- Já lhe disse que o segredo de um corpo forte não está no que você faz com ele, mas no que não lhe faz - falou, por fim.
- Agora, chegou a hora de você não fazer o que faz sempre. Fique aqui sentado até partirmos e não faça.
- Não estou entendendo, Dom Juan.
Pôs as mãos sobre meus apontamentos e os tirou de mim. Cuidadosamente, fechou as páginas de meu caderno, prendeu-o com seu elástico e depois atirou-o como um disco dentro do chaparral.
Fiquei chocado e comecei a protestar, mas ele tapou minha boca com a mão. Apontou para um arbusto grande e disse-me que fixasse a atenção não nas folhas, mas nas sombras das folhas. Disse que correr no escuro não precisava de ser provocado pelo temor, e podia ser uma reação muito natural de um corpo jubilante que sabia o que “não fazer”. Ficou repetindo em meu ouvido direito que "não fazer o que eu sabia como fazer" era a chave do poder. No caso de olhar para uma árvore, o que eu sabia como fazer era focalizar imediatamente a folhagem. As sombras das folhas ou os espaços entre as folhas nunca me ocupavam. Suas últimas advertências foram para começar a focalizar as sombras das folhas de um único galho e depois, aos poucos, passar a toda a árvore e não deixar que meus olhos voltassem para as folhas, pois o primeiro passo propositado para armazenar o poder pessoal era permitir ao corpo “não fazer”.
Talvez fosse devido à minha fadiga ou excitação nervosa, mas fiquei tão absorto nas sombras das folhas que, quando Dom Juan se levantou, eu conseguia quase agrupar as massas escuras de folhagens tão bem como eu normalmente agrupava a folhagem. O efeito geral era espantoso. Eu disse a Dom Juan que gostaria de me demorar mais. Ele riu e deu um tapinha em meu chapéu.
- Já lhe disse - falou ele. - O corpo gosta de coisas como esta.
Depois, explicou que eu devia deixar que meu poder armazenado me guiasse pelas moitas até meu caderno. Empurrou-me delicadamente para o chaparral. Andei a esmo por um momento e depois encontrei-o. Pensei que, subconscientemente, eu devia estar lembrado da direção em que Dom Juan o atirara. Esclareceu o fato, dizendo que eu fora diretamente ao caderno porque meu corpo estivera mergulhado durante horas em “não fazer”.
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- Veja como muda a luz do Sol - disse ele.
Sua voz era clara. Assemelhava-se à água, fluida e morna.
O céu estava inteiramente limpo de nuvens para o oeste e o Sol estava espetacular. Talvez o fato de Dom Juan estar-me dando sugestões tornasse o brilho amarelado do Sol da tarde realmente magnífico.
- Deixe que esse fulgor o acenda - disse Dom Juan. - Antes de o Sol se pôr hoje, você tem de estar perfeitamente calmo e restabelecido, pois amanhã ou depois você vai aprender a não fazer
- Aprender a não fazer o quê? - perguntei.
- Não pense nisso agora - respondeu. - Espere até estarmos naquelas montanhas de lava. - E apontou para uns picos distantes, serrilhados e ameaçadores, na direção do norte.
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Eu estava escrevendo minhas impressões das vizinhanças quando Dom Juan, depois de um longo silêncio, falou num tom dramático.
- Eu o trouxe aqui para lhe ensinar uma coisa - disse ele. - Você vai aprender a não fazer. Mais vale falar a respeito porque não há outro meio de você prosseguir. Achei que você poderia pegar o não fazer sem eu ter de dizer nada. Mas enganei-me.
- Não sei de que está falando, Dom Juan.
- Não faz mal. Vou dizer-lhe uma coisa que é muito simples, mas muito difícil de fazer; vou falar-lhe sobre não fazer, a despeito do fato de não haver meio de falar sobre isso, pois é o corpo que o faz.
Olhou de relance e depois disse que eu tinha de prestar a maior atenção ao que ele ia falar. Fechei o caderno, mas, para assombro meu, ele insistiu para eu continuar a escrever.
- Não fazer é tão difícil e tão possante que você nem deve mencioná-lo - continuou ele. - Só pode fazê-lo quando tiver parado o mundo; só então é que você pode falar a respeito livremente, se é isso que você quer.
Dom Juan olhou em volta e apontou para uma pedra grande. - Aquela pedra ali é uma pedra por causa de fazer – disse ele.
Nós nos olhamos e ele sorriu. Esperei uma explicação, mas ele ficou calado. Por fim, tive de falar que não havia entendido o que ele queria dizer.
- Isso é fazer! - exclamou.
- Como?
- Isso também é fazer
- De que é que está falando, Dom Juan?
- Fazer é o que torna aquela pedra uma pedra e um arbusto um arbusto. Fazer é o que torna você você e eu eu.
Disse-lhe que a explicação dele não esclarecia coisa alguma. Ele riu e coçou as têmporas.
- É este o problema de se falar - disse ele. - Sempre faz a gente confundir as questões. Se a gente começa a falar a respeito de fazer, sempre se acaba abordando outro assunto. É melhor apenas agir
"Tome aquela pedra, por exemplo. Olhar para ela é fazer, mas vê-la é não fazer"
Tive de confessar que as palavras dele não estavam fazendo sentido para mim.
- Mas fazem, sim! - exclamou. - Mas você está convencido do contrário porque isso é você fazendo. É assim que você age em relação a mim e ao mundo. - Tornou a apontar para a pedra.
- Aquela pedra é uma pedra por causa de todas as coisas que você sabe fazer em relação a ela - continuou. - Chamo isso de fazer. Um homem de conhecimento, por exemplo, sabe que aquela pedra só é uma pedra por causa de fazer, de modo que, se não quiser que a pedra seja uma pedra, basta ele não fazer. Entende o que eu digo?
Eu não estava entendendo nada. Ele riu e fez uma nova tentativa para explicar
- O mundo é o mundo porque você conhece o fazer necessário para torná-lo o mundo - disse ele. - Se você não soubesse o seu fazer, o mundo seria diferente.
Examinou-me com curiosidade. Parei de escrever. Só queria escutá-lo. Continuou a explicar que, sem esse certo "fazer", não haveria nada de conhecido naquele ambiente.
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- Digo que você torna isto uma pedrinha porque conhece o fazer necessário para isso - falou. - Agora, para poder parar o mundo você tem de parar de fazer.
Ele parecia saber que eu continuava sem entender e sorriu, sacudindo a cabeça. Depois, pegou um galhinho e apontou para a borda irregular da pedrinha.
- No caso desta pedrinha - continuou - a primeira coisa que fazer lhe faz é diminuí-la até este tamanho. Por isso, a coisa certa a fazer, o que um guerreiro faz quando quer para o mundo, é aumentar a pedrinha, ou qualquer outra coisa, não fazendo.
Levantou-se e colocou a pedrinha num rochedo e depois disse que eu me aproximasse para examiná-la. Recomendou que eu olhasse para os buracos e depressões da pedrinha e tentasse distinguir seus mínimos detalhes. Falou que, se eu conseguisse distinguir os detalhes, os buracos e depressões desapareceriam e eu entenderia o que significa não fazer.
- Esse raio de pedrinha ainda vai deixá-lo maluco hoje - disse ele.
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- Fazer o leva a separar a pedrinha da pedra maior - continuou. - Se quiser aprender a não fazer, digamos que você tem de uni-las.
Apontou para a sombrinha que a pedrinha lançava na pedra grande e disse que não era uma sombra, e sim uma cola que ligava as duas. Depois, virou-se e afastou-se, dizendo que mais tarde me viria controlar.
Fiquei olhando para a pedrinha por muito tempo. Não conseguia focalizar minha atenção nos mínimos detalhes dos buracos e depressões, mas a pequena sombra que a pedrinha lançava sobre a pedra grande tornou-se um ponto muito interessante. Dom Juan tinha razão: era como uma cola. Movia-se e variava. Eu tinha a impressão de que estava sendo espremida de debaixo da pedrinha.
Quando Dom Juan voltou, eu lhe contei o que tinha observado sobre a sombra.
- É um bom começo - disse ele. - Um guerreiro pode descobrir uma porção de coisas através das sombras. - Depois, ele sugeriu que eu pegasse a pedrinha e a enterrasse em algum lugar
- Por quê? - perguntei.
- Está olhando para ela há muito tempo. Ela agora tem alguma coisa de você. Um guerreiro sempre tenta mudar a força de fazer transformando-o em não fazer. Fazer seria deixar a pedrinha por aí, pois não é mais do que uma pedrinha. Não fazer seria proceder com essa pedrinha como se fosse alguma coisa mais do que uma simples pedra. Nesse caso, aquela pedra o absorveu por muito tempo e agora é você, e, sendo assim, não a pode deixar por aí, e tem de enterrá-la.
Se quiser ter poder pessoal, porém, não fazer seria transformar aquela pedra em um objeto de poder.
- Posso fazer isso agora?
- Sua vida não está bastante ajustada para fazer isso. Se você visse, saberia que sua preocupação transformou aquela pedrinha em uma coisa bem sem atrativo; e, portanto, a melhor coisa que você pode fazer é cavar um buraco e enterrá-la e deixar que a terra absorva seu peso.
- Tudo isso é verdade, Dom Juan?
- Dizer que sim ou que não seria fazer. Mas como você está aprendendo a não fazer, devo dizer-lhe que realmente não tem importância se tudo isso é verdade ou não. É aqui que o guerreiro leva vantagem sobre o homem comum. O homem, comum se, importa em saber se as coisas são verdadeiras ou falsas, mas um guerreiro não. Um homem comum procede de maneira específica com as coisas que ele sabe serem verdade e de maneira diversa com o que sabe não ser verdade. Se se supõe que as coisas são verdadeiras, ele age e acredita no que faz. Mas se as coisas são supostamente falsas, ele não quer agir, ou não crê no que faz. Um guerreiro, ao contrário, age em ambos os casos. Se se supõe que as coisas são verdadeiras, ele age a fim de estar fazendo. Se se supõe que as coisas são falsas, ele ainda assim age, a fim de não fazer. Entende o que digo?
- Não. Não estou entendendo nada - respondi.
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- Eu estava implicando um pouco com você - disse Dom Juan, quando voltei e tornei a me sentar - Mas sei que, se você não falar, não entende. Falar para você é fazer, mas falar não serve e, se você quiser entender o que eu quero dizer com não fazer, tem de executar um exercício simples. Como estamos interessados em não fazer, não importa que faça o exercício agora ou daqui a dez anos.
Mandou que eu me deitasse e pegou meu braço direito, dobrando-o no cotovelo. Depois, virou minha mão para a palma ficar voltada para a frente; curvou meus dedos, de modo que minha mão ficou na posição de quem está segurando uma maçaneta e depois começou a mover meu braço para a frente e para trás, num movimento circular que parecia o ato de empurrar e puxar uma alavanca presa a uma roda.
Dom Juan disse que um guerreiro executava esse movimento cada vez que queria expulsar alguma coisa de seu corpo, como uma doença ou uma sensação desagradável. A intenção era empurrar e puxar uma força adversa imaginária até a pessoa sentir um objeto pesado, um corpo sólido, opondo-se aos movimentos livres da mão. No caso do exercício, não fazer consistia em repeti-lo até se sentir o corpo pesado com a mão, a despeito do fato de a pessoa não poder acreditar que fosse possível senti-lo.
Comecei a mover o braço e, dali a pouco, minha mão ficou gelada. Comecei a sentir uma espécie de polpa em volta dela. Era como se eu estivesse remando numa substância líquida, pesada e viscosa.
Dom Juan fez um movimento súbito e agarrou meu braço para parar o movimento. Meu corpo todo tremia como se abalado por alguma força oculta. Examinou-me quando me sentei e, depois, andou em volta de mim, antes de tornar a sentar-se onde estava antes.
- Já fez bastante - disse ele. - Pode executar esse exercício em outra ocasião, quando tiver mais poder pessoal.
- Fiz alguma coisa errada?
- Não. Não fazer é só para guerreiros muito fortes e você ainda não tem o poder de lidar com isso. Agora, só vai apanhar coisas horrendas com as mãos. Portanto, faça-o pouco a pouco, até sua mão não ficar mais fria. Quando ficar quente, você chega a poder sentir as linhas do mundo com ela.
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Parou para me dar tempo de perguntar a respeito das linhas. Mas antes de eu ter oportunidade, começou a explicar que havia um número infinito de linhas que nos ligavam às coisas. Disse que o exercício de não fazer que ele acabava de descrever ajudaria a qualquer pessoa a sentir uma linha que saísse da mão que se movia, uma linha que a pessoa poderia colocar ou lançar sempre que quisesse. Dom Juan disse que aquilo não passava de um exercício porque as linhas formadas pela mão não eram suficientemente duráveis para ter um valor real numa situação de fato.
- Um homem de conhecimento utiliza outras partes de seu corpo para produzir linhas duráveis - explicou.
- Que partes, Dom Juan?
- As linhas mais duráveis que o homem de conhecimento produz partem do meio do corpo. Mas ele também as pode fazer com os olhos.
- São linhas de verdade?
- Por certo.
- Pode-se vê-las e tocá-las?
- Digamos que se pode senti-las. A parte mais difícil do modo de vida de um guerreiro é entender que o mundo é uma sensação.
Quando a pessoa está não fazendo, sente o mundo, e o consegue por meio dessas linhas. Ele parou e me examinou com curiosidade. Ergueu as sobrancelhas, abriu os olhos e piscou. O efeito foi como os olhos de uma ave piscando. Quase imediatamente, senti uma sensação de desconforto e repugnância. Era como se alguma coisa estivesse fazendo pressão sobre minha barriga.
- Entende o que digo? - perguntou Dom Juan, desviando o olhar.
Falei que estava com náuseas e ele respondeu, displicentemente, que sabia disso e que estava tentando fazer com que eu sentisse as linhas do mundo com os olhos dele. Eu não podia admitir a idéia de que ele mesmo me estivesse fazendo sentir daquele jeito. Exprimi minhas dúvidas. Eu não podia conceber a idéia de que ele estava causando minha sensação de náusea, pois ele não tinha tido qualquer contato físico comigo.
- Não fazer é muito simples, mas muito difícil - disse ele. - Não é uma questão de entender, mas de dominar a coisa. Ver, naturalmente, é a realização final de um homem de conhecimento, e ver só é conseguido quando a pessoa parou o mundo pela técnica de não fazer.
Sorri, sem querer. Não tinha entendido o que ele queria dizer
- Quando a gente faz alguma coisa com as pessoas - continuou - o interesse devia ser só de apresentar o caso aos corpos delas. E isso que tenho feito com você até agora, deixando que seu corpo saiba. Quem se importa se você entende ou não?
- Mas isso não é justo, Dom Juan. Quero entender tudo, pois, do contrário, vir aqui seria uma perda do meu tempo.
-. Uma perda do seu tempo! - exclamou, imitando meu tom de voz. - Você é mesmo convencido.
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A escalada foi um negócio terrível. Era um verdadeiro alpinismo, só que não tínhamos cordas para nos ajudar e proteger. Dom Juan me disse repetidamente que não olhasse para baixo; e teve de me Puxar umas duas vezes, quando comecei a deslizar pela pedra. Eu estava muito vexado porque Dom Juan, tão velho, tinha de me ajudar. Disse-lhe que estava em má forma física porque tinha muita preguiça de fazer exercício. Respondeu que uma vez que a pessoa alcançasse um certo nível de poder pessoal, os exercícios ou qualquer treinamento desse tipo não eram necessários, pois a única coisa que se precisava, para estar numa forma impecável, era empenhar-se em não fazer.
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- As sombras são uma coisa estranha - disse ele, de repente.
- Você deve ter notado que há uma que nos segue.
- Não notei nada disso - protestei, em voz alta.
Dom Juan falou que meu corpo havia notado nosso perseguidor, a despeito de minha oposição obstinada; e assegurou-me, num tom de voz confidencial, de que não havia nada de mais em ser seguido por uma sombra.
- E apenas um poder - falou. - Essas montanhas são cheias deles. E tal e qual um daqueles entes que o assustaram na outra noite.
Perguntei se eu podia percebê-la eu mesmo. Respondeu que, de dia, eu só poderia sentir sua presença.
Queria que ele me explicasse por que chamava aquilo uma sombra, quando, obviamente, não era igual à sombra de uma pedra. Respondeu que as duas tinham as mesmas linhas e, portanto, ambas eram sombras.
Apontou para uma grande pedra bem diante de nós.
- Olhe para a sombra daquela pedra - falou. - A sombra é a pedra e, no entanto, não é. Observar a pedra a fim de saber o que é a pedra é fazer, mas observar a sombra é não fazer
"As sombras são como portas, as portas de não fazer. Um homem de conhecimento, por exemplo, sabe dos sentimentos mais íntimos dos homens observando suas sombras."
- Há movimento nelas? - perguntei.
- Pode-se dizer que há movimento nelas, ou pode-se dizer que as linhas do mundo aparecem nelas, ou pode-se dizer que os sentimentos vêm delas.
- Mas como é que os sentimentos podem vir de sombras, Dom Juan?
- Acreditar que as sombras são apenas sombras é fazer - explicou. - Essa idéia é um pouco burra. Pense nisso assim. Há tanto mais em tudo no mundo que, obviamente, deve haver mais nas sombras também. Afinal de contas, o que as torna sombras é apenas o nosso fazer
Ficamos em silêncio por muito tempo. Eu não sabia o que dizer.
