abordagem chamada de “história de vida” – em que há uma distinção entre ‘estória de vida’ (a autobiografia oral) e ‘história da vida’ (a subjetividade objetivada por documentos e pela narrativa externa do pesquisador) - ganhou destaque na pesquisa antropológica.

E, recentemente, esta técnica passou a ser aplicada a grupos sociais específicos, muitas vezes de forma autobiográfica, como os professores e alunos (BUENO, 2002). Os atores coletivos das Ciências Sociais (classes, partidos, estados, organizações, etc) são, na verdade, formados por pessoas. Aqui, no entanto, não se trata de utilizar o enfoque biográfico para re-constituir a memória histórica, mas sim de chegar ao vértice cognitivo da ação social. Nesta perspectiva, a verdadeira práxis histórica é aquela que responde criativamente às seus condicionamentos estruturais, transformando as condições que a formaram.

Afinal, “são os homens que, sem saber, fazem a própria história”. Porém, embora existam muitos cientistas sociais conscientes do peso das estruturas coletivas e do papel da práxis individual como principal fator de transformação social, a tarefa de escrever biografias sempre foi deixada aos jornalistas e escritores, que, por força do hábito, geralmente exageram no poder da personalidade biografado sobre seu contexto histórico. O mesmo pode ser dito das biografias de inspiração psicanalítica e literária. E o foco da pesquisa biográfica não pode nem minimizar nem supervalorizar a subjetividade individual em relação à dimensão coletiva.

Esta exigência de um enquadramento realista do individuo na sociedade torna-se ainda maior e mais complexa quando se trata de uma autobiografia, em que a subjetividade do sujeito pesquisador é a mesma que a do objeto pesquisado. Quando a pesquisa torna-se sujeito, verbo e objeto do discurso, quando a investigação sobre a vida se confunde com a própria vida, é preciso definir parâmetros para manter alguma objetividade.

Assim, o primeiro passo da pesquisa biográfica é contextualizar a vida individual estudada em relação aos diferentes cenários em que está inserido.

ESTRUTURA SOCIAL

FATORES
CONDICIONANTES


Cenário
geográfico

País, região, cidade, local de vida.

Cenário histórico

Século, décadas, fatos relevantes.

Cenário familiar

Pais, irmãos e parentes próximos.

Cenário educacional

Escolas, professores, amigos.

Cenário econômico

Modo de produção, classe social
Porém, de nada servem a contextualização social e histórica da vida individual se não se observa também à dimensão psicológica do estudo biográfico, tanto no que diz respeito à formação, aos conflitos e à transformação da personalidade do biografado como no que se refere a nossa própria subjetividade. Vivemos vidas parcialmente já vividas e transformadas em paradigmas e modelos. Mimetiza-se, involuntariamente, comportamentos estruturados antes de nós por semelhantes em uma situação recorrente. Neste sentido, o estudo das biografias das personalidades históricas pode nos revelar padrões inconscientes, permitindo novas opções e escolhas diferentes. Mas, além de pesquisar a biografia das personalidades, o estudo biográfico aqui proposto implica ainda em discutir um método autobiográfico voltado para o estudo compreensivo da subjetividade. Para tanto, além de uma contextualização sociológica objetiva, é preciso também compreender a contribuição da psicanálise no ao estudo de duas outras dimensões:

• Subjetividade, com destaque para a idéia de que os eventos traumáticos de uma biografia ficam recalcados no inconsciente, gerando neuroses e compulsões na Personalidade;

• Intersubjetividade, principalmente ao dispositivo dialógico de transferência e contra-transferência analítica, isto é, ao processo de projeção analógica de semelhanças e diferenças culturais entre o Pesquisador e o Biografado.

Ou seja: o discurso analítico sobre o Outro é também uma compreensão pessoal de Si mesmo. Assim o segundo passo da pesquisa biográfica aqui proposta é observar as relações da subjetividade do Pesquisador com a subjetividade do Biografado. Entre as várias técnicas dialógicas e esquemas de entrevistas para pensar a situação de transferência e contra-transferências analíticas, há um diagrama simples de organização destas relações.

 


PESQUISADOR


BIOGRAFADO


SEMELHANÇAS


Interseção


Contradição


DIFERENÇAS


Contraste


Ambientação

• Interseção: O que motiva a pesquisa? Por exemplo, somos jornalistas e nos interessamos em pesquisar a atividade jornalística de fulano de tal porque nos identificamos com ela. Aqui se delimita o universo temático da pesquisa.

• Contradição: Dentro do universo temático comum ao Pesquisador e o Biografado existem diferenças e semelhanças ‘internas’, há uma pergunta a ser respondida, um conflito a ser mediado. No exemplo da biografia do jornalista fulano de tal é necessário explicitar quais as suas características específicas e quais dificuldades e vantagens resultantes deste perfil.

• Contraste: Mas fulano de tal teve uma vida cuja identidade ultrapassa nossa projeção inicial: ele não só foi romancista, teatrólogo, professor do ponto de vista profissional, mas também amigo, pai, aluno, irmão, marido, filho, amante, cidadão e muitas outras facetas. Aqui se especifica o que fica no ‘fundo’ em relação à figura de um retrato.

• Ambientação: Seguindo a metáfora, neste ponto detalha-se o lugar que o retrato ocupa em nosso ambiente. Ou o que se aprende com a história de fulano de tal? Qual a importância desta biografia em nossa vida (na vida do pesquisador e na do seu leitor)?

No caso de estudos autobiográficos, em que o pesquisador e biografado são a mesma pessoa, pode-se utilizar o mesmo esquema, mas é necessário um interlocutor. Este interlocutor deve ter alguma experiência em escuta analítica e de forma alguma interferir ou dirigir o processo autobiográfico, se limitando a elaborar perguntas que facilitem a emergência das relações de identidade (“você quer falar em nome de sua geração?” ou “o que sente o brasileiro quando conhece o exterior?”). A conhecida tendência de só querer mostrar os momentos aspectos positivos da vida, varrendo para debaixo do tapete do inconsciente os tempos difíceis e os erros cometidos, seja por bajulação do biógrafo seja por vaidade do biografado, deve ser exorcizada por ambos desde o início do processo e é, não havendo técnica ou procedimento metodológico que garanta a ética, uma questão de consciência.

Além desta contextualização intersubjetiva do recorte que o pesquisador faz do seu objeto, a dimensão psicológica da subjetividade implica ainda no estudo biográfico do desenvolvimento da personalidade. Para elaborar mapas e procedimentos para tabulação destas informações, lançamos mão aqui de uma abordagem teórica diferente e heterodoxa: a psicologia biográfica.

A psicologia biográfica, estruturada no sistema de desenvolvimento baseado em ciclos de sete anos no desenvolvimento do ser humano em estágios de sete em sete anos, é um dos ramos da Antroposofia, elaborado pelo pensador alemão Rudof Steiner. Seu método foi detalhadamente aplicado tanto no estudo de biografias como em práticas pedagógicas e terapêuticas e tem ampla comprovação empírica. Por exemplo, com base nesses princípios de desenvolvimento biográfico organizou-se a pedagogia Waldorf (que tem escolas em todo mundo); uma metodologia de estratégias etárias para recursos humanos adotada por várias empresas e uma abordagem médica que leva em conta a etapa da vida das pessoas.

Segundo os chineses, em uma vida “há 20 anos para crescer/aprender, 20 anos para lutar e 20 anos para alcançar a sabedoria”. A psicologia biográfica subscreve esta afirmação e ainda subdivide em setênios cada uma destas três grandes fases. Na primeira fase, do nascimento até os 21 anos, observa-se a formação do corpo e da personalidade em três etapas: até os 7 anos, dos 8 aos 14 e daí a maturidade.