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Esclareceu suas instruções dizendo que, ao procurar um lugar de repouso, a pessoa tinha de olhar sem focalizar, mas, ao observar as sombras, era preciso olhar atravessado, conservando, porém, focalizada uma imagem nítida. A idéia era deixar que uma sombra se superpusesse à outra, atravessando-se os olhos. Explicou que, por este processo, a pessoa podia verificar uma certa sensação que emanava das sombras. Comentei que suas palavras eram vagas, mas ele garantiu que não havia realmente meio de descrever o que queria dizer
Minha tentativa de fazer o exercício foi vã. Esforcei-me até ficar com dor de cabeça. Dom Juan não ligou a mínima a meu fracasso.
Escalou um pico em forma de domo e gritou lá de cima para eu procurar duas pedras estreitas e compridas. Mostrou com as mãos o tamanho das pedras que queria.
Encontrei dois pedaços de pedra e dei-os a ele. Dom Juan colocou cada pedra em uma fenda, a uma distância de uns 30 centímetros, mandou que eu me postasse por cima delas, virado para o oeste, dizendo para eu fazer o mesmo exercício com as sombras delas.
Dessa vez, a coisa foi totalmente diferente. Quase imediatamente, consegui atravessar os olhos e percebi suas sombras individuais como se estivessem fundidas numa só. Reparei que o fato de olhar sem convergir as imagens dava à sombra única que eu tinha formado uma profundidade incrível e uma espécie de transparência. Fiquei olhando, sem poder acreditar. Cada buraco da pedra, na área em que meus olhos estavam focalizados, era nitidamente distinguível; e a sombra composta, superposta neles, era como uma película de uma transparência indescritível.
Eu não queria piscar, com medo de perder a imagem que estava mantendo tão precariamente. Por fim, meus olhos doloridos me obrigaram piscar mas não perdi em absoluto a visão do detalhe verdade, ao umedecer a córnea, a imagem ficou ainda mais nítida. Nessa altura, reparei que era como se eu estivesse olhando de uma altura imensa para um mundo que eu nunca vira. Também reparei que podia percorrer as vizinhanças da sombra sem perder o foco de minha percepção visual. Então, por um instante, perdi a noção de estar olhando para uma pedra. Senti que estava chegando a um mundo, vasto além de tudo o que jamais eu concebera. Essa percepção extraordinária só durou um segundo e depois tudo se desligou. Automaticamente, ergui os olhos e vi Dom Juan de pé, logo acima das pedras, olhando para mim. Ele tapara o Sol com o corpo.
Descrevi a sensação rara que tivera e ele explicou que fora obrigado a interrompê-la porque "viu" que eu ia me perder nela. Acrescentou que era uma tendência natural em todos nós termos caprichos quando ocorriam sentimentos daquela natureza, e que, cedendo a esse capricho, eu quase tinha transformado não fazer em meu velho conhecido fazer. Disse que o que eu devia ter feito era manter a vista sem sucumbir a ela, pois, de certo modo, fazer era uma maneira de sucumbir.
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Tive de confessar que estava mais aturdido do que nunca com esse não fazer. Os comentários de Dom Juan foram que eu deveria estar satisfeito com o que tinha feito, pois uma vez na vida tinha agido corretamente, que reduzindo o mundo eu o aumentara, e que, embora estivesse longe de sentir as linhas do mundo, havia usado corretamente a sombra das pedras como uma porta para não fazer
A declaração de que eu aumentara o mundo reduzindo-o intrigou-me profundamente. O detalhe da rocha porosa, na pequena área em que meus olhos estavam focalizados, era tão vívido e tão precisamente definido que o topo do pico redondo se tornava um vasto mundo para mim; e, no entanto, era realmente uma visão reduzida da pedra. Quando Dom Juan tapou a luz e eu me encontrei olhando como faria normalmente, o detalhe preciso embaciou-se, os buraquinhos na pedra porosa tornaram-se maiores, a coloração marrom da lava seca tornou-se opaca e tudo perdeu a transparência brilhante que fazia da rocha um mundo verdadeiro.
Dom Juan, então, pegou as duas pedras, colocou-as delicadamente numa fenda profunda e sentou-se de pernas cruzadas virado para oeste, no lugar onde tinham estado as pedras. Bateu num ponto ao lado dele, à esquerda, e mandou que eu me sentasse.
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Ficamos calados por muito tempo. Depois, comemos, também em silêncio. Foi só depois que o Sol se pôs que ele, de repente, se virou e me perguntou sobre meus progressos em matéria de "sonhar".
Respondi que tinha sido fácil no princípio, mas que, no momento, eu tinha deixado completamente de encontrar minhas mãos nos sonhos.
- Quando você começou a sonhar, estava usando meu poder pessoal, por isso era mais fácil - disse ele.
- Agora, você está vazio. Mas tem de continuar a tentar até ter suficiente poder seu. Entende, sonhar é o não fazer dos sonhos e, à medida que você progredir em seu não fazer, também progredirá no sonhar. O truque é não deixar de procurar suas mãos, apesar de não acreditar que aquilo que está fazendo tem sentido. Na verdade, como já lhe disse, um guerreiro não precisa acreditar, pois, enquanto continuar a agir sem acreditar, estará não fazendo.
- Nós nos olhamos.
Não há mais nada que lhe possa dizer a respeito de sonhar - continuou ele. - Tudo o que eu possa dizer será apenas não fazer. Mas, se lidar com não fazer diretamente, você mesmo saberá o que fazer no sonhar. Porém, a essa altura, encontrar suas mãos é essencial, e estou certo de que você as encontrará.
- Não sei, Dom Juan. Não confio em mim.
- Não é questão de confiar em ninguém. Tudo isso é assunto da luta de um guerreiro; e você continuará a lutar, se não sob seu próprio poder, então talvez, sob o impacto de um adversário valoroso, ou com o auxílio de alguns aliados, como o que já o está seguindo.
Fiz um movimento brusco e involuntário com o braço direito. Dom Juan disse que meu corpo sabia muito mais do que eu suspeitava, pois a força que nos estava seguindo estava à minha direita. Falou, em voz baixa e confidencial, que, por duas vezes naquele dia, o aliado tinha chegado tão junto de mim que ele tivera de intervir e detê-lo.
- Durante o dia as sombras são as portas de não fazer - disse ele. - Mas, à noite, como muito pouco fazer prevalece no escuro, tudo é sombra, inclusive os aliados. Já lhe falei sobre isso quando lhe ensinei o passo do poder
Ri alto e meu próprio riso me assustou.
"Tudo o que lhe ensinei até agora foi um aspecto de não fazer - continuou ele. - Um guerreiro aplica não fazer a tudo no fundo e, no entanto, não lhe posso dizer mais a respeito do que Já lhe falei hoje. Deve deixar que seu próprio corpo descubra o poder e a sensação de não fazer"
Tive outro acesso de cacarejar nervoso.
“É burrice sua escarnecer dos mistérios do mundo simplesmente porque conhece fazer o escárnio" - disse ele, com uma cara séria.
Falei que não estava escarnecendo de nada ou ninguém, mas que era mais nervoso e incompetente do que ele pensava.
- Sempre fui assim - disse eu. - E, no entanto, quero modificar-me e não sei como. Sou muito inadequado.
- Já sei que você acha que não presta - disse ele. – Isso é seu fazer. Agora, para afetar esse fazer, vou recomendar que você aprenda outro fazer. De hoje em diante, e por um período de oito dias, quero que você minta para si mesmo. Em vez de se dizer a verdade, que você é podre, feio e inadequado, você se dirá que é o oposto, sabendo que está mentindo e que é completamente sem esperança.
- Mas qual a finalidade de mentir assim, Dom Juan?
- Pode prendê-lo a outro fazer e então pode compreender que ambos os fazeres são mentiras, irreais, e que prendê-lo a qualquer deles é uma perda de tempo, pois a única coisa que é real é o ser em você, que vai morrer. Chegar a esse ser é o não fazer do eu.
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- Olhe fixamente para ali - disse ele. - O Sol está quase a pino.
Explicou que, ao meio-dia, a luz do Sol poderia ajudar-me a não fazer. Então, deu uma série de ordens: afrouxar todas as roupas ajustadas que eu vestia, sentar-me de pernas cruzadas e olhar atentamente para o ponto que ele determinara.
. Havia muito poucas nuvens no céu e nenhuma para oeste. O dia estava quente e o Sol raiava sobre a lava solidificada. Fiquei olhando fixamente para o lugar determinado.
Depois de uma longa vigília perguntei o que, exatamente, eu deveria procurar. Ele ordenou que me calasse, com um gesto impaciente da mão.
Eu estava cansado. Queria dormir. Cerrei os olhos; eles estavam comichando e eu os esfreguei, mas minhas mãos estavam úmidas e o suor fez meus olhos arderem. Olhei para os picos de lava através de olhos semicerrados e, de repente, toda a montanha se iluminou.
Falei a Dom Juan que, se apertasse os olhos, poderia ver toda a cadeia de montanhas como uma formação complexa de fibras de luz. Ele me disse que respirasse o menos possível, para conservar a visão das fibras de luz e para não olhar intensamente, e sim com naturalidade para um ponto no horizonte bem acima da encosta. Segui suas instruções e consegui conservar a visão de uma extensão interminável coberta por uma teia de luz.
Dom Juan sussurrou baixinho que eu devia tentar isolar as áreas de escuridão dentro do campo de fibras de luz e que, logo depois de encontrar um ponto escuro, eu deveria abrir os olhos e verificar onde ficava aquele ponto na face da encosta.
Eu não conseguia perceber áreas escuras. Apertei os olhos e depois os abri, várias vezes. Dom Juan aproximou-se de mim e apontou para uma área à minha direita e depois para outra, bem defronte de mim. Tentei mudar a posição de meu corpo; pensei que, talvez, se eu mudasse minha perspectiva, conseguiria perceber a suposta área de escuridão para a qual ele estava apontando, mas Dom Juan sacudiu meu braço e me disse, severamente, para ficar quieto e ter paciência.
Voltei a apertar os olhos e tornei a ver a teia de fibras de luz.
Olhei para ela por um momento e, depois, abri mais os olhos. Naquele instante, ouvi um ronco baixinho - podia facilmente ser explicado como o som distante de um avião a jato - e então, de olhos bem abertos, vi toda a cadeia de montanhas diante de mim como um campo enorme de pontinhos de luz. Foi como se, por um breve instante, algumas pintas metálicas na lava solidificada estivessem refletindo o Sol, todas juntas. Depois, a luz do Sol embaciou-se e, de repente, apagou-se; e as montanhas se tornaram uma massa de rocha marrom opaca, ao mesmo tempo que o dia se tornava frio e ventoso.
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- Aonde vamos? - perguntei.
Apontou para um dos lugares que ele isolara como sendo um ponto de escuridão. Explicou que não fazer lhe permitira isolar aquele ponto como um possível centro de poder, ou talvez como um local em que se poderia encontrar objetos de poder
Alcançamos o ponto que ele queria depois de uma escalada difícil. Ele ficou imóvel em minha frente por um momento. Tentei aproximar-me dele, mas Dom Juan me fez sinal com a mão para parar. Parecia estar-se orientando. Eu via as costas da cabeça dele se movendo, como se ele estivesse passando os olhos para cima e para baixo das montanhas, e depois, com passos seguros, ele se dirigiu para uma saliência. Sentou-se e começou a limpar um pouco de terra solta da pedra com a mão. Enfiou os dedos em volta de um pedacinho de rocha protuberante, limpando a terra em derredor dele; após, mandou que eu o desencavasse.
Depois que desloquei o pedaço de rocha, ele me disse que o pusesse imediatamente dentro de minha camisa, pois era um objeto de poder, que me pertencia. Disse que me estava dando aquilo para eu guardar e que eu deveria poli-lo e cuidar dele.
Viagem a Ixtlan, pág. 191
- Eu lhes mostrei um pouco do meu não fazer - disse ele, e seus olhos pareciam brilhar.
- Mas nenhum de nós viu o mesmo disfarce - retruquei.
- Como foi que você conseguiu isso?
- É tudo muito simples - respondeu. - Só eram disfarces, pois tudo o que fazemos é, de certo modo, apenas um disfarce. Tudo o que fazemos, como já lhe disse, é uma questão de fazer. Um homem de conhecimento poderia ligar-se ao fazer de qualquer pessoa e aparecer com coisas estranhas. Mas não são estranhas, não realmente.
Só são estranhas para aqueles que estão presos no fazer. Aqueles quatro rapazes e você ainda não estão cientes do não fazer, de modo que foi fácil lograr vocês todos.
- Como é que nos logrou?
- Não adianta explicar. Não há meio de você entender - Experimente, Dom Juan, por favor
- Digamos que, quando cada um de nós nasce, traz consigo um circulozinho de poder. Esse pequeno círculo é posto em uso quase que imediatamente. Assim, cada um de nós já está preso desde que nasce e os nossos círculos de poder são ligados aos de todos os outros. Em outras palavras, os nossos círculos de poder são ligados ao fazer do mundo a fim de formar o mundo.
- Dê um exemplo que eu possa entender
- Por exemplo, nossos círculos de poder, o seu e o meu, estão ligados neste momento ao fazer esta sala. Estamos formando esta sala. Nossos círculos de poder estão girando e formando esta sala neste momento mesmo.
- Espere, espere - disse eu. - Esta sala está aqui sozinha. Não a estou criando. Não tenho nada a ver com ela.
Dom Juan não parecia estar interessado em meu protesto. Assegurou calmamente que a sala em que estávamos era criada e conservada no lugar por causa da força do círculo de poder de todos.
- Entende, - continuou - cada um de nós conhece o fazer de salas porque, de uma maneira ou de outra, já passamos grande parte de nossas vidas nas salas. Um homem de conhecimento, por outro lado, desenvolve outro círculo de poder. Eu o chamaria o círculo de não fazer, pois é ligado a não fazer. Com esse círculo, portanto, ele pode fazer girar outro mundo.
Uma jovem garçonete trouxe a comida e pareceu estar meio desconfiada a nosso respeito. Dom Juan disse que eu deveria pagar--lhe para mostrar que tinha dinheiro suficiente.
- Ela não tem culpa de não confiar em você - falou, dando uma gargalhada. - Você está com uma cara dos diabos.
Paguei à mulher e dei-lhe uma gorjeta e, quando ela nos deixou sozinhos, olhei para Dom Juan, procurando um meio de pegar de novo o fio da conversa. Ele me ajudou.
- O problema com você é que ainda não desenvolveu seu círculo de poder extra e seu corpo não conhece o não fazer - disse ele.
Não entendi o que ele disse. Minha mente estava fixa numa preocupação prosaica. Eu só queria saber se ele tinha ou não vestido a roupa de pirata.
Dom Juan não respondeu, mas riu bastante. Pedi que ele explicasse.
- Mas acabei de lhe explicar - retrucou.
- Quer dizer que não vestiu nenhuma fantasia? - perguntei.
- Só o que fiz foi ligar meu círculo de poder a seu próprio fazer. Você mesmo fez o resto e os outros também.
- Nós todos fomos ensinados a concordar sobre fazer – disse ele baixinho. - Você não tem idéia do poder que essa concordância acarreta. Mas, felizmente, não fazer é igualmente milagroso e poderoso.
Viagem a Ixtlan, pág. 197
- Porque, naquele momento, eles tinham sido tocados pelo poder de não fazer e, como não são tão burros quanto você, transformaram-se em coisa muito diferente do que você conhece. Não quis que olhasse para eles por este motivo. Só lhe teria prejudicado.
Eu não tinha mais perguntas. Nem estava com fome. Dom Juan comeu com vontade e parecia estar de ótimo humor. Mas eu estava deprimido. De repente, um cansaço tremendo se apossou de mim. Compreendi que o caminho de Dom Juan era penoso demais para mim. Comentei que eu não tinha as qualificações para me tornar feiticeiro.
Viagem a Ixtlan, pág. 199
- Você é muito esperto - disse ele por fim. - Volte para onde sempre esteve. Mas dessa vez você está liquidado. Não tem para onde voltar. Não lhe vou explicar mais nada. O que Genaro lhe fez ontem, fez a seu corpo, por isso deixe seu corpo resolver como são as coisas.
O tom de voz de Dom Juan era amistoso mas singularmente indiferente e aquilo me deu uma tremenda sensação de solidão. Exprimi minha tristeza. Ele sorriu. Seus dedos pegaram de leve a parte de cima de minha mão.
- Nós dois somos seres que vamos morrer - disse ele, baixinho. - Não há mais tempo para o que costumávamos fazer. Agora, tem de usar todo o não fazer que lhe ensinei e parar o mundo.
Tornou a pegar minha mão. Seu toque era firme e amistoso; era como uma reafirmação de que ele se interessava e tinha afeição por mim e, ao mesmo tempo, me dava a impressão de um propósito inabalável.
- Este é meu gesto por você - falou, conservando-se agarrado a minha mão por um instante. - Agora, tem de ir sozinho para aquelas montanhas amigas. - Apontou com o queixo para a cadeia de montanhas distante, para sudeste.
Disse que eu teria de ficar lá até meu corpo me mandar parar e então voltar para casa dele. Deixou-me saber que não queria que eu dissesse qualquer coisa, nem esperasse mais, empurrando-me delicadamente na direção de meu carro.
- O que devo fazer lá? - perguntei.
Ele não respondeu, e ficou olhando para mim, sacudindo a cabeça.
- Isso já acabou - disse ele por fim. Em seguida, apontou o dedo para sudeste. - Vá para lá - concluiu, com rispidez.
Viagem a Ixtlan, pág. 229
- Depois que o aprendiz recebe sua tarefa de feitiçaria, está pronto para outro tipo de instrução - continuou ele. - Aí ele é um guerreiro. No seu caso, como você não era mais aprendiz, eu lhe ensinei as três técnicas que ajudam a sonhar: romper as rotinas da vida, o passo do poder, e não-fazer. Você era muito constante, burro como aprendiz e burro como guerreiro. Anotava conscienciosamente tudo o que eu dizia e tudo o que lhe acontecia, mas não agia exatamente conforme eu mandava. De modo que eu ainda tinha de bombardeá-lo com plantas de poder.
Dom Juan então deu-me uma descrição detalhada de como desviar a minha atenção de sonhar, fazendo-me acreditar que o problema importante era uma atividade muito difícil que ele chamara de não-fazer, que consistia de um jogo de percepção, de focalizar a atenção em coisas do mundo que normalmente são desprezadas, tais como as sombras das coisas. Dom Juan disse que a sua estratégia fora destacar o não-fazer, impondo a isso o maior segredo.
- Não-fazer, como tudo o mais, é uma técnica muito importante, mas não era o ponto principal- disse ele. - Você foi atraído pelo segredo. Você, uma língua de trapo, ter de guardar um segredo
Ele riu e disse que podia imaginar o trabalho que eu devia ter tido para ficar de boca calada.
Explicou que romper as rotinas, o passo do poder e não-fazer eram alamedas para aprender novos meios de perceber o mundo, e que davam ao guerreiro um vislumbre de incríveis possibilidades de ação. A idéia de Dom Juan era que o conhecimento de um mundo separado e pragmático de sonhar era possibilitado pelo uso dessas três técnicas.
Porta para o Infinito, pág. 220
- Dom Juan lhes contou mais algumas coisas sobre as pirâmides, Pablito? - perguntei.
Minha intenção era desviar a conversa sobre a questão específica das Atlantas e ao mesmo tempo ficar próximo dela.
- Disse que uma certa pirâmide lá em Tula era uma guia replicou Pablito ansiosamente.
Pelo tom da sua voz deduzi que ele realmente queria falar. E a atenção dos outros aprendizes me convenceu de que, dissimuladamente, todos queriam trocar opiniões.
- O nagual disse que era uma guia da segunda atenção - continuou Pablito - mas que foi explorada e que destruíram tudo. Ele me falou que algumas pirâmides eram gigantescos lugares de não fazer. Não eram moradas, mas lugares dos guerreiros desenvolverem seus sonhos e exercitarem sua segunda atenção. O que quer que fizessem era registrado em desenhos e figuras nas paredes.
Depois, uma nova espécie de guerreiro deve ter aparecido, uma espécie que não aprovava o que os feiticeiros da pirâmide tinham feito com a segunda atenção, e destruíram a pirâmide com tudo o que havia dentro.
"O nagual acreditava que os novos guerreiros deviam ser guerreiros da terceira atenção, como ele próprio era; guerreiros que ficavam horrorizados com o mal da fixação da segunda atenção. Os feiticeiros das pirâmides estavam ocupados demais com sua fixação para perceberem o que estava acontecendo. Quando perceberam, era tarde demais.”
Pablito tinha uma platéia. Todos na sala, inclusive eu, estavam fascinados com o que ele dizia. Compreendi as idéias que ele apresentava porque Dom Juan já as tinha explicado a mim.
Tinha dito que nosso ser total consiste em dois segmentos perceptíveis. O primeiro é o corpo físico conhecido que todos nós podemos perceber; o segundo é o corpo luminoso, um casulo que só os videntes conseguem perceber, um casulo que nos dá a aparência de ovos luminosos gigantescos. Tinha dito também que uma das metas mais importantes da feitiçaria é alcançar o casulo luminoso, uma meta que é conseguida pelo uso sofisticado do "sonho" e por um empreendimento rigoroso e sistemático a que ele dava o nome de não fazer. Definia o não fazer como um ato pouco familiar, que envolve todo o nosso ser ao forçá-lo a se tornar consciente do seu segmento luminoso.
A fim de explicar esses conceitos, Dom Juan fez uma divisão de três partes desiguais da nossa consciência. Chamou à menor "primeira atenção", a consciência que toda pessoa normal desenvolve, a fim de lidar com o mundo diário; ela abrange o conhecimento do corpo físico. À outra parte maior deu o nome de "segunda atenção", o conhecimento de que precisamos para perceber nosso casulo luminoso e para agir como seres luminosos. Disse que a segunda atenção permanece como pano de fundo durante toda a nossa vida, a não ser que seja transportada através de treinamento deliberado ou por um trauma acidental, e que ela abrange o conhecimento do nosso corpo luminoso. Chamou à última parte, a maior, de "terceira atenção", uma consciência incomensurável que envolve aspectos indefiníveis do conhecimento dos corpos físico e luminoso.
Perguntei-lhe se ele próprio tinha experimentado a terceira atenção. Ele respondeu que estava na sua periferia, e que se entrasse nela completamente eu saberia no mesmo instante, pois ele todo se tornaria o que era na realidade, uma explosão de energia. Acrescentou que o campo de batalha dos guerreiros era a segunda atenção, uma
espécie de campo de treinamento para atingir a terceira atenção. Era um estado bem difícil de se chegar, mas muito frutificante quando atingido.
- As pirâmides são nocivas - continuou Pablito. - Especialmente para feiticeiros desprotegidos como nós. São ainda piores para guerreiros sem forma como La Gorda. O nagual disse que não há nada mais perigoso que a fixação do mal da segunda atenção. Quando os guerreiros aprendem a focalizar o lado fraco da segunda atenção nada é empecilho para eles. Tornam-se caçadores de homens, vampiros. Mesmo depois de mortos podem atingir sua presa através do tempo, como se estivessem presentes aqui agora; e nos transformamos em presas se entramos numa daquelas pirâmides. O nagual chamou-as de ciladas da segunda atenção.
O Presente da Águia, pág. 19
Ele enfatizou que todas as ruínas arqueológicas do México, especialmente as pirâmides, eram nocivas ao homem moderno. Descreveu as pirâmides como expressões estranhas de pensamento e ação. Disse que todos os itens, todos os desenhos delas, eram um esforço calculado de recordar aspectos de atenção que eram completamente estranhos a nós. Para Dom Juan não só as ruínas das culturas do passado continham um elemento perigoso; qualquer coisa que fosse o objeto de uma preocupação obsessiva tinha um potencial nocivo.
Ele discutira isso detalhadamente uma vez. Foi uma reação que teve a uns comentários que eu fiz sobre não saber onde guardar minhas notas de campo com segurança. Eu as via de uma maneira muito obsessiva, e estava obcecado com a segurança delas.
- O que eu devo fazer? - tinha perguntado a ele.
- Genaro uma vez lhe deu uma solução - respondera ele.
-Você pensou, como sempre pensa, que ele estava brincando. Ele nunca brinca. Disse que você deveria escrever com a ponta dos dedos em vez de escrever a lápis. Você não o levou a sério sobre isso porque não pode imaginar que este seja o não fazer de tomar notas.
Eu argumentei que o que ele estava propondo tinha de ser uma brincadeira. Minha auto-imagem era a de um cientista social que precisava registrar tudo que era dito e feito a fim de chegar a conclusões verificáveis. Para Dom Juan uma coisa não tinha nada a ver com a outra. Ser um estudante sério não tinha nada a ver com possessividade. Eu pessoalmente não conseguia ver uma solução; certamente a sugestão de Dom Genaro me parecia humorística e não uma possibilidade real.
Dom Juan argumentou novamente. Disse que tomar notas era um modo de envolver a primeira atenção na tarefa de se lembrar, e que eu tomava notas a fim de me lembrar do que era dito e feito. A recomendação de Dom Genaro não era uma brincadeira, pois escrever com a ponta do meu dedo num pedaço de papel, como não fazer de tomar notas, forçaria minha segunda atenção, a focalizar a minha lembrança sem acumular folhas de papel. Dom Juan achava que o resultado final seria mais preciso e de mais valor que tomar notas. Nunca tinha sido feito, ao que ele soubesse, mas o princípio era sólido.
Pressionou-me a fazer isso por algum tempo. Eu fiquei perturbado. Tomar notas não só funcionava como um método mnemônico como também me acalmava. Era minha mania mais construtiva. Acumular folhas de papel me dava uma sensação de objetivo e equilíbrio.
- Quando você se preocupa com o que fazer com as suas folhas - explicou Dom Juan - está focalizando uma parte muito perigosa de você mesmo nelas. Todos nós temos esse lado perigoso, essa fixação. Quanto mais forte ficamos, mais perigosa essa parte se torna. A recomendação para os guerreiros é não ter nenhuma coisa material na qual focalizar seu poder, mas focalizá-lo no espírito, no verdadeiro vôo ao desconhecido, e não em campos triviais. No seu caso, suas notas são o seu escudo. Elas não o deixarão viver em paz.
Senti seriamente que não tinha nenhum modo possível de me dissociar das minhas notas. Dom Juan então concebeu uma tarefa para mim em lugar do não fazer característico. Disse que, para alguém tão altamente possessivo como eu, o modo mais apropriado de me libertar do meu caderno de natas seria desmantelá-lo, jogá-lo pelos ares e escrever um livro. Pensei, naquela época, que aquilo era uma brincadeira maior que a de tomar notas com a ponta dos dedos.
- Sua compulsão em possuir e se prender a essas coisas é única - disse ele. - Todo mundo que quer seguir os passos de guerreiro, o caminho de feiticeiro, tem de se livrar da sua fixação. Meu benfeitor me disse que houve uma época em que os guerreiros tinham objetos materiais nos quais colocar sua obsessão. E isso suscitou a questão de quem teria o objeto mais poderoso, ou seria o mais poderoso de todos eles. Os remanescentes desses objetos ainda existem no mundo, as sobras daquela raça que almejava o poder. Ninguém pode dizer que espécie de fixação esses objetos podem ter recebido. Homens infinitamente mais poderosos que você despejaram todos os aspectos de sua atenção neles. Você apenas começou a despejar sua preocupação insignificativa nessas suas anotações. Ainda não chegou a outros níveis de atenção. Pense como seria horrível se se encontrasse no final de sua trilha como um guerreiro ainda carregando todos os seus pacotes de notas nas costas. Àquela altura as notas estarão vivas, especialmente se você aprender a escrever com a ponta dos dedos e ainda tiver de empilhar folhas de papel. Nessas condições eu não ficaria nada surpreso se alguém encontrasse seus pacotes andando por aí.
O Presente da Águia, pág. 22
Don Juan tinha me descrito o sonho de várias maneiras. A mais obscura delas todas me parece agora ser aquela que o define do melhor modo. Ele disse que o sonho é intrinsecamente o não fazer de dormir.
Um não fazer básico designado a ajudar o sonho, era o não fazer de falar, chamado "parar o diálogo interno". Os dois se combinam no sentido de que parar o diálogo interno traz a paz necessária e descansa a mente dos praticantes, e isso por sua vez ajuda-os a controlar seus sonhos. Como o não fazer de dormir, o sonho dá aos praticantes a utilização daquela porção de suas vidas gastas no cochilo. É como se os sonhadores não mais dormissem. Mesmo assim não há mal nisso. Os sonhadores não sentem falta de sono, mas o efeito de sonhar parece ser o aumento do tempo através do uso de um pretenso corpo extra, o corpo sonhador.
Dom Juan explicou-me que o corpo sonhador é às vezes chamado de "o sósia" ou "o outro", porque é uma réplica perfeita do corpo do sonhador. É basicamente a energia de um ser luminoso, um esbranquiçado, uma emanação fantasmagórica, que é projetada pela fixação da segunda atenção numa imagem tridimensional do corpo. Explicou que o corpo sonhador não é um fantasma; é tão real quanto qualquer coisa com que lidamos no mundo. Disse que a segunda atenção é inevitavelmente levada a focalizar sobre nosso ser total como um campo de energia, e que transforma essa energia em qualquer coisa apropriada. A coisa mais fácil é, naturalmente, a imagem do corpo físico com o qual já estamos perfeitamente familiarizados em nossa vida diária, através do uso da nossa primeira atenção. O que canaliza a energia do nosso ser total a produzir qualquer coisa que esteja dentro dos limites de possibilidades é conhecido como "vontade". Dom Juan não sabia dizer quais eram esses limites, a não ser que a nível dos seres luminosos os parâmetros são tão amplos que é bobagem tentar estabelecer limites; desta forma a energia de um ser luminoso pode ser transformada, através da vontade, em qualquer coisa.
- O nagual disse que o corpo sonhador se envolve e se prende a qualquer coisa - disse Benigno. - Ele não tem sentido. Disse-me que os homens são mais fracos que as mulheres porque o corpo sonhador do homem é mais possessivo.
O Presente da Águia, pág. 24
Uma noite sentamo-nos e muito casualmente começamos a discutir o que sabíamos sobre o sonho. Tornou-se óbvio para nós que havia alguns assuntos-chave aos quais Dom Juan dera ênfase especial.
Primeiro era o ato de sonhar. Na nossa opinião ele começava como um estado de consciência único, ao qual se chegava aprendendo a focalizar o resíduo de consciência que a pessoa ainda tem enquanto dorme, sobre os elementos ou os detalhes dos sonhos da pessoa.
O resíduo de consciência, a que Dom Juan chamava segunda atenção, era levado à ação, ou era aproveitado através de exercícios do não fazer. Achávamos que o não fazer essencial do sonho era um estado de quietude mental, ao qual Dom Juan chamava de "parar o diálogo interno", ou o não fazer de falar. A fim de me ensinar como manejá-lo ele costumava me fazer andar quilômetros com os olhos fixos e fora de foco a um nível logo ao fim da linha do horizonte, permitindo assim que eu tivesse uma visão periférica. Seu método era eficiente por dois motivos: permitia-me parar meu diálogo interno depois de ter tentado durante anos, e treinava minha atenção. Forçando-me a concentrar-me na minha visão periférica, Dom Juan reforçava minha capacidade de me concentrar por longo tempo em uma única atividade.
Mais tarde, quando eu tinha conseguido controlar minha atenção e podia trabalhar durante horas em qualquer tarefa a que me impunha sem me distrair - coisa que nunca antes fora capaz de fazer - ele me disse que o melhor modo de buscar um sonho era me concentrar na área próxima à ponta do esterno, na boca do estômago. Falou que a atenção que um homem necessita para sonhar deriva-se daquela área, mas que a energia a fim de se mover e procurar no sonho origina-se da área a uns três a seis centímetros abaixo do umbigo. Ele chamava a essa energia "vontade" ou poder de selecionar, de acumular. Numa mulher tanto a atenção quanto a energia para o sonho originam-se do ventre.
- O sonho de uma mulher tem de vir do seu ventre porque é esse o seu centro - disse La Gorda. - Para que eu comece a sonhar ou parar o sonho, tudo o que tenho a fazer é colocar minha atenção no ventre. Aprendi a sentir o seu interior. Vejo um brilho avermelhado por um instante e então se dá o seu início.
O Presente da Águia, pág. 112
La Gorda disse que Dom Juan lhe falou que qualquer coisa pode servir como um não fazer para ajudar o sonho, desde que force a atenção a permanecer fixa. Ele fazia com que ela e todos os outros aprendizes, por exemplo, olhassem para as folhas e pedras, e encorajava Pablito a formar seu próprio dispositivo de não fazer. Pablito começou com o não fazer de andar para trás. Para se movimentar dava olhadas rápidas para os lados a fim de saber para onde ia e evitar obstáculos no caminho. Dei-lhe a idéia de usar um espelho retrovisor, e ele desenvolveu essa idéia, construindo um capacete de madeira com uma parte que prendia dois espelhos pequenos, a uns doze centímetros do rosto e quatro centímetros abaixo do nível dos olhos. Os dois espelhos não interferiam com sua visão frontal, e, devido ao ângulo lateral no qual estavam presos, cobriam toda a área atrás dele. Pablito se gabava de ter uma visão periférica do mundo de 360º. Auxiliado pelo seu dispositivo podia andar para trás a qualquer distância, ou durante qualquer tempo.
O Presente da Águia, pág. 114
Para nosso primeiro não fazer Silvio Manuel construiu um engradado de madeira grande o suficiente para acomodar La Gorda e eu, de modo a ficarmos sentados de costas um para o outro, com o joelho para o alto. O engradado tinha uma tampa de treliça para deixar passar o ar. La Gorda e eu tínhamos de entrar e sentar na escuridão, em silêncio total, sem dormir. Ele começou fazendo-nos entrar na caixa por breves períodos; depois aumentou o tempo à medida que nos acostumávamos com a coisa, até podermos passar toda uma noite dentro, sem nos mover ou dormir.
A mulher nagual ficou conosco para se certificar de que não mudaríamos nossos níveis de conscientização devido ao cansaço. Silvio Manuel disse que nossa tendência natural sob condições incomuns seria mudar do elevado estado de conscientização para o estado normal, e vice-versa.
O efeito geral do não fazer, toda vez que agíamos, era nos dar uma inigualável sensação de repouso, o que me deixava inteiramente intrigado, já que não podíamos dormir durante nossas longas noites de vigília. Atribuí a sensação de repouso ao fato de estarmos em estado de elevada conscientização, mas Silvio Manuel disse que uma coisa não tinha nada a ver com a outra, que a sensação de repouso era resultado de sentarmos com os joelhos para cima.