FASE


SETENIO


CRISE


FORMAÇÃO

0 -21


0 –7


Crise de Socialização


8 – 14


Crise de Crise de Identidade


15 – 21


Crise de Sexualidade


PLENITUDE

22 -42


21 – 28


A alma da sensação


29 – 35


A alma do intelecto


36 – 42


A alma da consciência


DECLÍNIO BIOLÓGICO

43 -63


43 – 49


Segunda crise de sexualidade


50 – 56


Segunda crise de Identidade


57 – 63


Segunda crise de
socialização


Cada uma dessas etapas de sete anos corresponde a um determinado estágio de desenvolvimento do corpo e da personalidade e a passagem de uma etapa para outra implica em uma crise e uma adaptação. Ao final do sete anos, a criança vive uma crise de socialização; aos quatorze, a crise da sexualidade; e aos vinte a crise de identidade. Da mesma forma, a psicologia biográfica subdivide a fase adulta (21-42) e fase madura (42-63) em três etapas de 7 anos cada, com crises de transição. Enquanto nos primeiros três setênios da vida o indivíduo vive um predomínio dos fatores biológicos sobre os subjetivos, ele terá também um período igual em que há um equilíbrio e um período de decadência biológica e oportunidade espiritual a partir dos 42 anos de idade. Neste último período, há um predomínio dos fatores subjetivos sobre os biológicos e as crises (ou mudanças cognitivas) são simétricas aos setênios da juventude. Dos 43 os 49, retornamos aos 14-21; dos 50 aos 56 de volta aos 7-14; e, finalmente, dos 57 aos 63, o período dos zero aos sete anos.

Vejamos agora cada um dos setênio e as perguntas correspondentes a cada etapa, desenvolvidas pela Dra. Gudrun Burkhard, no livro Tomar a Vida nas próprias mãos (2000), a grande codificadora da teoria biográfica.

De zero aos sete anos, no 1º setênio, é a fase de estruturação biológica da pessoa. A relação com os pais e com a família é fundamental nessa fase. Por isso é importante determinar como era a casa, o lar, o ambiente e as pessoas do lugar onde você morava nessa época.

“Qual era a sua relação com pai, mãe, irmãos, avós, tias? Moravam todos na mesma casa que você? Definido o ambiente humano em geral, estabeleça também as rotinas de sua vida no período. Quais eram seus brinquedos prediletos? Quais eram suas atividades preferidas?” (BURKHARD, 2000, 73-74).

Geralmente a primeira lembrança que se tem é próxima do advento das primeiras palavras. As memórias anteriores à fala são mais difíceis de acessar. A propósito, a capacidade discursiva desempenha um papel fundamental na organização da memória e a imagem que se faz de si mesmo (diante da mãe) antes de seu aparecimento da fala permanece inconsciente para o resto da vida, como um padrão de apego nos relacionamentos. Na Antroposofia, é período de construção do corpo vital ou duplo etéreo.

De 7 a 14 anos, no 2º setênio, o foco do desenvolvimento se desloca da família para escola, dos pais para os amigos. É preciso perguntar com que idade se ingressou na escola, como foi alfabetização, quais os professores e das matérias preferidas.

“Quais foram os conceitos, normas e costumes que recebeu naquela época? Como foi sua educação religiosa? E quais foram suas atividades artísticas?” (2000, 74).

Também é importante se lembrar de como eram as férias do período escolar. Se havia oportunidade de praticar algum esporte, fazer excursões, ter contato com a natureza. Os amigos passam a desempenhar um papel fundamental, principalmente, os do sexo oposto, embora nessa fase as crianças aparentem desinteresse e até mesmo aversão pelos comportamentos do outro sexo. E quando entrou na puberdade, como você lidou com as mudanças corpóreas? Como foi o primeiro beijo? E a primeira experiência sexual, como você descobriu a sexualidade.

No 3º Setênio, de 14 a 21anos, entramos na adolescência, período em que geralmente nos rebelamos contra a família e as outras instituições que regulam nossa vida. Também é importante definir se precisou trabalhar ou pode investir em sua formação profissional. Aliás, como aconteceu sua escolha profissional?

“Quais eram seus ideais? Que pessoas influenciaram você positiva ou negativamente na época? Como era seu relacionamento com seus pais? Como eram seus relacionamentos com o sexo oposto?” (2000, 74-75 ).

De 21 a 28 anos, no 4º setênio, começa a segunda parte de nossas vidas. Já não se trata mais de crescer, de aprender; agora, trata-se de lutar, de conquistar espaço. Nesse período, ao mesmo tempo em que há uma continuidade das condições do setênio anterior há também uma reflexão sobre os excessos, bem como um amadurecimento e uma consolidação da personalidade formada na adolescência, da mente desenvolvida no período escolar e do ego construído em casa. Muitos insistem (em vão) na adolescência! A grande maioria de jovens trabalhadores se pergunta se escolheu a profissão certa, se teve oportunidade de conhecer várias situações de trabalho. E com relação à vida pessoal, também existem dúvidas e inseguranças. Muitas vezes, esse é um período de novos começos, não só na vida profissional, mas também na vida pessoal.

Como escolho meus parceiros? Há algum padrão em comum nas pessoas que escolho para me relacionar? Que papeis assumi? Quais mais me pesaram? E mais: consegui uma boa relação com o mundo, com a organização de trabalho, com a família e comigo mesmo? Consegui colocar meus ideais em prática? Quais talentos e aptidões eu deixei para trás? Quais minhas reais habilidades técnicas?” (2000, 100).

De 28 a 35 anos, no 5º Setênio, a ‘crise dos talentos’ potencializa ainda mais a dúvidas sobre ser vencedor ou perdedor (uma avaliação sempre precoce, é claro) em relação aos objetivos traçados na adolescência. Espera-se que a pessoa tenha encontrado a missão de sua vida. Nesse ponto, a pessoa questiona sobre se encontrou e aceitou a questão básica de vida, seu propósito estratégico.

“Minha individualidade pode desenvolver-se bem? Pode se expressar? Eu me senti oprimido ou oprimi alguém? Encontrei meu lugar de atuação? Sentia-me valorizado? Em que sentia minha valorização?” (2000, 111).

O 6º Setênio, de 35 a 42 anos, é o ápice da biografia. Momento de equilíbrio entre o aspecto biológico e psicológico, bem como de maior capacidade física e mental. Nesse contexto, a pessoa faz um balanço de seu desempenho e de sua imagem com mais propriedade.

“Como os outros me vêem? Como vejo a mim mesmo? Que ilusões sobre mim mesmo eu tive que de desmantelar?” (2000, 120).

Com 7º setênio, de 42 a 48 anos, começa o declínio biológico e a terceira fase da vida. Agora, a pessoa deve se preparar para velhice com saúde e para o desenvolvimento de sua subjetividade e de sua sabedoria. Mudam os valores de comparação, muda a perspectiva, mudam também os objetivos de vida. Mas, nem sempre essa passagem se dá consciente e voluntariamente. A andropausa (e a menopausa, para mulheres) e a chamada crise de meia-idade, a idade do lobo, é resultante de um retorno imaginário à adolescência, o 3º setênio é simétrico ao 7º - ambos tratam da sexualidade e do aparelho reprodutor.

“O que deixei para trás em aptidões, potenciais e talentos que agora quero resgatar? Em meu trabalho, estou preocupado com sucessores? Tenho conseguido doar meus frutos maduros? A quem? Como está meu casamento? Meu relacionamento? A relação com meus filhos? Desenvolvi atividades em que haja empregado habilidades conceituais?” (2000, 133).

O 8º setênio, de 48 a 56 anos, por sua vez, consiste em um retorno ao período de aprendizado. Ele é simétrico ao 2º setênio e representa uma oportunidade para se rever os valores e os conceitos que norteiam a vida.

Consegui encontrar um novo ritmo de vida? Como está meu ritmo anual, mensal, semanal e diário? Quais são os galhos secos de minha árvore, quais têm de ser cortados para que novos brotos possam aparecer? (2000, 143).

De 56 a 63 anos, no 9º setênio, há um período de retorno a infância, ao primeiro setênio e aos mecanismos de formação do ego. A família volta a ser o foco central de desenvolvimento e de reflexão. A saúde do corpo e a morte iminente também passam a fazer parte do cotidiano da pessoa durante esse período.

O que consegui realizar? Há ainda tarefas que eu gostaria de completar, ou há outras para realizar? Como eu lido com minhas limitações? Estou cuidando do corpo, da memória, dos órgãos dos sentidos? Existem relacionamentos que não foram absorvidos, onde tenham ficado questões em aberto? Como está a questão dos meus bens? Como está a questão da aposentadoria? Tenho momentos de graça, sentimentos de gratidão e alegria? Sou capaz de perdoar? (2000, 151).

Não podemos detalhar aqui todo este sistema de desenvolvimento biográfico, que tem várias aplicações práticas e desdobramentos na própria Antroposofia. Para nós, ele é importante como parte de nossa estratégia de construção de parâmetros para elaboração de Mapas Biográficos da Subjetividade, em que se possa visualizar as crises e o desenvolvimento do biografado de 7 em 7 anos.