O segundo não fazer consistia em nos fazer deitar no chão como se fôssemos cachorros enroscados, quase que em posição fetal, apoiados no lado esquerdo, na testa e nos braços dobrados. Silvio Manuel insistiu que fechássemos os olhos tanto quanto possível, abrindo-os apenas quando ele nos mandasse trocar de posição e virar para o lado direito. Disse-nos que o objetivo desse não fazer era forçar nosso sentido de audição a se separar da nossa visão. Como antes, aumentou gradualmente o tempo até que passássemos toda uma noite em vigília.
Silvio Manuel estava então pronto para nos passar para outra área de atividade. Explicou que nos primeiros dois não fazeres tínhamos quebrado uma certa barreira de percepção enquanto ficávamos presos ao chão. Por analogia, comparou os seres humanos às árvores. Somos como que árvores móveis, tendo de alguma forma raízes no chão, raízes essas que nos permitem mover mas que não nos separam do chão. Disse que a fim de estabelecermos equilíbrio tínhamos de desenvolver o terceiro não fazer pendurados no ar. Se tivéssemos êxito enquanto suspensos de uma árvore dentro de um arreio de couro, faríamos um triângulo com nossa intenção, triângulo com base no chão e no seu vértice no ar. Silvio Manuel achava que tínhamos reunido nossa atenção com os dois primeiros não fazeres a ponto de podermos realizar o terceiro perfeitamente, desde o início.
O Presente da Águia, pág. 187
Sua alegação era que a percepção sofre um choque profundo quando estamos colocados em estado de quietude no escuro. Nossa audição toma a frente então e os sinais de todas as entidades vivas e existentes à nossa volta podem ser detectados - não apenas com nossa audição, mas por uma combinação dos sentidos auditivos e visuais, nessa ordem. Disse que na escuridão, especialmente enquanto suspensos, os olhos se tornam secundários aos ouvidos.
Ele estava absolutamente certo, como La Gorda e eu descobrimos. Com o exercício do terceiro não fazer Silvio Manuel nos deu uma nova dimensão à nossa percepção do mundo que nos rodeia.
Ele então disse a La Gorda e a mim que o próximo conjunto de não fazer seria intrinsecamente diferente e mais complexo. Relacionava-se ao aprendizado de como lidar com o outro mundo. Era necessário maximizar o esforço, mudando nosso tempo de ação para o início da noite ou o início da madrugada. Disse-nos que o primeiro não fazer do segundo conjunto tinha dois estágios. No primeiro estágio tínhamos de atingir nosso estado mais alerta de elevada conscientização a fim de detectarmos a parede de névoa. Uma vez feito isso, o segundo estágio consistiria em fazer aquela parede parar de girar, a fim de nos aventurarmos no mundo entre as linhas paralelas.
A visou-nos que o que pretendia era nos colocar diretamente na segunda atenção, sem qualquer preparação intelectual. Queria que aprendêssemos os detalhes sem uma compreensão racional do que estávamos fazendo. Sua alegação era que um veado mágico ou um coiote mágico manipula a segunda atenção sem ter nenhum intelecto.
Através da prática forçada de passarmos para trás da parede de névoa, iríamos empreender, mais cedo ou mais tarde, uma permanente alteração no nosso ser total, alteração essa que nos faria aceitar que o mundo entre as linhas paralelas é real, pois é parte do mundo total, como nosso corpo luminoso é parte do nosso ser total.
O Presente da Águia, pág. 189
La Gorda e eu tínhamos estado tão envolvidos em nossas viagens por trás da parede de névoa que tínhamos nos esquecido que estava na hora da nossa próxima série de não fazer com Silvio Manuel. Ele nos disse que ela poderia ser devastadora e que consistia em atravessar as linhas paralelas com as três irmãzinhas e os três Genaros, diretamente para a entrada no mundo de total conscientização. Não incluiu Dona Soledad porque seus não fazeres eram destinados apenas a sonhadoras, e ela era espreitadora.
Silvio Manuel acrescentou que esperava que nós nos tornássemos familiarizados com a terceira atenção se nos colocássemos ao pé da Águia diversas vezes. Ele nos preparou para o choque; explicou que as viagens de um guerreiro às dunas de areia desolados eram um passo preparatório para a verdadeira travessia das fronteiras. Aventurar-se para além da parede de névoa num estado de elevada conscientização ou durante um sonho implicava apenas uma porção muito pequena de nossa conscientização total, enquanto que atravessar corporalmente para o outro mundo implicava o comprometimento do nosso ser total.
Silvio Manuel concebera a idéia de usar uma ponte como símbolo de uma verdadeira travessia. Argumentou que a ponte era adjacente a um lugar de poder; e os lugares de poder eram aberturas, passagens para o outro mundo. Achava que seria possível que La Gorda e eu adquiríssemos força suficiente para enfrentar um vislumbre da Águia.
O Presente da Águia, pág. 192
- Desculpe - disse. - Você falou que vai me contar sobre sua vida pessoal?
- Por que não? - perguntou ela.
Respondi, usando a explicação que me fora dada por Dom Juan sobre a força negativa da história pessoal e da necessidade que o guerreiro tinha de apagá-la. Terminei dizendo que ele tinha me proibido de falar qualquer coisa sobre a minha vida.
Ela riu com uma voz alta de falsete. Parecia encantada.
- Isso só se aplica aos homens - disse. - O não fazer da sua vida pessoal é contar histórias sem fim, mas nenhuma sobre sua vida real. Como homem, você tem uma história sólida por trás. Uma família, amigos, conhecidos, e todos eles com uma idéia definida sua. Como homem você é responsável. Não pode desaparecer tão facilmente. Para se apagar teria de ter muito trabalho. Meu caso é diferente. Sou mulher, o que me traz muita vantagem. Não sou responsável. Você não sabe que as mulheres não são responsáveis?
- Não entendo o que quer dizer com responsável - falei.
- Quero dizer que a mulher pode desaparecer facilmente replicou. - A mulher pode se casar, por exemplo. Ela pertence ao marido. Numa família com muitos filhos, as filhas são descartadas muito cedo. Ninguém conta com elas, e há possibilidade de umas desaparecerem, sem deixarem vestígio e esses desaparecimentos serem facilmente aceitos.
- O filho, ao contrário, é alguém com quem se conta. Não é fácil para o filho eclipsar-se e desaparecer. E mesmo se fizer isso, deixará vestígios. Ele sente-se culpado se desaparecer. A filha não.
- Quando o nagual o treinou a ficar de boca fechada em relação à sua vida pessoal, pretendia ajudá-lo a superar seu sentimento de ter cometido um erro com sua família e amigos, que contavam com você de uma forma ou de outra.
- Depois de toda uma vida de luta o guerreiro termina apagando-se, naturalmente, mas essa luta tem um preço para o homem. Ele se torna misterioso, sempre em guarda contra si próprio. A mulher já está preparada para se desintegrar no ar. Na verdade, espera-se isso dela.
- Como mulher, não sou obrigada ao segredo. Não dou a mínima para isso. Segredo é o preço que vocês homens têm de pagar por serem importantes para a sociedade. A luta é só para os homens, porque eles se ressentem de terem de se apagar e encontrariam modos curiosos de surgirem em a1gum lugar, de alguma forma. Veja o seu exemplo; você vive fazendo conferências.
O Presente da Águia, pág. 214
- Disse que seu benfeitor considerava as três técnicas básicas da espreita - o engradado, a lista de acontecimentos a serem recapitulados, e a respiração do espreitador - como sendo as tarefas talvez mais importantes de um guerreiro. Ele achava que uma recapitulação profunda era o meio mais eficiente para se perder a forma humana. Portanto, seria fácil para os espreitadores, depois de recapitularem suas vidas, fazer uso de todos os não fazeres do seu eu, tais como apagar sua história pessoal, perder a auto-importância, quebrar as rotinas, e assim por diante.
O Presente da Águia, pág. 230
Dom Juan disse que a função dos não fazeres é criar uma obstrução na focalização habitual da nossa primeira atenção. Os não fazeres são, nesse sentido, manobras designadas a preparar a primeira atenção para o bloqueio funcional do primeiro anel de poder.
Ele explicou que esse bloqueio funcional, o único método de utilizar sistematicamente a capacidade latente do primeiro anel de poder é uma interrupção temporária que o benfeitor cria na capacidade de reunir vestígios dos seus discípulos. É uma intromissão artificial; uma invasão deliberada e forçada à primeira atenção, designada para empurrá-la além do verniz superficial dos vestígios familiares; uma intromissão atingida por meio da obstrução da intenção do primeiro anel de poder.
O Presente da Águia, pág. 258
Devo ter parecido cético a Don Juan, pois ele explicou que o mundo de nossa auto-reflexão ou de nossa mente era muito inconsistente e era mantido coeso por algumas poucas idéias-chave que serviam como sua ordem subjacente. Quando essas idéias falhavam, a ordem subjacente parava de funcionar.
- Quais são essas idéias-chave, Don Juan?
- Em seu caso, naquela instância em particular, como no caso da audiência daquela curandeira sobre a qual falamos, a continuidade era a idéia-chave.
- O que é continuidade?
- A idéia de que somos um bloco sólido. Em nossas mentes, o que sustenta o nosso mundo é a certeza de que somos imutáveis. Podemos aceitar que nosso comportamento pode ser modificado, que nossas reações e opiniões podem ser modificadas, mas a idéia de que somos maleáveis a ponto de mudar de aparência, a ponto de ser alguma outra pessoa, não é parte da ordem subjacente de nossa auto-reflexão. Sempre que um feiticeiro interrompe essa ordem, o mundo da razão pára.
Desejei perguntar-lhe se quebrar a continuidade de um indivíduo era suficiente para causar o movimento do ponto de aglutinação. Ele pareceu antecipar minha pergunta. Disse que essa quebra era apenas um suavizador. O que ajudava o ponto de aglutinação mover-se era a implacabilidade do nagual.
Comparou então os atos que executara naquela tarde em Guaymas com os atos da curandeira que havíamos discutido previamente. Explicou que a curandeira havia estraçalhado a auto-reflexão das pessoas de sua audiência com uma série de atos para os quais eles não tinham equivalentes em suas vidas diárias - a dramática possessão do espírito, mudança de vozes, abertura do corpo do paciente. Assim que a continuidade da idéia deles próprios foi quebrada, seus pontos de aglutinação estavam prontos para ser movidos.
Lembrou-me de que havia descrito para mim no passado o conceito de parar o mundo. Comentara que parar o mundo era tão necessário para os feiticeiros quanto ler e escrever o eram para mim. Consistia em introduzir um elemento dissonante no tecido do comportamento cotidiano para deter o fluxo de outro modo suave dos eventos ordinários - eventos que eram catalogados em nossas mentes por nossa razão.
O elemento dissonante era chamado “não fazer”, ou o oposto de fazer. "Fazer" era tudo que fosse parte de um todo para o qual tínhamos um valor cognitivo. Não fazer era um elemento que não pertencia àquele todo mapeado.
- Os feiticeiros, por serem espreitadores, compreendem bem o comportamento humano - disse ele. - Compreendem, por exemplo, que os seres humanos são criaturas de inventários. Saber os itens que entram ou não entram em um inventário em particular é o que torna o homem um estudioso ou especialista em seu campo.
- Os feiticeiros sabem que quando o inventário de uma pessoa comum falha, a pessoa ou aumenta seu inventário ou o mundo de sua auto-reflexão entra em colapso. A pessoa comum está disposta a incorporar novos itens em seu inventário se estes não contradisserem a ordem subjacente do inventário. Mas se os itens contradisserem essa ordem, a mente da pessoa entra em colapso. O inventário é a mente. Os feiticeiros contam com isso quando tentam quebrar o espelho da auto-reflexão.
O Poder do Silêncio, pág. 165
- Parece que não vamos conseguir nos livrar dele – disse num tom de resignação. - Vamos caminhar com calma, como se estivéssemos dando um belo passeio no parque, e você me contará a história de sua infância. Este é o momento e o cenário certos para isso. Um jaguar está atrás de nós com um apetite voraz, e você está se lembrando sobre o passado: o perfeito não-fazer para estar sendo caçado por um jaguar.
Ele riu alto. Mas quando lhe falei que havia perdido completamente o interesse em contar a história, ele dobrou-se de risos.
- Está me punindo agora por não querer ouvi-lo, não é mesmo?
E eu, é claro, comecei a defender-me. Disse-lhe que sua acusação era definitivamente absurda. De fato perdi o fio da meada.
- Se um feiticeiro não tem auto-estima, não dá uma bosta por ter perdido o fio da história - disse ele com um brilho malicioso nos olhos. - Como você não tem mais qualquer auto-estima, deve contar sua história agora. Conte-a ao espírito, ao jaguar, e a mim, como se não tivesse perdido o fio em momento algum.
O Poder do Silêncio, pág. 197
O tópico inicial foi o que definiu como "não fazer", uma atividade especialmente projetada para banir de nossas vidas todo o vestígio de cotidianidade. Afirmou que o não fazer é o exercício favorito dos aprendizes, porque os introduzem em um ambiente de maravilha e desconcerto muito refrescante para a energia, cujo efeito sobre a consciência eles chamam de "parar o mundo"
Respondendo a algumas questões, explicou que o não fazer não pode ser racionalizado. Qualquer esforço para tentar entendê-lo, é na realidade uma interpretação do ensino e cai automaticamente no campo de fazer.
"A premissa dos bruxos para tratar com este tipo de prática é o silêncio mental. E a qualidade de silêncio requerido para algo tão descomunal quanto parar o mundo, só pode vir de um contato direto com a grande verdade de nossa existência: que todos nós vamos morrer".
Ele nos aconselhou:
"Se vocês querem conhecer a si mesmos, sejam conscientes de sua morte pessoal. Ela não é negociável e é a única coisa que vocês realmente têm. Todo o resto poderá falhar, mas a morte não, a ela podem dar por certo. Aprendam a usá-la para produzir efeitos verdadeiros em suas vidas.
"Também, parem de acreditar em contos da carochinha, ninguém os quer lá fora. Nenhum de nós é tão importante para que hajam inventado algo tão fantástico como a imortalidade. Um bruxo que tem humildade sabe que o destino dele é o de qualquer outro ser vivo desta terra. Assim, em vez de se iludir com falsas esperanças, ele trabalha concreta e duramente para sair de sua condição humana e tomar a única saída que nós temos: a quebra de nossa barreira perceptual.
"Ao mesmo tempo em que escutam o conselho da morte, façam-se responsáveis por suas vidas, da totalidade das suas ações. Explorem-se, reconheçam-se e vivam intensamente, como vivem os bruxos. A intensidade é a única coisa que pode nos salvar do aborrecimento.
"Uma vez alinhados com a morte, estarão em condições de dar o seguinte passo: reduzir ao mínimo a bagagem. Este é um mundo prisão e é necessário sair como fugitivos, sem levar nada.
Os seres humanos são viajantes por natureza. Voar e conhecer outros horizontes é nosso destino. Por acaso você sai de viagem com sua cama ou com a mesa em que come? Sintetiza sua vida!.
Encontros com o Nagual, pág. 51
Um método infalível para conseguir o silêncio é através do "não fazer", uma atividade que nós programamos com nossa mente, mas que tem a virtude de silenciar os pensamentos uma vez que é começado. Don Juan chamava esse tipo de técnica de 'tirar um espinho com outro'".
Apresentou como exemplos de não fazer: escutar na escuridão, trocando a prioridade de nossos sentidos e o comando que nos força a dormir assim que nós fechamos os olhos. Também, conversar com as plantas, parar de ponta cabeça, caminhar para trás, observar as sombras, a distância ou os espaços entre as folhas das árvores.
"Todas essas atividades são das mais efetivas para silenciar nosso diálogo interno, mas elas têm um defeito: não as podemos sustentar durante muito tempo. Depois de um momento, somos forçados a recuperar nossas rotinas. Um não fazer que é exagerado, automaticamente perde o poder e cai dentro de fazer.
"Se o que nós queremos é acumular silêncio profundo, de efeitos duradouros, o melhor não fazer é a solidão. Junto com a economia da energia e o abandono desses que nos dão por feitos. Aprender a estar só é o terceiro princípio prático do caminho.
"O mundo do guerreiro é a coisa mais solitária que há. Até mesmo quando vários aprendizes se unem para viajar pelas rotas do poder, cada um sabe que está sozinho, que não pode esperar nada do outro nem depender de ninguém. O máximo que ele pode fazer é compartilhar o caminho com aqueles que o acompanham.
"Estar só requer um grande esforço, porque nós ainda não aprendemos a superar o comando genético da socialização. No princípio, o aprendiz deve ser forçado a isto pelo seu mestre, através de armadilhas se for necessário. Mas com o tempo aprende a desfrutá-lo. É normal que os bruxos busquem o silêncio na solidão da montanha ou do deserto e que vivam sozinhos durante longos períodos".
Alguém comentou que essa era "uma perspectiva horrorosa"
Carlos respondeu:
- Horroroso é chegar à velhice como umas crianças choronas!
Encontros com o Nagual, pág. 93
- Agora, chegou a hora de você não fazer o que faz sempre. Fique aqui sentado até partirmos e não faça.
- Não estou entendendo, Dom Juan.
Pôs as mãos sobre meus apontamentos e os tirou de mim. Cuidadosamente, fechou as páginas de meu caderno, prendeu-o com seu elástico e depois atirou-o como um disco dentro do chaparral.
Fiquei chocado e comecei a protestar, mas ele tapou minha boca com a mão. Apontou para um arbusto grande e disse-me que fixasse a atenção não nas folhas, mas nas sombras das folhas. Disse que correr no escuro não precisava de ser provocado pelo temor, e podia ser uma reação muito natural de um corpo jubilante que sabia o que “não fazer”. Ficou repetindo em meu ouvido direito que "não fazer o que eu sabia como fazer" era a chave do poder. No caso de olhar para uma árvore, o que eu sabia como fazer era focalizar imediatamente a folhagem. As sombras das folhas ou os espaços entre as folhas nunca me ocupavam. Suas últimas advertências foram para começar a focalizar as sombras das folhas de um único galho e depois, aos poucos, passar a toda a árvore e não deixar que meus olhos voltassem para as folhas, pois o primeiro passo propositado para armazenar o poder pessoal era permitir ao corpo “não fazer”.
Talvez fosse devido à minha fadiga ou excitação nervosa, mas fiquei tão absorto nas sombras das folhas que, quando Dom Juan se levantou, eu conseguia quase agrupar as massas escuras de folhagens tão bem como eu normalmente agrupava a folhagem. O efeito geral era espantoso. Eu disse a Dom Juan que gostaria de me demorar mais. Ele riu e deu um tapinha em meu chapéu.
- Já lhe disse - falou ele. - O corpo gosta de coisas como esta.
Depois, explicou que eu devia deixar que meu poder armazenado me guiasse pelas moitas até meu caderno. Empurrou-me delicadamente para o chaparral. Andei a esmo por um momento e depois encontrei-o. Pensei que, subconscientemente, eu devia estar lembrado da direção em que Dom Juan o atirara. Esclareceu o fato, dizendo que eu fora diretamente ao caderno porque meu corpo estivera mergulhado durante horas em “não fazer”.
Viagem a Ixtlan, pág. 172
- Veja como muda a luz do Sol - disse ele.
Sua voz era clara. Assemelhava-se à água, fluida e morna.
O céu estava inteiramente limpo de nuvens para o oeste e o Sol estava espetacular. Talvez o fato de Dom Juan estar-me dando sugestões tornasse o brilho amarelado do Sol da tarde realmente magnífico.
- Deixe que esse fulgor o acenda - disse Dom Juan. - Antes de o Sol se pôr hoje, você tem de estar perfeitamente calmo e restabelecido, pois amanhã ou depois você vai aprender a não fazer
- Aprender a não fazer o quê? - perguntei.
- Não pense nisso agora - respondeu. - Espere até estarmos naquelas montanhas de lava. - E apontou para uns picos distantes, serrilhados e ameaçadores, na direção do norte.
Viagem a Ixtlan, pág. 175
Eu estava escrevendo minhas impressões das vizinhanças quando Dom Juan, depois de um longo silêncio, falou num tom dramático.
- Eu o trouxe aqui para lhe ensinar uma coisa - disse ele. - Você vai aprender a não fazer. Mais vale falar a respeito porque não há outro meio de você prosseguir. Achei que você poderia pegar o não fazer sem eu ter de dizer nada. Mas enganei-me.
- Não sei de que está falando, Dom Juan.
- Não faz mal. Vou dizer-lhe uma coisa que é muito simples, mas muito difícil de fazer; vou falar-lhe sobre não fazer, a despeito do fato de não haver meio de falar sobre isso, pois é o corpo que o faz.
Olhou de relance e depois disse que eu tinha de prestar a maior atenção ao que ele ia falar. Fechei o caderno, mas, para assombro meu, ele insistiu para eu continuar a escrever.
- Não fazer é tão difícil e tão possante que você nem deve mencioná-lo - continuou ele. - Só pode fazê-lo quando tiver parado o mundo; só então é que você pode falar a respeito livremente, se é isso que você quer.
Dom Juan olhou em volta e apontou para uma pedra grande. - Aquela pedra ali é uma pedra por causa de fazer – disse ele.
Nós nos olhamos e ele sorriu. Esperei uma explicação, mas ele ficou calado. Por fim, tive de falar que não havia entendido o que ele queria dizer.
- Isso é fazer! - exclamou.
- Como?
- Isso também é fazer
- De que é que está falando, Dom Juan?
- Fazer é o que torna aquela pedra uma pedra e um arbusto um arbusto. Fazer é o que torna você você e eu eu.
Disse-lhe que a explicação dele não esclarecia coisa alguma. Ele riu e coçou as têmporas.
- É este o problema de se falar - disse ele. - Sempre faz a gente confundir as questões. Se a gente começa a falar a respeito de fazer, sempre se acaba abordando outro assunto. É melhor apenas agir
"Tome aquela pedra, por exemplo. Olhar para ela é fazer, mas vê-la é não fazer"
Tive de confessar que as palavras dele não estavam fazendo sentido para mim.
- Mas fazem, sim! - exclamou. - Mas você está convencido do contrário porque isso é você fazendo. É assim que você age em relação a mim e ao mundo. - Tornou a apontar para a pedra.
- Aquela pedra é uma pedra por causa de todas as coisas que você sabe fazer em relação a ela - continuou. - Chamo isso de fazer. Um homem de conhecimento, por exemplo, sabe que aquela pedra só é uma pedra por causa de fazer, de modo que, se não quiser que a pedra seja uma pedra, basta ele não fazer. Entende o que eu digo?
Eu não estava entendendo nada. Ele riu e fez uma nova tentativa para explicar
- O mundo é o mundo porque você conhece o fazer necessário para torná-lo o mundo - disse ele. - Se você não soubesse o seu fazer, o mundo seria diferente.
Examinou-me com curiosidade. Parei de escrever. Só queria escutá-lo. Continuou a explicar que, sem esse certo "fazer", não haveria nada de conhecido naquele ambiente.
Viagem a Ixtlan, pág. 178
- Digo que você torna isto uma pedrinha porque conhece o fazer necessário para isso - falou. - Agora, para poder parar o mundo você tem de parar de fazer.
Ele parecia saber que eu continuava sem entender e sorriu, sacudindo a cabeça. Depois, pegou um galhinho e apontou para a borda irregular da pedrinha.
- No caso desta pedrinha - continuou - a primeira coisa que fazer lhe faz é diminuí-la até este tamanho. Por isso, a coisa certa a fazer, o que um guerreiro faz quando quer para o mundo, é aumentar a pedrinha, ou qualquer outra coisa, não fazendo.
Levantou-se e colocou a pedrinha num rochedo e depois disse que eu me aproximasse para examiná-la. Recomendou que eu olhasse para os buracos e depressões da pedrinha e tentasse distinguir seus mínimos detalhes. Falou que, se eu conseguisse distinguir os detalhes, os buracos e depressões desapareceriam e eu entenderia o que significa não fazer.
- Esse raio de pedrinha ainda vai deixá-lo maluco hoje - disse ele.
Viagem a Ixtlan, pág. 179
- Fazer o leva a separar a pedrinha da pedra maior - continuou. - Se quiser aprender a não fazer, digamos que você tem de uni-las.
Apontou para a sombrinha que a pedrinha lançava na pedra grande e disse que não era uma sombra, e sim uma cola que ligava as duas. Depois, virou-se e afastou-se, dizendo que mais tarde me viria controlar.
Fiquei olhando para a pedrinha por muito tempo. Não conseguia focalizar minha atenção nos mínimos detalhes dos buracos e depressões, mas a pequena sombra que a pedrinha lançava sobre a pedra grande tornou-se um ponto muito interessante. Dom Juan tinha razão: era como uma cola. Movia-se e variava. Eu tinha a impressão de que estava sendo espremida de debaixo da pedrinha.
Quando Dom Juan voltou, eu lhe contei o que tinha observado sobre a sombra.
- É um bom começo - disse ele. - Um guerreiro pode descobrir uma porção de coisas através das sombras. - Depois, ele sugeriu que eu pegasse a pedrinha e a enterrasse em algum lugar
- Por quê? - perguntei.
- Está olhando para ela há muito tempo. Ela agora tem alguma coisa de você. Um guerreiro sempre tenta mudar a força de fazer transformando-o em não fazer. Fazer seria deixar a pedrinha por aí, pois não é mais do que uma pedrinha. Não fazer seria proceder com essa pedrinha como se fosse alguma coisa mais do que uma simples pedra. Nesse caso, aquela pedra o absorveu por muito tempo e agora é você, e, sendo assim, não a pode deixar por aí, e tem de enterrá-la.
Se quiser ter poder pessoal, porém, não fazer seria transformar aquela pedra em um objeto de poder.
- Posso fazer isso agora?
- Sua vida não está bastante ajustada para fazer isso. Se você visse, saberia que sua preocupação transformou aquela pedrinha em uma coisa bem sem atrativo; e, portanto, a melhor coisa que você pode fazer é cavar um buraco e enterrá-la e deixar que a terra absorva seu peso.
- Tudo isso é verdade, Dom Juan?
- Dizer que sim ou que não seria fazer. Mas como você está aprendendo a não fazer, devo dizer-lhe que realmente não tem importância se tudo isso é verdade ou não. É aqui que o guerreiro leva vantagem sobre o homem comum. O homem, comum se, importa em saber se as coisas são verdadeiras ou falsas, mas um guerreiro não. Um homem comum procede de maneira específica com as coisas que ele sabe serem verdade e de maneira diversa com o que sabe não ser verdade. Se se supõe que as coisas são verdadeiras, ele age e acredita no que faz. Mas se as coisas são supostamente falsas, ele não quer agir, ou não crê no que faz. Um guerreiro, ao contrário, age em ambos os casos. Se se supõe que as coisas são verdadeiras, ele age a fim de estar fazendo. Se se supõe que as coisas são falsas, ele ainda assim age, a fim de não fazer. Entende o que digo?
- Não. Não estou entendendo nada - respondi.
Viagem a Ixtlan, pág. 180
- Eu estava implicando um pouco com você - disse Dom Juan, quando voltei e tornei a me sentar - Mas sei que, se você não falar, não entende. Falar para você é fazer, mas falar não serve e, se você quiser entender o que eu quero dizer com não fazer, tem de executar um exercício simples. Como estamos interessados em não fazer, não importa que faça o exercício agora ou daqui a dez anos.
Mandou que eu me deitasse e pegou meu braço direito, dobrando-o no cotovelo. Depois, virou minha mão para a palma ficar voltada para a frente; curvou meus dedos, de modo que minha mão ficou na posição de quem está segurando uma maçaneta e depois começou a mover meu braço para a frente e para trás, num movimento circular que parecia o ato de empurrar e puxar uma alavanca presa a uma roda.
Dom Juan disse que um guerreiro executava esse movimento cada vez que queria expulsar alguma coisa de seu corpo, como uma doença ou uma sensação desagradável. A intenção era empurrar e puxar uma força adversa imaginária até a pessoa sentir um objeto pesado, um corpo sólido, opondo-se aos movimentos livres da mão. No caso do exercício, não fazer consistia em repeti-lo até se sentir o corpo pesado com a mão, a despeito do fato de a pessoa não poder acreditar que fosse possível senti-lo.
Comecei a mover o braço e, dali a pouco, minha mão ficou gelada. Comecei a sentir uma espécie de polpa em volta dela. Era como se eu estivesse remando numa substância líquida, pesada e viscosa.
Dom Juan fez um movimento súbito e agarrou meu braço para parar o movimento. Meu corpo todo tremia como se abalado por alguma força oculta. Examinou-me quando me sentei e, depois, andou em volta de mim, antes de tornar a sentar-se onde estava antes.
- Já fez bastante - disse ele. - Pode executar esse exercício em outra ocasião, quando tiver mais poder pessoal.
- Fiz alguma coisa errada?
- Não. Não fazer é só para guerreiros muito fortes e você ainda não tem o poder de lidar com isso. Agora, só vai apanhar coisas horrendas com as mãos. Portanto, faça-o pouco a pouco, até sua mão não ficar mais fria. Quando ficar quente, você chega a poder sentir as linhas do mundo com ela.
Viagem a Ixtlan, pág. 181
Parou para me dar tempo de perguntar a respeito das linhas. Mas antes de eu ter oportunidade, começou a explicar que havia um número infinito de linhas que nos ligavam às coisas. Disse que o exercício de não fazer que ele acabava de descrever ajudaria a qualquer pessoa a sentir uma linha que saísse da mão que se movia, uma linha que a pessoa poderia colocar ou lançar sempre que quisesse. Dom Juan disse que aquilo não passava de um exercício porque as linhas formadas pela mão não eram suficientemente duráveis para ter um valor real numa situação de fato.
- Um homem de conhecimento utiliza outras partes de seu corpo para produzir linhas duráveis - explicou.
- Que partes, Dom Juan?
- As linhas mais duráveis que o homem de conhecimento produz partem do meio do corpo. Mas ele também as pode fazer com os olhos.
- São linhas de verdade?
- Por certo.
- Pode-se vê-las e tocá-las?
- Digamos que se pode senti-las. A parte mais difícil do modo de vida de um guerreiro é entender que o mundo é uma sensação.
Quando a pessoa está não fazendo, sente o mundo, e o consegue por meio dessas linhas. Ele parou e me examinou com curiosidade. Ergueu as sobrancelhas, abriu os olhos e piscou. O efeito foi como os olhos de uma ave piscando. Quase imediatamente, senti uma sensação de desconforto e repugnância. Era como se alguma coisa estivesse fazendo pressão sobre minha barriga.
- Entende o que digo? - perguntou Dom Juan, desviando o olhar.
Falei que estava com náuseas e ele respondeu, displicentemente, que sabia disso e que estava tentando fazer com que eu sentisse as linhas do mundo com os olhos dele. Eu não podia admitir a idéia de que ele mesmo me estivesse fazendo sentir daquele jeito. Exprimi minhas dúvidas. Eu não podia conceber a idéia de que ele estava causando minha sensação de náusea, pois ele não tinha tido qualquer contato físico comigo.
- Não fazer é muito simples, mas muito difícil - disse ele. - Não é uma questão de entender, mas de dominar a coisa. Ver, naturalmente, é a realização final de um homem de conhecimento, e ver só é conseguido quando a pessoa parou o mundo pela técnica de não fazer.
Sorri, sem querer. Não tinha entendido o que ele queria dizer
- Quando a gente faz alguma coisa com as pessoas - continuou - o interesse devia ser só de apresentar o caso aos corpos delas. E isso que tenho feito com você até agora, deixando que seu corpo saiba. Quem se importa se você entende ou não?
- Mas isso não é justo, Dom Juan. Quero entender tudo, pois, do contrário, vir aqui seria uma perda do meu tempo.
-. Uma perda do seu tempo! - exclamou, imitando meu tom de voz. - Você é mesmo convencido.
Viagem a Ixtlan, pág. 182
A escalada foi um negócio terrível. Era um verdadeiro alpinismo, só que não tínhamos cordas para nos ajudar e proteger. Dom Juan me disse repetidamente que não olhasse para baixo; e teve de me Puxar umas duas vezes, quando comecei a deslizar pela pedra. Eu estava muito vexado porque Dom Juan, tão velho, tinha de me ajudar. Disse-lhe que estava em má forma física porque tinha muita preguiça de fazer exercício. Respondeu que uma vez que a pessoa alcançasse um certo nível de poder pessoal, os exercícios ou qualquer treinamento desse tipo não eram necessários, pois a única coisa que se precisava, para estar numa forma impecável, era empenhar-se em não fazer.
Viagem a Ixtlan, pág. 183
- As sombras são uma coisa estranha - disse ele, de repente.
- Você deve ter notado que há uma que nos segue.
- Não notei nada disso - protestei, em voz alta.
Dom Juan falou que meu corpo havia notado nosso perseguidor, a despeito de minha oposição obstinada; e assegurou-me, num tom de voz confidencial, de que não havia nada de mais em ser seguido por uma sombra.
- E apenas um poder - falou. - Essas montanhas são cheias deles. E tal e qual um daqueles entes que o assustaram na outra noite.
Perguntei se eu podia percebê-la eu mesmo. Respondeu que, de dia, eu só poderia sentir sua presença.
Queria que ele me explicasse por que chamava aquilo uma sombra, quando, obviamente, não era igual à sombra de uma pedra. Respondeu que as duas tinham as mesmas linhas e, portanto, ambas eram sombras.
Apontou para uma grande pedra bem diante de nós.
- Olhe para a sombra daquela pedra - falou. - A sombra é a pedra e, no entanto, não é. Observar a pedra a fim de saber o que é a pedra é fazer, mas observar a sombra é não fazer
"As sombras são como portas, as portas de não fazer. Um homem de conhecimento, por exemplo, sabe dos sentimentos mais íntimos dos homens observando suas sombras."
- Há movimento nelas? - perguntei.
- Pode-se dizer que há movimento nelas, ou pode-se dizer que as linhas do mundo aparecem nelas, ou pode-se dizer que os sentimentos vêm delas.
- Mas como é que os sentimentos podem vir de sombras, Dom Juan?
- Acreditar que as sombras são apenas sombras é fazer - explicou. - Essa idéia é um pouco burra. Pense nisso assim. Há tanto mais em tudo no mundo que, obviamente, deve haver mais nas sombras também. Afinal de contas, o que as torna sombras é apenas o nosso fazer
Ficamos em silêncio por muito tempo. Eu não sabia o que dizer.