Então, recapitulemos: para evitar que o estudo (auto) biográfico da subjetividade caia no subjetivismo, prescrevemos inicialmente um mapa do contexto social da biografia, subdividido em cenários (histórico, familiar, geográfico, educacional, etc) com seus fatores condicionantes específicos. Esta primeira proposição corresponde a um enquadramento social objetivo, 1º nível de interpretação hermenêutica. Em seguida, para investigar a dimensão psicológica da subjetividade biografada propomos a adoção dos modelos oriundos das psicologias tipológica e biográfica, principalmente os mapas cronológicos por setênio. O objetivo deste procedimento é estabelecer parâmetros biológicos comuns, universais para todas as biografias, deixando assim ressaltadas as diferenças subjetivas no desenvolvimento da personalidade. Este procedimento corresponde ao 2º nível de interpretação hermenêutica, o simbólico.

E para estuda a intersubjetividade, 3º nível de interpretação hermenêutica, adotamos o mapa das relações dialógicas de identidade, e fizemos algumas considerações sobre o papel de interlocutor na organização de biografias. Na verdade invertemos a ordem do 2o e 3o procedimento para facilitar a apresentação das idéias, mas, na hermenêutica, ‘a ordem dos fatores não altera o produto’, uma vez que seus procedimentos servem tanto para compreender como para explicar e podem ser aplicados simultaneamente. E o quarto passo, o arquetípico e hipertextual, a que procedimento corresponde nesta metodologia de estudo da subjetividade biográfica? A Entrevista-performance e seu roteiro organizado a partir dos mapas anteriores.

Para Cremilda Medina (1986) entrevistar é mais arte que técnica. A entrevista seria um texto dialógico, um gênero literário escrito a dois, porque quando entrevistador e entrevistado entram em sinergia criativa, chegam a formulações em que seriam incapazes de elaborar sozinhos. A entrevista jornalística especificamente, ao contrário das entrevistas realizadas por sociólogos e/ou psicólogos, seria um texto escrito por três elementos, incluindo, além do entrevistador e do entrevistado, a categoria de ‘público’, a presença invisível de uma grande audiência anônima, distante e desterritorializada. Este terceiro elemento tem vários desdobramentos: ao contrário do caráter compreensivo da dialógica filosófica de Platão ou da dialógica clínica de Freud, o discurso da entrevista torna-se mais performático e espetacular; o aparecimento do ‘off’ (ou do que é dito sem a presença do público) e até de uma pré-entrevista (briefing) em que se combinam os limites da entrevista.

Cremilda diz a entrevista jornalística oscila entre o pólo compreensivo e o espetacular segundo a maior ou menor presença do público dentro da entrevista. E argumento, no entanto, desconsidera que a existência da audiência estimula e, de certa forma, dirige os interlocutores de uma entrevista-desempenho. Dependo do tipo de público, diferentes aspectos ou modos de exposição de um mesmo fato surgem no diálogo entre pesquisador e biografado, levando a diferentes resultados. Em nosso caso deve-se inicialmente fazer tudo o possível para distanciar a idéia de público nas entrevistas biográficas. Mesmo que o trabalho vise a publicação ou outra forma de exposição do material pesquisado, é interessante, em um primeiro momento, que haja uma fase de pesquisa em que a divulgação não exerça nenhuma pressão sobre a produção de dados. Para tanto, utilizam-se os mapas (do contexto social da biografia; das relações dialógicas de identidade; e de biografia por setênio) como roteiro para entrevista preliminar, sem gravador ou câmera de vídeo. E, em um segundo momento, munido destes dados, também se pode fazer entrevistas gravadas (mais performáticas e menos compreensivas) em que a presença do público seja utilizada para descobrir algum momento dramático ou fato menos evidente nas entrevistas preliminares.

Neste modelo, os acontecimentos são organizados a partir do presente por área (casas, trabalhos & estudos e/ou amigos & amores), etapas (períodos) e eventos. Assim, de posse de toda informação biográfica levantada na entrevista preliminar, o pesquisador poderá desenvolver pelo menos três entrevistas performáticas retrospectivas referentes às residências, às ocupações e às relações pessoais do biografado. No caso de gravação em vídeo, podem-se editar essas três entrevistas performáticas (as casas, a vida profissional, a acadêmica e os relacionamentos pessoais) em uma única seqüência. O mesmo pode ser feito com texto ou áudio.

E então, como interpretar a própria vida? É claro que cada vida é única, aliás, a vida é um processo de singularização individual e de multiplicidade coletiva.

Traçamos aqui parâmetros e procedimentos construídos através da auto-observação e aplicados em várias biografias, tanto diretamente com entrevistas como também indiretamente através do estudo de personalidades históricas relevantes. No entanto, não cabe aqui apresentar estes resultados preliminares, mas apenas lançar as sementes para a organização futura de várias pesquisas autobiográficas segundo estes parâmetros.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABELAR, Taisha A Travessia das Feiticeiras. Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1995.

BUENO, Delmira Oliveira O método autobiográfico e os estudos com histórias de vida de professores: a questão da subjetividade. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 11-30, 2002.

BURKHARD, Gudrun. Tomar a vida nas próprias mãos - Como trabalhar a própria biografia o conhecimento das leis gerais do desenvolvimento humano. São Paulo: Editora Antroposófica, 2000.

______ Bases Antroposóficas da Metodologia Biográfica – a biografia diurna. São Paulo: Editora Antroposófica, 2002.

LANZ, Rudolf. A Pedagogia Waldorf: Caminho para um ensino mais humano. São Paulo: Editora Antroposófica, 1990.

LIEVEGOED, Bernard. Fases da Vida – crise e desenvolvimento da individualidade. São Paulo: Editora Antroposófica, 1994.

KÜGELGEN, Helmut von. A Educação Waldorf – Aspectos da Prática Pedagógica. São Paulo: Editora Antroposófica, 1984.

NÓVOA, António; FINGER, Matthias (Orgs.) O método (auto)biográfico e a formação. Lisboa: Ministério da Saúde; Departamento dos Recursos Humanos da Saúde/Centro de Formação e Aperfeiçoamento Profissional, 1988.

NOTAS

(1) Trabalho foi apresentado no III Congresso Internacional sobre Pesquisa (Auto) biográfica, 2008, Natal. III Congresso Internacional sobre Pesquisa (Auto) biográfica. Natal : Edfurn, 2008.

A estória da Imperatriz

Era uma vez, em um dos reinos interiores distantes do qual não há mais memória, um grande Mago (01). Quando abria mão esquerda para cima e sua mão direita para baixo, ele canalizava um grande poder e unia o céu à terra e, a partir desta unidade, governava os quatro elementos: a terra, a água, o ar e o fogo que repousam sobre uma mesa. Também havia nesse reino distante uma Sacerdotisa (02) da Lua, filha da Grande Deusa, reflexo e espelho do universo, serva e senhora das águas e da vida, dos Encantos do Amor e dos Encantamentos do Desejo. Ela lê o livro da Gnose e é coroada por uma lua crescente de prata.

Fruto do encontro sagrado deste casal, nasceu uma bela Imperatriz (03), exuberante como a própria natureza em festa durante a primavera. Mas, como neste reino distante, não era permitido crianças, a princesa foi levada aos mundos exteriores, onde foi adotada por um poderoso Imperador (04). Ele era um homem bondoso e gostava da princesinha, mas vivia voltado para o trabalho de administração das terras do seu reino. E quando suas ordens e determinações não eram obedecidas, ele ficava bastante chateado.

Ao completar quinze anos, a bela princesa, no entanto, quis saber quem realmente era ela e decidiu ir buscar suas origens. Tentou primeiro ter com o Papa (05) e dedicar-se à religião. Porém, diante de tantos dogmas, rituais, exigências devocionais e percebendo que com tantos detalhes e regras o essencial era deixado de lado, a princesa desistiu.

Na família real, a princesa tinha dois irmãos, filhos legítimos do rei: o primeiro príncipe era poeta, músico e boêmio. Um verdadeiro Enamorado (06) pela vida. Mas, como tinha muitas amantes (nas cartas do baralho de Marselha é representado por um homem dividido entre dois amores, uma mulher mais velha e outra mais jovem), ele vivia indeciso sobre o que realmente queria e levava sua vida irresponsavelmente. Era prisioneiro da própria liberdade e não soube dizer à princesa quem ela era.

O segundo principe era um guerreiro, que dividia sem tempo entre vários esportes e as corridas de Carro (07). Firme, decidido e corajoso – ele possuía todas as qualidades que faltava ao primeiro príncipe. Mas, em compensação, tudo que o primeiro tinha de positivo – a amabilidade, o bom gosto, a compreensão – também lhe faltava, pois era rude e insensível. Sempre dedicado a combates, desafios e competições, também não soube dizer à princesa quem ela era e onde estavam seus pais verdadeiros.

Vendo que seus irmãos não poderiam ajudá-la, a princesa continuou sua busca. Resolveu, então, procurar a Justiça (08), pois achava que tinha direito de saber sua origem. A advogada da Verdade, que não era cega nem usava venda nos olhos, mas tinha sua espada na mão direita e a balança na esquerda, examinou o passado da Imperatriz, pesando suas culpas e méritos. Então, encaminhou a princesa ao um velho sábio, que vivia isolado, morando em cavernas nas montanhas altas e distantes, que existia desde inícios dos tempos e sabia de todas as coisas.

A princesa, então, foi em busca do Eremita (09). O velho sábio ouviu a pobre princesa, consultou o oráculo da luz interior e disse: “Antes de descobrir que você é e quem são seus pais, deve enfrentar sete provas místicas, sete mistérios que se não forem descifrados implicarão em grandes desgraças.” A princesa, mesmo temerosa dos castigos decorrentes de um possível fracasso, concordou em passar pelas sete provas.

Então, o eremita disse: “Que gire a Roda da Fortuna (10)! Que as sete forças formadoras primordiais despertem a Imperatriz de seu sonho encantado no universo material! Que as sete formas de potência se manifestem sua luz eterna sob o véu dos mundos passageiros, ligando novamente, mais uma vez, o céu à terra nesse momento.” E nesse instante, todas as coisas começaram a girar em torno da princesa, que caiu em transe profundo e sereno, adormecendo imediatamente.

Quando a princesa acordou, estava deitada sobre uma gigantesca fera, um leão adormecido. Percebeu que, não apenas qualquer tentativa de fuga, mas que qualquer movimento mais brusco, seria fatal, pois o animal assustado a atacaria imediatamente. Começou, então, a afagar a juba da fera, lenta e carinhosamente. O animal selvagem mas sensível aquele toque gentil, foi acordando aos poucos, mas, ao invés, de reagir de forma agressiva e violenta, retribuiu as carícias da princesa, lambendo-lhes aos mãos. E assim, a princesa venceu a prova da Força (11).

Imediatamente, a princesa foi transportada para uma outra situação e se encontrou de cabeça para baixo, com as mãos amarradas e o pé direito preso por uma corda de caída do céu infinito. Não havia mais ninguém na cena. Ao contrário, a princesa se sentiu abandonada a própria sorte, consciente de sua finitude diante do mundo cruel e foi abatida por um forte sentimento de constrangimento e de autopiedade. A princesa, no entanto, estava a poucos centímetros do solo, com suas mãos quase tocando o chão e as moedas que caíram de seus bolsos (que significa perdas). A princesa chorou, chorou, chorou. Porém, após algum tempo, a princesa decidiu adaptar-se à situação e às suas restrições, ao invés de se entregar ao sofrimento e a autocomiseração, se entregou de boa vontade em sacrifico e renunciando a qualquer esperança: ficaria ali contrita e consciente. E assim, a princesa descobriu o significado da humildade e venceu a prova do Enforcado (12).

Em seguida, a princesa foi transportada para outro lugar, onde havia montanhas de corpos mortos, esquartejados e decapitados. Montada em um cavalo branco, com um longo manto negro e uma grande foice, uma grande caveira andava por sobre os corpos dizendo: “Chegou a hora”. Primeiro, a princesa tentou fugir. Mas, em todo canto em que se encondia, em todo lugar para onde corria, o esqueleto com seu cavalo e sua foice surgia e falava: “Chegou sua hora, vem te buscar”. Por um momento, a princesa pensou em negociar: “Deixe-me terminar as sete provas antes, depois irei com você”. Mas, após um momento de tristeza, ela aceitou que tudo era passageiro e que não devia se apegar a nada. Então, a morte parou a perseguição e disse: “Aos que me aceitam e não me temem, sempre concedo a dádiva da mudança e da transformação”. E assim, a princesa venceu a prova da Morte (13) e seguiu adiante.

E em seguida, a princesa foi transportada para outra prova. Agora ela se encontrava diante de um anjo gigante, meio vermelho, meio azul. O anjo manejava dois cálices enormes – um de prata e outro de ouro – vertendo um líquido luminoso de um recipiente para o outro, de forma cadenciada e ritmada. Olhando aquele movimento, a princesa entendeu que o anjo trabalhava a reversibilidade de todos os processos, compensando e invertendo o fluxo de energia vital de cada acontecimento; e ficou maravilhada com aquele movimento lento e hipnótico. Aos poucos, aquela alternância de aspectos opostos tornou-se automática e um grande sono começou a se apossar da princesa. Ela se lembrou, que, as vezes, o equilíbrio e a moderação são desculpas para inércia e para imobilidade, permanecendo desperta. E assim, a princesa venceu a prova da Temperança (14).

O anjo gigantesco se transformou em Diabo, com uma espada na mão esquerda e, na direita, homens e mulheres acorrentados. Sua imagem despertava paixão e violência. Assustada, a princesa sentiu medo e o poder diabólico tornou-se ainda maior. E quanto mais a princesa temia o mal que sentia dentro e próximo a si, maior era realmente o perigo e a ameaça. Em um minuto mágico, em que o tempo se suspende, a princesa teve coragem. E percebeu que a falta de medo atingiu o mal, diminuindo-o. Então, respirou fundo e decidiu enfrentar todos os seus medos, inclusive o medo de se reconhecer instinto, como um animal com seus desejos e necessidades. O mal começou a diminuir até desaparecer de vez. E assim, a princesa venceu a prova do Diabo (15).

Então, a princesa começou a cair em um abismo vertiginoso, cujo fundo parecia muito distante. Caindo (de uma altíssima torre atingida por raios em meio a uma tempestade) em um espaço sem fim. Ela já havia se entregue ao destino em sacrifício na prova do enforcado, já havia aceito a impermanência na prova da morte, já não tinha mais medo pois havia enfrentado e vencido o mal na prova do diabo, mas a entrega, a aceitação e a coragem não eram suficientes para que ela conseguisse superar o desespero daquela queda livre no vazio. Pensou em focar a atenção nas mãos. Ao se concentrar para sentir as próprias mãos, a princesa ascendeu mais um nível de consciência, a auto-percepção de si. E, assim, venceu a prova da Torre (16).

Acordou agora em uma linda ilha paradisíaca. Sob o céu azul estrelado, a mata virgem, cor de verde cintilante, era embalada pelo vento calmo, vindo do mar. A princesa sentou-se nua a beira das águas de um riacho doce, banhando seus pés cansados pela jornada e suspirou: “Que beleza! Poderia passar o resto dos meus dias nesse paraíso!” Mas, a verdadeira felicidade não é feita de ilusão e a princesa se lembrou de que aquele conforto e aquela beleza a estavam desviando de sua meta de se conhecer e encontrar sua origem. E assim, a princesa venceu seu sétimo e último desafio: a prova da Estrela (17).

Emergindo da noite escura da alma, surgiu um caminho estreito por entre desfiladeiros e duas torres gêmeas ao fundo, guardado por um escaravelho dourado. Choviam lágrimas de sangue e um cachorro e um lobo uivavam para lua. As sete provas foram vencidas, os sete mistérios foram decifrados, os sete desafios foram vividos. Então, a princesa escutou uma voz rompendo os céus: “Sua mãe é a Lua (18) e seu pai é o Sol (19)”. O centro luminoso do ser, o Self, foi alcançado e vivido como uma festa de luz e calor.

Os anjos soaram suas trombetas e os mortos saíram de seus túmulos, o Dia do Juízo Final é a separação do joio do trigo, a ressurreição e o Julgamento (20). A princesa chega ao seu lar, a sua terra natal, o reino mágico em que nasceu e reencontra seus pais verdadeiros, toda sua família, além de outras princesas e príncipes renascidos de diferentes mundos e dimensões. Todos cantam louvando ao Deus Imanifesto e à Nova Jerusalém, a cidade celeste, a comunhão dos renascidos.

A estória da Imperatriz termina com ela dançando, entre os quatro animais sagrados que existem nos cantos do Mundo (21): o touro, o leão, a águia e o anjo. Ela decifrou o enigma da Esfinge, revelou e relevou o mistério do Apocalipse. Mergulhou na escuridão da matéria, no sonho obscuro dos tempos; e renasceu novamente para vida eterna, após vencer as sete provas dos mundos passageiros.