Viagem a Ixtlan, pág. 184
Esclareceu suas instruções dizendo que, ao procurar um lugar de repouso, a pessoa tinha de olhar sem focalizar, mas, ao observar as sombras, era preciso olhar atravessado, conservando, porém, focalizada uma imagem nítida. A idéia era deixar que uma sombra se superpusesse à outra, atravessando-se os olhos. Explicou que, por este processo, a pessoa podia verificar uma certa sensação que emanava das sombras. Comentei que suas palavras eram vagas, mas ele garantiu que não havia realmente meio de descrever o que queria dizer
Minha tentativa de fazer o exercício foi vã. Esforcei-me até ficar com dor de cabeça. Dom Juan não ligou a mínima a meu fracasso.
Escalou um pico em forma de domo e gritou lá de cima para eu procurar duas pedras estreitas e compridas. Mostrou com as mãos o tamanho das pedras que queria.
Encontrei dois pedaços de pedra e dei-os a ele. Dom Juan colocou cada pedra em uma fenda, a uma distância de uns 30 centímetros, mandou que eu me postasse por cima delas, virado para o oeste, dizendo para eu fazer o mesmo exercício com as sombras delas.
Dessa vez, a coisa foi totalmente diferente. Quase imediatamente, consegui atravessar os olhos e percebi suas sombras individuais como se estivessem fundidas numa só. Reparei que o fato de olhar sem convergir as imagens dava à sombra única que eu tinha formado uma profundidade incrível e uma espécie de transparência. Fiquei olhando, sem poder acreditar. Cada buraco da pedra, na área em que meus olhos estavam focalizados, era nitidamente distinguível; e a sombra composta, superposta neles, era como uma película de uma transparência indescritível.
Eu não queria piscar, com medo de perder a imagem que estava mantendo tão precariamente. Por fim, meus olhos doloridos me obrigaram piscar mas não perdi em absoluto a visão do detalhe verdade, ao umedecer a córnea, a imagem ficou ainda mais nítida. Nessa altura, reparei que era como se eu estivesse olhando de uma altura imensa para um mundo que eu nunca vira. Também reparei que podia percorrer as vizinhanças da sombra sem perder o foco de minha percepção visual. Então, por um instante, perdi a noção de estar olhando para uma pedra. Senti que estava chegando a um mundo, vasto além de tudo o que jamais eu concebera. Essa percepção extraordinária só durou um segundo e depois tudo se desligou. Automaticamente, ergui os olhos e vi Dom Juan de pé, logo acima das pedras, olhando para mim. Ele tapara o Sol com o corpo.
Descrevi a sensação rara que tivera e ele explicou que fora obrigado a interrompê-la porque "viu" que eu ia me perder nela. Acrescentou que era uma tendência natural em todos nós termos caprichos quando ocorriam sentimentos daquela natureza, e que, cedendo a esse capricho, eu quase tinha transformado não fazer em meu velho conhecido fazer. Disse que o que eu devia ter feito era manter a vista sem sucumbir a ela, pois, de certo modo, fazer era uma maneira de sucumbir.
Viagem a Ixtlan, pág. 185
Tive de confessar que estava mais aturdido do que nunca com esse não fazer. Os comentários de Dom Juan foram que eu deveria estar satisfeito com o que tinha feito, pois uma vez na vida tinha agido corretamente, que reduzindo o mundo eu o aumentara, e que, embora estivesse longe de sentir as linhas do mundo, havia usado corretamente a sombra das pedras como uma porta para não fazer
A declaração de que eu aumentara o mundo reduzindo-o intrigou-me profundamente. O detalhe da rocha porosa, na pequena área em que meus olhos estavam focalizados, era tão vívido e tão precisamente definido que o topo do pico redondo se tornava um vasto mundo para mim; e, no entanto, era realmente uma visão reduzida da pedra. Quando Dom Juan tapou a luz e eu me encontrei olhando como faria normalmente, o detalhe preciso embaciou-se, os buraquinhos na pedra porosa tornaram-se maiores, a coloração marrom da lava seca tornou-se opaca e tudo perdeu a transparência brilhante que fazia da rocha um mundo verdadeiro.
Dom Juan, então, pegou as duas pedras, colocou-as delicadamente numa fenda profunda e sentou-se de pernas cruzadas virado para oeste, no lugar onde tinham estado as pedras. Bateu num ponto ao lado dele, à esquerda, e mandou que eu me sentasse.
Viagem a Ixtlan, pág. 186
Ficamos calados por muito tempo. Depois, comemos, também em silêncio. Foi só depois que o Sol se pôs que ele, de repente, se virou e me perguntou sobre meus progressos em matéria de "sonhar".
Respondi que tinha sido fácil no princípio, mas que, no momento, eu tinha deixado completamente de encontrar minhas mãos nos sonhos.
- Quando você começou a sonhar, estava usando meu poder pessoal, por isso era mais fácil - disse ele.
- Agora, você está vazio. Mas tem de continuar a tentar até ter suficiente poder seu. Entende, sonhar é o não fazer dos sonhos e, à medida que você progredir em seu não fazer, também progredirá no sonhar. O truque é não deixar de procurar suas mãos, apesar de não acreditar que aquilo que está fazendo tem sentido. Na verdade, como já lhe disse, um guerreiro não precisa acreditar, pois, enquanto continuar a agir sem acreditar, estará não fazendo.
- Nós nos olhamos.
Não há mais nada que lhe possa dizer a respeito de sonhar - continuou ele. - Tudo o que eu possa dizer será apenas não fazer. Mas, se lidar com não fazer diretamente, você mesmo saberá o que fazer no sonhar. Porém, a essa altura, encontrar suas mãos é essencial, e estou certo de que você as encontrará.
- Não sei, Dom Juan. Não confio em mim.
- Não é questão de confiar em ninguém. Tudo isso é assunto da luta de um guerreiro; e você continuará a lutar, se não sob seu próprio poder, então talvez, sob o impacto de um adversário valoroso, ou com o auxílio de alguns aliados, como o que já o está seguindo.
Fiz um movimento brusco e involuntário com o braço direito. Dom Juan disse que meu corpo sabia muito mais do que eu suspeitava, pois a força que nos estava seguindo estava à minha direita. Falou, em voz baixa e confidencial, que, por duas vezes naquele dia, o aliado tinha chegado tão junto de mim que ele tivera de intervir e detê-lo.
- Durante o dia as sombras são as portas de não fazer - disse ele. - Mas, à noite, como muito pouco fazer prevalece no escuro, tudo é sombra, inclusive os aliados. Já lhe falei sobre isso quando lhe ensinei o passo do poder
Ri alto e meu próprio riso me assustou.
"Tudo o que lhe ensinei até agora foi um aspecto de não fazer - continuou ele. - Um guerreiro aplica não fazer a tudo no fundo e, no entanto, não lhe posso dizer mais a respeito do que Já lhe falei hoje. Deve deixar que seu próprio corpo descubra o poder e a sensação de não fazer"
Tive outro acesso de cacarejar nervoso.
“É burrice sua escarnecer dos mistérios do mundo simplesmente porque conhece fazer o escárnio" - disse ele, com uma cara séria.
Falei que não estava escarnecendo de nada ou ninguém, mas que era mais nervoso e incompetente do que ele pensava.
- Sempre fui assim - disse eu. - E, no entanto, quero modificar-me e não sei como. Sou muito inadequado.
- Já sei que você acha que não presta - disse ele. – Isso é seu fazer. Agora, para afetar esse fazer, vou recomendar que você aprenda outro fazer. De hoje em diante, e por um período de oito dias, quero que você minta para si mesmo. Em vez de se dizer a verdade, que você é podre, feio e inadequado, você se dirá que é o oposto, sabendo que está mentindo e que é completamente sem esperança.
- Mas qual a finalidade de mentir assim, Dom Juan?
- Pode prendê-lo a outro fazer e então pode compreender que ambos os fazeres são mentiras, irreais, e que prendê-lo a qualquer deles é uma perda de tempo, pois a única coisa que é real é o ser em você, que vai morrer. Chegar a esse ser é o não fazer do eu.
Viagem a Ixtlan, pág. 186
- Olhe fixamente para ali - disse ele. - O Sol está quase a pino.
Explicou que, ao meio-dia, a luz do Sol poderia ajudar-me a não fazer. Então, deu uma série de ordens: afrouxar todas as roupas ajustadas que eu vestia, sentar-me de pernas cruzadas e olhar atentamente para o ponto que ele determinara.
. Havia muito poucas nuvens no céu e nenhuma para oeste. O dia estava quente e o Sol raiava sobre a lava solidificada. Fiquei olhando fixamente para o lugar determinado.
Depois de uma longa vigília perguntei o que, exatamente, eu deveria procurar. Ele ordenou que me calasse, com um gesto impaciente da mão.
Eu estava cansado. Queria dormir. Cerrei os olhos; eles estavam comichando e eu os esfreguei, mas minhas mãos estavam úmidas e o suor fez meus olhos arderem. Olhei para os picos de lava através de olhos semicerrados e, de repente, toda a montanha se iluminou.
Falei a Dom Juan que, se apertasse os olhos, poderia ver toda a cadeia de montanhas como uma formação complexa de fibras de luz. Ele me disse que respirasse o menos possível, para conservar a visão das fibras de luz e para não olhar intensamente, e sim com naturalidade para um ponto no horizonte bem acima da encosta. Segui suas instruções e consegui conservar a visão de uma extensão interminável coberta por uma teia de luz.
Dom Juan sussurrou baixinho que eu devia tentar isolar as áreas de escuridão dentro do campo de fibras de luz e que, logo depois de encontrar um ponto escuro, eu deveria abrir os olhos e verificar onde ficava aquele ponto na face da encosta.
Eu não conseguia perceber áreas escuras. Apertei os olhos e depois os abri, várias vezes. Dom Juan aproximou-se de mim e apontou para uma área à minha direita e depois para outra, bem defronte de mim. Tentei mudar a posição de meu corpo; pensei que, talvez, se eu mudasse minha perspectiva, conseguiria perceber a suposta área de escuridão para a qual ele estava apontando, mas Dom Juan sacudiu meu braço e me disse, severamente, para ficar quieto e ter paciência.
Voltei a apertar os olhos e tornei a ver a teia de fibras de luz.
Olhei para ela por um momento e, depois, abri mais os olhos. Naquele instante, ouvi um ronco baixinho - podia facilmente ser explicado como o som distante de um avião a jato - e então, de olhos bem abertos, vi toda a cadeia de montanhas diante de mim como um campo enorme de pontinhos de luz. Foi como se, por um breve instante, algumas pintas metálicas na lava solidificada estivessem refletindo o Sol, todas juntas. Depois, a luz do Sol embaciou-se e, de repente, apagou-se; e as montanhas se tornaram uma massa de rocha marrom opaca, ao mesmo tempo que o dia se tornava frio e ventoso.
Viagem a Ixtlan, pág. 189
- Aonde vamos? - perguntei.
Apontou para um dos lugares que ele isolara como sendo um ponto de escuridão. Explicou que não fazer lhe permitira isolar aquele ponto como um possível centro de poder, ou talvez como um local em que se poderia encontrar objetos de poder
Alcançamos o ponto que ele queria depois de uma escalada difícil. Ele ficou imóvel em minha frente por um momento. Tentei aproximar-me dele, mas Dom Juan me fez sinal com a mão para parar. Parecia estar-se orientando. Eu via as costas da cabeça dele se movendo, como se ele estivesse passando os olhos para cima e para baixo das montanhas, e depois, com passos seguros, ele se dirigiu para uma saliência. Sentou-se e começou a limpar um pouco de terra solta da pedra com a mão. Enfiou os dedos em volta de um pedacinho de rocha protuberante, limpando a terra em derredor dele; após, mandou que eu o desencavasse.
Depois que desloquei o pedaço de rocha, ele me disse que o pusesse imediatamente dentro de minha camisa, pois era um objeto de poder, que me pertencia. Disse que me estava dando aquilo para eu guardar e que eu deveria poli-lo e cuidar dele.
Viagem a Ixtlan, pág. 191
- Eu lhes mostrei um pouco do meu não fazer - disse ele, e seus olhos pareciam brilhar.
- Mas nenhum de nós viu o mesmo disfarce - retruquei.
- Como foi que você conseguiu isso?
- É tudo muito simples - respondeu. - Só eram disfarces, pois tudo o que fazemos é, de certo modo, apenas um disfarce. Tudo o que fazemos, como já lhe disse, é uma questão de fazer. Um homem de conhecimento poderia ligar-se ao fazer de qualquer pessoa e aparecer com coisas estranhas. Mas não são estranhas, não realmente.
Só são estranhas para aqueles que estão presos no fazer. Aqueles quatro rapazes e você ainda não estão cientes do não fazer, de modo que foi fácil lograr vocês todos.
- Como é que nos logrou?
- Não adianta explicar. Não há meio de você entender - Experimente, Dom Juan, por favor
- Digamos que, quando cada um de nós nasce, traz consigo um circulozinho de poder. Esse pequeno círculo é posto em uso quase que imediatamente. Assim, cada um de nós já está preso desde que nasce e os nossos círculos de poder são ligados aos de todos os outros. Em outras palavras, os nossos círculos de poder são ligados ao fazer do mundo a fim de formar o mundo.
- Dê um exemplo que eu possa entender
- Por exemplo, nossos círculos de poder, o seu e o meu, estão ligados neste momento ao fazer esta sala. Estamos formando esta sala. Nossos círculos de poder estão girando e formando esta sala neste momento mesmo.
- Espere, espere - disse eu. - Esta sala está aqui sozinha. Não a estou criando. Não tenho nada a ver com ela.
Dom Juan não parecia estar interessado em meu protesto. Assegurou calmamente que a sala em que estávamos era criada e conservada no lugar por causa da força do círculo de poder de todos.
- Entende, - continuou - cada um de nós conhece o fazer de salas porque, de uma maneira ou de outra, já passamos grande parte de nossas vidas nas salas. Um homem de conhecimento, por outro lado, desenvolve outro círculo de poder. Eu o chamaria o círculo de não fazer, pois é ligado a não fazer. Com esse círculo, portanto, ele pode fazer girar outro mundo.
Uma jovem garçonete trouxe a comida e pareceu estar meio desconfiada a nosso respeito. Dom Juan disse que eu deveria pagar--lhe para mostrar que tinha dinheiro suficiente.
- Ela não tem culpa de não confiar em você - falou, dando uma gargalhada. - Você está com uma cara dos diabos.
Paguei à mulher e dei-lhe uma gorjeta e, quando ela nos deixou sozinhos, olhei para Dom Juan, procurando um meio de pegar de novo o fio da conversa. Ele me ajudou.
- O problema com você é que ainda não desenvolveu seu círculo de poder extra e seu corpo não conhece o não fazer - disse ele.
Não entendi o que ele disse. Minha mente estava fixa numa preocupação prosaica. Eu só queria saber se ele tinha ou não vestido a roupa de pirata.
Dom Juan não respondeu, mas riu bastante. Pedi que ele explicasse.
- Mas acabei de lhe explicar - retrucou.
- Quer dizer que não vestiu nenhuma fantasia? - perguntei.
- Só o que fiz foi ligar meu círculo de poder a seu próprio fazer. Você mesmo fez o resto e os outros também.
- Nós todos fomos ensinados a concordar sobre fazer – disse ele baixinho. - Você não tem idéia do poder que essa concordância acarreta. Mas, felizmente, não fazer é igualmente milagroso e poderoso.
Viagem a Ixtlan, pág. 197
- Porque, naquele momento, eles tinham sido tocados pelo poder de não fazer e, como não são tão burros quanto você, transformaram-se em coisa muito diferente do que você conhece. Não quis que olhasse para eles por este motivo. Só lhe teria prejudicado.
Eu não tinha mais perguntas. Nem estava com fome. Dom Juan comeu com vontade e parecia estar de ótimo humor. Mas eu estava deprimido. De repente, um cansaço tremendo se apossou de mim. Compreendi que o caminho de Dom Juan era penoso demais para mim. Comentei que eu não tinha as qualificações para me tornar feiticeiro.
Viagem a Ixtlan, pág. 199
- Você é muito esperto - disse ele por fim. - Volte para onde sempre esteve. Mas dessa vez você está liquidado. Não tem para onde voltar. Não lhe vou explicar mais nada. O que Genaro lhe fez ontem, fez a seu corpo, por isso deixe seu corpo resolver como são as coisas.
O tom de voz de Dom Juan era amistoso mas singularmente indiferente e aquilo me deu uma tremenda sensação de solidão. Exprimi minha tristeza. Ele sorriu. Seus dedos pegaram de leve a parte de cima de minha mão.
- Nós dois somos seres que vamos morrer - disse ele, baixinho. - Não há mais tempo para o que costumávamos fazer. Agora, tem de usar todo o não fazer que lhe ensinei e parar o mundo.
Tornou a pegar minha mão. Seu toque era firme e amistoso; era como uma reafirmação de que ele se interessava e tinha afeição por mim e, ao mesmo tempo, me dava a impressão de um propósito inabalável.
- Este é meu gesto por você - falou, conservando-se agarrado a minha mão por um instante. - Agora, tem de ir sozinho para aquelas montanhas amigas. - Apontou com o queixo para a cadeia de montanhas distante, para sudeste.
Disse que eu teria de ficar lá até meu corpo me mandar parar e então voltar para casa dele. Deixou-me saber que não queria que eu dissesse qualquer coisa, nem esperasse mais, empurrando-me delicadamente na direção de meu carro.