E, só para registrar: foi O Louco (00) quem me contou essa estória.

Devas x Asuras

Tudo era impermanente e passageiro no Cosmo, apenas Visnhu e Shiva criavam e destruindo universos, reencarnado em sucessivas vidas nos mundos provisórios como uma linha em um colar de contas. A rainha Lakshmi, consorte de Visnhu, deu ao deus Indra, líder dos Devas, habitantes de um desses mundos efêmeros, o sangue do conhecimento do seu próprio corpo: a Ayahuasca ou Soma , a bebida sagrada que concedia a vida eterna.

Agradecido pela imortalidade, Indra levou a bebida sagrada para outros seus irmãos, pensando em assim expandir e perpetuar a Criação da eternidade diante do tempo e tornou-se então se tornou o rei dos Devas, uma raça de deuses voltados para o governo dos mundos criados, destruídos e contemplados pela tríade primordial.

Havia também, nessa época imemorial, uma raça de largatos-demônios, os Asuras, que também receberam o Soma, o néctar da imortalidade, da grande deusa Lakshmi. Só que os Asuras não puderam se beneficiar do líquido já que este só tem efeito quando é oferecido para outro ser. Quando é ingerido pela própria pessoa ele perde seu poder de vencer a morte. Portanto, os demônios, que eram incapazes de um gesto de compaixão, não se beneficiaram da bebida. Já os Devas, por sua vez, pela gentileza e generosidade que possuíam em seus corações, serviram a bebida uns aos outros e se tornaram anjos.

Desencadeou-se então uma grande guerra entre os Devas e os Asuras, guerra essa que se estende até os nossos dias.

Segundo alguns houve uma traição, a chamada ‘rebelião luciférica’, de um grupo de Devas que trocou de lado e levou a bebida sagrada aos homens dos mundos inferiores, que até então serviam de alimento aos demônios Asura, devoradores de almas. Outras versões, no entanto, dizem que se tratava de uma estratégia dos Devas, que acreditavam que os homens seriam capazes de se eternizar e de, indiretamente, dominar seus dominadores.

Ken Wilber

Ken Wilber – um resumo

O pensamento integral de Ken Wilber representa um passo a frente, tanto em relação ao movimento holístico neo-platônico (e a metafísico das formas ideais) e neo-hegeliano (que generaliza tudo em nome do todo) da Nova Era, quanto do pluralismo relativista intersubjetivo dos pensadores pós-modernos (sejam eles acadêmicos ou esotéricos). O ponto de partida de Ken Wilber é a necessidade de um único modelo teórico que dê conta de todos os fenômenos: a teoria de tudo. Porém, de uma perspectiva diferente das dos físicos, que, na verdade, aspiram a construir um 'teoria do todo' monológica e não uma teoria de tudo, capaz de descer a cada domínio específico do conhecimento humano sem perder a visão de conjunto.

Aliás, para Wilber, não há um único universo subdivido em partes conexas, nem uma complexidade múltipla sem totalização ou síntese possível, mas um Kosmo (com 'k' em uma referência a noção dos gregos) formado por vários 'holons' (todos-partes) hierarquizados, com uma totalidade sendo parte de outra totalidade em uma escala superior: holon atômico, holon molecular, holon orgânico, holon planetário. A essas hierarquias sistêmicas, Wilber chama 'Holoquarquias' e, ao conjunto dessas redes ontológicas, “a grande Cadeia do Ser e do Saber”. Para cartografar as holoquarquias, Wilber elabora um complexo castelo de conceitos, cruzando várias teorias e abordagens de diferentes domínios. É um modelo complexo que combina diferentes teorias e outros modelos. Wilber o considera um mapa e lembra que “não devemos confundir o mapa com o território”, que o modelo é apenas uma tentativa de enquadrar e pensar a realidade, uma fisicalidade complexa, que sempre nos escapa.

Os elementos do modelo de Ken Wilber ou IOS (do inglês Integral Operating System) surgem do cruzamento e analogia de vários outros modelos e abordagens, e são os seguintes: estados, níveis (ou estágios), linhas, tipos e quadrantes.

Os Estados de consciência são realidades subjetivas. A vigília, o sonho e o sono profundo. Wilber acredita que o desenvolvimento desses três estados universais da consciência humana corresponde, em várias mitologias tradicionais, estados de consciência superiores (à experiência dos corpos físico, sutil e causal) e acrescenta ainda a experiência de um quarto estado de consciência superior: a não-dualidade.

Níveis são “qualidades emergentes relevantes em modo discreto”. Wilber estabelece três: pré-convencional (ou egocêntrico), o convencional (ou etnocêntrico) e o pós-convencional (ou globocêntrico). Os níveis são graduações em uma escala vertical que podem ser subdivididos em unidades menores. No sistema de chackras, por exemplo, os três primeiros (alimento, sexo e poder) correspondem ao egocêntrico; os dois centrais (a comunicação e o 'coração'), ao convencional; e os dois superiores (o psíquico e o espiritual), ao globocêntrico.

Este também é o caso dos Estágios (ou vMemes) da Espiral Dinâmica (ou Spiral Dynamics Integral – SDI), um modelo em que os diferentes estágios de desenvolvimento psicológico, formando um espectro da consciência. Esse modelo (baseado nos trabalhos de Clare Graves, Don Beck e Richard Cowan) adota as cores como fundamento de diferenciação entre os estágios de desenvolvimento pessoal, para evidenciar seu caráter transitório, não-fixo.

A SDI é um processo emergente, oscilante e marcado por uma progressiva subordinação de sistemas de comportamento mais antigos e de ordem inferior a sistemas mais recentes, de ordem superior, que ocorrem à medida que os problemas existenciais se alteram. Ela tanto serve para humanidade como um todo (no sentido evolutivo e no sentido de estrutura social atual) como para o desenvolvimento individual (biográfico e de níveis de percepção). Wilber faz projeções sobre quantas pessoas se encontram em cada estágio atualmente: no estágio arcaico (bege) 0,1%; no estágio animista (púrpura) 10%; no imperialismo feudal (vermelho) 20%; no estágio mítico (azul) 40%; na modernidade (laranja) 30%; e no estágio pós-moderno (verde) 10%. Nesta perspectiva, as ondas bege e púrpura representam comportamentos 'egocêntricos pré-convencionais', avessos às regras e instituições sociais; as ondas vermelha e azul representam (60% da população mundial) os dois comportamentos 'etnocêntricos convencionais', de imposição e conformidade com as regras; e as ondas laranja e verde (30%) correspondem a aos comportamentos 'mundicêntricos pós-convencional' consciencioso e individualista.

Segundo Wilber (2002, 20-24), estamos em um momento de crescimento da onda verde e próximo de salto para um pensamento de segunda ordem, a onda amarela. Para nós, é importante ressaltar a compatibilidade parcial entre os modelos de Wilber e a hipótese de simetria entre as cognições ordinária e extraordinária. A diferença é que o modelo dos circuitos cerebrais é menos evolucionista do ponto de vista coletivo e mais fixo em termos de constituição das identidades individuais (consciência, ego, mente, personalidade). Além disso, Ken Wilber compreende a onda verde dentro da realidade ordinária (o que significa que uma parte da humanidade já está desenvolvendo circuitos cerebrais neurosomáticos) e apenas os estágios seguintes (amarelo, turquesa e coral) como possibilidades futuras de desenvolvimento.

Há várias diferenças entre Estados e Estágios. Os estágios de consciência são permanentes, marcos do desenvolvimento em uma escala vertical (“o sujeito de um estágio se torna objeto do estágio seguinte”) e, como vimos, podem ser representados de várias formas. Os estados de consciência são 'horizontais'. Quando se trata de estados de consciência comuns, são cíclicos e os estados de consciência superiores são eventos passageiros.

Pode-se, assim, ser uma pessoa culturalmente atrasada (preconceituosa, moralista) e se alcançar estados de consciência mística elevados; como também se pode ser uma pessoa bastante desenvolvida em vários aspectos cognitivos e não se conseguir experimentar transes espirituais. Os estágios se situam no plano subjetivo no 1º quadrante, os estados situam-se no plano objetivo, no 2º quadrante.

Além dos Estados (horizontais) e dos Estágios (verticais), seja da SD ou de outras escalas, o modelo de compreensão do desenvolvimento da consciência proposto por Wilber têm uma terceira dimensão, ou profundidade. Há ainda várias Linhas de Desenvolvimento (ou inteligências múltiplas do sentido de Gardner), em que Wilber adota várias abordagens específicas, incorporando diferentes abordagens e autores: moral, afetiva, interpessoal, de necessidades, estética, psicossexual, de valores, espiritual e cognitiva. Mas, há várias contradições e superposições. Alguns autores confundem as linhas com os níveis, dando mais ênfase a um fator que a outro. A palavra 'espiritual', por exemplo, têm quatro sentidos bem diferentes: como estágio transpessoal, como linha ou inteligência, como experiência religiosa e como uma atitude especial. (2006, 133)

O desenvolvimento cognitivo também não tem suas dimensões bem definidas em relação às outras linhas de desenvolvimento. Wilber critica Piaget por considerar o desenvolvimento cognitivo como “o fio elétrico que ilumina a árvore de natal” das outras linhas de desenvolvimento (afetivo, moral, etc), mas não consegue estabelecer os limites da autonomia dessas outras linhas em relação ao desenvolvimento conjunto, se limitando a afirma que “o desenvolvimento cognitivo é um fator necessário, mas não suficiente ao desenvolvimento de outras linhas de desenvolvimento” (2006, 98). Assim, um determinado indivíduo pode se encontrar em um nível pré-convencional do ponto de vista afetivo (imaturidade) e lingüístico, e em um nível pós-convencional do ponto de vista de seu desenvolvimento lógico-abstrato, por exemplo.

A categoria de Tipo ou de tipologias horizontais é adotada por Wilber para diferenciar a percepção individual do mundo, e pode ser utilizada de vários modos. Pode-se utilizar os 9 tipos do eneagrama, os 16 tipos de Jung ou 4 de Myers-Birggs. Wilber ressalta a clivagem por gênero, isto é, como os tipos masculino e feminino vivenciam e percebem a vida e o mundo diferentemente. Também se podem considerar aqui as clivagens sociais de faixa etária, classe social, nível de escolaridade, renda, cultura, etc

E, finalmente, o quinto, último e mais importante elemento do castelo teórico de Ken Wilber é a noção de Quadrantes. O Modelo dos Quadrantes consiste em tomar as coisas simultaneamente em quatro dimensões analíticas: o individual subjetivo ou 'eu' (a mente); o individual objetivo ou 'ele' (o cérebro), o coletivo subjetivo ou 'nós' (a cultura); e, finalmente, o coletivo objetivo ou 'eles' (a sociedade).

Assim, se tomarmos um determinado holon como objeto, a família x, por exemplo, teremos que enquadrá-la em quatro perspectivas: as pessoas (a história individual) e os papeis que desempenham (pai, mãe, filho, etc) – primeiro quadrante; o aspecto genético e a estrutura hereditária – segundo quadrante; a relação da família x com outras famílias semelhantes em diferentes aspectos – terceiro quadrante; e, finalmente, as relações econômicas, políticas e sociais da família x: como esse holon famíliar se encaixa na sociedade como um todo, o holon hierarquicamente superior.

Essa perspectiva quádrupla, ou ‘perspectiva integral’, reduz bastante a possibilidade de enfoques reducionistas e tem várias vantagens, em relação às perspectivas tradicionais, modernas e pós-modernas. Segundo Wilber, “há dois erros que podemos cometer em relação a esse (o 4º) quadrante. Um é torná-lo absoluto; o outro, negá-lo. A modernidade comete o primeiro; a pós-modernidade, o segundo” (2007, 212). Ou seja: a crítica moderna à subjetividade tradicional é objetivista (“a perspectiva de lugar nenhum”); a crítica pós-moderna é exclusivamente intersubjetivista e acaba negando a objetividade em si. A abordagem integral pretende integrar a metafísica subjetiva das tradições à objetividade moderna e à contextualização interpessoal pós-moderna em um único enfoque. Uma das vantagens do modelo dos quadrantes é uma reinterpretação dos esquemas tradicionais, que colocam o mundo material como “um reflexo dos mundos superiores” (a mente, a alma e o espírito são anteriores ao corpo).

Para Wilber, a “matéria é exterior e não inferior” às dimensões subjetivas. Para as tradições, a simetria não é hipotética, mas sim metafísica e Wilber tenta inverter essa predominância do subjetivo sobre o material, estabelecendo sua equivalência e diferenciando suas dimensões individual e coletiva. Mas, além de recolocar a questão da simetria em termos de uma inversão interior/exterior no esquema tradicional, o modelo dos quadrantes também coloca a questão da assimetria entre o individual e o social. Assimetria em dois sentidos. Primeiro: se aplicarmos as linhas, estágios ou níveis a cada quadrante, se observam que as diferentes etapas de desenvolvimento dos indivíduos não correspondem às etapas de desenvolvimento das sociedades, grupos ou outros coletivos, ou que, as abordagens que fazem essas associações, ressaltam os aspectos parciais e simplificam processos complexos em função da analogia.

Mas, também existe uma assimetria entre singular e coletivo, resultante da aplicação do modelo dos quadrantes a ele mesmo. Nesse caso, Wilber apresenta a distinção entre o Quadrante simples, a perspectiva do sujeito, e o Quadrivium, perspectiva de onde se olha o objeto. “Apenas os holons individuais têm ou possuem quatro quadrantes; mas tudo pode ser visto através ou a partir de quatro quadrantes (que, então, são denominados quadrivia).” (2007, 316) Todo castelo conceitual construído por Wilber é um mapa da complexidade, um modelo para localizar e compreender fenômenos de múltiplos aspectos e perspectivas.

Em nosso caso em particular, estamos interessados em observar o desdobramento metodológico integral. A partir do modelo IOS, Wilber destaca oito abordagens teóricas complementares para compor um pluralismo metodológico integral (IMP, do inglês Integral Methodological Pluralism): a fenomenologia, o estruturalismo, a autopoises cognitiva, o empirismo neurofisiológico, a hermenêutica, a etnometodologia (ou genealogia), a autopoises social (na verdade, a sociologia compreensiva) e a teoria de sistemas (Luhmann).

A Fenomenologia corresponde à metodologia do 1º Quadrante (pois estuda os eventos a partir de sua percepção imediata pelo sujeito) e o Estruturalismo, à metodologia do primeiro Quadrivium (porque estuda como essa percepção se organiza vista de fora, como o conjunto das relações condiciona a consciência). No 2º Quadrante, Wilber destaca as idéias de Humberto Maturana e Francisco Varela (Autopoises cognitiva). E no 2º Quadrivium, a objetivação do individual objetivo, está o empirismo neurofisiológico. Particularmente, eu trocaria a abordagem de Varela pela Teoria da Estruturação de Giddens. A idéia fundamental aqui, no entanto, é que o sujeito se torna um duplo objeto, tanto o desenvolvimento objetivo de capacidade de percepção (no quadrante) como o suporte (os órgãos do corpo) que levam essa experiência a prática (no quadrivium).

A Hermenêutica corresponde à metodologia de estudo da intersubjetividade vista a partir de um observador participante, no 3º Quadrante, e Etnometodologia (bem como a genealogia) corresponde ao 3º Quadrivium, isto é, a intersubjetividade vista de fora. Wilber aponta outras disciplinas com o mesmo foco da etnometodologia, como a Genealogia e a Semiótica integral.

E o 4º Quadrante corresponde à teoria da Autopoesis Social, enquanto a atual Teoria de Sistema corresponde ao 4º Quadrivium. Segundo Wilber, os holons individuais passam por estágios obrigatórios (como a Espiral Dinâmica), os holons sociais, não. Também não há uma cognição centralizada nos holons sociais. Em um ‘sistema-organismo’ (holon individual) há um mônada dominante, e nos holons sociais há, no máximo, um discurso dominante (ou um modo predominante de ressonância mútua). É a conhecida crítica do Nickas Luhmann a Umberto Maturana e Francisco Varela (p. 189): “a sociedade não é um sistema”. O 'Nós', a cultura, é uma subjetividade coletiva, mas não é um super eu coletivo – nem no homem, nem em outros animais gregários. Um exemplo interessante é o de Gaia (a terra vista como ecossistema) não é um único organismo, é um clube (p. 223) ou um conjunto de redes de seres orgânicos e inorgânicos.