- O que devo fazer lá? - perguntei.
Ele não respondeu, e ficou olhando para mim, sacudindo a cabeça.
- Isso já acabou - disse ele por fim. Em seguida, apontou o dedo para sudeste. - Vá para lá - concluiu, com rispidez.
Viagem a Ixtlan, pág. 229
- Depois que o aprendiz recebe sua tarefa de feitiçaria, está pronto para outro tipo de instrução - continuou ele. - Aí ele é um guerreiro. No seu caso, como você não era mais aprendiz, eu lhe ensinei as três técnicas que ajudam a sonhar: romper as rotinas da vida, o passo do poder, e não-fazer. Você era muito constante, burro como aprendiz e burro como guerreiro. Anotava conscienciosamente tudo o que eu dizia e tudo o que lhe acontecia, mas não agia exatamente conforme eu mandava. De modo que eu ainda tinha de bombardeá-lo com plantas de poder.
Dom Juan então deu-me uma descrição detalhada de como desviar a minha atenção de sonhar, fazendo-me acreditar que o problema importante era uma atividade muito difícil que ele chamara de não-fazer, que consistia de um jogo de percepção, de focalizar a atenção em coisas do mundo que normalmente são desprezadas, tais como as sombras das coisas. Dom Juan disse que a sua estratégia fora destacar o não-fazer, impondo a isso o maior segredo.
- Não-fazer, como tudo o mais, é uma técnica muito importante, mas não era o ponto principal- disse ele. - Você foi atraído pelo segredo. Você, uma língua de trapo, ter de guardar um segredo
Ele riu e disse que podia imaginar o trabalho que eu devia ter tido para ficar de boca calada.
Explicou que romper as rotinas, o passo do poder e não-fazer eram alamedas para aprender novos meios de perceber o mundo, e que davam ao guerreiro um vislumbre de incríveis possibilidades de ação. A idéia de Dom Juan era que o conhecimento de um mundo separado e pragmático de sonhar era possibilitado pelo uso dessas três técnicas.
Porta para o Infinito, pág. 220
- Dom Juan lhes contou mais algumas coisas sobre as pirâmides, Pablito? - perguntei.
Minha intenção era desviar a conversa sobre a questão específica das Atlantas e ao mesmo tempo ficar próximo dela.
- Disse que uma certa pirâmide lá em Tula era uma guia replicou Pablito ansiosamente.
Pelo tom da sua voz deduzi que ele realmente queria falar. E a atenção dos outros aprendizes me convenceu de que, dissimuladamente, todos queriam trocar opiniões.
- O nagual disse que era uma guia da segunda atenção - continuou Pablito - mas que foi explorada e que destruíram tudo. Ele me falou que algumas pirâmides eram gigantescos lugares de não fazer. Não eram moradas, mas lugares dos guerreiros desenvolverem seus sonhos e exercitarem sua segunda atenção. O que quer que fizessem era registrado em desenhos e figuras nas paredes.
Depois, uma nova espécie de guerreiro deve ter aparecido, uma espécie que não aprovava o que os feiticeiros da pirâmide tinham feito com a segunda atenção, e destruíram a pirâmide com tudo o que havia dentro.
"O nagual acreditava que os novos guerreiros deviam ser guerreiros da terceira atenção, como ele próprio era; guerreiros que ficavam horrorizados com o mal da fixação da segunda atenção. Os feiticeiros das pirâmides estavam ocupados demais com sua fixação para perceberem o que estava acontecendo. Quando perceberam, era tarde demais.”
Pablito tinha uma platéia. Todos na sala, inclusive eu, estavam fascinados com o que ele dizia. Compreendi as idéias que ele apresentava porque Dom Juan já as tinha explicado a mim.
Tinha dito que nosso ser total consiste em dois segmentos perceptíveis. O primeiro é o corpo físico conhecido que todos nós podemos perceber; o segundo é o corpo luminoso, um casulo que só os videntes conseguem perceber, um casulo que nos dá a aparência de ovos luminosos gigantescos. Tinha dito também que uma das metas mais importantes da feitiçaria é alcançar o casulo luminoso, uma meta que é conseguida pelo uso sofisticado do "sonho" e por um empreendimento rigoroso e sistemático a que ele dava o nome de não fazer. Definia o não fazer como um ato pouco familiar, que envolve todo o nosso ser ao forçá-lo a se tornar consciente do seu segmento luminoso.
A fim de explicar esses conceitos, Dom Juan fez uma divisão de três partes desiguais da nossa consciência. Chamou à menor "primeira atenção", a consciência que toda pessoa normal desenvolve, a fim de lidar com o mundo diário; ela abrange o conhecimento do corpo físico. À outra parte maior deu o nome de "segunda atenção", o conhecimento de que precisamos para perceber nosso casulo luminoso e para agir como seres luminosos. Disse que a segunda atenção permanece como pano de fundo durante toda a nossa vida, a não ser que seja transportada através de treinamento deliberado ou por um trauma acidental, e que ela abrange o conhecimento do nosso corpo luminoso. Chamou à última parte, a maior, de "terceira atenção", uma consciência incomensurável que envolve aspectos indefiníveis do conhecimento dos corpos físico e luminoso.
Perguntei-lhe se ele próprio tinha experimentado a terceira atenção. Ele respondeu que estava na sua periferia, e que se entrasse nela completamente eu saberia no mesmo instante, pois ele todo se tornaria o que era na realidade, uma explosão de energia. Acrescentou que o campo de batalha dos guerreiros era a segunda atenção, uma
espécie de campo de treinamento para atingir a terceira atenção. Era um estado bem difícil de se chegar, mas muito frutificante quando atingido.
- As pirâmides são nocivas - continuou Pablito. - Especialmente para feiticeiros desprotegidos como nós. São ainda piores para guerreiros sem forma como La Gorda. O nagual disse que não há nada mais perigoso que a fixação do mal da segunda atenção. Quando os guerreiros aprendem a focalizar o lado fraco da segunda atenção nada é empecilho para eles. Tornam-se caçadores de homens, vampiros. Mesmo depois de mortos podem atingir sua presa através do tempo, como se estivessem presentes aqui agora; e nos transformamos em presas se entramos numa daquelas pirâmides. O nagual chamou-as de ciladas da segunda atenção.
O Presente da Águia, pág. 19
Ele enfatizou que todas as ruínas arqueológicas do México, especialmente as pirâmides, eram nocivas ao homem moderno. Descreveu as pirâmides como expressões estranhas de pensamento e ação. Disse que todos os itens, todos os desenhos delas, eram um esforço calculado de recordar aspectos de atenção que eram completamente estranhos a nós. Para Dom Juan não só as ruínas das culturas do passado continham um elemento perigoso; qualquer coisa que fosse o objeto de uma preocupação obsessiva tinha um potencial nocivo.
Ele discutira isso detalhadamente uma vez. Foi uma reação que teve a uns comentários que eu fiz sobre não saber onde guardar minhas notas de campo com segurança. Eu as via de uma maneira muito obsessiva, e estava obcecado com a segurança delas.
- O que eu devo fazer? - tinha perguntado a ele.
- Genaro uma vez lhe deu uma solução - respondera ele.
-Você pensou, como sempre pensa, que ele estava brincando. Ele nunca brinca. Disse que você deveria escrever com a ponta dos dedos em vez de escrever a lápis. Você não o levou a sério sobre isso porque não pode imaginar que este seja o não fazer de tomar notas.
Eu argumentei que o que ele estava propondo tinha de ser uma brincadeira. Minha auto-imagem era a de um cientista social que precisava registrar tudo que era dito e feito a fim de chegar a conclusões verificáveis. Para Dom Juan uma coisa não tinha nada a ver com a outra. Ser um estudante sério não tinha nada a ver com possessividade. Eu pessoalmente não conseguia ver uma solução; certamente a sugestão de Dom Genaro me parecia humorística e não uma possibilidade real.
Dom Juan argumentou novamente. Disse que tomar notas era um modo de envolver a primeira atenção na tarefa de se lembrar, e que eu tomava notas a fim de me lembrar do que era dito e feito. A recomendação de Dom Genaro não era uma brincadeira, pois escrever com a ponta do meu dedo num pedaço de papel, como não fazer de tomar notas, forçaria minha segunda atenção, a focalizar a minha lembrança sem acumular folhas de papel. Dom Juan achava que o resultado final seria mais preciso e de mais valor que tomar notas. Nunca tinha sido feito, ao que ele soubesse, mas o princípio era sólido.
Pressionou-me a fazer isso por algum tempo. Eu fiquei perturbado. Tomar notas não só funcionava como um método mnemônico como também me acalmava. Era minha mania mais construtiva. Acumular folhas de papel me dava uma sensação de objetivo e equilíbrio.
- Quando você se preocupa com o que fazer com as suas folhas - explicou Dom Juan - está focalizando uma parte muito perigosa de você mesmo nelas. Todos nós temos esse lado perigoso, essa fixação. Quanto mais forte ficamos, mais perigosa essa parte se torna. A recomendação para os guerreiros é não ter nenhuma coisa material na qual focalizar seu poder, mas focalizá-lo no espírito, no verdadeiro vôo ao desconhecido, e não em campos triviais. No seu caso, suas notas são o seu escudo. Elas não o deixarão viver em paz.
Senti seriamente que não tinha nenhum modo possível de me dissociar das minhas notas. Dom Juan então concebeu uma tarefa para mim em lugar do não fazer característico. Disse que, para alguém tão altamente possessivo como eu, o modo mais apropriado de me libertar do meu caderno de natas seria desmantelá-lo, jogá-lo pelos ares e escrever um livro. Pensei, naquela época, que aquilo era uma brincadeira maior que a de tomar notas com a ponta dos dedos.
- Sua compulsão em possuir e se prender a essas coisas é única - disse ele. - Todo mundo que quer seguir os passos de guerreiro, o caminho de feiticeiro, tem de se livrar da sua fixação. Meu benfeitor me disse que houve uma época em que os guerreiros tinham objetos materiais nos quais colocar sua obsessão. E isso suscitou a questão de quem teria o objeto mais poderoso, ou seria o mais poderoso de todos eles. Os remanescentes desses objetos ainda existem no mundo, as sobras daquela raça que almejava o poder. Ninguém pode dizer que espécie de fixação esses objetos podem ter recebido. Homens infinitamente mais poderosos que você despejaram todos os aspectos de sua atenção neles. Você apenas começou a despejar sua preocupação insignificativa nessas suas anotações. Ainda não chegou a outros níveis de atenção. Pense como seria horrível se se encontrasse no final de sua trilha como um guerreiro ainda carregando todos os seus pacotes de notas nas costas. Àquela altura as notas estarão vivas, especialmente se você aprender a escrever com a ponta dos dedos e ainda tiver de empilhar folhas de papel. Nessas condições eu não ficaria nada surpreso se alguém encontrasse seus pacotes andando por aí.
O Presente da Águia, pág. 22
Don Juan tinha me descrito o sonho de várias maneiras. A mais obscura delas todas me parece agora ser aquela que o define do melhor modo. Ele disse que o sonho é intrinsecamente o não fazer de dormir.
Um não fazer básico designado a ajudar o sonho, era o não fazer de falar, chamado "parar o diálogo interno". Os dois se combinam no sentido de que parar o diálogo interno traz a paz necessária e descansa a mente dos praticantes, e isso por sua vez ajuda-os a controlar seus sonhos. Como o não fazer de dormir, o sonho dá aos praticantes a utilização daquela porção de suas vidas gastas no cochilo. É como se os sonhadores não mais dormissem. Mesmo assim não há mal nisso. Os sonhadores não sentem falta de sono, mas o efeito de sonhar parece ser o aumento do tempo através do uso de um pretenso corpo extra, o corpo sonhador.
Dom Juan explicou-me que o corpo sonhador é às vezes chamado de "o sósia" ou "o outro", porque é uma réplica perfeita do corpo do sonhador. É basicamente a energia de um ser luminoso, um esbranquiçado, uma emanação fantasmagórica, que é projetada pela fixação da segunda atenção numa imagem tridimensional do corpo. Explicou que o corpo sonhador não é um fantasma; é tão real quanto qualquer coisa com que lidamos no mundo. Disse que a segunda atenção é inevitavelmente levada a focalizar sobre nosso ser total como um campo de energia, e que transforma essa energia em qualquer coisa apropriada. A coisa mais fácil é, naturalmente, a imagem do corpo físico com o qual já estamos perfeitamente familiarizados em nossa vida diária, através do uso da nossa primeira atenção. O que canaliza a energia do nosso ser total a produzir qualquer coisa que esteja dentro dos limites de possibilidades é conhecido como "vontade". Dom Juan não sabia dizer quais eram esses limites, a não ser que a nível dos seres luminosos os parâmetros são tão amplos que é bobagem tentar estabelecer limites; desta forma a energia de um ser luminoso pode ser transformada, através da vontade, em qualquer coisa.
- O nagual disse que o corpo sonhador se envolve e se prende a qualquer coisa - disse Benigno. - Ele não tem sentido. Disse-me que os homens são mais fracos que as mulheres porque o corpo sonhador do homem é mais possessivo.
O Presente da Águia, pág. 24
Uma noite sentamo-nos e muito casualmente começamos a discutir o que sabíamos sobre o sonho. Tornou-se óbvio para nós que havia alguns assuntos-chave aos quais Dom Juan dera ênfase especial.
Primeiro era o ato de sonhar. Na nossa opinião ele começava como um estado de consciência único, ao qual se chegava aprendendo a focalizar o resíduo de consciência que a pessoa ainda tem enquanto dorme, sobre os elementos ou os detalhes dos sonhos da pessoa.
O resíduo de consciência, a que Dom Juan chamava segunda atenção, era levado à ação, ou era aproveitado através de exercícios do não fazer. Achávamos que o não fazer essencial do sonho era um estado de quietude mental, ao qual Dom Juan chamava de "parar o diálogo interno", ou o não fazer de falar. A fim de me ensinar como manejá-lo ele costumava me fazer andar quilômetros com os olhos fixos e fora de foco a um nível logo ao fim da linha do horizonte, permitindo assim que eu tivesse uma visão periférica. Seu método era eficiente por dois motivos: permitia-me parar meu diálogo interno depois de ter tentado durante anos, e treinava minha atenção. Forçando-me a concentrar-me na minha visão periférica, Dom Juan reforçava minha capacidade de me concentrar por longo tempo em uma única atividade.
Mais tarde, quando eu tinha conseguido controlar minha atenção e podia trabalhar durante horas em qualquer tarefa a que me impunha sem me distrair - coisa que nunca antes fora capaz de fazer - ele me disse que o melhor modo de buscar um sonho era me concentrar na área próxima à ponta do esterno, na boca do estômago. Falou que a atenção que um homem necessita para sonhar deriva-se daquela área, mas que a energia a fim de se mover e procurar no sonho origina-se da área a uns três a seis centímetros abaixo do umbigo. Ele chamava a essa energia "vontade" ou poder de selecionar, de acumular. Numa mulher tanto a atenção quanto a energia para o sonho originam-se do ventre.
- O sonho de uma mulher tem de vir do seu ventre porque é esse o seu centro - disse La Gorda. - Para que eu comece a sonhar ou parar o sonho, tudo o que tenho a fazer é colocar minha atenção no ventre. Aprendi a sentir o seu interior. Vejo um brilho avermelhado por um instante e então se dá o seu início.
O Presente da Águia, pág. 112
La Gorda disse que Dom Juan lhe falou que qualquer coisa pode servir como um não fazer para ajudar o sonho, desde que force a atenção a permanecer fixa. Ele fazia com que ela e todos os outros aprendizes, por exemplo, olhassem para as folhas e pedras, e encorajava Pablito a formar seu próprio dispositivo de não fazer. Pablito começou com o não fazer de andar para trás. Para se movimentar dava olhadas rápidas para os lados a fim de saber para onde ia e evitar obstáculos no caminho. Dei-lhe a idéia de usar um espelho retrovisor, e ele desenvolveu essa idéia, construindo um capacete de madeira com uma parte que prendia dois espelhos pequenos, a uns doze centímetros do rosto e quatro centímetros abaixo do nível dos olhos. Os dois espelhos não interferiam com sua visão frontal, e, devido ao ângulo lateral no qual estavam presos, cobriam toda a área atrás dele. Pablito se gabava de ter uma visão periférica do mundo de 360º. Auxiliado pelo seu dispositivo podia andar para trás a qualquer distância, ou durante qualquer tempo.
O Presente da Águia, pág. 114
Para nosso primeiro não fazer Silvio Manuel construiu um engradado de madeira grande o suficiente para acomodar La Gorda e eu, de modo a ficarmos sentados de costas um para o outro, com o joelho para o alto. O engradado tinha uma tampa de treliça para deixar passar o ar. La Gorda e eu tínhamos de entrar e sentar na escuridão, em silêncio total, sem dormir. Ele começou fazendo-nos entrar na caixa por breves períodos; depois aumentou o tempo à medida que nos acostumávamos com a coisa, até podermos passar toda uma noite dentro, sem nos mover ou dormir.
A mulher nagual ficou conosco para se certificar de que não mudaríamos nossos níveis de conscientização devido ao cansaço. Silvio Manuel disse que nossa tendência natural sob condições incomuns seria mudar do elevado estado de conscientização para o estado normal, e vice-versa.
O efeito geral do não fazer, toda vez que agíamos, era nos dar uma inigualável sensação de repouso, o que me deixava inteiramente intrigado, já que não podíamos dormir durante nossas longas noites de vigília. Atribuí a sensação de repouso ao fato de estarmos em estado de elevada conscientização, mas Silvio Manuel disse que uma coisa não tinha nada a ver com a outra, que a sensação de repouso era resultado de sentarmos com os joelhos para cima.
O segundo não fazer consistia em nos fazer deitar no chão como se fôssemos cachorros enroscados, quase que em posição fetal, apoiados no lado esquerdo, na testa e nos braços dobrados. Silvio Manuel insistiu que fechássemos os olhos tanto quanto possível, abrindo-os apenas quando ele nos mandasse trocar de posição e virar para o lado direito. Disse-nos que o objetivo desse não fazer era forçar nosso sentido de audição a se separar da nossa visão. Como antes, aumentou gradualmente o tempo até que passássemos toda uma noite em vigília.
Silvio Manuel estava então pronto para nos passar para outra área de atividade. Explicou que nos primeiros dois não fazeres tínhamos quebrado uma certa barreira de percepção enquanto ficávamos presos ao chão. Por analogia, comparou os seres humanos às árvores. Somos como que árvores móveis, tendo de alguma forma raízes no chão, raízes essas que nos permitem mover mas que não nos separam do chão. Disse que a fim de estabelecermos equilíbrio tínhamos de desenvolver o terceiro não fazer pendurados no ar. Se tivéssemos êxito enquanto suspensos de uma árvore dentro de um arreio de couro, faríamos um triângulo com nossa intenção, triângulo com base no chão e no seu vértice no ar. Silvio Manuel achava que tínhamos reunido nossa atenção com os dois primeiros não fazeres a ponto de podermos realizar o terceiro perfeitamente, desde o início.
O Presente da Águia, pág. 187
Sua alegação era que a percepção sofre um choque profundo quando estamos colocados em estado de quietude no escuro. Nossa audição toma a frente então e os sinais de todas as entidades vivas e existentes à nossa volta podem ser detectados - não apenas com nossa audição, mas por uma combinação dos sentidos auditivos e visuais, nessa ordem. Disse que na escuridão, especialmente enquanto suspensos, os olhos se tornam secundários aos ouvidos.
Ele estava absolutamente certo, como La Gorda e eu descobrimos. Com o exercício do terceiro não fazer Silvio Manuel nos deu uma nova dimensão à nossa percepção do mundo que nos rodeia.
Ele então disse a La Gorda e a mim que o próximo conjunto de não fazer seria intrinsecamente diferente e mais complexo. Relacionava-se ao aprendizado de como lidar com o outro mundo. Era necessário maximizar o esforço, mudando nosso tempo de ação para o início da noite ou o início da madrugada. Disse-nos que o primeiro não fazer do segundo conjunto tinha dois estágios. No primeiro estágio tínhamos de atingir nosso estado mais alerta de elevada conscientização a fim de detectarmos a parede de névoa. Uma vez feito isso, o segundo estágio consistiria em fazer aquela parede parar de girar, a fim de nos aventurarmos no mundo entre as linhas paralelas.
A visou-nos que o que pretendia era nos colocar diretamente na segunda atenção, sem qualquer preparação intelectual. Queria que aprendêssemos os detalhes sem uma compreensão racional do que estávamos fazendo. Sua alegação era que um veado mágico ou um coiote mágico manipula a segunda atenção sem ter nenhum intelecto.
Através da prática forçada de passarmos para trás da parede de névoa, iríamos empreender, mais cedo ou mais tarde, uma permanente alteração no nosso ser total, alteração essa que nos faria aceitar que o mundo entre as linhas paralelas é real, pois é parte do mundo total, como nosso corpo luminoso é parte do nosso ser total.
O Presente da Águia, pág. 189
La Gorda e eu tínhamos estado tão envolvidos em nossas viagens por trás da parede de névoa que tínhamos nos esquecido que estava na hora da nossa próxima série de não fazer com Silvio Manuel. Ele nos disse que ela poderia ser devastadora e que consistia em atravessar as linhas paralelas com as três irmãzinhas e os três Genaros, diretamente para a entrada no mundo de total conscientização. Não incluiu Dona Soledad porque seus não fazeres eram destinados apenas a sonhadoras, e ela era espreitadora.
Silvio Manuel acrescentou que esperava que nós nos tornássemos familiarizados com a terceira atenção se nos colocássemos ao pé da Águia diversas vezes. Ele nos preparou para o choque; explicou que as viagens de um guerreiro às dunas de areia desolados eram um passo preparatório para a verdadeira travessia das fronteiras. Aventurar-se para além da parede de névoa num estado de elevada conscientização ou durante um sonho implicava apenas uma porção muito pequena de nossa conscientização total, enquanto que atravessar corporalmente para o outro mundo implicava o comprometimento do nosso ser total.
Silvio Manuel concebera a idéia de usar uma ponte como símbolo de uma verdadeira travessia. Argumentou que a ponte era adjacente a um lugar de poder; e os lugares de poder eram aberturas, passagens para o outro mundo. Achava que seria possível que La Gorda e eu adquiríssemos força suficiente para enfrentar um vislumbre da Águia.
O Presente da Águia, pág. 192
- Desculpe - disse. - Você falou que vai me contar sobre sua vida pessoal?
- Por que não? - perguntou ela.
Respondi, usando a explicação que me fora dada por Dom Juan sobre a força negativa da história pessoal e da necessidade que o guerreiro tinha de apagá-la. Terminei dizendo que ele tinha me proibido de falar qualquer coisa sobre a minha vida.
Ela riu com uma voz alta de falsete. Parecia encantada.
- Isso só se aplica aos homens - disse. - O não fazer da sua vida pessoal é contar histórias sem fim, mas nenhuma sobre sua vida real. Como homem, você tem uma história sólida por trás. Uma família, amigos, conhecidos, e todos eles com uma idéia definida sua. Como homem você é responsável. Não pode desaparecer tão facilmente. Para se apagar teria de ter muito trabalho. Meu caso é diferente. Sou mulher, o que me traz muita vantagem. Não sou responsável. Você não sabe que as mulheres não são responsáveis?
- Não entendo o que quer dizer com responsável - falei.
- Quero dizer que a mulher pode desaparecer facilmente replicou. - A mulher pode se casar, por exemplo. Ela pertence ao marido. Numa família com muitos filhos, as filhas são descartadas muito cedo. Ninguém conta com elas, e há possibilidade de umas desaparecerem, sem deixarem vestígio e esses desaparecimentos serem facilmente aceitos.
- O filho, ao contrário, é alguém com quem se conta. Não é fácil para o filho eclipsar-se e desaparecer. E mesmo se fizer isso, deixará vestígios. Ele sente-se culpado se desaparecer. A filha não.
- Quando o nagual o treinou a ficar de boca fechada em relação à sua vida pessoal, pretendia ajudá-lo a superar seu sentimento de ter cometido um erro com sua família e amigos, que contavam com você de uma forma ou de outra.
- Depois de toda uma vida de luta o guerreiro termina apagando-se, naturalmente, mas essa luta tem um preço para o homem. Ele se torna misterioso, sempre em guarda contra si próprio. A mulher já está preparada para se desintegrar no ar. Na verdade, espera-se isso dela.
- Como mulher, não sou obrigada ao segredo. Não dou a mínima para isso. Segredo é o preço que vocês homens têm de pagar por serem importantes para a sociedade. A luta é só para os homens, porque eles se ressentem de terem de se apagar e encontrariam modos curiosos de surgirem em a1gum lugar, de alguma forma. Veja o seu exemplo; você vive fazendo conferências.
O Presente da Águia, pág. 214
- Disse que seu benfeitor considerava as três técnicas básicas da espreita - o engradado, a lista de acontecimentos a serem recapitulados, e a respiração do espreitador - como sendo as tarefas talvez mais importantes de um guerreiro. Ele achava que uma recapitulação profunda era o meio mais eficiente para se perder a forma humana. Portanto, seria fácil para os espreitadores, depois de recapitularem suas vidas, fazer uso de todos os não fazeres do seu eu, tais como apagar sua história pessoal, perder a auto-importância, quebrar as rotinas, e assim por diante.
O Presente da Águia, pág. 230
Dom Juan disse que a função dos não fazeres é criar uma obstrução na focalização habitual da nossa primeira atenção. Os não fazeres são, nesse sentido, manobras designadas a preparar a primeira atenção para o bloqueio funcional do primeiro anel de poder.
Ele explicou que esse bloqueio funcional, o único método de utilizar sistematicamente a capacidade latente do primeiro anel de poder é uma interrupção temporária que o benfeitor cria na capacidade de reunir vestígios dos seus discípulos. É uma intromissão artificial; uma invasão deliberada e forçada à primeira atenção, designada para empurrá-la além do verniz superficial dos vestígios familiares; uma intromissão atingida por meio da obstrução da intenção do primeiro anel de poder.
O Presente da Águia, pág. 258
Devo ter parecido cético a Don Juan, pois ele explicou que o mundo de nossa auto-reflexão ou de nossa mente era muito inconsistente e era mantido coeso por algumas poucas idéias-chave que serviam como sua ordem subjacente. Quando essas idéias falhavam, a ordem subjacente parava de funcionar.
- Quais são essas idéias-chave, Don Juan?
- Em seu caso, naquela instância em particular, como no caso da audiência daquela curandeira sobre a qual falamos, a continuidade era a idéia-chave.
- O que é continuidade?
- A idéia de que somos um bloco sólido. Em nossas mentes, o que sustenta o nosso mundo é a certeza de que somos imutáveis. Podemos aceitar que nosso comportamento pode ser modificado, que nossas reações e opiniões podem ser modificadas, mas a idéia de que somos maleáveis a ponto de mudar de aparência, a ponto de ser alguma outra pessoa, não é parte da ordem subjacente de nossa auto-reflexão. Sempre que um feiticeiro interrompe essa ordem, o mundo da razão pára.
Desejei perguntar-lhe se quebrar a continuidade de um indivíduo era suficiente para causar o movimento do ponto de aglutinação. Ele pareceu antecipar minha pergunta. Disse que essa quebra era apenas um suavizador. O que ajudava o ponto de aglutinação mover-se era a implacabilidade do nagual.
Comparou então os atos que executara naquela tarde em Guaymas com os atos da curandeira que havíamos discutido previamente. Explicou que a curandeira havia estraçalhado a auto-reflexão das pessoas de sua audiência com uma série de atos para os quais eles não tinham equivalentes em suas vidas diárias - a dramática possessão do espírito, mudança de vozes, abertura do corpo do paciente. Assim que a continuidade da idéia deles próprios foi quebrada, seus pontos de aglutinação estavam prontos para ser movidos.
Lembrou-me de que havia descrito para mim no passado o conceito de parar o mundo. Comentara que parar o mundo era tão necessário para os feiticeiros quanto ler e escrever o eram para mim. Consistia em introduzir um elemento dissonante no tecido do comportamento cotidiano para deter o fluxo de outro modo suave dos eventos ordinários - eventos que eram catalogados em nossas mentes por nossa razão.
O elemento dissonante era chamado “não fazer”, ou o oposto de fazer. "Fazer" era tudo que fosse parte de um todo para o qual tínhamos um valor cognitivo. Não fazer era um elemento que não pertencia àquele todo mapeado.
- Os feiticeiros, por serem espreitadores, compreendem bem o comportamento humano - disse ele. - Compreendem, por exemplo, que os seres humanos são criaturas de inventários. Saber os itens que entram ou não entram em um inventário em particular é o que torna o homem um estudioso ou especialista em seu campo.
- Os feiticeiros sabem que quando o inventário de uma pessoa comum falha, a pessoa ou aumenta seu inventário ou o mundo de sua auto-reflexão entra em colapso. A pessoa comum está disposta a incorporar novos itens em seu inventário se estes não contradisserem a ordem subjacente do inventário. Mas se os itens contradisserem essa ordem, a mente da pessoa entra em colapso. O inventário é a mente. Os feiticeiros contam com isso quando tentam quebrar o espelho da auto-reflexão.
O Poder do Silêncio, pág. 165
- Parece que não vamos conseguir nos livrar dele – disse num tom de resignação. - Vamos caminhar com calma, como se estivéssemos dando um belo passeio no parque, e você me contará a história de sua infância. Este é o momento e o cenário certos para isso. Um jaguar está atrás de nós com um apetite voraz, e você está se lembrando sobre o passado: o perfeito não-fazer para estar sendo caçado por um jaguar.
Ele riu alto. Mas quando lhe falei que havia perdido completamente o interesse em contar a história, ele dobrou-se de risos.
- Está me punindo agora por não querer ouvi-lo, não é mesmo?
E eu, é claro, comecei a defender-me. Disse-lhe que sua acusação era definitivamente absurda. De fato perdi o fio da meada.
- Se um feiticeiro não tem auto-estima, não dá uma bosta por ter perdido o fio da história - disse ele com um brilho malicioso nos olhos. - Como você não tem mais qualquer auto-estima, deve contar sua história agora. Conte-a ao espírito, ao jaguar, e a mim, como se não tivesse perdido o fio em momento algum.
O Poder do Silêncio, pág. 197
O tópico inicial foi o que definiu como "não fazer", uma atividade especialmente projetada para banir de nossas vidas todo o vestígio de cotidianidade. Afirmou que o não fazer é o exercício favorito dos aprendizes, porque os introduzem em um ambiente de maravilha e desconcerto muito refrescante para a energia, cujo efeito sobre a consciência eles chamam de "parar o mundo"
Respondendo a algumas questões, explicou que o não fazer não pode ser racionalizado. Qualquer esforço para tentar entendê-lo, é na realidade uma interpretação do ensino e cai automaticamente no campo de fazer.
"A premissa dos bruxos para tratar com este tipo de prática é o silêncio mental. E a qualidade de silêncio requerido para algo tão descomunal quanto parar o mundo, só pode vir de um contato direto com a grande verdade de nossa existência: que todos nós vamos morrer".
Ele nos aconselhou:
"Se vocês querem conhecer a si mesmos, sejam conscientes de sua morte pessoal. Ela não é negociável e é a única coisa que vocês realmente têm. Todo o resto poderá falhar, mas a morte não, a ela podem dar por certo. Aprendam a usá-la para produzir efeitos verdadeiros em suas vidas.
"Também, parem de acreditar em contos da carochinha, ninguém os quer lá fora. Nenhum de nós é tão importante para que hajam inventado algo tão fantástico como a imortalidade. Um bruxo que tem humildade sabe que o destino dele é o de qualquer outro ser vivo desta terra. Assim, em vez de se iludir com falsas esperanças, ele trabalha concreta e duramente para sair de sua condição humana e tomar a única saída que nós temos: a quebra de nossa barreira perceptual.
"Ao mesmo tempo em que escutam o conselho da morte, façam-se responsáveis por suas vidas, da totalidade das suas ações. Explorem-se, reconheçam-se e vivam intensamente, como vivem os bruxos. A intensidade é a única coisa que pode nos salvar do aborrecimento.
"Uma vez alinhados com a morte, estarão em condições de dar o seguinte passo: reduzir ao mínimo a bagagem. Este é um mundo prisão e é necessário sair como fugitivos, sem levar nada.
Os seres humanos são viajantes por natureza. Voar e conhecer outros horizontes é nosso destino. Por acaso você sai de viagem com sua cama ou com a mesa em que come? Sintetiza sua vida!.
Encontros com o Nagual, pág. 51
Um método infalível para conseguir o silêncio é através do "não fazer", uma atividade que nós programamos com nossa mente, mas que tem a virtude de silenciar os pensamentos uma vez que é começado. Don Juan chamava esse tipo de técnica de 'tirar um espinho com outro'".
Apresentou como exemplos de não fazer: escutar na escuridão, trocando a prioridade de nossos sentidos e o comando que nos força a dormir assim que nós fechamos os olhos. Também, conversar com as plantas, parar de ponta cabeça, caminhar para trás, observar as sombras, a distância ou os espaços entre as folhas das árvores.
"Todas essas atividades são das mais efetivas para silenciar nosso diálogo interno, mas elas têm um defeito: não as podemos sustentar durante muito tempo. Depois de um momento, somos forçados a recuperar nossas rotinas. Um não fazer que é exagerado, automaticamente perde o poder e cai dentro de fazer.
"Se o que nós queremos é acumular silêncio profundo, de efeitos duradouros, o melhor não fazer é a solidão. Junto com a economia da energia e o abandono desses que nos dão por feitos. Aprender a estar só é o terceiro princípio prático do caminho.
"O mundo do guerreiro é a coisa mais solitária que há. Até mesmo quando vários aprendizes se unem para viajar pelas rotas do poder, cada um sabe que está sozinho, que não pode esperar nada do outro nem depender de ninguém. O máximo que ele pode fazer é compartilhar o caminho com aqueles que o acompanham.
"Estar só requer um grande esforço, porque nós ainda não aprendemos a superar o comando genético da socialização. No princípio, o aprendiz deve ser forçado a isto pelo seu mestre, através de armadilhas se for necessário. Mas com o tempo aprende a desfrutá-lo. É normal que os bruxos busquem o silêncio na solidão da montanha ou do deserto e que vivam sozinhos durante longos períodos".
Alguém comentou que essa era "uma perspectiva horrorosa"
Carlos respondeu:
- Horroroso é chegar à velhice como umas crianças choronas!
Encontros com o Nagual, pág. 93
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