Perspectiva


Modelo Wilber



Quadrante


Fenomenologia


Quadrivium


Estruturalismo



Quadrante


Autopoesis Cognitiva


Quadrivium


Neurofisiologia



Quadrante


Hermenêutica


Quadrivium


Etnometodologia



Quadrante


Autopoesis Social


Quadrivium


Teoria de Sistemas



É bom lembrar que, como psicólogo, Wilber construiu seu modelo a partir do 1º quadrante, isto é, partiu do lado do subjetivo para o exterior e do elemento individual para o sistema coletivo. Esse é o ponto fraco de seu modelo e, ao mesmo tempo, sua maior contribuição. É um modelo teórico do ‘mundo visto de dentro’ e de uma perspectiva que se acredita individual. Bem diferente da ótica dos que pensam o subjetivo individual engendrado objetivamente pela coletividade sistêmica. A perspectiva duplicada dos quadrantes pode também ser aplicada a outros modelos.


Perspectiva


Modelo Leary/Wilson



Quadrante


Consciência


Quadrivium


Circuito Neuroatômico



Quadrante


Ego


Quadrivium


Circuito Neurogenético



Quadrante


Mente


Quadrivium


Circuito Neuroelétrico



Quadrante


Personalidade


Quadrivium


Circuito Neurosomático


No modelo Leary/Wilson, o 1º quadrante representa a Consciência (percepção do universo material) e o 1º Quadrivium, a possibilidade de desenvolvimento de um circuito neuroatômico, ou uma Consciência Quântica (percepção do universo como energia). Esta oposição corresponde também às noções de Tonal (mundo dos objetos e das coisas, em que a matéria é uma partícula) e Nagual (universo de energia, em que a matéria é uma onda).O 2º quadrante, no modelo Leary/Wilson, representa o Ego (a identidade estruturada a partir do Outro) e o 2º Quadrivium, a possibilidade de desenvolvimento de um circuito neurogenético (e do controle e da mudança das tendências hereditárias). No modelo Leary/Wilson, o 3º quadrante representa a Mente e 3º Quadrivium, a possibilidade de desenvolvimento de circuito neuroelétrico (o que significa autonomia energética em relação aos relacionamentos imediatos).

E, finalmente, o 4º quadrante, no modelo Leary/Wilson, representa a Personalidade e o 4º Quadrivium, a possibilidade de desenvolvimento de um circuito neurosomático (o que equivale à reforma e ampliação da personalidade e da relação com a sociedade).

E reparem que a contribuição de Wilber não é pequena, seu modelo permite inúmeras adaptações e variáveis. O mais importante, no entanto, é que ele representa um ‘ponto de retorno’ em relação a toda uma tendência do pensamento esotérico. Gurdjief, Steiner, Osho, Castaneda ... o que caracteriza esses pensadores é o fato deles buscarem uma espiritualidade despida de crenças e ilusões religiosas, enfatizando a transformação pessoal e o des-condicionamento da consciência; em relação à realidade, são anti-transcendentes, isto é, não acreditam em outros mundos ou universos. Foram tempos de um esoterismo ‘desencantado’.E ao estabelecer as bases para a hipótese da simetria cognitiva, Wilber é um retorno ao sonhar, ao pólo transcendental da consciência. O sonho não acabou. Apenas ficou mais definido.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LEARY, Timothy. As sete línguas de Deus. New York: Thompson and Brothers,1961. WILBER, Ken. O Paradigma Holográfico e Outros Paradoxos. São Paulo: Cultrix, 1991.
__________O Espectro da Consciência. São Paulo: (Cultrix, 1996,
__________Um Deus Social. São Paulo: Cultrix, 1987.
__________Transformações da Consciência. São Paulo: (Cultrix, 1999.
__________O Projeto Atman: Uma Visão Transpessoal do Desenvolvimento Humano. São Paulo: Cultrix, 2000.
__________O Olho do Espírito. São Paulo: Cultrix, 2001.
__________A União da Alma e dos Sentidos. São Paulo: Cultrix, 2001.
__________Uma Breve História de Tudo. São Paulo: Via Óptima, 2002,
__________Psicologia Integral: Consciência, Espírito, Psicologia, Terapia. São Paulo: Cultrix, 2002.
__________Teoria de Tudo – uma visão integral para os negócios, a política, a ciência e a espiritualidade. Tradução Denise de C. Rocha Delela e Rogério Tadeu Correa de Leão Lima. São Paulo, Cultrix, 2003,
__________Boomeritis Um Romance que Tornará Você Livre. São Paulo: Madras, 2005.
__________ Espiritualidade Integral – uma nova função para religião neste inicio de milênio. Tradução Cássia Nassser. São Paulo: Alef, 2007.
WILSON, Robert Anton. Os sete cérebros de Leary. Fragmento de texto na internet, tradução anônima, original datado de 1987.

Passes mágicos


O que é Tensegridade?

Tensegridade é a versão modernizada de alguns movimentos conhecidos como passes mágicos desenvolvidos por índios xamãs que moraram no México em épocas anteriores à Conquista Espanhola.

Épocas anteriores à Conquista Espanhola é um termo usado por Dom Juan, um índio mexicano xamã que apresentou Carlos Castaneda, Carol Tiggs, Florinda Donner-Grau e Taisha Abelar ao mundo cognitivo dos xamãs que viveram no México nos tempos antigos que, segundo Dom Juan, foram de 7000 a 10.000 anos atrás.

Dom Juan explicou a seus estudantes que aqueles xamãs descobriram que, através de práticas que ele mesmo não podia penetrar, é possível para os seres humanos perceber a energia diretamente como ela flui no universo. Em outras palavras, segundo Dom Juan, aqueles xamãs diziam que qualquer um de nos pode se livrar por um momento do nosso sistema de transformar o influxo de energia em informação sensorial própria ao tipo de organismo que somos. Os xamãs afirmam que, transformar o influxo de energia em informação sensorial cria um sistema de interpretação que transforma o fluxo de energia do universo no mundo da vida cotidiana que conhecemos.

Dom Juan explicou ainda que uma vez que os xamãs dos tempos antigos estabeleceram a validade da percepção direta de energia, que chamaram visão, eles a refinaram usando-a neles mesmos, isso quer dizer que eles percebiam uns aos outros, sempre que queriam, como um conglomerado de campos energéticos. Para aquele que “viam”, os seres humanos percebidos de tal modo eram como esferas luminosas gigantes. O tamanho de tais esferas luminosas é o comprimento dos braços abertos.

Quando os seres humanos são percebidos como conglomerados de campos energéticos, um ponto de luminosidade intensa pode ser percebido nas costas, na altura da clavícula a uma distância de um braço. Antigamente, as pessoas que vêem, que descobriram esse ponto de luminosidade, o chamavam de ponto de aglutinação, porque eles concluíram que é aí que a percepção se aglutina. Eles perceberam, auxiliados pela sua visão, que naquele ponto de luminosidade, o local que é homogêneo para a humanidade, convergem zilhões de campos energéticos na forma de filamentos luminosos que constituem o universo. Ao se convergirem para lá, eles se tornam informações sensoriais, que são utilizadas pelos seres humanos como organismos. Esta utilização da energia convertida em informação sensorial foi considerada pelos xamãs como um ato de magia pura…energia transformada pelo ponto de aglutinação em um mundo verdadeiro, global no qual os seres humanos como organismos podem viver e morrer. O ato de transformar o influxo de pura energia num mundo perceptível era atribuído pelos xamãs a um sistema de interpretação. Sua conclusão arrasadora, arrasadora para eles, é claro, e talvez para alguns de nós que temos a energia para ter atenção, era que o ponto de aglutinação não era unicamente o local onde a percepção é aglutinada pela transformação do influxo de energia pura em informação sensorial, mas é também o local onde ocorre a interpretação da informação sensorial.

A observação seguinte deles foi que esse ponto de aglutinação é deslocado de modo muito natural e não obstrutivo da sua posição habitual durante o sono. Eles descobriram que quanto maior a deslocação, mais estranhos os sonhos que acompanhavam. Destas experiências de ver, esses xamãs pularam para a ação pragmática de deslocar voluntariamente o ponto de aglutinação. Eles chamaram esses resultados concludentes a arte de sonhar.

Essa arte foi definida por aqueles xamãs como a utilização pragmática de sonhos comuns para criar uma entrada para outros mundos pelo ato de deslocar o ponto de aglutinação pela própria vontade e manter essa nova posição, também pela própria vontade. As observações desses xamãs ao praticar a arte de sonhar era uma mistura de razão e de ver diretamente a energia do universo enquanto flui. Eles perceberam que na sua posição habitual, o ponto de aglutinação é o local para onde converge uma porção específica e minúscula dos filamentos de energia que formam o universo, mas se o ponto de aglutinação muda de local, dentro do ovo luminoso, uma porção minúscula diferente de campos energéticos se convergem nele, tendo como resultado um novo influxo de informação sensorial: campos energéticos diferentes dos comuns se tornam informações sensoriais, e os campos energéticos diferentes são interpretados como um mundo diferente.

A arte de sonhar se tornou para aqueles xamãs a prática mais absorvente. Durante aquela prática, eles experimentaram estados não igualados de força física e bem-estar, e no seu esforço de duplicar esses estados nas horas de vigília descobriram que podiam repeti-los seguindo certos movimentos do corpo. Os esforços culminaram com a descoberta e desenvolvimento de grande número de tais movimentos, que são chamados de passes mágicos.

Os Passes Mágicos daqueles xamãs do antigo México se tornaram sua possessão mais preciosa. Eles os rodearam com rituais e mistérios e somente os ensinaram as pessoas que eles iniciavam em meio a um enorme segredo. Esta foi a maneira na qual Dom Juan Matus os ensinou a seus discípulos. Seus discípulos, sendo o último elo de sua linhagem chegaram a conclusão unânime de que qualquer outro segredo, sobre os passes mágicos seria contra o interesse que tinham em tornar o mundo de Dom Juan disponível aos outros homens. Eles decidiram, portanto, resgatar os passes mágicos de seu estado obscuro. Eles criaram desse modo a Tensegridade, que é um termo na arquitetura que significa a propriedade das estruturas esqueléticas que empregam elementos de tensão contínua e elementos de compressão descontínua de tal forma que cada elemento opera com o máximo de eficiência e economia. Este é o nome mais apropriado porque é uma mistura de dois termos: tensão e integridade, termos que conotam as duas forças motrizes dos passes mágicos.
Extraído de Readers of Infinity, de Carlos Castaneda, Número 1, Volume 1, 1996.

“Se você quer destreza física e sensatez, precisa de um corpo flexível. Esses são os dois aspectos mais importantes na vida dos xamãs, porque trazem sobriedade e pragmatismo : os únicos requisitos indispensáveis para entrar em outros domínios de percepção. Navegar de uma maneira genuína no desconhecido, requer uma atitude de ousadia, mas não de imprudência. Para estabelecer um equilíbrio entre a audácia e a imprudência, um feiticeiro precisa ser extremamente sóbrio, cauteloso, habilidoso e estar em excelente condição física .”
- Passes Mágicos, pg. 14

“Os passes mágicos devem ser praticados não como exercícios, mas como uma maneira de chamar o poder com um gesto. Os passes mágicos intensificam a consciência, independentemente da idéia que você faça deles. O mais inteligente seria apenas aceitar que a prática dos passes mágicos leva os praticantes a deixar cair a máscara da socialização.”
- Passes Mágicos , pg. 22

“Enquanto ensinava, Dom Juan fazia questão de acentuar que a enorme ênfase que os xamãs de sua linhagem davam à destreza física e ao bem-estar mental tinha permanecido até os dias de hoje. Observando-o e aos 15 feiticeiros que o seguiam, fui capaz de confirmar a verdade de suas declarações. O excelente físico e o equilíbrio mental eram suas características mais óbvias .”
- Passes Mágicos, pg.13

“A excelente condição física, conceito firmemente defendido por D. Juan desde o primeiro dia de nossa associação - produto da rigorosa execução dos passes mágicos -, era ao que tudo indicava o primeiro passo para a redistribuição de nossa energia inerente. Segundo Dom Juan, essa redistribuição de energia era o aspecto mais importante da vida dos xamãs, bem como na vida de qualquer indivíduo. A redistribuição de energia é um processo que consiste em transportar, de um lugar para outro, a energia que já existe dentro de nós . Essa energia foi deslocada dos centros de vitalidade no corpo, que dela precisam para produzir um equilíbrio entre a agilidade mental e destreza física .”
- Passes Mágicos, pg. 14

vídeos com as principais séries: http://tolteca.blogspot.com/

A lenda da cocaína


Quando o Imperador Inca Huayna Capac pressentiu que chegava a hora de sua morte, chamou seus filhos, Atahualpa e Huascar, para se despedir, dividir seu reino entre eles e pedir que apoiassem um ao outro. Atahualpa ficaria com as terras do norte (hoje a cidade de Quito, no Equador); Huascar, com as ao sul e a capital Inca, Cuzco. Ambos deveriam reinar como os deuses gêmeos Inti (o Sol) e Kilya (a Lua). Na ocasião, Huayna Capac, para selar essa aliança, serviu aos seus filhos um cálice da bebida sagrada Ayahuasca e pediu que eles aguardassem as revelações que o grande espírito traria através dela.

Ao tomar a bebida, Atahualpa viu a serpente emplumada, Viracocha , saindo de dentro do Sol e do Mar. Para ele, era o retorno do deus criador no final dos tempos, o Pachacúti, o Apocalipse Inca. Huascar teve a visão de um navio estranho chegando ao poente, com um homem sanguinário vestindo uma armadura prateada com um pluma em seu capacete. Ao final do transe, cada um contou sua visão ao pai, que disse: “Vocês tiveram a mesma visão, mas cada um interpretou-a de um modo”.

Depois da morte de Huayna Capac, no entanto, os dois meio-irmãos se desentenderam e entraram em guerra. Huascar recorreu novamente à Ayahuasca e teve a mesma visão, acrescida de mais detalhes: o homem barbudo de roupa prateada e pena na cabeça chegava comandando um grande massacre e destruindo o Império Inca. Ainda em transe, Huascar perguntou à divindade a causa daquela desgraça. “O povo Inca ao invés de amar o Sol e a Lua, amava o ouro e prata.” Inconformado, o príncipe Inca clamou por misericórdia: “Nem todos amam a matéria”. Ao que o espírito da Ayahuasca respondeu: “Esconda o tesouro dos Incas no lago Titicaca e suba com a classe sacerdotal e todos que amam o espírito para Machu Picchu, no alto das montanhas, que se passarão várias gerações sem que os homens barbudos descubram os sobreviventes incas”.

Huascar agradeceu e prometeu seguir fielmente as instruções do grande Espírito da bebida sagrada, no entanto, em seu coração ele não aceitou o fim do seu mundo e antes de voltar ao estado de consciência normal ele pediu, ainda em transe, uma reparação contra aquela injustiça.

Porém, logo após esconder o tesouro inca e despachar os sacerdotes para as montanhas, Huascar foi preso pelas tropas de seu meio-irmão.

Voltando para Cuzco, para tomar posse do trono que conquistara, Atahualpa parou na cidade andina de Cajamarca, conduzindo um exército de cerca de 80.000 guerreiros, quando viu a chegada do conquistador espanhol Francisco Pizarro, lembrando-se na visão de que havia tido com a bebida sagrada.

Atahualpa recebeu Pizarro como um deus, sendo traído e aprisionado pelo espanhol, no dia 16 de novembro de 1532. E o poderoso Império Inca foi derrubado por menos de duzentos homens e vinte e sete cavalos.

Naquela mesma noite, em grande agonia, Huascar teve um sonho em sua cela na prisão, em que se encontra com o próprio Inti, o deus Sol.

- Oh, meu Pai, conceda-nos a vitória de meu povo e a expulsão dos invasores – suplicou o príncipe Inca.

- O que você me pede é impossível. O destino de Atahualpa e dos adoradores de metal está selado. Porém, gostaria de conceder-lhe uma graça.

Huascar pediu um conforto que os ajudasse a suportar a escravidão e a vida dura que os esperava. O deus Sol lhe mostrou a planta de coca e disse:

- Diga a seu povo para cultivar essa planta com carinho e colher suas folhas. Após secas, as folhas devem ser mascadas para que seu suco alivie seu sofrimento. Quando se sentirem exaustos de seu destino essa planta lhes dará nova vitalidade. Em suas jornadas através de terras altas, a coca irá aliviar sua fome e frio, tornando a viagem mais tolerável. Nas minas onde serão forçados a trabalhar, o terror e a escuridão dos túneis serão insuportáveis sem a ajuda desta planta.

- Porém, enquanto essa planta significará força, saúde e vida para seu povo, ela será maldição para os estrangeiros. Quando eles tentarem explorar suas virtudes, a coca irá destruí-los. O que para seu povo servirá de ‘alimento’, para os invasores será um perigo veneno. A coca é uma das defesas da Grande Floresta, que destroem todos aqueles que tentarem devastá-la.